A liturgia
deste vigésimo quarto domingo do tempo comum nos coloca exatamente diante do
centro temático e literário do Evangelho de Marcos: a confissão de fé de Pedro,
na região de Cesareia de Filipe, em nome de todo o grupo dos discípulos, com o
primeiro anúncio da paixão e a apresentação das condições essenciais para o
discipulado – Mc 8,27-35. É importante ter em mente os três momentos que
constituem o episódio, para compreendê-lo em sua totalidade. Às vezes,
enfatiza-se somente a confissão de Pedro, o que torna a interpretação
reducionista. Esse episódio é um divisor de águas na estrutura literária da
obra e também no itinerário missionário e messiânico de Jesus, pois marca a
conclusão do seu ministério na Galileia e o início do seu caminho para
Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão e morte, culminando com a
ressurreição. É, portanto, o início de uma etapa decisiva, o que vai exigir
muito mais convicção nos seus discípulos. Trata-se de um episódio comum aos
três evangelhos sinóticos (Mc 8,27ss; Mt 16,13-19; Lc 9,18-22), sendo que a
versão mais rica é essa de Marcos, pois possui mais traços de originalidade,
uma vez que se trata do primeiro evangelho escrito. Além disso, é em Marcos que
o referido episódio possui mais centralidade e relevância, a ponto de ser o
marco divisor de toda a estrutura literária do livro.
Dividido em
duas grandes partes, o Evangelho de Marcos tem como finalidade apresentar Jesus
como o Cristo, ou seja, como o messias, e como o Filho de Deus, como já se
percebe em seu primeiro versículo: «Início do Evangelho de Jesus
Cristo, Filho de Deus» (Mc 1,1). Nessa afirmação, está a resposta à
pergunta implícita “Quem é Jesus?”. Toda a primeira parte –
capítulos de 1 a 8 – visa gerar na comunidade a certeza de que Jesus de Nazaré
é o Messias, tão esperado por Israel ao longo dos séculos, embora não seja
revestido das características tradicionais do messianismo nacionalista vigente,
como previsto pelos judeus do seu tempo, incluindo seus próprios discípulos.
Essa primeira parte é concluída com a proclamação solene de Pedro, em nome da
comunidade dos discípulos, quando afirma “Tu és o Cristo”, em
resposta à pergunta de Jesus sobre a sua identidade. O nome Cristo – em
grego χριστóς – christós – significa messias, ungido. Já a segunda parte – capítulos
de 9 a 16 – visa levar a comunidade a acreditar que o Messias Jesus é também o
Filho de Deus, cuja certeza é dada pela confissão do centurião romano diante da
cruz: «Realmente, esse homem era Filho de Deus» (Mc 15,39). A
maturidade da comunidade, portanto, pode ser verificada pela sua capacidade de
professar livremente essas duas verdades a respeito da identidade de Jesus de
Nazaré, sem distorções, dando-lhe adesão até as últimas consequências. Nessa
dupla profissão de fé, responde-se à pergunta “Quem é Jesus?”. O
evangelho de hoje, obviamente, trata apenas da primeira parte da resposta.
Feitas as
devidas observações a nível de contexto, olhemos especificamente para o texto
de hoje, e a nossa primeira observação diz respeito à dimensão espacial: «Jesus
partiu com seus discípulos para os povoados de Cesaréia de Filipe» (v.
27a). Essa informação possui grande relevância, considerando a localização e a
importância da cidade de Cesaréia de Filipe. Ora, como Cesareia estava
localizada no extremo norte da Galileia, em área já considerada pagã, esse dado
representa uma espécie de isolamento dos discípulos em relação à ideologia
nacionalista. Lá, eles estariam livres para emitir uma opinião isenta de
qualquer influência ideológica e preconceitos. Com isso, o evangelista ensina
que para reconhecer a verdadeira identidade de Jesus é necessário isolar-se dos
tradicionais esquemas religiosos de Israel. Além disso, a cidade de Cesareia,
como o próprio nome indica, era uma homenagem a César, um dos títulos de honra
do imperador romano; logo, o reconhecimento de Jesus como messias, na “cidade
de César” representava a oposição do projeto do Reino de Deus às forças de
morte movidas pelo poder opressor romano. Portanto, estamos diante de um dos
episódios mais ousados dos evangelhos: uma negação do messianismo nacionalista
e um desmascaramento ao poder romano.
Com esse dado,
o evangelista quer ensinar que as duas primeiras exigências para o seguimento
convicto de Jesus é o rompimento com as ideologias, religiosas principalmente,
e a coragem para confrontar toda forma de poder oposta ao Reino de Deus. Essa
era a situação da comunidade do evangelista Marcos, na época da redação do
evangelho: escrito fora da Palestina, quando a convivência com a comunidade
judaica já tinha se tornado insuportável e, especificamente, na cidade de Roma,
capital do império, em época de forte perseguição. Portanto, o evangelista,
para fortalecer os cristãos da sua comunidade, narra esse episódio para mostrar
que aquela situação presente já tinha sido prevista e vivida pelo próprio Jesus
com seus primeiros discípulos. E assim ele mostra também como Jesus e os
primeiros discípulos foram capazes de suportar e superar as principais forças
opositoras, sem ceder a nenhum dos lados que visavam ofuscar seu projeto de
Reino: o império romano e a sinagoga judaica. Ora, Jesus quer que seus
discípulos e discípulas sejam sempre pessoas livres capazes de proclamar a Boa
Nova do Reino em quaisquer circunstâncias, sem deixar-se influenciar pelas
forças dominantes, sobretudo.
E, em
situações de hostilidade, é necessário renovar as convicções para continuar o
seguimento. Assim, Jesus faz uma espécie de consulta a respeito da sua própria
imagem, não interessado em fama, mas somente para saber se estava sendo
compreendido juntamente com a sua mensagem. É claro que a preocupação não era com
sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio na comunidade e o grau de
compreensão dos discípulos, após um tempo considerável de convivência com ele. Por
isso, o texto diz que, ainda «No caminho, perguntou aos discípulos: “Quem
dizem os homens que eu sou?”» (v. 27b). Aqui, o evangelista faz
questão de evidenciar o caráter itinerante e a falta de comodidade no
discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de
catequese e anúncio, o que também reflete a situação da comunidade do
evangelista (anos 60 d.C.): expulsos da sinagoga, os cristãos já não tinham
lugar fixo para a pregação, buscando espaços alternativos, como as casas, as
estradas e até os cemitérios. Não obstante esses desafios, a clareza e a
convicção do seguimento são fundamentais para a vida da comunidade. É
interessante notar que somente Marcos localiza o episódio no caminho. Ora, como
se sabe, dos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), o que mais se interessa pelo
caminho é Lucas, fazendo do caminho metáfora da vida e da missão. Contudo,
somente Marcos diz que esse episódio aconteceu no caminho. Isso torna o dado
ainda mais relevante, pois mostra o caminho como a realidade da comunidade,
vivendo em plena itinerância, sem nenhum tipo de segurança.
A resposta dada
pelos discípulos pergunta de Jesus, como opinião do povo, revela a falta de
clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa
reputação da qual ele já gozava, certamente entre o povo simples, com quem ele
interagia e por quem mais se interessava em seu ministério. De fato, as pessoas
simples – pobres e marginalizados em geral – eram as preferidas de Jesus. Ele
fez clara opção preferencial por elas. Eis, portanto, a resposta: «Eles
responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias,
outros, ainda, que és algum dos profetas”» (v. 28). Como se vê, não
resta dúvidas de que Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era
reconhecido como um grande profeta. De fato, os personagens citados foram
grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando a
libertação denunciando e denunciando todos os entraves para que essa
acontecesse, sempre com muita fidelidade ao profeto de Deus. Mas Jesus é muito
mais do isso. Ora, embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são
personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um
personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a
comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na
história. Contudo, é inegável que o povo já o estimava, mesmo que não tivesse
muita convicção da sua verdadeira identidade, ainda mais considerando que seus
familiares o tinham por louco e as autoridades religiosas o consideravam um
enviado de satanás (Mc 3,20-30). O povo simples o via como um homem de Deus e
isso é muito significativo.
A pergunta
sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto, uma
preparação para a pergunta decisiva aos discípulos. De fato, o que Jesus queria
saber mesmo era o que seus discípulos pensavam dele. Afinal, já tinham um bom
tempo de convivência. Inclusive, boa parte dos seus ensinamentos tinha sido
dirigida exclusivamente aos discípulos, como até mesmo a explicação de algumas
parábolas mais ambíguas (Mc 4,34). Ele esperava, portanto, que os discípulos lhe
conhecessem melhor do que as outras pessoas. Por isso, lhes perguntou: «E
vós, quem dizeis que eu sou?» (v. 29a). Ora, que as pessoas de fora o
conhecessem apenas superficialmente, seria aceitável, mas, dos discípulos, ele esperava
uma resposta mais profunda e convicta, afinal, estavam com ele dia e noite. E,
realmente, aconteceu, a resposta de Pedro é muito profunda: «Pedro
respondeu: “Tu és o Messias”» (v. 29b). Aqui, Pedro fala em nome do
grupo. Essa é a resposta da comunidade, de quem Pedro se faz porta-voz,
assumindo uma inegável liderança. Embora correta, a resposta de Pedro e da
comunidade não é satisfatória, por isso, o evangelista diz que «Jesus
proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito» (v. 30).
Dizer que Jesus é o Messias, é o mesmo que dizer o Cristo, como de fato ele
era, já que as duas palavras possuem o mesmo significado. Trata-se de um título
que indica, na literatura bíblica, a figura esperada para promover a libertação
definitiva de Israel. Por isso, a resposta de Pedro é muito significativa. Porém,
Jesus não confia nas convicções com que Pedro dá sua e, por isso, proibiu a ele
e aos demais de falaram a seu respeito.
Chega a ser
surpreendente a reação de Jesus. É verdade que ele proibia as pessoas curadas e
exorcizadas de contar os milagres feitos (Mc 1,44; 7,36). Mas aqui a proibição
é muito mais severa: ele proibiu de falar a seu respeito! Somente em duas
ocasiões ele proíbe seus discípulos de falar: neste episódio e na
transfiguração (Mc 9,9), e ambas estão profundamente relacionadas à paixão. Mas
o que fez Jesus proibir Pedro de repetir essa fórmula foram as possibilidades
de incompreensão que essa comportava. Ora, o Messias esperado pelos judeus,
cujas expectativas foram alimentadas por muitos séculos, desde a época do
exílio, era um guerreiro, um restaurador do reino de Davi. Essas expectativas
diziam respeito a um único povo e religião, enquanto a mensagem de Jesus é
universalista e acessível a todos os seres humanos, independentemente de
qualquer cultura, etnia e religião. Portanto, podemos afirmar que Pedro deu a
resposta correta – Jesus é mesmo o Cristo – mas não tinha ainda a consciência
ideal – Jesus não veio para restaurar o reino de Davi, mas para implantar o
Reino de Deus, como realidade universal. Na resposta de Pedro estava um projeto
de poder nacionalista de poder, amparado pelo sistema religioso, com o qual
Jesus não concordava. Ora, todo projeto de poder se torna mais perigoso quando é
sustentado pelo discurso religioso. Jesus sabia disso, por isso seu projeto de
Reino é totalmente contra-hegemónico.
Diante do equívoco dos discípulos, representados por Pedro, Jesus inaugura uma nova etapa da sua catequese, buscando revelar a sua verdadeira identidade de messias “às avessas”: o messias descendente de Davi, esperado pelos judeus, era um guerreiro, viria ao mundo para combater e matar os inimigos de Israel, restaurando o trono outrora ocupado por Davi e Salomão; Jesus ensina que sua missão é o contrário de tudo isso: «Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias» (v. 31). Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho. Ao invés de matar os inimigos, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, esse deveria ser também o destino dos seus discípulos. Não se trata de uma predestinação e nem adivinhação do futuro. É apenas consciência das opções feitas. Jesus sabia que, com seu projeto de Reino inclusivo, restaurando o que a religião e a sociedade tinham descartado, incluindo as pessoas que tinham sido marginalizadas, seu destino não poderia ser outro senão a cruz, a pena que o império destinava aos subversivos, como ele. De fato, a cruz era o destino dos rebeldes, os criminosos públicos, perturbadores da ordem. E Jesus sabia que sua fidelidade ao projeto do seu Pai o levaria a isso. No Evangelho de Marcos, ele já tinha sido “jurado” de morte pelos fariseus e herodianos (Mc 3,6), mas ainda não tinha se pronunciado a respeito, como o faz agora. É relevante notar que ele faz o anúncio da paixão como um ensinamento, e não apenas como uma informação dada. O evangelista emprega o verbo do ensino, da catequese e formação: “começou a ensiná-los”. É o verbo ensinar (em grego: διδάσκω – didásko). Com isso, ele ensina que, em Jesus, tudo é ensinamento, sua vida, incluindo a morte, constitui sua maior mensagem. Na expressão “começou a ensiná-los”, é relevante também o verbo começar (em grego ἄρχω – arko), que pertence à raiz etimológica “arquê” e indica princípio. Aqui, precisamente, significa que Jesus começou do princípio a ensinar. Quer dizer que, até então, seus discípulos ainda não tinham aprendido nada. Por isso, a catequese deveria começar do princípio, da estaca zero.
Na
continuação, o evangelista diz que Jesus «dizia isso abertamente» (v.
32a). Também esse é um detalhe exclusivo de Marcos e bastante significativo. O
termo grego traduzido por “abertamente” é “parressia” (παρρησίᾳ), e significa
também liberdade, sinceridade, franqueza e firmeza. No mundo grego, era
empregado para expressar o privilégio dos cidadãos livres, que podiam expor o
que pensavam, nas assembleias civis, sem medo algum. Com isso, o evangelista
apresenta Jesus como um homem livre, sem amarras nem medos. A sequência do
texto revela a incompreensão de Pedro sobre a identidade de Jesus. Ora, fechado
na mentalidade nacionalista, ele não aceitava um messias sofredor, por
isso, «tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo» (v. 32b).
Essa atitude de Pedro é absurda e inaceitável. O verbo repreender (em
grego: ἐπιτιμάω – epitimáo)
significa condenar por um erro, reprovar bruscamente. Trata-se de algo tão absurdo
que Pedro não teve coragem de fazer na frente dos outros discípulos, mas o faz
à parte. Fazendo isso, Pedro estava negando a sua condição de discípulo. Obviamente,
Jesus não aceita a proposta de Pedro. Por isso, lhe chama para assumir o seu
verdadeiro lugar: «Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e
repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas
como Deus, e sim como os homens”» (v. 33). Jesus, como mestre, tem
autoridade para “repreender” e condenar a atitude absurda de Pedro. E o faz com
muita ênfase. Ora, em todo o Novo Testamento, esse é o único episódio em que
uma pessoa é diretamente chamada de satanás. E essa pessoa é ninguém menos que
Pedro. Com isso, constata-se que os evangelhos não pretendem idealizar ninguém,
além de Jesus. Ao chamá-lo de satanás, Jesus está apenas dizendo que, com
aquela postura, Pedro está sendo obstáculo para o Reino de Deus. O papel de
satanás é dificultar a realização do Reino; e muitas vezes, como neste caso
relatado por Marcos, quem age como satanás são membros da própria comunidade,
inclusive os que ocupam lugares de destaque, como Pedro ocupava na primitiva
comunidade cristã.
Literalmente,
satanás significa o adversário, acusador, inimigo. E foi isso o que Jesus viu
em Pedro, nesta ocasião. Contudo, Jesus não desiste das pessoas, ele acredita
intensamente no ser humano, sempre dá uma nova oportunidade, promovendo
humanização. Por isso, ao contrário do que a tradução litúrgica do texto expressa,
Jesus não manda Pedro para longe, mas apenas para trás de si. Aqui, ele usa a
mesma expressão do chamado vocacional: “segue-me” ou “vem atrás de mim” –
empregada em Mc 1,17; 8,34 (em grego: ὀπίσω μου – opísso
mu). Jesus repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo, apenas diz “vai para
trás de mim”, “assume teu lugar de discípulo”, ou simplesmente “segue-me”.
Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser
sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre, assim como,
na comunidade cristã, nenhuma pessoa pode ter a última palavra, pois essa é
sempre de Jesus. Ele insiste para que Pedro reconheça seu lugar e assuma o
estatuto de discípulo. Como protótipo do discípulo, Pedro revela determinação e
fragilidade, ao mesmo tempo. E Jesus o quer, mesmo assim, com essas
contradições e ambiguidades. Querendo desviar Jesus do caminho da cruz, Pedro
não pensou apenas em Jesus, mas pensou nele mesmo. Ele sabia que a cruz era incompatível
com a ideia de Messias que ele tinha dentro de si. E sabia também que o seu
próprio destino deveria ser igual ao do seu mestre. Por isso, quis evitar,
fazendo Jesus tirar essa ideia da cabeça. Mais do que preocupação com Jesus,
Pedro demonstrou preocupação consigo mesmo. Jesus sabia, por isso o repreendeu
como não feito com ninguém, nem fará. Nem aos seus adversários Jesus chamará de
satanás.
Tendo
esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo e dos
discípulos, Jesus esclarece as exigências para o seu seguimento. Ele está
terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho
para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu
seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos
riscos que estão correndo, como seguidores de um messias ao revés. Por isso, o
esclarecimento, dessa vez dirigido também à multidão, de onde poderia sair
novos discípulos que, de antemão, são advertidos: «Então chamou a
multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si
mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 34). Antes de tudo,
Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: “se
alguém me quer seguir”; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o
seguimento exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa.
Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e
todas as convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem
libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal,
devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de
tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de
perigo; era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com
isso, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho
com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho
contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna,
inevitavelmente, de seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas
consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, Lucas se
destaca em relação aos demais: somente nele se diz que a cruz deve ser tomada a
cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um evento e muito menos um
adorno; é a situação cotidiana de quem assume com seriedade o seguimento de
Jesus.
O último
versículo é um provérbio, no qual são reforçadas as exigências para o
discipulado, com suas consequências, por meio de antíteses que visam dar ênfase
ao ensinamento: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas
quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la» (v.
35). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por
pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos
salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época
da redação do Evangelho de Marcos, os cristãos eram considerados pessoas que
tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às
renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência
das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de
lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir
a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto
como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer
dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou
repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o
salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida.
Somos
convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a
identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo
é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já,
do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de
intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o
anúncio tende a ser distorcido.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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