sábado, outubro 19, 2024

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,35-45 (ANO B)



Na liturgia do vigésimo nono domingo do tempo comum, o evangelho continua mostrando a incompreensão e incoerência dos discípulos de Jesus em relação ao seu programa de vida com as respectivas exigências que o discipulado comporta. O texto de hoje – Mc 10,35-45 – é talvez o que melhor descreve essa incoerência. Em outras ocasiões, antes que os discípulos entrem em cena como opositores de Jesus, o evangelista apresenta alguns outros adversários mais tradicionais, como os fariseus e escribas, que fazem perguntas maliciosas e críticas duras. No episódio de hoje, são apenas os discípulos que se opõem ao projeto libertador de Jesus. Eles se apresentam como verdadeiros antagonistas. Antes de tudo, é importante recordar o contexto: Jesus está caminhando para Jerusalém e, desde o início do caminho, alertou os discípulos sobre o destino desse caminho: o sofrimento, a paixão e a morte. Por isso, fez os três anúncios da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), a fim de prepará-los para os acontecimentos que o esperava em Jerusalém. A cada anúncio, no entanto, os discípulos apresentavam mais resistência e incompreensão. Contagiados pela ideologia nacionalista, que aspirava um messias glorioso que restaurasse o reino de Israel nos moldes de Davi e Salomão, os discípulos não aceitavam a ideia de um messias humilde, pobre e sofredor. Por isso, a cada vez que Jesus anunciava o seu destino doloroso, os discípulos distorciam o anúncio, alimentando a falsa ilusão de um reino glorioso, nos moldes dos reinos deste mundo.

O episódio narrado no evangelho de hoje segue de imediato ao terceiro anúncio da paixão, o mais claro e profundo dos três. Por incrível que pareça, a reação dos discípulos a esse terceiro anúncio foi a mais absurda de todas, demonstrando ambição e sede de poder, aspirações totalmente incompatíveis com a mensagem de Jesus. É importante recordar a reação deles a cada anúncio: após o primeiro, Pedro repreendeu Jesus, em nome do grupo dos Doze (Mc 8,32); após o segundo, os discípulos – todos eles – reagiram discutindo quem era o maior entre eles (Mc 9,33-34). Após o terceiro, a reação é a ambição, a busca por posições de honra e poder, trazendo ainda a rivalidade e a divisão como consequências, como vemos no evangelho de hoje. Parece até ironia: quanto mais claro Jesus falava de seu destino, menos os discípulos compreendiam. De acordo com o evangelista, ao projeto que Jesus apresenta, os discípulos não apenas respondem com uma coisa diferente, mas com algo totalmente oposto à proposta do Mestre, distorcendo completamente a sua mensagem. O evangelho de hoje é a prova mais evidente disso. Como último elemento a nível de introdução e contexto, convém recordar que, de acordo com o itinerário traçado pelo evangelista, no evangelho de hoje Jesus e os discípulos já se encontram muito próximos de Jerusalém, pois esse texto antecede o último episódio antes da entrada em Jerusalém, a cura do cego de Jericó, que será o texto do próximo domingo. Portanto, à essa altura do caminho, soa preocupante para Jesus que seus discípulos estejam cada vez mais distantes da sua proposta.

Feitas as considerações a nível de contexto, olhemos então para o texto, partindo do primeiro versículo: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir”» (v. 35). É importante recordar que Tiago e João, juntamente com Pedro, são os discípulos mais evidenciados nos três evangelhos sinóticos, não por méritos, como às vezes se imagina, e sim pelas fragilidades e incoerências que demonstram. Recordemos que, no momento da constituição do grupo dos Doze, Tiago e João receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso dos dois. Além do texto de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em que as características negativas deles dois são evidenciadas: quando querem monopolizar o nome de Jesus, proibindo um homem de fazer o bem em seu nome pelo simples fato de não pertencer ao mesmo grupo (Mc 9,38-39) – evangelho do 26º domingo –, e quando queriam eliminar um povoado da Samaria com fogo, somente porque lá não foram bem acolhidos (Lc 9,51-55). Portanto, juntamente com Pedro, João e Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus fica somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se trata de um privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa, pois tinham mais dificuldade de aceitar Jesus e sua mensagem de libertação.

Nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), João e Tiago são os únicos discípulos apresentados com o título patronímico – nome do pai –, o que indica o quanto ainda estavam presos à tradição. Ora, uma das exigências básicas para o discipulado de Jesus é exatamente a capacidade de deixar família e bens para dedicar-se somente ao seguimento do mestre. Portanto, ao citá-los ainda na relação com o pai, o evangelista quer dizer que eles ainda não tinham deixado tudo, na prática, por isso, demonstravam tanta incompreensão, pois ainda não tinham assimilado de modo satisfatório a mensagem de Jesus. É importante notar que, antes mesmo que eles façam diretamente o pedido, o evangelista já os denuncia: «Queremos que faças por nós o que vamos pedir»; aqui, há praticamente uma ordem, se trata de uma exigência. Além do conteúdo do pedido, a forma como esse é feito é uma afronta ao projeto de Jesus, o que torna o texto bastante polêmico. De fato, é um texto não só polêmico, mas comprometedor para a comunidade. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo do seu Evangelho, e Mateus o modificou, colocando a mãe dos discípulos como a autora do pedido (Mt 20,20-23), preservando a imagem dos discípulos e revelando, assim, a sua visão mais negativa da mulher. Marcos, pelo contrário, faz questão de revelar também as debilidades dos discípulos, o que faz do seu Evangelho o mais autêntico e original. Por isso, é o Evangelho que mais revela os traços humanos de Jesus (Mc 3,5; 7,34; 9,36; 10,14.16), juntamente com as fragilidades dos seus discípulos.

Diante da quase “quase ordem” dos discípulos, Jesus lhes responde com uma pergunta, antes mesmo de conhecer o conteúdo do pedido: «Que quereis que eu vos faça?» (v. 36). É típico de Jesus responder com uma nova pergunta, o que revela até uma certa ironia da sua parte. Se os discípulos ainda não tinham aprendido nada com os três anúncios da paixão, pouco importava para eles uma pergunta irônica de Jesus. Por isso, sem nenhum escrúpulo, eles fazem o pedido absurdo: «Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!» (v. 37). Temos aqui uma verdadeira afronta a tudo o que Jesus já tinha ensinado a respeito de si e do seu projeto de Reino de Deus. Esse pedido revela uma busca ambiciosa por poder e privilégios, decorrente de uma visão completamente equivocada da messianidade de Jesus. Eles Imaginavam Jesus como um messias segundo as expectativas políticas de Israel, alimentada ao longo dos séculos: um messias guerreiro que combateria os dominadores – na época, os romanos – até expulsá-los do seu território e, finalmente, restabeleceria o antigo reino davídico em Jerusalém. Jesus já tinha descartado essa possibilidade por diversas vezes, mas os discípulos continuavam fechados e presos à antiga mentalidade. Sentar-se à esquerda e à direita, equivalia às posições de honra, como se fossem os primeiros-ministros de um rei. Eles queriam ser as pessoas mais importantes, depois do rei, demonstrando total desconhecimento da natureza do Reino que Jesus veio propor ao mundo.

Ao pedido absurdo dos discípulos, Jesus responde com uma repreensão irônica e, como de costume, com novas perguntas: «Vós não sabeis o que pedis. Por acaso, podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?» (v. 38). Com razão, Jesus os trata como ignorantes, ao dizer que eles não sabiam o que estavam pedindo. Apesar do teor irônico que contém, esse tratamento de Jesus aqui é demonstração da sua misericórdia e do seu amor incondicional. Pelo absurdo da proposta dos discípulos, ele poderia até dispensá-los do seu seguimento ou repreendê-los duramente. Mas prefere ver como incompreensão e ignorância. É o mesmo tratamento ele vai dar aos seus algozes, na cruz (Lc 23,34). Ora, depois de três anúncios explícitos da paixão, e de toda uma trajetória de oposição e combate aos poderes vigentes, é inadmissível que os discípulos ainda quisessem espelhar-se nessas formas de poder, alimentando pretensões de glória e privilégios, querendo impor um modelo hierárquico na comunidade. À correção, com a qual Jesus denuncia a ambição dos discípulos, ele acrescenta duas perguntas provocatórias que resumem todo o seu ministério, desde o início na Galileia até a consumação em Jerusalém, evocando duas imagens simbólicas dessa trajetória: o cálice e o batismo. O batismo remonta ao início de tudo (Mc 1,8-11); já o cálice pré-anuncia a paixão (Mc 14,23.36). Embora sejam imagens de múltiplos significados ao longo de toda a Bíblia, aqui em Marcos são síntese da vida de Jesus, do batismo à cruz. Em outras palavras, é como se Jesus perguntasse: «Vocês estão dispostos a viver do meu jeito, do começo ao fim de vossas vidas?».

À pergunta decisiva de Jesus, os discípulos irmãos respondem com muita prontidão, mas Jesus parece não levar muito a sério a resposta deles, provavelmente por perceber uma certa presunção nos dois: «Eles responderam: “Podemos!”. E ele lhes disse: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado”» (vv. 39-40). A disposição para abraçar e assumir as consequências de um seguimento sério e radical não pode dar-se em função de recompensas futuras ou prêmios, como eles queriam. Por isso, Jesus confirma que, de fato, eles participarão de seu destino doloroso, mas os alerta que abraçar o seu projeto em vista de recompensa é sinal de incompreensão. A disposição de lugares na glória é um dom gratuito do Pai, e não uma conquista por méritos. Quando Marcos escreve seu Evangelho, pelo menos Tiago já tinha sido martirizado, o primeiro dos Doze a derramar o sangue pela causa de Jesus (At 12,1-2). Isso quer dizer que, apesar de obstinados, eles aceitaram e compreenderam o sentido do seguimento, com suas consequências. Compartilharam o batismo e o cálice de Jesus. Mas é importante a coragem do evangelista apresentar toda a resistência e incompreensão no caminho, ensinando que o seguimento de Jesus exige uma constante conversão. Ninguém nasce discípulo nem se torna num único momento. Ser discípulo é um processo, um tornar-se, que deve se aperfeiçoar cotidianamente, à medida em que aumenta o grau de intimidade com Jesus.

O resultado do ambicioso pedido dos dois irmãos foi a divisão da comunidade: «Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João» (v. 41). Temos aqui o primeiro cisma da comunidade, a partir de quando ficaram dez contra dois. Esse episódio é também a recordação de um dos acontecimentos mais deploráveis da história de Israel: o cisma que gerou a divisão em dois reinos: as doze tribos se dividiram, numa disputa de dez contra duas, ficando o reino do norte composto de dez tribos, e o reino do sul formado por apenas duas (2Rs 12). Inclusive, esse texto constitui a única ocasião no Novo Testamento em que aparece a denominação “os dez” (em grego: hoi déka – οἱ δέκα) como referência a uma ala do grupo dos discípulos. Para o evangelista, é inaceitável que a comunidade cristã reproduza os erros históricos de Israel. À medida em que os projetos individuais são colocados em primeiro plano, a unidade da comunidade é quebrada. A reação dos doutros dez mostra isso. Por “indignaram-se” deve-se compreender que ficaram com raiva, ficaram irados. Logo, não significa que eles tivessem compreendendo melhor a dinâmica do projeto de Jesus; pelo contrário, demonstra que eles também pensavam como os dois irmãos; ficaram com raiva por rivalidade, ou seja, eles também queriam os dois lugares de destaque pretendidos pelos filhos de Zebedeu. Essa reação afirma que a sede de poder e o espírito de competição contagiava todo o grupo dos discípulos. inclusive, pouco tempo antes, após o segundo anúncio da paixão, eles tinham discutido sobre quem era o maior entre eles (9,30-37) – texto lido no 25º domingo. Portanto, todos eles estavam movidos por ambições, desejando o exercício do poder a partir do estabelecimento de uma hierarquia na comunidade, contrariando, assim, o projeto igualitário de Jesus.

A comunidade, afetada pela ambição, estava completamente ameaçada. Por isso, Jesus chama a atenção dos discípulos, como diz o evangelista: «E Jesus convocando-os, lhes diz: “sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os grandes as tiranizam” (v. 42). O verbo grego traduzido pelo lecionário como convocar significa “chamar para perto de si” (em grego: προσκαλέω – proskálêo). Com isso, o evangelista denuncia que, embora estivessem no mesmo caminho, e até próximos fisicamente, os discípulos estavam distantes de Jesus em termos de mentalidade e consciência da natureza do Reino. Ao chamá-los para perto de si, Jesus revela sua capacidade de diálogo, suas qualidades de bom pedagogo que não desiste de ver seus discípulos humanizados. Mostra também a sua perseverança e amor; ele não abandona seus discípulos à ignorância, mas insiste em despertar neles a consciência da igualdade e da solidariedade, conforme seu projeto. Ao mesmo tempo, esse gesto mostra que ele vê a ambição com muita preocupação. Por isso, procura expor o seu projeto com mais clareza ainda, procurando mostrar o quanto é diferente de qualquer projeto humano de obtenção e exercício do poder.

Tendo negligenciado os três anúncios da paixão, mesmo tendo sido corrigidos por Jesus, os discípulos tinham como parâmetro os modelos vigentes de poder, marcados pelo domínio e a tirania. Por isso, agora Jesus apresenta sua reação e proposta: «Porém, entre vós não é assim, mas aquele que quiser tornar-se grande entre vós, será vosso servidor.  E aquele que quiser ser o primeiro entre vós, será escravo de todos!» (vv. 43-44). Na verdade, trata-se de uma contraproposta; é uma proposta anti hegemónica, como o Evangelho em sua inteireza. Os sistemas de poder conhecidos até então, não podem ser referência para a comunidade. Marcos recorda isso com muita clareza, pois na época da redação do seu Evangelho havia uma tendência hierarquizante muito forte na sua comunidade, e ele via isso como um distanciamento do projeto de Jesus, que quis uma comunidade igualitária, justa e solidária, sem dominadores nem dominados. Portanto, na comunidade cristã não pode haver espaço para carreirismo, ambição e posições de privilégio. Qualquer imitação dos sistemas vigentes de poder, seja da religião do templo ou do império romano, deve ser abolida da comunidade. A expressão «entre vós não é assim» é carregada de uma certa ironia da parte de Jesus, uma vez que, de fato, estava sendo daquele jeito entre os discípulos; ao mesmo tempo, é uma forte denúncia: não é mais possível adiar a tomada decisiva de posição a respeito dos valores do Reino. Daí ele apresenta qual é o modelo a ser seguido pela comunidade: o serviço, sendo ele mesmo o exemplo de servidor. É preciso substituir a lógica do poder pela lógica do serviço. E isso vale para todas as épocas.

Só é primeiro na comunidade quem se coloca em atitude de serviço em benefício de todos. Por isso, o referencial para a comunidade cristão não pode ser outro senão o próprio Jesus, como ele mesmo se apresenta: «Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida dele em resgate de muitos» (v. 45). Ao almejar os primeiros lugares, os filhos de Zebedeu buscavam meios de comando, queriam dominar, distanciando-se do projeto de Jesus, cuja proposta de vida consiste em colocar-se em estado de serviço, com disposição de dar a vida pelo próximo, por amor. O verbo servir (em grego: διακονέω – diaconêo) é empregado duas vezes no mesmo versículo, indicando a chave de leitura do texto e de toda a vida de Jesus. Os discípulos tinham dificuldade de assimilar esse ensinamento, à medida em que queriam estabelecer um sistema de poder na comunidade, como embrião de um projeto de dominação nos moldes da antiga monarquia davídica. Com isso, conscientes ou não, eles rejeitavam o programa de Jesus e adotavam o modelo de administração do império romano e da religião judaica, comandada pelos sacerdotes do templo e o sinédrio. Na compreensão deles, as estruturas da organização social e religiosa da época não seriam abaladas, mudaria apenas as pessoas de comando. Sairiam os romanos e entrariam galileus. Eles queriam reproduzir um sistema opressor e excludente. É claro que uma mentalidade assim não encontra respaldo na mensagem de Jesus.

O evangelho de hoje constitui-se, portanto, como um forte convite à Igreja, em todos os lugares, a abrir-se à sinodalidade como um caminho propício à recuperação da originalidade do projeto de Jesus, para a sua comunidade e para o mundo. Onde há ambição, há rivalidade; e esses dois males impedem o “caminhar juntos”. Por isso, precisam ser abolidos da comunidade cristã, para que nessa vigorem comunhão, participação e missão, retornando, assim, à originalidade evangélica. Para isso, é necessário recuperar a dimensão diaconal do seguimento de Jesus. Somente com disposição para servir há seguimento de Jesus Cristo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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