sábado, fevereiro 22, 2025

REFLEXÃO PARA O 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,27-38 (ANO C)

 


A liturgia deste sétimo domingo do tempo comum propõe a continuação da leitura do chamado “discurso da planície” do Evangelho de Lucas (Lc 6,17-49). Como se sabe, esse discurso é a versão lucana paralela e alternativa ao famoso “discurso da montanha” do Evangelho de Mateus (Mt 5–7). Certamente, ambos os evangelistas utilizaram a mesma fonte ou tradição – a chamada “Fonte Q” –, mas cada um adaptou-a às suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades, de modo que são bem evidentes as diferenças entre as duas versões, conforme já acenamos na reflexão do domingo passado, a começar pelo cenário da cena: enquanto Mateus localiza o discurso no alto de uma montanha, Lucas diz que a proclamação se deu numa planície. Além das variações no conteúdo, talvez essa seja a principal diferença entre as duas perspectivas. Outra diferença considerável diz respeito aos destinatários de cada discurso. Em Mateus, o discurso da montanha é dirigido exclusivamente aos discípulos, enquanto o discurso da planície de Lucas tem, além dos discípulos, também as multidões como destinatárias, reforçando o enfoque universalista do respectivo evangelista.

O texto lido hoje – Lc 6,27-38 – é a sequência imediata daquele do domingo passado (Lc 6,17.20-26). Naquela ocasião, Jesus identificou um mundo escandalosamente dividido entre pobres e ricos: de um lado, os pobres, que passam fome, choram e sofrem perseguições; do outro, os ricos, que vivem na fartura, riem e são exaltados. Movido sempre por sua íntima relação com o Pai, ainda mais porque tinha acabado de descer da montanha, onde tinha orado ao Pai e escolhido os Doze, Jesus tinha certeza que aquele mundo tão desumanizado, dividido e desigual não correspondia aos propósitos de Deus. Por isso, certamente inspirado no exemplo dos grandes profetas do Antigo Testamento, ele tomou partido pelo lado mais fraco, o lado dos pobres e famintos, os que choram e são perseguidos, proclamando-os bem-aventurados e incentivando-os à luta perseverante e transformadora, para superar aquele abismo, garantindo-lhes a primazia no Reino de Deus, que se constrói desde agora. Por outro lado, aos ricos, risonhos, saciados e exaltados, Jesus proferiu sérias denúncias, com a proclamação das chamadas “maldições”, introduzidas pela fórmula profética de lamento e denúncia “ai de vós”. Portanto, é necessário recuperar essa imagem de um mundo dividido e desigual, diante do qual Jesus nunca se conformou, para compreender a mensagem do evangelho de hoje, que pode ser considerado um hino ao amor e ao perdão.

Antes de tudo, é interessante recordar que Jesus não se limitou a diagnosticar a situação. Ele foi bem mais além, propondo uma verdadeira reviravolta na história, com revolução de valores. A transformação querida por Jesus, obviamente, não pode se realizar pela força, e sim pelo amor. Claramente, ele escolheu um lado, o dos pobres e pequenos, e propôs um caminho de superação, correspondente aos propósitos do Pai: «A vós, que me escutais, eu digo: amais os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam» (27). O convite à observação daquilo que se escuta é um importante indicativo da transmissão oral do ensinamento, como acontecia no cristianismo primitivo, o que posteriormente deu origem aos principais escritos do Novo Testamento. A maneira como o convite é exposto funciona também como indício de importância da mensagem, que é destinada a todas as pessoas que, em qualquer época, tenham contato com o Evangelho. Inclusive, a sequência da mensagem vai revelar seu caráter universalista. Ora, diante de um mundo ferido pela ganância, desigual e dividido, o caminho de superação não pode ser outro senão o amor, a maior força de humanização encontrada por Jesus e tão radicalmente vivida. De fato, o amor é a base da sociedade alternativa proposta por Jesus, correspondente ao que ele mesmo chama de Reino de Deus, conforme mostram os evangelhos. 

Por “inimigos”, neste texto e neste primeiro versículo, sobretudo, compreende-se as pessoas que praticam o mal, aquelas que são prejudiciais e responsáveis pelo sofrimento do outro. À medida em que devem ser amadas, deixam de ser inimigas. São as pessoas que, segundo uma lógica puramente humana, deveriam ser odiadas e eternamente condenadas. Jesus, no entanto, propõe uma verdadeira revolução, pelo amor, e esse é o grande diferencial da sua mensagem. Para isso, não ilustra seu ensinamento com exemplos abstratos inalcançáveis, mas com situações bem concretas: «Bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam. Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva» (vv. 28-30). Essas são situações do dia-a-dia, acessíveis a todas as pessoas, embora altamente desafiadoras, pois exigem grande empenho na prática da tolerância e do amor. Provavelmente, eram situações já vividas pelas primeiras comunidades cristãs e agravadas nos tempos em que Mateus e Lucas compuseram suas obras, entre as décadas de 70 e 90 do primeiro século. Diante das hostilidades, era forte a tendência a distanciar-se da radicalidade exigida pela mensagem de Jesus, que é o seu próprio jeito de viver. Por isso, a insistência dos evangelistas. A resposta cristã ao ódio é o amor e a oração, em qualquer circunstância. E essa se constitui como um dos principais diferenciais da mensagem cristã em relação a qualquer outra experiência de vida religiosa e social. Oferecer a outra face é sinal de que não foi intimidado pela violência recebida, é uma forma sutil de denúncia. Obviamente, não é um convite à aceitação passiva do mal e da violência, mas uma alternativa que leva o próprio praticante do mal a reconhecer a ineficácia de suas práticas, sentindo-se ele mesmo humilhado. Na época, predominavam duas formas de responder ao mal e à violência: aceitar passivamente o mal sofrido ou reagir violentamente; Jesus propõe uma terceira via, a única capaz de fazer o malvado reconhecer a ineficácia e a covardia de suas práticas. É claro que não se trata de resignação diante da injustiça sofrida, mas sim de combatê-la da maneira mais eficaz, a ponto de desarmar os injustos. Com uma proposta tão ousada, Jesus está propondo o fim da corrente da violência, mostrando que o mal só pode ser combatido e vencido pelo bem. A violência sempre gera mais violência; por isso, ela é inaceitável, sejam quais forem as circunstâncias. 

Com esse discurso, se vê claramente que Jesus não ensina uma doutrina, mas apresenta uma proposta de vida, conforme a maneira dele mesmo viver, a fim de humanizar o mundo. E a regra de ouro para a realização dessa proposta é esta: «O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles» (v. 31). Essa regra é a resposta a todo movimento ou sistema que prega a violência ou até mesmo a reciprocidade nas relações. É dirigida a toda a humanidade, em todos os tempos. É considerada a regra de ouro da caridade e da vida cristã, inclusive, é o que mais faz o cristianismo ser tão admirado, enquanto estilo de vida, por pessoas de outras religiões e até por ateus. Embora tenha antecedentes parecidos no Antigo Testamento, a formulação de Jesus é totalmente original. Em Tb 4,15a, por exemplo, temos uma máxima muito parecida, embora formulada a partir da via negativa: «Não façais a ninguém o que não queres que te façam». Algumas escolas rabínicas da época de Jesus e das primeiras comunidades cristãs pregavam a partir dessa máxima. A originalidade da formulação de Jesus é a motivação a um agir concreto, a fazer o bem, e não apenas a não praticar o mal. Como se vê, o empenho exigido por Jesus é bem maior. Para ele, não basta não fazer o mal, mas é preciso fazer o bem, sempre. Com isso, ele está também combatendo todo tipo de indiferença. De fato, o conjunto da sua mensagem revela que a indiferença constitui um dos piores males na vida, tanto em âmbito pessoal quanto social, comunitário. 

O seguidor de Jesus deve fazer o bem sem exigir nada do outro, além de jamais retribuir com a mesma medida por uma ofensa recebida. Deve se colocar no lugar do outro, sem nada exigir, e refletir sobre as consequências de suas próprias ações, como será explicitado nos versículos seguintes: «Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia» (v. 32-34). Existe um nível de comportamento e de relações acessível a todos, e que é praticado em praticamente todas as sociedades: a reciprocidade. Por exemplo, amar alguém sabendo que é amado por esse alguém é uma atitude que não exige o conhecimento do Evangelho nem intimidade com Jesus. O mesmo vale para a prática de gestos caritativos, quando se sabe que haverá retribuição do outro. Isso é comum a todas culturas. Até os pecadores fazem isso, como ele afirma. “Os pecadores”, aqui, significa todas as categorias de quem não pauta a vida segundo o Evangelho; não quer dizer as pessoas más em si, e sim quem ainda não conhece a mensagem cristã. Mas também as pessoas más podem fazer isso, ou seja, agir segundo a lógica da retribuição, amando aqueles que sabem que lhes amam, e pagando pelo mesmo valor um bem ou um favor recebido. O princípio do amor se aplica também a outros tipos de relações, como o fazer o bem de um modo geral, e a prática dos empréstimos. Em qualquer que seja o grau ou o tipo de relação, o autêntico seguidor de Jesus deixa a sua marca, fazendo como ele mesmo fazia, ou seja, agindo de modo totalmente desinteressado, sem receber qualquer recompensa ou retribuição. 

Novamente no imperativo, o convite a amar os inimigos é reforçado, junto com o fazer o bem: «Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e maus» (v. 35). É necessário que o discípulo e a discípula de Jesus façam além do óbvio, que pratiquem o amor e a justiça de modo gratuito e desinteressado. Porém, inevitavelmente a recompensa virá, não como salário em forma material, mas em dignidade: tornar-se filhos ou filhas do Altíssimo. Ser filho, nessa perspectiva, significa ser parecido com o pai. É essa a dinâmica do amor proposto por Jesus: tornar o ser humano parecido com Deus, sendo bondoso como Ele é. E o caminho para isso é a assimilação da mensagem de Jesus, a mais eficaz fonte de humanização que a história já conheceu. Para reforçar ainda mais a necessidade de tornar-se parecido com Deus, Jesus parte da principal característica desse Deus: «Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso» (v. 36). Aqui, Jesus ousa reformular o solene mandamento de Levítico 19,2: «Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo». Esse mandamento fora decisivo para a construção da identidade de Israel e, por consequência, de seu orgulho e privilégio de povo eleito; compreendia-se a santidade como a separação dos outros povos. Jesus inova e faz uma reinterpretação decisiva para a sua comunidade, começando pela reformulação da imagem de Deus, que passa de santo a misericordioso, como passa também a ser compreendido como um Pai. Ora, o conceito de santo indica separação, por consequência, distância do ser humano, enquanto o traço da misericórdia recorda a atenção de Deus aos seres humanos, seus filhos. Sua misericórdia indica que ele está totalmente voltado para a humanidade, necessitada de amor e misericórdia. A partir dessa imagem é que deve ser imitado pelos seus filhos. Ser misericordioso significa ser bondoso, é cultivar somente bondade dentro de si e nas relações com o próximo, sem necessidade de separação; pelo contrário, é necessário misturar-se, como ele fez, com gente de “todo tipo”, para facilitar a irradiação do amor e, assim, tornar conhecido o verdadeiro rosto de Deus, o seu Pai. Amor e bondade são traços inseparáveis, e devem ser os sinais mais distintivos na vida dos seguidores e seguidoras de Jesus.

Ainda de acordo com a “regra de ouro” das relações – «O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles» (v. 31) – Jesus acrescenta outras exigências, como desdobramento, para que seu programa seja realmente vivido e, por consequência, o mundo seja transformado e plenamente humanizado. Por isso, ele diz: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos» (vv. 37-38). É claro que ele não está afirmando que o agir humano é critério para o agir de Deus. Pelo contrário, é Deus o critério, sobretudo na bondade e no amor, o que inclui a capacidade de perdoar. Porém, mais uma vez, ele reivindica a coerência de vida. Julgar e condenar não são prerrogativas de nenhum ser humano. Isso compete somente a Deus, que escolheu o amor misericordioso como meio e critério. É preciso assimilar o estilo de vida de Jesus, tornando-se artesão da paz e da humanização do mundo. E é exatamente no campo das relações com o próximo que os cristãos e cristãs revelam como se relacionam com Deus e como absorveram o Evangelho de Jesus.

Essa foi, portanto, a resposta e o caminho para um mundo ferido, injustiçado, dividido e desigual reencontrar o seu equilíbrio: acolhendo o ensinamento de Jesus sobre o amor e vivendo intensamente esse amor. Para isso, não é suficiente esperar passivamente a mudança de estruturas, mas cada um e cada uma deve, no dia-a-dia, experimentar esse amor e pautar a vida a partir dele, começando pelas relações com o próximo e as experiências concretas do cotidiano. Para concluir, é importante recordar que o amor e o perdão sem medidas, como ensina o evangelho de hoje, não se opõe à luta por justiça e pela superação das desigualdades. Ao pregar o amor aos inimigos, Jesus não está cancelando os “ai de vós” àqueles que fazem os pobres passar fome, chorar e ser perseguidos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 15, 2025

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,17.20-26 (ANO C)



O evangelho proposto para a liturgia deste sexto domingo do tempo comum é Lc 6,17.20-26. Esse texto contém a apresentação lucana das “bem-aventuranças”, as quais são seguidas pelas respectivas negações, ou seja, pelas situações opostas ao que é proclamado nas bem-aventuranças, chamadas de “maldições”, um termo que pode parecer bastante áspero, mas que correspondente às reais intenções do texto e de todo o Evangelho de Lucas, que é reconhecido como o “Evangelho dos Pobres, por unanimidade. De início, já recordamos que, ao longo da história, esse foi um dos textos de Lucas mais evitados nas igrejas e comunidades cristãs. Ora, como se sabe, as bem-aventuranças são reconhecidas como a síntese do programa de Jesus e o seu verdadeiro autorretrato; não se pode falar de Jesus sem recordá-las. Mas, como existem duas versões delas, uma em Mateus (Mt 5,1-12) e outra em Lucas, a Igreja preferiu sempre a versão de Mateus, por ser mais longa, por isso aparentemente mais completa e, sobretudo, por ser mais suave. Ora, enquanto na versão de Lucas se diz apenas “bem-aventurados os pobres”, na de Mateus se diz “bem-aventurados os pobres em espírito”; enquanto em Lucas se diz “bem-aventurados os que agora passam fome”, em Mateus se diz “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça”. Enfim, na versão de Lucas as bem-aventuranças possuem um significado mais concreto e imediato e, historicamente, as instituições religiosas costumam isentar-se das questões que exigem respostas e ações concretas urgentes, preferindo alimentar o sonho de uma felicidade eterna em outro mundo; claro que há exceções.

Outra grande diferença entre as duas versões é que em Mateus não constam as chamadas “maldições”, ou seja, a denúncia da negação das bem-aventuranças. O certo é que os dois evangelistas utilizaram uma mesma fonte – a chamada “Fonte Q” –, mas cada um adaptou-a às suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades. Também há uma diferença considerável em relação ao número: em Mateus são oito bem-aventuranças, enquanto em Lucas constam apenas quatro, como são quatro também as maldições. As bem-aventuranças encontram suas raízes literárias na literatura sapiencial, onde predomina o elogio à pessoa justa, que segue retamente os caminhos do Senhor apontados pela Lei, bem como àquele que alcança prosperidade, justamente como consequência da fidelidade à Lei. Por isso, é surpreendente que Jesus proclama bem-aventurados quem não tinha motivos para ser considerado bem-aventurado: pobres, famintos e sofredores. Já as maldições são inspiradas na literatura profética: é uma forma de denúncia e reprovação ao comportamento de quem cometia injustiças e praticava um culto superficial. No decorrer da reflexão, retomaremos alguns desses aspectos introdutórios e contextuais, e ressaltaremos ainda outras diferenças entre a composição de Lucas e a de Mateus.

Comecemos o estudo do texto partindo do primeiro versículo, o qual apresenta muitas informações relevantes: «Jesus desceu da montanha com os discípulos e parou num lugar plano. Ali estavam muitos dos seus discípulos e grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia» (v. 17). Para compreender esse versículo que fornece a ambientação do discurso, é necessário recordar o episódio que o antecede. Ora, Jesus tinha subido à montanha para orar, com seus discípulos, dentre os quais escolheu doze e os chamou de apóstolos, cujo significado é simplesmente “enviados” (Lc 6,12-16), termo que expressa uma função bem concreta, e não propriamente um título de honra. Quando ele desce da montanha, já está com o grupo dos doze constituído. Outro detalhe importante deste primeiro versículo, e que evidencia uma das principais diferenças em relação à versão de Mateus, é o cenário do discurso: em Mateus, as bem-aventuranças são proclamadas numa montanha, daí a origem do famoso “discurso da montanha”; em Lucas, Jesus ensina a partir da planície, como diz o texto, “num lugar plano”. A princípio, parece um detalhe insignificante, mas trata-se de algo muito relevante para a catequese lucana. Logo, recordá-lo é essencial para uma compreensão correta do texto.

A montanha em Lucas é apenas o lugar de oração, não do ensinamento. Na montanha, conforme a perspectiva lucana, Jesus se encontra com o Pai. Para ensinar, ele prefere o lugar plano, onde se encontra com as pessoas de todas as categorias, mantendo uma relação de proximidade. De fato, o lugar plano evoca acessibilidade e igualdade, além da superação dos obstáculos para a chegada do messias. Recordemos que, de acordo com o próprio Lucas, fundamentado em Is 40,4, a missão de João – o Precursor – consistia exatamente em «aplainar os caminhos e remover as montanhas» (Lc 2,76; 3,4-6). Portanto, o lugar plano é o lugar ideal para o anúncio da Boa Nova porque recorda a remoção das montanhas que impediam a passagem do Messias. Como recorda o texto profético de Isaías, a montanha era obstáculo para o caminho; e o caminho, por sua vez, constitui um dos temas centrais de toda a obra lucana. Além disso, o “Jesus de Lucas” não tem os traços “catedráticos” do “Jesus de Mateus”. Como se sabe, Mateus faz todo o esforço possível, às vezes até exageradamente, por necessidade de suas comunidades de origem predominantemente judaicas, para Jesus parecer um novo Moisés, um legislador. Lucas se esforça para mostrar Jesus como um homem do povo, totalmente acessível; qualquer pessoa pode chegar perto dele. O lugar plano, portanto, evoca acessibilidade e igualdade, é o espaço ideal para o encontro. No retrato de Jesus que Lucas pinta, ele se mistura com gente de “todo tipo”, se torna um igual a todos. Por causa dessa acessibilidade e por não fazer distinção de pessoas, será duramente criticado pelos escribas e fariseus (Lc 15,2).

E o evangelista não se contenta em dizer que havia uma grande multidão, obviamente para escutar Jesus, mas expressa a diversidade cultural dessa multidão como sinal do universalismo da sua mensagem. Tinha gente de todas as partes: da Judéia e de Jerusalém, símbolos do judaísmo mais fiel, e até de terras pagãs: “do litoral de Tiro e Sidônia”. Esse dado é muito importante, pois ainda é reflexo do rechaço sofrido na sinagoga de Nazaré: quando ele tentou anunciar o seu programa ao seu povo, no espaço sacro da sinagoga, não foi compreendido, nem aceito; na verdade, quase foi morto, escapou por pouco. Ao buscar espaços alternativos, considerados até profanos, como a beira do lago de Genesaré (Lc 5,1-11 – evangelho do domingo passado), e a planície, encontrou grandes multidões de ouvintes. Inclusive, o que ele vai anunciar no lugar plano é o mesmo que começou a anunciar na sinagoga de Nazaré, quando foi interrompido pelos judeus fanáticos de lá: o anúncio da Boa Nova aos pobres (Lc 4,18), demonstrando a predileção de Deus por eles, não por méritos, mas por necessidade. Esse é um dos temas mais caros para Lucas, já introduzido no Evangelho da Infância, através do Magnificat (Lc 1,46-55). Inclusive, numa interpretação mais literal e com viés devocional mariano, se poderia até dizer que Jesus aprendeu com sua mãe a amar e defender os pobres, e a denunciar os ricos e prepotentes. Como o chamado “Evangelho da infância” (Lc 1–2) funciona como introdução a toda a obra lucana, pode-se dizer que o evangelho de hoje foi introduzido pelo cântico de Maria. 

Somente em um lugar plano, e longe das instituições, Jesus pôde, finalmente, anunciar com clareza a sua Boa Nova aos pobres: «levantando os olhos para os discípulos, disse: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!”» (v. 20). Jesus levanta os olhos para os discípulos, não como destinatários exclusivos da sua mensagem, mas como os primeiros. Ao dizer que ele ensina “levantando os olhos” para os interlocutores, o evangelista quer mostrar também a maneira de Jesus se comunicar e se relacionar com as pessoas: de modo claro e direto, olhando diretamente para as pessoas, sem superficialidade. Os discípulos já fizeram opção pelo Reino, alguns já tinha deixado tudo, como Simão Pedro e os dois filhos de Zebedeu, conforme vimos no evangelho do domingo passado. Também outros, como Levi, um cobrador de impostos, cujo episódio foi saltado pela liturgia (Lc 5,27-39). Mas toda a multidão, composta por gente de diversos lugares e culturas, também destinatária do anúncio da Boa Nova, ainda precisava conhecer essa mensagem. Dirigindo-se primeiro aos discípulos, Jesus os responsabiliza perante a multidão: eles são os primeiros que devem viver radicalmente a sua mensagem, a Boa Nova. A forma introdutória “bem-aventurados” (em grego μακάριοι = macárioi) é bastante utilizada na Bíblica, sobretudo na literatura sapiencial, como já afirmamos na introdução; o termo correspondente em hebraico (ashrêi) possui dois significados: além dos adjetivos “felizes”, “bem-aventurados” ou “benditos”, corresponde também ao imperativo do verbo caminhar, marchar ou “seguir em frente”. Por isso, aqui Jesus não está apenas saudando, mas incentivando à transformação; o Reino de Deus, ainda em construção, já é dos pobres que caminham em busca de transformação. Não se trata de uma promessa de futuro, mas uma constatação do agora.

Convém sempre recordar que o “Reino de Deus” não é a vida eterna no além, mas é o mundo transformado a partir de novas relações, alicerçadas no amor, na justiça e na partilha. É um mundo livre de todas as injustiças e opressões; o mundo novo que Jesus começou a anunciar em Nazaré, mas foi rechaçado pelos seus conterrâneos. É aquele mundo sonhado em que se vê «os cegos recuperando a vista, os cativos sendo libertados» (Lc 4,18-19). Foi esse mundo que Deus pensou para toda a humanidade, desde o princípio, mas até hoje está impossibilitado de realizar-se plenamente, devido à ganância de muitos, da qual decorrem todos os tipos de injustiça. Jesus reacende a esperança: o Reino é dos pobres, e esses, por sua vez, devem lutar por ele sem comodismo, sem conformismo, mas pondo-se em marcha, buscando e lutando para conquistá-lo, obviamente, sem violência. Na sequência, Jesus não apresenta novas categorias de pessoas, mas continua se dirigindo aos pobres, ressaltando a situação em que se encontram: «Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!» (v. 21). Fome e pranto são situações que pedem transformações urgentes; são situações que não podem mais esperar! Por isso, essas palavras de Jesus não podem ser usadas como discurso de resignação. São palavras que interpelam a comunidade a sair do comodismo. Das necessidades e direitos fundamentais, a primeira é o alimento. A fome é um mal que deve ser combatido com toda veemência, é uma carência que não pode esperar; exige urgência. O pranto é consequência da dor e do sofrimento. É importante identificar quem sãos culpados por essa situação, e o próprio Jesus identifica, logo a seguir: são os ricos, geralmente gananciosos e egoístas; os poderosos já denunciados no canto de Maria (Lc 1,46-55)

Já tendo experimentado a rejeição entre os seus próprios conterrâneos de Nazaré, Jesus alerta seus discípulos e os seus ouvintes de todos os tempos sobre o destino de quem abraçar o seu programa de vida: «Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem!» (v. 22). Num mundo marcado por injustiça, governado por pessoas injustas, quem se alinhar ao projeto de Jesus não terá outro destino senão a perseguição e o ódio. Lucas já sentia isso em suas comunidades. Ora, por volta do ano 80 d.C. – época mais provável da redação do seu Evangelho – muitos cristãos já tinham sido perseguidos e até martirizados, porque tinham se colocado em marcha por transformação, porque tinham lutado pelo Reino, ou seja, porque tinham abraçado integralmente o programa de vida de Jesus. O destino dos profetas do Antigo Testamento era o parâmetro, o principal sinal para Jesus: a perseguição é o verdadeiro atestado de fidelidade ao Reino de Deus, e sinal de felicidade autêntica: «Alegrai-vos, nesse dia, e exultai, pois, será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas» (v. 23). Com essa afirmação, Jesus – o profeta de Nazaré – declara que o seu seguimento é puro profetismo. Ser discípulo de Jesus é, portanto, ser profeta à maneira de Amós, Isaías, Jeremias e tantos outros. Jesus se inspira nos profetas, tanto no teor da mensagem quanto no estilo de vida, como devem fazer também os seus discípulos. 

O anúncio das maldições é mais uma das novidades de Lucas em relação a Mateus, como recordamos na introdução. Como se vê, às quatro bem-aventuranças, Lucas opõe quatro maldições, como se fossem as bem-aventuranças ao contrário (vv. 24-26). De fato, se trata da negação das bem-aventuranças. A fórmula introdutória “ai” (em grego: οὐαὶ ὑμῖν – uaí hymin) encontra forte atestação nos livros proféticos, introduzindo as denúncias mais fortes dos profetas às situações de injustiça vigentes (Am 5,18; Is 1,4; 10,1). É uma forma de lamento e denúncia, ao mesmo tempo. Com elas, Jesus está denunciando os responsáveis pela situação precedente: se há pobres passando fome e chorando, é porque tem pessoas excessivamente saciadas e risonhas, divertindo-se às custas do sofrimento dos outros. Essas pessoas, obviamente, são os ricos, os poderosos. Jesus lamenta que a ganância destas pessoas gere fome e sofrimento nos pobres, e denuncia essa situação como inaceitável, insustentável, pois contraria o projeto sonhado por Deus de um mundo justo com igualdade e fraternidade. E ele denuncia que não pode participar do Reino de Deus quem contribui para a miséria dos pobres, com a ganância desenfreada.

Na última denúncia, Jesus apresenta a característica básica dos falsos profetas: ser elogiados (v. 26). É exatamente o contrário do sinal distintivo – a perseguição (v. 23) – dos profetas verdadeiros, como devem ser seus discípulos e discípulas de todos os tempos. Os autênticos profetas (Elias, Amós, Isaías, Jeremias, João Batista, etc.) tiveram como destino comum, a perseguição; isso porque não tiveram medo de denunciar as mesmas injustiças que Jesus, o profeta por excelência, estava denunciando. Em um mundo de injustiças, o agir profético é um incômodo para os poderosos. A história recente da América Latina e do Brasil é uma boa demonstração disso; de São Oscar Romero ao Padre Júlio Lancellotti, são inúmeros os profetas e profetisas que levantaram a voz e continuam gritando “ai de vós” às injustiças mais recorrentes nos tempos atuais, como a fome, a falta de moradia e trabalho digno. Por isso, estes profetas e profetisas sofreram e sofrem sérias consequências por causa disso, sendo perseguidos e caluniados a todo instante. Os falsos profetas, pelo contrário, recebiam/recebem elogios dos poderosos porque proclamavam apenas palavras de conforto para eles; eram coniventes com as injustiças, e isso Jesus denuncia com veemência, alertando seus discípulos a não agirem de tal modo. Logo, perseguição e elogio são indícios de inconformismo ou conivência diante das injustiças.

O evangelho de hoje, portanto, é um manifesto muito claro de que Jesus tem um lado e, por isso, seus discípulos de outrora, de hoje e de sempre, também devem ter. Assim como os antigos profetas, Jesus não consegue falar apenas de sentimentos, com uma mensagem de “conforto espiritual” e resignação. Pelo contrário, ele se dirige às situações concretas da vida, às pessoas que sofrem, sem medo de denunciar os responsáveis por tais sofrimentos. Ser discípulo e discípula de Jesus é, portanto, também assumir um lado na história e lutar por sua transformação, sem jamais renunciar àquilo que é a essência da sua mensagem: o amor. 

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 08, 2025

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 5,1-11 (ANO C)



Com a liturgia deste quinto domingo do tempo comum, retoma-se a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é típico do ano litúrgico C, interrompida no domingo passado, por ocasião da Festa da Apresentação do Senhor. Naquela ocasião, embora o evangelho tenha sido uma passagem de Lucas, interrompeu-se a leitura sequenciada, com um retorno ao chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1–2). Foi saltada, portanto, a liturgia do quarto domingo, quando o evangelho seria a continuação do episódio da sinagoga de Nazaré (4,21-30), cuja leitura fora iniciada no terceiro domingo (4,14-21). O texto proposto para hoje é Lc 5,1-11, uma passagem que apresenta dois passos importantes da vida e missão de Jesus: a) a abertura da sua mensagem a ambientes mais abrangentes, com pessoas menos apegadas às tradições e à Lei; b) o chamamento dos primeiros discípulos ao seu seguimento. Após uma tentativa quase fracassada de anúncio da Boa Nova em sua terra natal, Nazaré, terminada em tentativa de assassinato, Jesus retornou à Cafarnaum (Lc 4,31), onde, aliás, já tinha realizado sinais e milagres antes mesmo da sua pregação em Nazaré, sinal de que lá tinha encontrado mais receptividade para sua mensagem (Lc 4,14.23).

Embora haja um considerável intervalo entre o evangelho de hoje e o do quarto domingo – a liturgia salta os vv. 31-44 –, os dois textos se relacionam muito bem, não apenas por afinidade, mas também por contraste, principalmente. O evangelista faz questão de contrapor a rejeição dos judeus conservadores, frequentadores da sinagoga de Nazaré, à acolhida da população pouco dogmática que vivia às margens do lago de Genesaré, sendo Cafarnaum a cidade símbolo dessa população e dessa área geográfica. Enquanto os habitantes de Nazaré eram observantes fanáticos da Lei, a população de Cafarnaum e das cidades da costa do lago era conhecida por ser menos ortodoxa. Contudo, mesmo atuando em Cafarnaum, a pregação de Jesus, até então, ainda estava bastante limitada ao âmbito sacro da sinagoga; aos poucos, ele começou a afastar-se desse espaço, procurando outros cenários para a sua atuação (Lc 4,42), a ponto de começar a pregar às margens do lago, um dos passos importantes da sua missão que o evangelho de hoje retrata. 

Se o episódio da sinagoga de Nazaré é paradigmático e programático para a missão de Jesus, o de hoje é programático para a vocação e missão dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. Ora, na sinagoga de Nazaré Jesus deixou claro que sua missão de portador do Espírito Santo, ou seja, de Ungido de Deus, consistia em cumprir a Escritura – Palavra de Deus –, com o anúncio da Boa Nova aos pobres e a libertação dos oprimidos. E ele cumpria as Escrituras ao interpretá-las a serviço da vida, tornando-a sinal de libertação e humanização. Na verdade, ele demonstrava ser ele mesmo – sua pessoa e mensagem – a Escritura cumprida. Às margens do lago, por sua vez, a declaração de Simão Pedro – «Em atenção à tua palavra, vou lançar as redes» (v. 5) – resume a missão dos discípulos: fazer tudo e somente aquilo que é indicado pela palavra de Jesus. E a palavra de Jesus, que é a Palavra de Deus, é a sua própria vida, o conjunto da sua mensagem e sua pessoa. Logo, fazer o que ele diz, é viver à sua maneira, fazendo as mesmas escolhas que ele fez.

Olhemos, então, para o texto, que começa afirmando que  «Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a Palavra de Deus» (v. 1). Esse versículo é de suma importância para a teologia e a catequese de Lucas. Essa é a primeira vez que ele afirma explicitamente que Jesus prega fora da sinagoga. Daqui para a frente, a sinagoga será sinal de hostilidade; toda vez que Jesus atuar em uma sinagoga, haverá confusão e conflito (Lc 6,6-11; 13,1-17). As margens de um lago, considerado mar pelos habitantes da região, era o lugar menos adequado para a escuta da Palavra de Deus. Os demais evangelistas chamam esse lago de Mar da Galiléia; Lucas é o único que o chama de lago e, de fato, se trata mesmo de um lago, com cerca de 21 km de comprimento e a largura máxima de 14 km. Compondo “a multidão que se apertava”, sem dúvidas, estavam pessoas impuras, marginalizadas, excluídas e proibidas de entrar nas sinagoga e no templo de Jerusalém. E o objetivo dessa multidão era «ouvir a Palavra de Deus».

Lucas é o evangelista que trata explicitamente o ensinamento de Jesus como “Palavra de Deus”; fazendo, inclusive, da “Palavra de Deus” o tema principal de sua dupla obra – Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos. No Evangelho, a Palavra de Deus é a pregação de Jesus; em Atos, é a vida de Jesus pregada pelos apóstolos e demais discípulos. Assim, ele mostra a continuidade entre a missão de Jesus e a de seus discípulos, e reforça para a sua comunidade que o anúncio coerente e fiel do ideal de vida proposto por Jesus e, sobretudo, a sua vivência, é a realização da Palavra de Deus na história. Nas sinagogas, tinha-se acesso a uma interpretação rígida e minimalista da Lei; quando Jesus quis fazer a palavra proclamada na sinagoga tornar-se viva e dinâmica, foi expulso e quase morto (Lc 4,14-30). As margens do lago, pelo contrário, é um lugar de trânsito livre, por onde passam pessoas de diversas origens, vivendo nas mais variadas situações; é em lugares assim que a Palavra de Deus deve ecoar, como ensinou Jesus, e Lucas recordou para a sua comunidade e seus leitores de todos os tempos.

Fora dos limites dos espaços oficiais, a pregação exige dinamismo, criatividade e atenção às situações concretas. Ver a realidade ao redor é decisivo para quem anuncia a Palavra de Deus. Por isso, recorda o evangelista que «Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava às multidões» (vv. 2-3). Jesus une sua situação de pregador itinerante, desprovido de meios, à situação dos pescadores desiludidos. Enquanto os pescadores lavam suas redes, depois de uma pescaria fracassada, Jesus cria um púlpito alternativo, ensinando a partir de uma barca, porque a multidão que o escutava crescia cada vez mais. É importante recordar que o primeiro sinal de adesão de Simão ao projeto de Jesus é exatamente ceder-lhe a barca como púlpito alternativo. Os dois já se conheciam, inclusive, Jesus já tinha estado em sua casa e até curado sua sogra (Lc 4,38-40), mas ainda não havia sinal algum de uma relação mestre e discípulo. 

E o gesto de Simão ceder a barca a Jesus não foi um gesto qualquer. A imagem da barca possui um significado muito forte para o contexto originário do movimento de Jesus e das primeiras comunidades cristãs. A barca afastada da margem é a primeira imagem da comunidade cristã empregada por Lucas, depois da figura de Maria no chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1–2). Ao contrário da sinagoga, um edifício pronto e estruturado, a barca não oferece nenhuma segurança e conforto; é sinal de vulnerabilidade e perigos, apontando como deverá ser a Igreja futura: “em saída”, sempre; exposta aos perigos, mas fiel à essência do ensinamento de Jesus. Por sinal, o conteúdo do ensinamento de Jesus, a partir da barca, não é descrito por Lucas, aqui; mas é certo que era a “Palavra de Deus”. Na verdade, em Jesus, é Deus mesmo quem fala, foi isso o que as multidões perceberam (v. 1). Simão, o dono da barca usada por Jesus, já era conhecido seu, embora ainda não fosse um seguidor, propriamente. Jesus já frequentava a sua casa, onde, inclusive, havia curado sua sogra (Lc 4,38). Porém, a construção do seu personagem, como paradigma de discípulo, começa no episódio de hoje.

A pregação de Jesus não comportava apenas discursos, mas também preocupações com as necessidades concretas das pessoas. Ele percebeu que os pescadores não tinham feito uma boa pescaria e, ao terminar a pregação, interveio também sobre eles, começando por Simão, seu conhecido: «Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca» (v. 4). Avançar para águas mais profundas, aqui, significa sair da superficialidade, tomar decisões convictas, mesmo correndo riscos. Como pescador experiente, «Simão respondeu: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”» (v. 5). Embora ainda não fosse oficialmente um discípulo, Simão demonstra consideração e respeito por Jesus: lhe chama de mestre, ou seja, o reconhece como alguém que tem autoridade e, por isso, confia na sua palavra. Assim, o evangelista ensina que confiar na palavra de Jesus implica a tomada de decisões e iniciativas; essa não é uma palavra para ser apenas escutada e contemplada, mas deve orientar as nossas atitudes. Orientada pela palavra de Jesus, a comunidade deve agir, inclusive se arriscando.

Tudo o que se faz na vida pessoal e comunitária deve estar em sintonia com a palavra de Jesus; sem essa, todo esforço é fatigar em vão. A vida da comunidade ganha sentido e os frutos aparecem, quando essa se arrisca em atenção à palavra de Jesus que é a mesma “Palavra de Deus”; por isso, quando os pescadores lançaram as redes, sob a sua orientação, «apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam» (v. 6). No ideal de vida proposto para a comunidade inaugurada por Jesus, tanto a abundância quanto as dificuldades são compartilhadas, simultaneamente, por isso, os pescadores da barca de Simão «fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajudá-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem» (v. 7). O resultado da pesca serve como parábola para ilustrar a diferença entre uma comunidade que fadiga em vão, repetindo sempre as mesmas práticas, parada no tempo e no espaço, e uma comunidade dinâmica que não tem medo de se arriscar em atenção à palavra de Jesus.

À medida em que a confiança na palavra de Jesus é alimentada, a fé amadurece e se solidifica, as convicções se renovam, como aconteceu com Simão, protótipo dos Doze, que serão constituídos mais tarde, e dos seguidores de todos os tempos: «Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador» (v. 8). Essa é a primeira vez em que Simão vem chamado de Pedro, no Evangelho de Lucas; até então, era chamado apenas de Simão (Lc 4,38; 5,3.4). É o início de uma vocação decisiva para a comunidade cristã. Embora contraditório, esse pescador e pecador que cedeu a barca para Jesus pregar às multidões é o mesmo que mais tarde se dará conta de que «Deus não faz acepção de pessoas» (At 10,34), e abrirá as portas da comunidade cristã para acolher a todos e todas, independentemente da origem e das diferenças étnicas e religiosas. 

É importante perceber a evolução na fé de Pedro: no início, tratou Jesus como mestre, um homem respeitável; agora, o proclama como Senhor (em grego: κύριος – Kýrios), ou seja, o reconhece como agente divino. A fé implica um processo de vivência e confiança para amadurecer constantemente. É claro que Simão não sai pronto deste episódio; serão muitos os seus fracassos que o evangelista irá recordar muito bem, cujo ápice será a sequência de negações durante o relato da paixão. O sentimento de indignidade e pequenez do ser humano diante de Deus, aqui expresso pelas palavras de Simão Pedro, «afasta-te de mim, porque sou um pecador», não é um rebaixamento do gênero humano, mas uma maneira que os autores bíblicos encontraram para expressar a grandeza de Deus e o reconhecimento humano. Essa linguagem é típica dos relatos de vocação. Esse gênero de relato – vocação – é sempre marcado pela resistência da pessoa chamada.

Diante da pesca abundante, não apenas Simão Pedro ficou espantado, mas também os seus companheiros de pesca, como diz o texto: «É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer» (v. 9). Ao contrário dos demais evangelistas (Mt 4,18; Mc 1,16), que incluem também André entre os chamados de primeira hora, Lucas parte somente com três: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados.  Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante, tu serás pescador de homens”» (v. 10). Simão Pedro e os dois filhos de Zebedeu constituem o núcleo fundante da comunidade de discípulos e discípulas de Jesus, não por seus méritos, mas pela necessidade deles e pela lógica de Deus que prefere o que é mais frágil. Simão, pela obstinação, por isso é Pedro, Tiago e João pelo fanatismo violento (Lc 9,54-56), estarão sempre mais próximos de Jesus (Lc 8,51; 9,28); eles serão os mais necessitados de repreensão do mestre ao longo da caminhada e, por isso, mais necessitados de uma catequese mais intensa.

Como eram pescadores aqueles homens, Jesus procura uma figura de linguagem acessível a eles para expressar o seu chamado: “pescadores de homens”. Porém, a pesca que irão desenvolver, eles e todo o discipulado futuro, é uma pesca ao contrário, o que as traduções vigentes do texto não conseguem expressar adequadamente. Na atividade pesqueira convencional, pesca-se para matar, ou seja, retira-se os peixes de seu habitat natural para a matá-los e transformá-los em alimentos. É uma imagem que pode facilmente, como tem sido feito, tornar-se um estímulo ao mero proselitismo. Na verdade, o evangelista emprega um verbo que significa “tirar vivo” ou “capturar para a vida”, “resgatar” quem vive em perigo (em grego: ζωγρέω - zôgreo). Ora, na cultura semítica, o mar era o símbolo do caos, do perigo, daquilo que é demoníaco; representava a morte. Empregando essa imagem, Jesus está responsabilizando a comunidade cristã, não a fisgar pessoas, como se a pregação fosse uma rede ou um anzol, mas a ser sinal de vida, indo até as situações de perigo e vulnerabilidade, onde a vida humana está ameaçada, e restituir a dignidade ferida ou negada, contribuindo para a restauração da vida digna e plena. Jesus pediu que aqueles três homens se dedicassem ao cuidado das pessoas, que fossem agentes de humanização, com a mesma determinação com a qual desenvolviam a profissão de pescadores. Por isso, a imagem da pesca aplicada por Jesus, segundo o evangelista, deve ser interpretada com muito cuidado.

E a resposta dos pescadores foi positiva: «Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus» (v. 11). Assim deu-se início o grupo de seguidores de Jesus. Neste pequeno grupo, inicialmente três discípulos, está a base para os Doze e para os seguidores e seguidoras de todos tempos. Enquanto Jesus restringia sua atuação às sinagogas, o efeito de sua pregação e a eficácia de sua palavra eram bastante limitados; tendo procurado novos cenários, como as margens do lago, e abandonado os púlpitos institucionais, passando a pregar de uma barca vulnerável, as multidões aumentavam para escutá-lo, e os primeiros seguidores foram chamados. É esse o dinamismo que deve estar presente sempre na comunidade cristã. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,27-38 (ANO C)

  A liturgia deste sétimo domingo do tempo comum propõe a continuação da leitura do chamado “discurso da planície” do Evangelho de Lucas (Lc...