Com a liturgia deste quinto domingo do tempo comum, retoma-se a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é típico do ano litúrgico C, interrompida no domingo passado, por ocasião da Festa da Apresentação do Senhor. Naquela ocasião, embora o evangelho tenha sido uma passagem de Lucas, interrompeu-se a leitura sequenciada, com um retorno ao chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1–2). Foi saltada, portanto, a liturgia do quarto domingo, quando o evangelho seria a continuação do episódio da sinagoga de Nazaré (4,21-30), cuja leitura fora iniciada no terceiro domingo (4,14-21). O texto proposto para hoje é Lc 5,1-11, uma passagem que apresenta dois passos importantes da vida e missão de Jesus: a) a abertura da sua mensagem a ambientes mais abrangentes, com pessoas menos apegadas às tradições e à Lei; b) o chamamento dos primeiros discípulos ao seu seguimento. Após uma tentativa quase fracassada de anúncio da Boa Nova em sua terra natal, Nazaré, terminada em tentativa de assassinato, Jesus retornou à Cafarnaum (Lc 4,31), onde, aliás, já tinha realizado sinais e milagres antes mesmo da sua pregação em Nazaré, sinal de que lá tinha encontrado mais receptividade para sua mensagem (Lc 4,14.23).
Embora haja um considerável intervalo entre o evangelho de hoje e o do quarto domingo – a liturgia salta os vv. 31-44 –, os dois textos se relacionam muito bem, não apenas por afinidade, mas também por contraste, principalmente. O evangelista faz questão de contrapor a rejeição dos judeus conservadores, frequentadores da sinagoga de Nazaré, à acolhida da população pouco dogmática que vivia às margens do lago de Genesaré, sendo Cafarnaum a cidade símbolo dessa população e dessa área geográfica. Enquanto os habitantes de Nazaré eram observantes fanáticos da Lei, a população de Cafarnaum e das cidades da costa do lago era conhecida por ser menos ortodoxa. Contudo, mesmo atuando em Cafarnaum, a pregação de Jesus, até então, ainda estava bastante limitada ao âmbito sacro da sinagoga; aos poucos, ele começou a afastar-se desse espaço, procurando outros cenários para a sua atuação (Lc 4,42), a ponto de começar a pregar às margens do lago, um dos passos importantes da sua missão que o evangelho de hoje retrata.
Se o episódio da sinagoga de Nazaré é paradigmático e programático para a missão de Jesus, o de hoje é programático para a vocação e missão dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. Ora, na sinagoga de Nazaré Jesus deixou claro que sua missão de portador do Espírito Santo, ou seja, de Ungido de Deus, consistia em cumprir a Escritura – Palavra de Deus –, com o anúncio da Boa Nova aos pobres e a libertação dos oprimidos. E ele cumpria as Escrituras ao interpretá-las a serviço da vida, tornando-a sinal de libertação e humanização. Na verdade, ele demonstrava ser ele mesmo – sua pessoa e mensagem – a Escritura cumprida. Às margens do lago, por sua vez, a declaração de Simão Pedro – «Em atenção à tua palavra, vou lançar as redes» (v. 5) – resume a missão dos discípulos: fazer tudo e somente aquilo que é indicado pela palavra de Jesus. E a palavra de Jesus, que é a Palavra de Deus, é a sua própria vida, o conjunto da sua mensagem e sua pessoa. Logo, fazer o que ele diz, é viver à sua maneira, fazendo as mesmas escolhas que ele fez.
Olhemos, então, para o texto, que começa afirmando que «Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a Palavra de Deus» (v. 1). Esse versículo é de suma importância para a teologia e a catequese de Lucas. Essa é a primeira vez que ele afirma explicitamente que Jesus prega fora da sinagoga. Daqui para a frente, a sinagoga será sinal de hostilidade; toda vez que Jesus atuar em uma sinagoga, haverá confusão e conflito (Lc 6,6-11; 13,1-17). As margens de um lago, considerado mar pelos habitantes da região, era o lugar menos adequado para a escuta da Palavra de Deus. Os demais evangelistas chamam esse lago de Mar da Galiléia; Lucas é o único que o chama de lago e, de fato, se trata mesmo de um lago, com cerca de 21 km de comprimento e a largura máxima de 14 km. Compondo “a multidão que se apertava”, sem dúvidas, estavam pessoas impuras, marginalizadas, excluídas e proibidas de entrar nas sinagoga e no templo de Jerusalém. E o objetivo dessa multidão era «ouvir a Palavra de Deus».
Lucas é o evangelista que trata explicitamente o ensinamento de Jesus como “Palavra de Deus”; fazendo, inclusive, da “Palavra de Deus” o tema principal de sua dupla obra – Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos. No Evangelho, a Palavra de Deus é a pregação de Jesus; em Atos, é a vida de Jesus pregada pelos apóstolos e demais discípulos. Assim, ele mostra a continuidade entre a missão de Jesus e a de seus discípulos, e reforça para a sua comunidade que o anúncio coerente e fiel do ideal de vida proposto por Jesus e, sobretudo, a sua vivência, é a realização da Palavra de Deus na história. Nas sinagogas, tinha-se acesso a uma interpretação rígida e minimalista da Lei; quando Jesus quis fazer a palavra proclamada na sinagoga tornar-se viva e dinâmica, foi expulso e quase morto (Lc 4,14-30). As margens do lago, pelo contrário, é um lugar de trânsito livre, por onde passam pessoas de diversas origens, vivendo nas mais variadas situações; é em lugares assim que a Palavra de Deus deve ecoar, como ensinou Jesus, e Lucas recordou para a sua comunidade e seus leitores de todos os tempos.
Fora dos limites dos espaços oficiais, a pregação exige dinamismo, criatividade e atenção às situações concretas. Ver a realidade ao redor é decisivo para quem anuncia a Palavra de Deus. Por isso, recorda o evangelista que «Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava às multidões» (vv. 2-3). Jesus une sua situação de pregador itinerante, desprovido de meios, à situação dos pescadores desiludidos. Enquanto os pescadores lavam suas redes, depois de uma pescaria fracassada, Jesus cria um púlpito alternativo, ensinando a partir de uma barca, porque a multidão que o escutava crescia cada vez mais. É importante recordar que o primeiro sinal de adesão de Simão ao projeto de Jesus é exatamente ceder-lhe a barca como púlpito alternativo. Os dois já se conheciam, inclusive, Jesus já tinha estado em sua casa e até curado sua sogra (Lc 4,38-40), mas ainda não havia sinal algum de uma relação mestre e discípulo.
E o gesto de Simão ceder a barca a Jesus não foi um gesto qualquer. A imagem da barca possui um significado muito forte para o contexto originário do movimento de Jesus e das primeiras comunidades cristãs. A barca afastada da margem é a primeira imagem da comunidade cristã empregada por Lucas, depois da figura de Maria no chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1–2). Ao contrário da sinagoga, um edifício pronto e estruturado, a barca não oferece nenhuma segurança e conforto; é sinal de vulnerabilidade e perigos, apontando como deverá ser a Igreja futura: “em saída”, sempre; exposta aos perigos, mas fiel à essência do ensinamento de Jesus. Por sinal, o conteúdo do ensinamento de Jesus, a partir da barca, não é descrito por Lucas, aqui; mas é certo que era a “Palavra de Deus”. Na verdade, em Jesus, é Deus mesmo quem fala, foi isso o que as multidões perceberam (v. 1). Simão, o dono da barca usada por Jesus, já era conhecido seu, embora ainda não fosse um seguidor, propriamente. Jesus já frequentava a sua casa, onde, inclusive, havia curado sua sogra (Lc 4,38). Porém, a construção do seu personagem, como paradigma de discípulo, começa no episódio de hoje.
A pregação de Jesus não comportava apenas discursos, mas também preocupações com as necessidades concretas das pessoas. Ele percebeu que os pescadores não tinham feito uma boa pescaria e, ao terminar a pregação, interveio também sobre eles, começando por Simão, seu conhecido: «Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca» (v. 4). Avançar para águas mais profundas, aqui, significa sair da superficialidade, tomar decisões convictas, mesmo correndo riscos. Como pescador experiente, «Simão respondeu: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”» (v. 5). Embora ainda não fosse oficialmente um discípulo, Simão demonstra consideração e respeito por Jesus: lhe chama de mestre, ou seja, o reconhece como alguém que tem autoridade e, por isso, confia na sua palavra. Assim, o evangelista ensina que confiar na palavra de Jesus implica a tomada de decisões e iniciativas; essa não é uma palavra para ser apenas escutada e contemplada, mas deve orientar as nossas atitudes. Orientada pela palavra de Jesus, a comunidade deve agir, inclusive se arriscando.
Tudo o que se faz na vida pessoal e comunitária deve estar em sintonia com a palavra de Jesus; sem essa, todo esforço é fatigar em vão. A vida da comunidade ganha sentido e os frutos aparecem, quando essa se arrisca em atenção à palavra de Jesus que é a mesma “Palavra de Deus”; por isso, quando os pescadores lançaram as redes, sob a sua orientação, «apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam» (v. 6). No ideal de vida proposto para a comunidade inaugurada por Jesus, tanto a abundância quanto as dificuldades são compartilhadas, simultaneamente, por isso, os pescadores da barca de Simão «fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajudá-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem» (v. 7). O resultado da pesca serve como parábola para ilustrar a diferença entre uma comunidade que fadiga em vão, repetindo sempre as mesmas práticas, parada no tempo e no espaço, e uma comunidade dinâmica que não tem medo de se arriscar em atenção à palavra de Jesus.
À medida em que a confiança na palavra de Jesus é alimentada, a fé amadurece e se solidifica, as convicções se renovam, como aconteceu com Simão, protótipo dos Doze, que serão constituídos mais tarde, e dos seguidores de todos os tempos: «Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador» (v. 8). Essa é a primeira vez em que Simão vem chamado de Pedro, no Evangelho de Lucas; até então, era chamado apenas de Simão (Lc 4,38; 5,3.4). É o início de uma vocação decisiva para a comunidade cristã. Embora contraditório, esse pescador e pecador que cedeu a barca para Jesus pregar às multidões é o mesmo que mais tarde se dará conta de que «Deus não faz acepção de pessoas» (At 10,34), e abrirá as portas da comunidade cristã para acolher a todos e todas, independentemente da origem e das diferenças étnicas e religiosas.
É importante perceber a evolução na fé de Pedro: no início, tratou Jesus como mestre, um homem respeitável; agora, o proclama como Senhor (em grego: κύριος – Kýrios), ou seja, o reconhece como agente divino. A fé implica um processo de vivência e confiança para amadurecer constantemente. É claro que Simão não sai pronto deste episódio; serão muitos os seus fracassos que o evangelista irá recordar muito bem, cujo ápice será a sequência de negações durante o relato da paixão. O sentimento de indignidade e pequenez do ser humano diante de Deus, aqui expresso pelas palavras de Simão Pedro, «afasta-te de mim, porque sou um pecador», não é um rebaixamento do gênero humano, mas uma maneira que os autores bíblicos encontraram para expressar a grandeza de Deus e o reconhecimento humano. Essa linguagem é típica dos relatos de vocação. Esse gênero de relato – vocação – é sempre marcado pela resistência da pessoa chamada.
Diante da pesca abundante, não apenas Simão Pedro ficou espantado, mas também os seus companheiros de pesca, como diz o texto: «É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer» (v. 9). Ao contrário dos demais evangelistas (Mt 4,18; Mc 1,16), que incluem também André entre os chamados de primeira hora, Lucas parte somente com três: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados. Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante, tu serás pescador de homens”» (v. 10). Simão Pedro e os dois filhos de Zebedeu constituem o núcleo fundante da comunidade de discípulos e discípulas de Jesus, não por seus méritos, mas pela necessidade deles e pela lógica de Deus que prefere o que é mais frágil. Simão, pela obstinação, por isso é Pedro, Tiago e João pelo fanatismo violento (Lc 9,54-56), estarão sempre mais próximos de Jesus (Lc 8,51; 9,28); eles serão os mais necessitados de repreensão do mestre ao longo da caminhada e, por isso, mais necessitados de uma catequese mais intensa.
Como eram pescadores aqueles homens, Jesus procura uma figura de linguagem acessível a eles para expressar o seu chamado: “pescadores de homens”. Porém, a pesca que irão desenvolver, eles e todo o discipulado futuro, é uma pesca ao contrário, o que as traduções vigentes do texto não conseguem expressar adequadamente. Na atividade pesqueira convencional, pesca-se para matar, ou seja, retira-se os peixes de seu habitat natural para a matá-los e transformá-los em alimentos. É uma imagem que pode facilmente, como tem sido feito, tornar-se um estímulo ao mero proselitismo. Na verdade, o evangelista emprega um verbo que significa “tirar vivo” ou “capturar para a vida”, “resgatar” quem vive em perigo (em grego: ζωγρέω - zôgreo). Ora, na cultura semítica, o mar era o símbolo do caos, do perigo, daquilo que é demoníaco; representava a morte. Empregando essa imagem, Jesus está responsabilizando a comunidade cristã, não a fisgar pessoas, como se a pregação fosse uma rede ou um anzol, mas a ser sinal de vida, indo até as situações de perigo e vulnerabilidade, onde a vida humana está ameaçada, e restituir a dignidade ferida ou negada, contribuindo para a restauração da vida digna e plena. Jesus pediu que aqueles três homens se dedicassem ao cuidado das pessoas, que fossem agentes de humanização, com a mesma determinação com a qual desenvolviam a profissão de pescadores. Por isso, a imagem da pesca aplicada por Jesus, segundo o evangelista, deve ser interpretada com muito cuidado.
E a resposta dos pescadores foi positiva: «Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus» (v. 11). Assim deu-se início o grupo de seguidores de Jesus. Neste pequeno grupo, inicialmente três discípulos, está a base para os Doze e para os seguidores e seguidoras de todos tempos. Enquanto Jesus restringia sua atuação às sinagogas, o efeito de sua pregação e a eficácia de sua palavra eram bastante limitados; tendo procurado novos cenários, como as margens do lago, e abandonado os púlpitos institucionais, passando a pregar de uma barca vulnerável, as multidões aumentavam para escutá-lo, e os primeiros seguidores foram chamados. É esse o dinamismo que deve estar presente sempre na comunidade cristã.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Agradeço a Deus pela sua generosidade em partilhar seus conhecimentos. Sou um dos inúmeros beneficiados por suas valiosas reflexões. Há muito tempo eu venho me valendo de suas meditações para evangelizar os fiéis da paróquia em que trabalho, em nossas missas dominicais. Deus há de recompensá-lo.
ResponderExcluire sou grato a você
Olá, meu irmão, muito obrigado pela sua interação. É preciso que a Palavra cresça em nós e frutifique. Sua interação me motiva a continuar refletindo e partilhando.
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