sábado, julho 19, 2025

REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,38-42 (ANO C)



A liturgia deste décimo sexto domingo do tempo comum continua a nos situar no longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como se tem afirmado nos últimos domingos, este caminho que Lucas apresenta é, mais do que um percurso físico e geográfico, um itinerário teológico e catequético, no qual Jesus revela sua identidade messiânica e forma o seu discipulado, ao mesmo tempo em que delineia os principais traços característicos da comunidade cristã: aberta, acolhedora, inclusiva e missionária. O caminho corresponde à seção narrativa mais original de Lucas e o evangelho de hoje – Lc 10,38-42 – contém mais um episódio exclusivo seu. Trata-se do relato da visita de Jesus às irmãs Marta e Maria. Embora simples do ponto de vista narrativo, esse texto é altamente rico e revolucionário, no qual diversos paradigmas são quebrados. Como já estamos bastante familiarizados com o contexto do caminho, ao invés de nos prolongarmos na contextualização do texto, recordaremos inicialmente alguns aspectos relacionados à sua interpretação ao longo da história.

E começamos recordando que, por muito tempo, esse texto foi usado simplesmente para fundamentar a distinção entre duas formas de vida caras ao cristianismo católico: a vida ativa e a contemplativa, com uma clara superioridade da vida contemplativa, reservada a pessoas criteriosamente escolhidas por Deus para viver separadas do mundo, preservadas em mosteiros e conventos. De acordo com essa interpretação tradicional, a personagem Marta representa a vida ativa, enquanto Maria é o ícone da vida contemplativa. Contudo, manter o texto nesta perspectiva é aprisioná-lo e deixar de perceber a sua riqueza ímpar no conjunto da obra de Lucas, o autor do Novo Testamento que mais valoriza a participação das mulheres na missão de Jesus e nas primeiras comunidades cristãs. Por sinal, uma outra recomendação importante para uma compreensão adequada deste relato é mantê-lo isolado da passagem do Evangelho de João (Jo 11,1-43) na qual Jesus também aparece em relação de proximidade com as mesmas irmãs Marta e Maria, por ocasião da morte e reanimação de Lázaro, também irmão das duas. Há uma tendência quase automática de relacionar os dois relatos, o que prejudica a compreensão da perspectiva de Lucas que, para evidenciar a importância do encontro de Jesus com as duas mulheres, não faz qualquer menção a Lázaro. É nessa linha que devemos fazer a leitura.

Olhemos, então, atentamente para o texto, para perceber as novidades que Lucas apresenta nele. Eis o início: «Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa» (v. 38). Antes de tudo, recordamos que, naquele contexto, a mulher não tinha autonomia para receber um homem em casa. Esse papel exclusivo da figura masculina. Enquanto o homem dava atenção ao hóspede, as mulheres da casa permaneciam na cozinha, preparando o alimento e não ousavam, sequer, saudar o visitante. Por isso, trata-se de algo completamente novo, o que demonstra o quanto a atitude de Marta foi revolucionária. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. E revolucionária também foi a atitude de Jesus: no seu tempo, não era conveniente para um homem aceitar a acolhida só de mulheres. Temos logo no primeiro versículo, portanto, uma dupla transgressão: de Marta e de Jesus; ambos fizeram o que não era recomendável, conforme a moral e os bons costumes vigentes na época. Com isso, o evangelista ensina que homem e mulher possuem a mesma dignidade e, consequentemente, os mesmos direitos. Por onde Jesus passa, Ele quebra barreiras, rompe condicionamentos e promove libertação.

Na sequência, o evangelista introduz mais uma personagem, e com uma atitude ainda mais revolucionária que a de Marta: «Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra» (v. 39). A posição de Maria é muito importante e significativa, pois é a posição do discípulo, de acordo com o método rabínico de ensinamento. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Sentar-se aos pés para escutar quer dizer ser discípulo ou discípula; é aceitar o outro como mestre, como recordou Paulo em relação a Gamaliel, o seu mestre, ao defender-se dos judeus de Jerusalém: «Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade. Fui educado aos pés de Gamaliel» (At 22,3). Portanto, Maria é apresentada como discípula, ao ser descrita com essa atitude e, consequentemente, como modelo a ser seguido. Assim, também ela rompe muitas barreiras. De fato, esse papel não era permitido às mulheres do seu tempo. Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: «é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher». Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. De fato, rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado. Além disso, já não era a Torá que ele ensinava, mas o seu próprio ensinamento, que consistia na apresentação do Evangelho do Reino, ou seja, era sua própria mensagem, cujo centro é o amor, fonte de vida abundante e de plena humanização.

Apesar de ter recebido um homem em casa, atitude revolucionária para uma mulher da sua época, Marta ainda estava condicionada, pelo menos em partes, aos padrões e normas do seu tempo, imaginando que a mulher não poderia fazer outra coisa além dos cuidados do lar, como recorda o evangelista: «Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres» (v. 40b). Isso quer dizer que ela recebeu Jesus em casa, mas ainda não o tinha acolhido plenamente, ou seja, a atenção dela ainda não estava voltada para ele. Temos aqui a descrição de uma situação normal para uma dona de casa, principalmente tendo de preparar refeição para uma visita importante. É a imagem típica da dona de casa disciplinada que não perde tempo para manter a casa em ordem e servir da melhor maneira possível aos hóspedes. Por isso, ela pede que Jesus intervenha, pois, fazendo tudo sozinha, talvez, não conseguisse preparar a refeição a tempo: «Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!» (v. 40b).  Embora normal para uma dona de casa, o pedido de Marta é absurdo para Jesus: tirar Maria dos seus pés seria fazê-la renunciar à condição de discípula e privá-la de um direito conquistado, um ato de emancipação feminina. Nesse sentido, Marta revela-se acomodada e até egoísta, certamente por não ter ainda experimentado o que Maria já estava saboreando: a escuta de Jesus, suas palavras de vida, que libertam e humanizam. É interessante notar que ela não chama a irmã, mas pede a intervenção de Jesus, recorrendo à autoridade masculina, o que demonstra a sua necessidade de emancipação, pois a antiga mentalidade continuava arraigada nela. Para ela, somente a palavra de um homem poderia fazer Maria mudar de atitude.

Com serenidade, Jesus responde à solicitação de Marta, sem, no entanto, atender ao seu pleito, ou seja, sem tirar Maria dos seus pés: «O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas”» (v. 41). Antes de tudo, é necessário recordar que Jesus não está repreendendo Marta, como tradicionalmente tem sido interpretado esse versículo. De fato, ver essa passagem como uma repreensão é um dos maiores equívocos das interpretações mais comuns. É inegável que Jesus vê o ativismo desenfreado, no qual Marta estava envolvida, como um obstáculo à escuta da sua Palavra. Diante disso Ele não a repreende, mas dá uma oportunidade, faz um convite para o discipulado. Na linguagem bíblica, a dupla invocação de um nome por Deus ou por um mensageiro seu, como aqui – «Marta, Marta!» – é indicativo de chamado vocacional; recordemos alguns casos: «E Deus o chamou do meio da sarça, dizendo: ‘Moisés, Moisés!’ Este respondeu: ‘Eis-me aqui!’» (Ex 3,4); «Veio o Senhor e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’ e Samuel respondeu: ‘Fala, pois, teu servo te escuta’» (1Sm 3,10); «Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9,4b). Como Maria já tinha abraçado o discipulado, o que foi demonstrado pelo gesto de sentar-se aos seus pés, Jesus chama também Marta a essa condição, ao invés de repreendê-la pelas suas preocupações. Esse chamado pode ser visto também como uma maneira de equilibrar a comunidade, pois já havia duas duplas de irmãos entre os discípulos: Simão e André, João e Tiago (Lc 5,1-11; 6,14); é chegado também o momento de ter uma dupla de irmãs: Marta e Maria. Por isso, essa passagem é tão relevante para o caminho de Jesus e, consequentemente, para a vida da comunidade cristã em todos os tempos.

Assim como os discípulos pescadores foram chamados a deixar as redes para segui-lo, Marta é chamada a deixar certas preocupações e, assim como sua irmã, optar pela “parte boa”, como indica Jesus: «uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada» (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa”, conforme o texto na língua original (em grego: τήν άγαθήν μερίδα – tén agathén merída). A parte boa quer dizer que se trata de algo incomparável, que não pode ser medido. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa, por isso, é a única coisa necessária. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre, sobretudo, para servir. Depois de escolher a parte boa, ou seja, sentar-se aos pés de Jesus e ouvi-lo, a pessoa se torna também servidora, mas servirá com amor, com as motivações renovadas. E isso faz o serviço deixar de ser um peso, como estava sendo para Marta. Ora, Marta, por mais solícita que fosse ao receber Jesus em sua casa, Marta ainda estava presa a muitos condicionamentos do seu tempo. Por isso, Jesus a chamou, motivou-a a optar a parte boa também, para ela, finalmente, libertar-se.

Ser discípulo ou discípula de Jesus é optar pela liberdade, abrir mão de todas as formas de prisão existentes. Esse chamado é aberto a todos e todas. Foi compreendido por Maria e Jesus o estende também à sua irmã. A própria Marta já tinha dado um grande passo de emancipação ao atrever-se a acolher um homem em sua casa. Faltava mais um: sentar-se aos pés do mestre para ouvi-lo. Fazendo isso, ela estaria escolhendo a “parte boa” e, logo, conquistando a liberdade plena. Esse chamado é dirigido a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares. Com isso, Jesus declara que mulher não foi criada simplesmente para os cuidados do lar, mas para ser o que ela quiser ser, e estar onde quiser, inclusive discípula de um nazareno pobre e mal-afamado, um mestre ao revés, como era Ele. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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