Neste domingo – o primeiro do advento – a
Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer
o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde anúncio
do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado
hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo
advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; possui o
mesmo significado do termo grego parusia (παρουσία). Fazia parte do vocabulário das
religiões pagãs no império romano, sendo usado em referência às supostas
visitas das divindades aos seus respectivos templos, e no âmbito civil era
usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às
cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo
absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do Natal, a
visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o
uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o
próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e
expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento.
E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo
novo, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.
Com o início do novo ano litúrgico, iniciamos
também a leitura do Evangelho segundo Lucas, como é típico do ciclo litúrgico
C. Porém, não iniciamos a leitura do início do Evangelho, mas do seu final,
precisamente do seu discurso escatológico. De fato, a leitura semi-contínua do Evangelho de cada ano litúrgico só é percebida nos domingos do tempo comum. Por isso, o texto proposto para hoje
é Lc 21,25-28.34-36. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), e trata simbolicamente das realidades
últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão, morte e
ressurreição de Jesus. A princípio, parece até paradoxal que a preparação para
o natal seja iniciada com palavras sobre as realidades últimas. Porém, é
necessário compreender o advento como uma oportunidade de preparação para a
vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma
presença contínua, ao invés de apenas alimentar uma expectativa futurista e
preparar para uma única data ou evento. É importante recordar que o evangelho
de hoje é praticamente a repetição daquele do penúltimo domingo do ano
litúrgico precedente, quando foi lido o mesmo episódio, porém, na versão de
Marcos (Mc 13,24-32). É claro que tem variações significativas entre uma versão
e outra, mas a mensagem é semelhante. Com isso, percebe-se a continuidade do
tempo: o ano (litúrgico) começa e termina animando a comunidade à esperança e
advertindo-a à vigilância.
O trecho do Evangelho lido hoje
pertence ao conjunto das últimas palavras de Jesus antes do relato da paixão. É
necessário fazer uma pequena contextualização para uma compreensão mais
adequada do mesmo. Jesus se encontrava em Jerusalém, na sua última semana,
ensinando no templo, denunciando a hipocrisia religiosa dos escribas e fariseus
na maneira de viver a reliogiosidade, observando as verdadeiras e as falsas
práticas religiosas (Lc 21,1-4). Os discípulos estavam sempre ao seu lado,
escutando seus ensinamentos e também observando as novidades da grande cidade
que, certamente, possuía um ritmo de vida muito diferente dos povoados da
Galileia, de onde eles tinham saído. Ora, como se sabe, os primeiros discípulos
de Jesus, em sua grande maioria, eram camponeses e pescadores, pessoas de origens
muito simples; ao chegar em Jerusalém, eles se admiravam com a beleza e a
grandeza da cidade e, principalmente, do grandioso templo, considerado uma das
maravilhas do mundo, na época (Lc 21,5). À admiração dos discípulos, Jesus
respondeu: «Vós contemplais estas coisas, mas dias verão em que não
restará pedra sobre pedra que não seja derrubada» (Lc 21,6). Curiosos
e espantados com essa afirmação de Jesus, os discípulos perguntaram: «Mestre,
quando acontecerá isso? Qual o sinal de que isso está para acontecer? » (Lc
21,7). O questionamento dos discípulos é compreensível, tendo em vista o
impacto das palavras de Jesus.
O discurso escatológico é,
portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta dos seus discípulos. Com Pertence
ao gênero literário apocalíptico, derivação da palavra apocalipse (em grego: ἀποκάλυψις =
apocalípsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou
“tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico foi
bastante distorcido ao longo da história, passando a ser compreendido como anúncio
de catástrofes e desastres, causando medo, quando, na verdade, é um gênero
literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e
resistência. Por isso, foi empregado com mais frequência nos tempos de
perseguição, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como atestam os livros
de Daniel e o Apocalipse de São João, as obras mais apocalípticas da Bíblia. Portanto,
ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos
animar, como veremos no decorrer da reflexão. Não é uma descrição de eventos
catastróficos, mas uma forma simbólica de apresentar o triunfo de Deus sobre a
história. Por isso, é muito oportuno o seu uso no advento, tempo pautado por
mensagem e espiritualidade marcadas pelo tema da esperança.
E o texto de hoje já começa com palavras de grande
impacto: «Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as
nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas» (v.
25). A princípio, parece uma cena aterrorizante, mas na verdade é um sinal de
esperança. Os astros (sol, lua e estrelas) eram imagens de divindades nos
mundos greco-romano e egípcio. Embora Lucas não afirme, como Marcos, que esses
astros irão desmoronar, ele diz que entrarão em caos, o que representa o
colapso dos sistemas de dominação responsáveis pelas perseguições vividas pelas
comunidades da época da redação do evangelho e toda a trajetória do povo de Deus,
ao longa da história. Até mesmo o mar, onde residiam as forças do mal para a
mentalidade semita, será abalado; isso ignifica que o mal será cortado pela
raiz. Obviamente, tais acontecimentos trarão angústia e medo para o mundo todo,
até então, conformado com a ordem injusta das coisas. Por isso, «Os
homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque
as forças do céu serão abaladas» (v. 26). Já as forças do céu,
aqui, não são divindades, mas a ordem e harmonia do cosmos; esse abalo faz
parte do processo de reordenamento do mundo. A imagem da revolução cósmica
representa a reviravolta na história provocada pela instauração do Reino de Deus
no mundo.
O que parece catastrófico, portanto, é apenas pretexto
para a passagem de uma fase à outra da história. O mundo velho, até então
ordenado com falsa segurança e sistemas injustos, como era o império romano,
não poderia permanecer para sempre. Ora, perseguidos e já quase sem esperanças,
como estavam muitos cristãos nas comunidades lucanas, não era fácil acreditar
em transformação. Mas o evangelista não desiste e reconstrói as palavras de
Jesus que seriam de grande importância para o seu contexto: «Então eles
verão o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória. Quando
estas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque
vossa libertação está próxima» (vv. 27-28). A construção de um mundo novo
requer a destruição das estruturas velhas de poder e dominação. É esse o
sentido do texto até aqui. O mundo velho, governado por tiranos que se sentiam
iluminados por falsas divindades (os astros), sustentadoras de um sistema tão
nocivo para o ser humano quanto às forças do mar, não seria eterno; haveria de
dar lugar a um mundo novo, plenamente humanizado pelo amor: o Reino de Deus.
A imagem do Filho do Homem vindo das nuvens evoca o
reinado e senhorio de Deus sobre o mundo, através do seu filho Jesus Cristo,
prestes a ser condenado, no contexto imediato do discurso escatológico. Aplicada
ao contexto do advento, recorda a plena humanidade de Jesus; um Deus que assume
a plenamente a condição humana, inserindo-se nas realidades mais humildes da
história, como demonstrado pelo nascimento em um estábulo de animais. Para o
Reino de Deus acontecer em sua plenitude é necessário que uma nova ordem seja
estabelecida no mundo. Na verdade, o Reino é a nova ordem. Portanto, o caos
descrito nos primeiros versículos e a manifestação do Filho do Homem evocam a
necessidade de transformação da humanidade, para o estabelecimento de um mundo
novo, justo e fraterno. Embora ainda não realizado, esse é o ideal e o que deve
manter nos cristãos a chama da esperança acesa. Há, em curso, um processo de
libertação plena para a humanidade, iniciado com a encarnação e o nascimento de
Jesus, que um dia há de ser completamente realizado. Por isso, os cristãos não
podem desanimar, por mais difícil que seja a situação, devem manter-se «de
cabeça erguida, porque a libertação está próxima» (v. 28); a cabeça erguida
é o sinal da dignidade e a consciência da pessoa que não reconhece os poderes
injustos e opressores deste mundo, e nem é conivente com eles; é a postura de
quem não se curva diante de falsos deuses e mantém firme a esperança somente no
Deus de Jesus Cristo, que é o Libertador, por excelência.
Embora certa, a libertação pode retardar bastante, o
que tende a levar muitos cristãos ao desânimo e até mesmo a abandonarem a fé,
sobretudo quando são vítimas de injustiças e opressão. Por isso, paralelo à
certeza de que a ordem injusta não é eterna, pois é certo que um dia a
libertação acontecerá, o evangelista alerta para a necessidade da vigilância,
para não serem surpreendidos, uma vez que não há uma data exata para isso
acontecer: «Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis
por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não
caia de repente sobre vós, pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos
os habitantes de toda a terra» (vv. 34-35). O cuidado para não
deixar o coração ficar insensível é muito significativo; inclusive, é uma
exclusividade de Lucas, no contexto do discurso escatológico. Ora, sendo ele o
evangelista da misericórdia, já tinha mostrado Jesus pedindo aos discípulos
para serem misericordiosos como o Pai é misericordioso (Lc 6,36). A
insensibilidade de coração é, portanto, a ausência de misericórdia, o que é
incompatível com a vida cristã. Deixar o coração insensível equivale à
indiferença diante das injustiças, é a naturalização do mal e do sofrimento do
próximo. Por isso, Jesus exorta o seu discipulado a manter-se de coração
sensível, sempre.
Os elementos que poderiam contribuir para a
insensibilidade de coração dos discípulos – comida, bebida e preocupações da
vida – não constituem, aqui, um elenco de vícios a serem combatidos, como nas
cartas de Paulo, mas representam o cotidiano, o dia-a-dia das pessoas, do qual
os cristãos não podem privar-se, mas não podem viver somente em função disso. É
uma advertência a mais: viver somente em função do cotidiano, sem almejar algo
a mais na vida é perigoso; além de tornar insensível o coração, fecha o horizonte
à esperança. É também sinal de comodismo e egoísmo. Quem reduz a sua existência
ao comer, ao beber e às suas próprias preocupações, está fechado ao cuidado com
o próximo e à esperança de mudança e transformação do mundo. Por isso, a
cotidianidade não pode fechar o horizonte do discípulo. Quanto ao caráter
improviso “desse dia”, trata-se de um aspecto tradicional na Bíblia, desde o
anúncio do “Dia do Senhor” pelos antigos profetas (Jl 2,31; Am 5,18, etc.). É
preciso viver continuamente em comunhão com Deus para não ser surpreendido.
Quem já vive no dia-a-dia a presença constante do Senhor, através da oração e
do cultivo de relações humanas autênticas e fraternas, não será sofrerá surpreendido.
Como Lucas é o evangelista que mais privilegia a
oração, ele apresenta essa como a mais consistente das formas de
vigilância: “Portanto, ficai atentos e orai a todo momento, a fim de
terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé
diante do Filho do Homem” (v. 36). A oração sincera, junto com
o espírito de vigilância mostram, acima de tudo, que os cristãos não podem
acostumar-se à ordem vigente, não podem ser tolerantes com as injustiças e
opressões, mas devem estar sempre em busca de um mundo melhor, não apenas
esperando, mas também construindo, no dia-a-dia, as condições necessárias para
o reinado de Deus se estabelecer definitivamente sobre o mundo, o que não
acontecerá passivamente, mas somente com a destruição de todas as forças de
morte, conforme a descrição dos primeiros versículos. E isso exige muito empenho
da comunidade cristã. É importante recordar a ênfase que o evangelista dá à
oração: o convite é para “orar a todo momento”, e o efeito da oração é a força
para suportar as dificuldades e manter-se de pé, o que não significa uma mera
sobrevivência, mas estar consciente da realidade e pronto para nela intervir; é
também a postura de quem não se curva diante das injustiças, além de evocar a
importância da vigilância. Ficar de pé diante do Filho do Homem é, portanto,
estar com a consciência tranquila de ter lutado para o seu Reino acontecer.
Que o novo ano litúrgico e, sobretudo, o tempo do
advento renovem o entusiasmo de nossas comunidades na expectativa do Reino de
Deus, não como um evento extraordinário, mas como uma realidade que se constrói
cotidianamente. Para isso, é necessário manter os corações sensíveis aos
acontecimentos e situações que exigem solidariedade, empatia, amor e justiça. A
indiferença ao próximo e a conivência com as injustiças retardam a libertação
e, consequentemente, a construção do Reino de Deus. Que o advento seja, portanto,
tempo de esperança e, ao mesmo tempo de advertência e resistência.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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