sábado, julho 27, 2024

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,1-15 (ANO B)

 


Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia inicia uma sequência de cinco domingos de leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, dando uma pausa temporária na leitura de Marcos. Trata-se de uma particularidade do ano litúrgico B, em virtude da brevidade do Evangelho de Marcos, comparado aos outros sinóticos. Por não ter material suficiente para todo o ano, recorre-se ao Quarto Evangelho, como complemento. Para hoje, especificamente, a liturgia contempla os primeiros quinze versículos deste capítulo: Jo 6,1-15. É o relato do episódio chamado popularmente de “multiplicação dos pães”, embora esse não seja o título mais apropriado. Se a liturgia estivesse seguindo a sequência de Marcos, seria também esse o episódio lido, pois corresponde à sequência imediata do que fora lido domingo passado. Portanto, a liturgia trocou o livro, mas não alterou a sequência temática.

É importante recordar que, no domingo passado, o evangelho foi concluído com a afirmação que Jesus, ao ver a multidão, «teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc 6,34). A primeira reação de Jesus, ao ver a multidão, foi a compaixão, e a primeira atitude foi ensinar. Mas, como não bastava o ensinamento, a esse seguiu-se o gesto da partilha dos pães (Mc 6,35-42), como resposta à situação de abandono e sofrimento vividos pela multidão. Ora, a primeira consequência do abandono vivido pelo povo era a fome, como continua sendo hoje, devido à negligência dos maus governantes. A passagem do ensinamento à partilha do alimento mostra como Jesus sabia associar bem o ensinamento com a práxis, como deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos. Os sentimentos de Jesus eram acompanhados de respostas concretas aos sofrimentos das pessoas. Portanto, apesar de estarmos hoje lendo outro Evangelho, é importante que este episódio seja compreendido como consequência da compaixão de Jesus diante do abandono e sofrimento do povo.

O episódio da “condivisão dos pães”, expressão mais apropriada do que multiplicação, é o único milagre ou sinal de Jesus narrado pelos quatro Evangelhos, com seis versões (Mateus e Marcos narram duas vezes), sendo que a versão joanina é a mais rica em detalhes e, consequentemente, em teologia, sendo ainda completada por um longo discurso de revelação de Jesus, no qual ele se autoapresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas, como veremos nos domingos seguintes. Esse discurso é considerado uma verdadeira catequese eucarística. Convém recordar que o Evangelho de João é muito contido em relação aos milagres de Jesus. Narra somente sete, aos quais nem sequer chama de milagres, mas de sinais, o que revela bastante prudência e profundidade da parte do evangelista. Ora, o sinal não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade que lhe ultrapassa, que vai além do que se experimenta e se vê. E no conjunto do Quarto Evangelho, a condivisão dos pães (e peixes) é o quarto sinal; está localizado exatamente no meio dos sete, e no centro literário da primeira parte da obra, chamada de “Livro dos sinais” (Jo 1–11). Logo, é clara também a sua centralidade teológica.

O texto diz que «Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades» (v. 1). Como se sabe, o que os evangelhos chamam de mar da Galileia era apenas um grande lago. O único evangelista que o chama de lago mesmo é Lucas. Os demais chamam de mar, certamente, por razões teológicas, tendo em vista o significado de adversidade e hostilidade que o mar representava para a mentalidade semita, o qual era considerado a morada do mal e, por isso, era sinônimo de perigo. Logo, atravessá-lo significava superar o mal. Enquanto nos sinóticos a passagem para outra margem significa a abertura ao mundo pagão e o encontro com as pessoas marginalizadas, em João é mais uma recordação do êxodo. Essa abertura ao mundo pagão já estava consolidada na época da redação do Quarto Evangelho, por isso, já não entra em discussão aqui. A travessia de uma margem a outra do mar por Jesus recorda o primeiro êxodo, mas não como mera repetição, e sim como superação.

A superioridade do novo êxodo proposto por Jesus ficará mais evidente no evangelho do próximo domingo (Jo 6,24-35), quando ele fará a contraposição entre o pão dado por ele, que é a sua própria pessoa, e o pão dado aos antepassados no deserto (o maná), por intercessão de Moisés. Ora, mesmo vivendo na terra dado por Deus, o povo tinha perdido a verdadeira liberdade; logo, os efeitos do êxodo já não eram mais experimentados. O sistema religioso vigente, aliado ao sistema político dominante – o império romano – tinha assumido o papel do faraó do Egito, oprimindo o povo em todos os sentidos, desde o campo ideológico ao econômico. Por isso, a mensagem de Jesus é um convite à libertação porque o povo tinha se tornado escravo novamente. O destino do novo êxodo não é uma terra distante nem uma vida no além: é o Reino de Deus, uma sociedade alternativa, com um sistema baseado na partilha, solidariedade, amor, justiça e dignidade.

Jesus chamava a atenção das pessoas e atraía a multidão em seu seguimento «porque viam os sinais que ele operava a favor dos doentes» (v. 2). O termo que o texto litúrgico traduz por “doentes” significa muito mais, na língua original (em grego: ἀσθενούντων - asthenunton): significa as pessoas fracas, debilitadas, sem forças, fragilizadas, dentre as quais incluem-se os doentes; enfim, significa a totalidade das pessoas das marginalizadas, sendo que uma das principais causas da marginalização era mesmo a doença. Eram as pessoas que a religião tinha descartado, exatamente porque não tinham o que oferecer aos cofres do templo. E os sinais operados por Jesus eram, preferencialmente, em favor dessas pessoas, visando restituir-lhes a dignidade e o sentido para a vida. Portanto, as multidões se admiravam com Jesus, devido ao seu jeito de acolher, porque se sentiam representadas pela sua mensagem humanizadora e, é claro, porque também queriam aproveitar-se materialmente dos sinais realizados por ele, o que será advertido por ele mesmo no discurso seguinte, como veremos nos próximos domingos.

As multidões seguiam Jesus enquanto «estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus» (v. 4). Com isso, o evangelista enfatiza Jesus como único sinal autêntico de libertação e alternativa para aquele povo abandonado como ovelha sem pastor. A Páscoa, como “festa dos judeus”, tinha sido transformada em instrumento de exploração, dominação e manutenção da ordem vigente. Por isso, mesmo sutilmente, o evangelista apresenta uma grande ironia: aquela festa celebrada em Jerusalém já não era Páscoa de Iahweh, não era mais a celebração da libertação do povo pobre escravizado, mas a “festa dos judeus”. É importante recordar que quando João usa o termo judeus, e o faz com bastante frequência, não se refere a todo o povo, mas às classes e grupos dirigentes, principalmente aos sacerdotes do templo que, de fato, tinham desfigurado o rosto verdadeiro de Deus. Assim, Jesus é apresentado como a alternativa de Deus à religião opressora do templo, e os primeiros a perceber isso são as pessoas mais simples e humildes, os pobres e excluídos que o seguem, as pessoas que tinham sido abandonadas pelos maus pastores de Israel.

A multidão que segue Jesus é um povo com necessidades concretas que não podem ser ignoradas. E Jesus reconhece logo qual é a primeira necessidade: o alimento. De acordo com o texto, ninguém lhe pediu nada, ninguém lhe disse que estava com fome; foi ele mesmo quem percebeu e logo se solidarizou, se preocupou com a fome do povo. Jesus se sente responsável, junto com seus discípulos, e transmite essa responsabilidade para a sua comunidade cristã, ao longo da história. Ele percebeu que aquele seria um bom momento para medir o aprendizado e a maturidade dos seus discípulos, por isso, provocou Filipe, mesmo já sabendo o que iria fazer: «Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?» (v. 5). A resposta de Filipe é baseada em cálculos. Ele simplesmente apela para o campo da economia, avaliando a situação com as categorias do mercado: «Nem duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão a cada um» (v. 7). Como se vê, a tentação de Filipe é de reproduzir na comunidade do Reino as relações do sistema econômico, baseado na lógica de compra e venda, enquanto a dinâmica da comunidade cristã deve ser outra: a partilha.

André, o outro discípulo que interage com Jesus e atua diretamente no episódio, parece começar a compreender a lógica de Jesus, embora ainda não tivesse muita convicção: «Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isso para tanta gente?» (v. 9). Ora, enquanto Filipe pensou em solucionar o problema com base na lógica do mercado, através das relações de compra-venda, André olhou para a própria comunidade, percebendo o que já tinha para ser colocado em comum, mesmo reconhecendo não ser suficiente. Aqui está a transição para a proposta de Jesus, que é a lógica do Reino: a solução dos problemas da comunidade deve ser buscada em seu próprio interior, ou seja, a partir de dentro. Os cristãos e cristãs não podem esperar chegarem as condições ideais para o Reino de Deus se estabelecer plenamente; devem começar a viver os valores do Reino, mesmo em condições desfavoráveis, com o pouco que tem, e é assim que o Reino vai se edificando na história, aos poucos, a tempo e contratempo.

Embora considerando insuficiente, a observação de André é muito importante e merece ser recordada: «um menino tem cinco pães de cevada e dois peixes». Um menino era uma figura muito pouco representativa na época, sem nenhum valor reconhecido, uma vez que não produzia. Para enfatizar ainda mais esse aspecto, o evangelista emprega o diminutivo: um menininho (em grego: παιδάριον – paidárion), embora a tradução do lecionário não favoreça a percepção desse detalhe. À luz da lógica vigente, um menininho era uma pessoa que nada nada teria a contribuir na solução de um grande problema. Pelo contrário, ele era visto como parte do problema, ao invés de iluminar a solução. Isso torna a ideia de André altamente revolucionária para o contexto, embora necessite aprimorá-la. O pão de cevada era o alimento dos pobres, pois a cevada era o grão mais barato; os ricos comiam o pão de trigo. Os dois peixes servem de complemento numérico para chegar a sete, número que evoca completude. Certamente, essa quantidade era tudo o que a família do menininho tinha levado. Com isso, o evangelista indica que, para resolver os problemas mais urgentes, é suficiente cada um colocar à disposição de todos o pouco que tem, o que André ainda não tinha compreendido suficientemente, mas estava a caminho da plena compreensão. O menininho com os cinco pães e os dois peixes é, portanto, a imagem ideal do discípulo/discípula e da comunidade cristã. Antes de tudo, para entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo é o que realmente conta. As soluções para os problemas da comunidade devem vir de dentro, e dependem essencialmente dos pequeninos. A comunidade é saciada quando o pouco que cada um tem é colocado em comum; isso ocorre quando cada um considera aquilo que tem como dom de Deus e, por isso, destina à partilha.

O menininho não mostrou resistências, entregou tudo o que tinha e «Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes» (v. 11). André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam suficientes. Jesus foi mais além: “tomou os pães e deu graças”, ou seja, agradeceu pelo pouco que se tinha! O evangelista usa aqui o verbo grego do qual originou-se a palavra eucaristia (verbo εὐχαριστέω – eukharistêo). Eucaristia é, portanto, agradecimento, ação de graças pelos dons partilhados. Logo, para ter sentido na vida das comunidades, a eucaristia deve estar relacionada à partilha, à vivência da comunhão fraterna, incluindo a condivisão do pão e de outras necessidades, conforme a realidade de cada comunidade. O pão aparece como primeiro sinal, porque a fome é o problema urgente, é algo que não pode esperar. Sem essa relação com as necessidades concretas, o que as comunidades chamam de Eucaristia pode não passar de teatro, sem sequer aproximar-se da Eucaristia de Jesus. Assim como o evangelista começava a distinguir a Páscoa dos judeus da páscoa de Jesus, nos tempos atuais pode-se distinguir a Eucaristia de Jesus do conjunto de ritos que certos grupos fechados chamam de eucaristia, onde os pequeninos não tem espaço.

Ainda sobre a(s) atitude(s) de Jesus, ao receber os pães e os peixes, merece atenção a sequência apresentada pelo evangelista, que indica a lógica do Reino e constitui uma verdadeira rede de solidariedade: «tomou os pães, deu graças e distribuiu-os», dito de maneira mais simples, temos: “receber – agradecer – partilhar”. É essa lógica que o evangelista quer imprimir em cada comunidade leitora da sua obra, à luz dos ensinamentos e atitudes de Jesus. Muitos pormenores e dúvidas ficam, certamente, nas entrelinhas do texto, o que não ofusca o grande ensinamento de Jesus para a sua comunidade. André observou que um menininho estava com cinco pães e dois peixes, mas não diz que era somente aquele que tinha algo que poderia ser partilhado. O importante é que alguém teve coragem de começar a colocar à disposição dos outros o pouco que tinha, e Jesus deu graças por aquilo. No final, todos ficaram satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade, e começando por quem menos parecia ter condições de ajudar a solucionar um grande problema: um menininho. Tendo ficado todos satisfeitos, percebendo o que ainda tinha sobrado, «Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido”» (v. 12-13). O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas, ou seja, ninguém passaria fome se todos vivessem concretamente o espírito da partilha. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.

Assim como todos os sinais cumpridos por Jesus no Evangelho de João visam a manifestação da glória de Deus e o despertar da fé no Verbo Encarnado, também o sinal da condivisão dos pães despertou reação e reconhecimento: «Este é verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo» (v. 14). Porém, essa é uma imagem insuficiente para descrever Jesus. Vê-lo como apenas como profeta é colocá-lo em continuidade com a antiga aliança e, portanto, negar a insuficiência e decadência daquela aliança que ele denuncia com os sinais cumpridos. Inclusive, a continuidade dos sinais ao longo do livro, mostra a necessidade de Jesus continuar revelando sua novidade messiânica e a superação da antiga aliança. A prova definitiva da incompreensão do povo em relação a Jesus está no último versículo: «Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte» (v. 15). Enquanto Jesus queria ver o povo livre e emancipado, ensinando inclusive a encontrar a solução para os problemas dentro da própria comunidade, o povo faz o contrário: ao invés de viver a liberdade, quer um soberano para si, alguém que o domine e governe. Para o problema da fome, por exemplo, Jesus mostrou que a comunidade tem capacidade de superar quando vive o espírito da partilha e da solidariedade. A proclamação de Jesus como rei seria uma deformação do seu messianismo, o que persistirá por muito tempo na comunidade, inclusive entre os discípulos, como mostrará João na última ceia, com a resistência de Pedro à atitude serviçal de Jesus no lava-pés (Jo 13,6ss).

O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, e deve saber reconhecer as situações que não podem esperar, como a fome. O exemplo do menininho, colocando à disposição da comunidade os cinco pães e os dois peixes, e a atitude de Jesus rendendo graças pelo pouco que tinha, oferecem muitas luzes para os cristãos de todos os tempos. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do Reino, mas é ela mesma que tem de criar tais condições, encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, como veremos nos próximos domingos. Mas, no texto específico de hoje, a ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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