A liturgia deste
vigésimo quinto domingo do tempo comum apresenta mais um passo importante do
caminho de Jesus com seus discípulos, conforme a dinâmica narrativa e catequética
de Marcos. Trata-se de um caminho em dois níveis: o primeiro, compreende um
percurso físico da Galileia para Jerusalém, cujo percurso encontra-se ainda no início,
conforme o texto lido hoje; no segundo nível, trata-se de um itinerário
catequético-teológico que visa despertar nos discípulos um conhecimento mais
aprofundado da identidade de Jesus, tendo em vista reforçar as convicções para
continuarem no seu seguimento. Os resultados, contudo, não são tão positivos,
pois, à medida em que avançam no caminho, a mentalidade dos discípulos se
distancia cada vez mais da proposta de Jesus. O evangelho de hoje – Mc 9,30-37
– mostra muito bem isso. Embora não seja a sequência imediata do texto lido no
passado (Mc 8,27-35), ambos estão intrinsecamente relacionados. Enquanto aquele
do domingo passado apresentava o primeiro anúncio da paixão, após a confissão de
fé de Pedro, o de hoje contém o segundo anúncio. Entre os dois anúncios,
encontra-se o episódio da transfiguração (9,2-8) e o relato da cura de um menino
epilético (9,14-24), ambos saltados pela liturgia. Conforme a tradicional divisão
do Evangelho de Marcos em duas partes, o texto lido hoje pertence à segunda
parte, voltada especialmente para a formação dos discípulos.
É importante
recordar que os anúncios da paixão são sempre seguidos de atitudes dos
discípulos que contradizem completamente o ensinamento de Jesus. E isso é bem
evidenciado no texto de hoje. À incompreensão/contradição dos discípulos, Jesus
reage e reforça a sua catequese, apresentando uma criança como exemplo para a
comunidade, mostrando que o Reino de Deus tem como protagonistas e
destinatários os pequenos e humildes, ao contrário do que pensavam os
discípulos, que imaginavam uma comunidade hierárquica, segundo os esquemas dos
sistemas de poder deste mundo. O texto divide-se claramente em duas partes
demarcadas pela dimensão espacial: a primeira (vv. 30-32), acontece no caminho,
enquanto a segunda acontece na casa (vv. 33-37), em Cafarnaum. Casa e caminho
representam os dois cenários privilegiados para a pregação de Jesus e para a
vida da comunidade cristã, especialmente a comunidade do evangelista Marcos
que, rompida definitivamente com a sinagoga, não tinha um espaço fixo para as
suas reuniões. O caminho tem como significado a instabilidade, os perigos e, ao
mesmo tempo, o dinamismo e a dimensão missionária da comunidade; é uma prova de
que a Igreja nasceu para estar, realmente, em saída. Já a casa, significa a
necessidade das relações fraternas e sinceras que devem marcar a vida da
comunidade; é um espaço de acolhida, compreensão e vivência do amor. Caminho e
casa, portanto, são dois espaços importantes para identidade da comunidade.
Revelam, inclusive, o aspecto de marginalidade do cristianismo em suas origens.
Começamos o
estudo do texto partindo do primeiro versículo, que diz: Como diz o
texto, «Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria
que ninguém soubesse disso» (v. 30). Essa travessia pela
Galileia acontece após o episódio da transfiguração (Mc 9,2-13) e a expulsão de
um espírito impuro de um jovem epilético (Mc 9,14-29). Já faz parte do caminho
para Jerusalém, embora ainda esteja na fase inicial. Quando o iniciou o
caminho, Jesus se encontrava com seus discípulos no extremo norte da Galileia,
próximo à Cesareia de Filipe, por isso, ainda está atravessando-a. Ora, ele
percebeu que era extremamente necessário aprofundar o ensinamento sobre o seu
destino aos discípulos, que continuavam resistentes e fechados na mentalidade
nacionalista de espera por um messias poderoso. Por isso, nessa fase inicial,
Jesus prefere o anonimato e o isolamento das multidões para intensificar a
catequese aos discípulos. De fato, o próprio texto atesta isso. Ele atravessava
a Galileia com os discípulos praticamente às escondidas, com cuidado para não
ser visto, «Pois estava ensinando a seus discípulos» (v.
31a). A incompreensão de Pedro após o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-35),
conforme mostrou o evangelho do domingo passado, serviu de advertência para
Jesus: até então, os discípulos ainda não tinham compreendido praticamente nada
dos seus ensinamentos sobre sua identidade, seu projeto de Reino e seu destino.
Por isso, ele sentiu a necessidade de estar sozinho com eles para aprofundar o
ensinamento, recomeçando a catequese do princípio.
O conteúdo
dessa fase específica da catequese é exatamente aquilo que os discípulos mais
tinham dificuldade de compreender e aceitar, ou seja, o drama da paixão que se
aproximava cada vez mais, não como predestinação, mas como consequência das
opções feitas e posições assumidas até então por Jesus. Por isso, ele «dizia-lhes:
“O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas,
três dias após sua morte, ele ressuscitará”» (v. 31bc). É sempre
importante recordar que os anúncios da paixão não são apenas informações dadas
em forma de aviso. Eles fazem parte do ensinamento de Jesus, pois tratam do seu
destino, que faz parte da sua própria missão salvadora. Esse é exatamente o
segundo anúncio da paixão. Como se vê, é mais abreviado do que o primeiro, lido
no domingo passado. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia nacionalista,
esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder romano para
recuperar o trono dravídico-salomônico, Jesus afirma o contrário: é ele quem
vai morrer. Inclusive, ao invés de messias, Jesus aplica a si mesmo o título de
“Filho do Homem”, que significa o humano em sua condição plena. O termo messias
era facilmente manipulado política e ideologicamente. Embora nesse segundo
anúncio não esteja tão claro quem serão seus algozes, ele já tinha declarado no
primeiro: anciãos, sacerdotes e escribas (Mc 8,31), ou seja, as autoridades
religiosas, em conluio com o poder imperial romano, até então controladoras de
Deus, e agora inconformadas porque Jesus estava, com seu ministério,
apresentando um Deus completamente diferente. O Deus dos chefes era cruel,
vingativo e exigente, enquanto o Deus de Jesus é amoroso, misericordioso,
acolhedor e justo.
A
incompreensão dos discípulos continua, e parece aumentar, gerando até
medo: «Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham
medo de perguntar» (v. 32). A afirmação desse versículo é crucial.
Nela, percebe-se o estado dos discípulos no momento, que era de completa negação
do discipulado. Ora, ser discípulo é, acima de tudo, estar aprendendo com um
mestre. Essa é a condição indispensável. Quando não compreendem o ensinamento,
o discípulo deve perguntar ao mestre e tirar todas as dúvidas possíveis. Sem compreender
e sem coragem de perguntar, eles tinham bloqueado o discipulado. Quando uma
comunidade se encontra nessa situação, ela perde a razão de ser, pois anula-se
o estatuto do discipulado. Incompreensão e medo revelam a covardia dos
discípulos naquele momento, ressaltando a necessidade de aprofundamento e abertura
de mentalidade. Se os discípulos não compreendiam, muito menos aceitavam a
realidade como Jesus apresentava. Eles tinham medo de fazer perguntas porque
sabiam que a explicação de Jesus não corresponderia às suas expectativas de
triunfo e sucesso. Seria mais um desmascaramento. Por isso, covardemente,
preferem conversar entre si, gerando rivalidades e divisões, alimentando sonhos
triunfalistas e distantes da proposta de Jesus. Porém, Jesus os conhecia muito
bem e sabia o que eles pensavam.
Por isso, lhes
pergunta apenas por protocolo: «Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em
casa, Jesus perguntou-lhes: “O que discutis pelo caminho?”» (v.
33). A cidade de Cafarnaum, onde Jesus realizou boa parte do seu ministério,
tem um significado especial para a comunidade. É o ponto de partida da Boa Nova,
como fora o ponto de apoio para o movimento de Jesus, devido às facilidades que
a localização da cidade oferecia para a circulação da mensagem e o encontro com
as pessoas. Ao questionar os discípulos em casa, nessa cidade, Jesus revela a
necessidade de renovação constante e de retorno às origens do chamado, com
coragem para recomeçar. De fato, com o caminho da paixão já delineado, se tornava
cada vez mais necessário reavivar nos discípulos as motivações para o
seguimento com bastante clareza. A casa (em grego: οἰκία – oikía) é o lugar
ideal da catequese, sobretudo em Marcos. É o espaço da fraternidade, das relações
sinceras e transparentes. Às vezes, quando os discípulos não compreendiam o que
Jesus tinha ensinado em público às multidões, tiravam as dúvidas em casa, perguntando
o significado do ensinamento (Mc 7,17). Dessa vez, é Jesus quem os interroga. Na
casa, está a ocasião para o aprofundamento da catequese e o crescimento nas
relações fraternas.
Cientes do
absurdo e da incompatibilidade entre o que eles conversavam e o que Jesus lhes
apresentava, «eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido
quem era o maior» (v. 34). Com essa informação, o evangelista
revela que os discípulos estavam em total oposição ao projeto de Jesus. Ora,
discutir quem é o maior, é negar completamente o projeto de Reino de Deus como
fraternidade e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade,
elementos inaceitáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da
igualdade e do amor. O silêncio deles denuncia a incoerência e a covardia. Após
dois anúncios da paixão, já deveriam saber que qualquer projeto de grandeza era
totalmente incompatível com o seguimento de Jesus. Ora, ser o maior significa
ter poder para sobrepor-se aos demais, é ter voz de comando; é adotar na
comunidade os mesmos mecanismos do sistema opressor, enquanto o projeto de
Jesus é totalmente contra hegemônico e anti-hierárquico. Os discípulos sonhavam
com a tomada do poder político, quando chegassem em Jerusalém; expulsariam os
romanos, mas manteriam o mesmo sistema de dominação. Eles ainda não tinham
compreendido que Jesus proponha uma sociedade alternativa, com igualdade e
fraternidade, construída pela revolução do amor e chamada de Reino de Deus.
É interessante
que a atitude de Jesus diante da grande incoerência dos discípulos não é de
condenação, mas de insistência no ensinamento e de renovação do chamado. Ele
não desmancha o grupo de seguidores, mas insiste em humanizá-los. Ao invés de
abandoná-los, ele prefere aprofundar a catequese, demonstrando uma imensa
capacidade pedagógica: «Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse:
“Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve
a todos!”» (v. 35). Ao sentar-se para ensinar, Jesus reafirma
sua condição de mestre, o único que poderia reivindicar a condição de maior
naquele grupo. Chamando os doze para perto de si, ele os convida, antes de
tudo, a renovar a vocação originária, deturpada pelos sentimentos de grandeza e
ambição que eles tinham alimentado. Para aprender e aceitar o ensinamento, é
necessário que os discípulos estejam muito próximos ao mestre, sendo
influenciados somente por ele. O ensinamento aqui é bastante didático e claro: «Se
alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a
todos!» (v. 35). Enquanto os discípulos pensavam em poder e
grandeza, tema da discussão no caminho, Jesus mostra um caminho oposto. Só há
uma forma de ser o primeiro na comunidade: tornando-se o último de todos e o
servidor de todos. Ser o maior, como queriam os discípulos, significava ser o
primeiro de todos e ser servido, dando voz de comando. Portanto, a proposta de
Jesus não é apenas diferente, mas totalmente oposta às pretensões dos
discípulos. Tornar-se servidor de todos é o mesmo que “renunciar a si mesmo”,
como ele já tinha dito anteriormente (Mc 8,34). O discipulado não é um caminho
para o sucesso, mas para o serviço. O sentido de ser discípulo é, portanto, a
disposição de fazer para os outros e estar sempre a serviço,
desinteressadamente.
Concluindo a
sua catequese de contraponto às ambições de poder dos discípulos, Jesus faz um
gesto bastante significativo, e finaliza com uma frase relacionada ao
gesto: «Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e,
abraçando-a, disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que
estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que
me enviou» (vv. 36-37). Aqui está o ponto alto da sua
catequese; não basta falar, é necessário demonstrar com ações a veracidade da
fala, o que faz recordar as ações simbólicas dos antigos profetas de Israel,
com quem Jesus se identificou bastante. O gesto de pegar uma criança, é
bastante provocatório, uma vez que, na época, a criança não gozava de nenhuma
estima e consideração, a não ser pelos próprios pais. Tanto o mundo hebraico
quanto o grego, tinham visões muito negativas a respeito da criança,
considerando-a uma pessoa inacabada e incapacitada para qualquer coisa. Jesus,
pelo contrário, via com outros olhos: a criança é sinal de pequenez,
característica que já a torna protagonista do Reino, mas também simboliza a
capacidade de aprendizagem, que é condição indispensável para o discipulado, e
era exatamente o que estava faltando em seus discípulos, naquele momento. Mas
Jesus não apenas aponta para a criança, mas a abraça. E o abraço é um gesto
muito significativo: além de demonstração de afeto, significa identificação. Na
cultura semita, abraçar alguém significa identificar-se com a pessoa abraçada,
compartilhando não apenas sentimentos, mas anseios, projetos e sonhos. Neste
caso específico do abraço de Jesus na criança, é também mais uma maneira de
desarmar os discípulos de suas ambições. Ora, no projeto de poder que eles
tinham em mente era pressuposto o uso da força e da violência, pois visavam
expulsar os romanos; isso não seria possível sem a luta armada. Com o abraço na
criança, Jesus mostra que seu projeto de Reino se edifica pelo amor e pela
ternura.
Colocando a
criança no meio, Jesus a tornou protagonista e centro da comunidade. Na criança
estão representadas todas as pessoas vulneráveis, necessitadas e desprezadas,
que devem ser acolhidas com preferência na comunidade cristã. De modo bastante
claro, Jesus diz que acolher as pessoas desprezadas, representadas pela
criança, é acolher a ele próprio e ao Pai que lhe enviou. Desse modo, podemos
concluir que as pessoas consideradas pequenas, humildes, pobres, mulheres
crianças e todas as categorias desprezadas pela sociedade são destinatárias e
protagonistas do Reino, porque devem ocupar o centro da comunidade, uma vez que
nelas se revelam Jesus e o Pai. A comunidade é, de fato, cristã quando, ao
invés de excluir, acolhe e coloca em seu centro as pessoas historicamente
condenadas e excluídas pela(s) sociedade(s). Em outras palavras, para uma
comunidade/igreja considerar-se cristã deve ser, acima de tudo, casa de
acolhida dos pequenos.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário