Na liturgia do
vigésimo nono domingo do tempo comum, o evangelho continua mostrando a
incompreensão e incoerência dos discípulos de Jesus em relação ao seu programa
de vida com as respectivas exigências que o discipulado comporta. O texto de
hoje – Mc 10,35-45 – é talvez o que melhor descreve essa incoerência. Em outras
ocasiões, antes que os discípulos entrem em cena como opositores de Jesus, o
evangelista apresenta alguns outros adversários mais tradicionais, como os
fariseus e escribas, que fazem perguntas maliciosas e críticas duras. No
episódio de hoje, são apenas os discípulos que se opõem ao projeto libertador
de Jesus. Eles se apresentam como verdadeiros antagonistas. Antes de tudo, é
importante recordar o contexto: Jesus está caminhando para Jerusalém e, desde o
início do caminho, alertou os discípulos sobre o destino desse caminho: o
sofrimento, a paixão e a morte. Por isso, fez os três anúncios da sua paixão
(Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), a fim de prepará-los para os acontecimentos
que o esperava em Jerusalém. A cada anúncio, no entanto, os discípulos
apresentavam mais resistência e incompreensão. Contagiados
pela ideologia nacionalista, que aspirava um messias glorioso que restaurasse o
reino de Israel nos moldes de Davi e Salomão, os discípulos não aceitavam a
ideia de um messias humilde, pobre e sofredor. Por isso, a cada vez que Jesus
anunciava o seu destino doloroso, os discípulos distorciam o anúncio,
alimentando a falsa ilusão de um reino glorioso, nos moldes dos reinos deste
mundo.
O episódio
narrado no evangelho de hoje segue de imediato ao terceiro anúncio da paixão, o
mais claro e profundo dos três. Por incrível que pareça, a reação dos
discípulos a esse terceiro anúncio foi a mais absurda de todas, demonstrando
ambição e sede de poder, aspirações totalmente incompatíveis com a mensagem de
Jesus. É importante recordar a reação deles a cada anúncio: após o primeiro,
Pedro repreendeu Jesus, em nome do grupo dos Doze (Mc 8,32); após o segundo, os
discípulos – todos eles – reagiram discutindo quem era o maior entre eles (Mc
9,33-34). Após o terceiro, a reação é a ambição, a busca por posições de honra
e poder, trazendo ainda a rivalidade e a divisão como consequências, como vemos
no evangelho de hoje. Parece até ironia: quanto mais claro Jesus falava de seu
destino, menos os discípulos compreendiam. De acordo com o evangelista, ao
projeto que Jesus apresenta, os discípulos não apenas respondem com uma coisa
diferente, mas com algo totalmente oposto à proposta do Mestre, distorcendo
completamente a sua mensagem. O evangelho de hoje é a prova mais evidente
disso. Como último elemento a nível de introdução e contexto, convém recordar
que, de acordo com o itinerário traçado pelo evangelista, no evangelho de hoje Jesus
e os discípulos já se encontram muito próximos de Jerusalém, pois esse texto
antecede o último episódio antes da entrada em Jerusalém, a cura do cego de Jericó,
que será o texto do próximo domingo. Portanto, à essa altura do caminho, soa
preocupante para Jesus que seus discípulos estejam cada vez mais distantes da sua
proposta.
Feitas as
considerações a nível de contexto, olhemos então para o texto, partindo do
primeiro versículo: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e
lhe disseram: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir”» (v.
35). É importante recordar que Tiago e João, juntamente com Pedro, são os
discípulos mais evidenciados nos três evangelhos sinóticos, não por méritos,
como às vezes se imagina, e sim pelas fragilidades e incoerências que
demonstram. Recordemos que, no momento da constituição do grupo dos Doze, Tiago
e João receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc
3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso
dos dois. Além do texto de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em
que as características negativas deles dois são evidenciadas: quando querem
monopolizar o nome de Jesus, proibindo um homem de fazer o bem em seu nome pelo
simples fato de não pertencer ao mesmo grupo (Mc 9,38-39) – evangelho do 26º domingo
–, e quando queriam eliminar um povoado da Samaria com fogo, somente porque lá
não foram bem acolhidos (Lc 9,51-55). Portanto, juntamente com Pedro, João e
Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus
fica somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8;
Lc 9,28-36), não se trata de um privilégio, mas de necessidade. Pelo
comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa,
pois tinham mais dificuldade de aceitar Jesus e sua mensagem de libertação.
Nos evangelhos
sinóticos (Mt; Mc; Lc), João e Tiago são os únicos discípulos apresentados com
o título patronímico – nome do pai –, o que indica o quanto ainda estavam presos
à tradição. Ora, uma das exigências básicas para o discipulado de Jesus é
exatamente a capacidade de deixar família e bens para dedicar-se somente ao
seguimento do mestre. Portanto, ao citá-los ainda na relação com o pai, o
evangelista quer dizer que eles ainda não tinham deixado tudo, na prática, por
isso, demonstravam tanta incompreensão, pois ainda não tinham assimilado de
modo satisfatório a mensagem de Jesus. É importante notar que, antes mesmo que eles
façam diretamente o pedido, o evangelista já os denuncia: «Queremos que
faças por nós o que vamos pedir»; aqui, há praticamente uma
ordem, se trata de uma exigência. Além do conteúdo do pedido, a forma como esse
é feito é uma afronta ao projeto de Jesus, o que torna o texto bastante
polêmico. De fato, é um texto não só polêmico, mas comprometedor para a
comunidade. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo do seu Evangelho, e Mateus o
modificou, colocando a mãe dos discípulos como a autora do pedido (Mt
20,20-23), preservando a imagem dos discípulos e revelando, assim, a sua visão
mais negativa da mulher. Marcos, pelo contrário, faz questão de revelar também
as debilidades dos discípulos, o que faz do seu Evangelho o mais autêntico e
original. Por isso, é o Evangelho que mais revela os traços humanos de Jesus (Mc
3,5; 7,34; 9,36; 10,14.16), juntamente com as fragilidades dos seus discípulos.
Diante da
quase “quase ordem” dos discípulos, Jesus lhes responde com uma pergunta, antes
mesmo de conhecer o conteúdo do pedido: «Que quereis que eu vos faça?» (v.
36). É típico de Jesus responder com uma nova pergunta, o que revela até uma
certa ironia da sua parte. Se os discípulos ainda não tinham aprendido nada com
os três anúncios da paixão, pouco importava para eles uma pergunta irônica de
Jesus. Por isso, sem nenhum escrúpulo, eles fazem o pedido absurdo: «Deixa-nos
sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!» (v.
37). Temos aqui uma verdadeira afronta a tudo o que Jesus já tinha ensinado a
respeito de si e do seu projeto de Reino de Deus. Esse pedido revela uma busca
ambiciosa por poder e privilégios, decorrente de uma visão completamente
equivocada da messianidade de Jesus. Eles Imaginavam Jesus como um messias
segundo as expectativas políticas de Israel, alimentada ao longo dos séculos:
um messias guerreiro que combateria os dominadores – na época, os romanos – até
expulsá-los do seu território e, finalmente, restabeleceria o antigo reino
davídico em Jerusalém. Jesus já tinha descartado essa possibilidade por
diversas vezes, mas os discípulos continuavam fechados e presos à antiga
mentalidade. Sentar-se à esquerda e à direita, equivalia às posições de honra,
como se fossem os primeiros-ministros de um rei. Eles queriam ser as pessoas
mais importantes, depois do rei, demonstrando total desconhecimento da natureza
do Reino que Jesus veio propor ao mundo.
Ao pedido
absurdo dos discípulos, Jesus responde com uma repreensão irônica e, como de
costume, com novas perguntas: «Vós não sabeis o que pedis. Por acaso,
podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com
que vou ser batizado?» (v. 38). Com razão, Jesus os trata como
ignorantes, ao dizer que eles não sabiam o que estavam pedindo. Apesar do teor
irônico que contém, esse tratamento de Jesus aqui é demonstração da sua
misericórdia e do seu amor incondicional. Pelo absurdo da proposta dos
discípulos, ele poderia até dispensá-los do seu seguimento ou repreendê-los
duramente. Mas prefere ver como incompreensão e ignorância. É o mesmo
tratamento ele vai dar aos seus algozes, na cruz (Lc 23,34). Ora, depois de
três anúncios explícitos da paixão, e de toda uma trajetória de oposição e
combate aos poderes vigentes, é inadmissível que os discípulos ainda quisessem
espelhar-se nessas formas de poder, alimentando pretensões de glória e
privilégios, querendo impor um modelo hierárquico na comunidade. À correção,
com a qual Jesus denuncia a ambição dos discípulos, ele acrescenta duas
perguntas provocatórias que resumem todo o seu ministério, desde o início na
Galileia até a consumação em Jerusalém, evocando duas imagens simbólicas dessa
trajetória: o cálice e o batismo. O batismo remonta ao início de tudo (Mc
1,8-11); já o cálice pré-anuncia a paixão (Mc 14,23.36). Embora sejam imagens
de múltiplos significados ao longo de toda a Bíblia, aqui em Marcos são síntese
da vida de Jesus, do batismo à cruz. Em outras palavras, é como se Jesus
perguntasse: «Vocês estão dispostos a viver do meu jeito, do começo ao
fim de vossas vidas?».
À pergunta
decisiva de Jesus, os discípulos irmãos respondem com muita
prontidão, mas Jesus parece não levar muito a sério a resposta deles,
provavelmente por perceber uma certa presunção nos dois: «Eles
responderam: “Podemos!”. E ele lhes disse: “Vós bebereis o cálice que eu devo
beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não
depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para
aqueles a quem foi reservado”» (vv. 39-40). A disposição para
abraçar e assumir as consequências de um seguimento sério e radical não pode
dar-se em função de recompensas futuras ou prêmios, como eles queriam. Por
isso, Jesus confirma que, de fato, eles participarão de seu destino doloroso,
mas os alerta que abraçar o seu projeto em vista de recompensa é sinal de incompreensão.
A disposição de lugares na glória é um dom gratuito do Pai, e não uma conquista
por méritos. Quando Marcos escreve seu Evangelho, pelo menos Tiago já tinha
sido martirizado, o primeiro dos Doze a derramar o sangue pela causa de Jesus
(At 12,1-2). Isso quer dizer que, apesar de obstinados, eles aceitaram e
compreenderam o sentido do seguimento, com suas consequências. Compartilharam o
batismo e o cálice de Jesus. Mas é importante a coragem do evangelista
apresentar toda a resistência e incompreensão no caminho, ensinando que o
seguimento de Jesus exige uma constante conversão. Ninguém nasce discípulo nem
se torna num único momento. Ser discípulo é um processo, um tornar-se, que deve
se aperfeiçoar cotidianamente, à medida em que aumenta o grau de intimidade com
Jesus.
O resultado do
ambicioso pedido dos dois irmãos foi a divisão da comunidade: «Quando
os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João» (v.
41). Temos aqui o primeiro cisma da comunidade, a partir de quando ficaram dez
contra dois. Esse episódio é também a recordação de um dos acontecimentos mais
deploráveis da história de Israel: o cisma que gerou a divisão em dois reinos:
as doze tribos se dividiram, numa disputa de dez contra duas, ficando o reino
do norte composto de dez tribos, e o reino do sul formado por apenas duas (2Rs
12). Inclusive, esse texto constitui a única ocasião no Novo Testamento em que aparece
a denominação “os dez” (em grego: hoi déka – οἱ δέκα) como referência a uma ala do
grupo dos discípulos. Para o evangelista, é inaceitável que a comunidade cristã
reproduza os erros históricos de Israel. À medida em que os projetos
individuais são colocados em primeiro plano, a unidade da comunidade é
quebrada. A reação dos doutros dez mostra isso. Por “indignaram-se” deve-se
compreender que ficaram com raiva, ficaram irados. Logo, não significa que eles
tivessem compreendendo melhor a dinâmica do projeto de Jesus; pelo contrário,
demonstra que eles também pensavam como os dois irmãos; ficaram com raiva por
rivalidade, ou seja, eles também queriam os dois lugares de destaque
pretendidos pelos filhos de Zebedeu. Essa reação afirma que a sede de poder e o
espírito de competição contagiava todo o grupo dos discípulos. inclusive, pouco
tempo antes, após o segundo anúncio da paixão, eles tinham discutido sobre quem
era o maior entre eles (9,30-37) – texto lido no 25º domingo. Portanto, todos
eles estavam movidos por ambições, desejando o exercício do poder a partir do
estabelecimento de uma hierarquia na comunidade, contrariando, assim, o projeto
igualitário de Jesus.
A comunidade,
afetada pela ambição, estava completamente ameaçada. Por isso, Jesus chama a
atenção dos discípulos, como diz o evangelista: «E Jesus convocando-os,
lhes diz: “sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e
os grandes as tiranizam” (v. 42). O verbo grego traduzido pelo
lecionário como convocar significa “chamar para perto de si” (em grego: προσκαλέω – proskálêo).
Com isso, o evangelista denuncia que, embora estivessem no mesmo caminho, e até
próximos fisicamente, os discípulos estavam distantes de Jesus em termos de
mentalidade e consciência da natureza do Reino. Ao chamá-los para perto de si,
Jesus revela sua capacidade de diálogo, suas qualidades de bom pedagogo que não
desiste de ver seus discípulos humanizados. Mostra também a sua perseverança e
amor; ele não abandona seus discípulos à ignorância, mas insiste em despertar
neles a consciência da igualdade e da solidariedade, conforme seu projeto. Ao
mesmo tempo, esse gesto mostra que ele vê a ambição com muita preocupação. Por
isso, procura expor o seu projeto com mais clareza ainda, procurando mostrar o
quanto é diferente de qualquer projeto humano de obtenção e exercício do poder.
Tendo
negligenciado os três anúncios da paixão, mesmo tendo sido corrigidos por Jesus,
os discípulos tinham como parâmetro os modelos vigentes de poder, marcados pelo
domínio e a tirania. Por isso, agora Jesus apresenta sua reação e
proposta: «Porém, entre vós não é assim, mas aquele que quiser
tornar-se grande entre vós, será vosso servidor. E aquele que quiser
ser o primeiro entre vós, será escravo de todos!» (vv. 43-44).
Na verdade, trata-se de uma contraproposta; é uma proposta anti hegemónica,
como o Evangelho em sua inteireza. Os sistemas de poder conhecidos até então,
não podem ser referência para a comunidade. Marcos recorda isso com muita
clareza, pois na época da redação do seu Evangelho havia uma tendência
hierarquizante muito forte na sua comunidade, e ele via isso como um
distanciamento do projeto de Jesus, que quis uma comunidade igualitária, justa
e solidária, sem dominadores nem dominados. Portanto, na comunidade cristã não
pode haver espaço para carreirismo, ambição e posições de privilégio. Qualquer
imitação dos sistemas vigentes de poder, seja da religião do templo ou do
império romano, deve ser abolida da comunidade. A expressão «entre vós
não é assim» é carregada de uma certa ironia da parte de Jesus, uma
vez que, de fato, estava sendo daquele jeito entre os discípulos; ao mesmo
tempo, é uma forte denúncia: não é mais possível adiar a tomada decisiva de
posição a respeito dos valores do Reino. Daí ele apresenta qual é o modelo a
ser seguido pela comunidade: o serviço, sendo ele mesmo o exemplo de servidor.
É preciso substituir a lógica do poder pela lógica do serviço. E isso vale para
todas as épocas.
Só é primeiro
na comunidade quem se coloca em atitude de serviço em benefício de todos. Por
isso, o referencial para a comunidade cristão não pode ser outro senão o
próprio Jesus, como ele mesmo se apresenta: «Pois o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida dele em resgate de muitos» (v.
45). Ao almejar os primeiros lugares, os filhos de Zebedeu buscavam meios de
comando, queriam dominar, distanciando-se do projeto de Jesus, cuja proposta de
vida consiste em colocar-se em estado de serviço, com disposição de dar a vida
pelo próximo, por amor. O verbo servir (em grego: διακονέω – diaconêo) é empregado
duas vezes no mesmo versículo, indicando a chave de leitura do texto e de toda
a vida de Jesus. Os discípulos tinham dificuldade de assimilar esse
ensinamento, à medida em que queriam estabelecer um sistema de poder na
comunidade, como embrião de um projeto de dominação nos moldes da antiga monarquia
davídica. Com isso, conscientes ou não, eles rejeitavam o programa de Jesus e
adotavam o modelo de administração do império romano e da religião judaica,
comandada pelos sacerdotes do templo e o sinédrio. Na compreensão deles, as estruturas
da organização social e religiosa da época não seriam abaladas, mudaria apenas
as pessoas de comando. Sairiam os romanos e entrariam galileus. Eles queriam
reproduzir um sistema opressor e excludente. É claro que uma mentalidade assim não
encontra respaldo na mensagem de Jesus.
O evangelho de
hoje constitui-se, portanto, como um forte convite à Igreja, em todos os
lugares, a abrir-se à sinodalidade como um caminho propício à recuperação da
originalidade do projeto de Jesus, para a sua comunidade e para o mundo. Onde
há ambição, há rivalidade; e esses dois males impedem o “caminhar juntos”. Por
isso, precisam ser abolidos da comunidade cristã, para que nessa vigorem
comunhão, participação e missão, retornando, assim, à originalidade evangélica.
Para isso, é necessário recuperar a dimensão diaconal do seguimento de Jesus.
Somente com disposição para servir há seguimento de Jesus Cristo.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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