E começamos recordando que, por muito tempo, esse texto foi usado
simplesmente para fundamentar a distinção entre duas formas de vida caras ao
cristianismo católico: a vida ativa e a contemplativa, com uma clara
superioridade da vida contemplativa, reservada a pessoas criteriosamente
escolhidas por Deus para viver separadas do mundo, preservadas em mosteiros e
conventos. De acordo com essa interpretação tradicional, a personagem Marta
representa a vida ativa, enquanto Maria é o ícone da vida contemplativa. Contudo,
manter o texto nesta perspectiva é aprisioná-lo e deixar de perceber a sua
riqueza ímpar no conjunto da obra de Lucas, o autor do Novo Testamento que mais
valoriza a participação das mulheres na missão de Jesus e nas primeiras
comunidades cristãs. Por sinal, uma outra recomendação importante para uma
compreensão adequada deste relato é mantê-lo isolado da passagem do Evangelho
de João (Jo 11,1-43) na qual Jesus também aparece em relação de proximidade com
as mesmas irmãs Marta e Maria, por ocasião da morte e reanimação de Lázaro,
também irmão das duas. Há uma tendência quase automática de relacionar os dois
relatos, o que prejudica a compreensão da perspectiva de Lucas que, para
evidenciar a importância do encontro de Jesus com as duas mulheres, não faz qualquer
menção a Lázaro. É nessa linha que devemos fazer a leitura.
Olhemos, então, atentamente para o texto, para perceber as novidades que
Lucas apresenta nele. Eis o início: «Jesus entrou num povoado, e certa
mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa» (v. 38). Antes de
tudo, recordamos que, naquele contexto, a mulher não tinha autonomia para
receber um homem em casa. Esse papel exclusivo da figura masculina. Enquanto o
homem dava atenção ao hóspede, as mulheres da casa permaneciam na cozinha,
preparando o alimento e não ousavam, sequer, saudar o visitante. Por isso,
trata-se de algo completamente novo, o que demonstra o quanto a atitude de
Marta foi revolucionária. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. E revolucionária
também foi a atitude de Jesus: no seu tempo, não era conveniente para um homem
aceitar a acolhida só de mulheres. Temos logo no primeiro versículo, portanto,
uma dupla transgressão: de Marta e de Jesus; ambos fizeram o que não era
recomendável, conforme a moral e os bons costumes vigentes na época. Com isso,
o evangelista ensina que homem e mulher possuem a mesma dignidade e,
consequentemente, os mesmos direitos. Por onde Jesus passa, Ele quebra
barreiras, rompe condicionamentos e promove libertação.
Na sequência, o evangelista introduz mais uma personagem, e com uma atitude
ainda mais revolucionária que a de Marta: «Sua irmã, chamada Maria,
sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra» (v. 39). A
posição de Maria é muito importante e significativa, pois é a posição do
discípulo, de acordo com o método rabínico de ensinamento. O gesto de
sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações
afirmavam. Sentar-se aos pés para escutar quer dizer ser discípulo ou
discípula; é aceitar o outro como mestre, como recordou Paulo em relação a
Gamaliel, o seu mestre, ao defender-se dos judeus de Jerusalém: «Eu sou
judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade. Fui educado aos
pés de Gamaliel» (At 22,3). Portanto, Maria é apresentada como
discípula, ao ser descrita com essa atitude e, consequentemente, como modelo a
ser seguido. Assim, também ela rompe muitas barreiras. De fato, esse papel não
era permitido às mulheres do seu tempo. Temos aqui, novamente, uma dupla
transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da
sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada
vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o
seguinte ditado: «é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de
uma mulher». Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da
sua época. De fato, rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado.
Além disso, já não era a Torá que ele ensinava, mas o seu próprio ensinamento,
que consistia na apresentação do Evangelho do Reino, ou seja, era sua própria
mensagem, cujo centro é o amor, fonte de vida abundante e de plena humanização.
Apesar de ter recebido um homem em casa, atitude revolucionária para uma
mulher da sua época, Marta ainda estava condicionada, pelo menos em partes, aos
padrões e normas do seu tempo, imaginando que a mulher não poderia fazer outra
coisa além dos cuidados do lar, como recorda o evangelista: «Marta,
porém, estava ocupada com muitos afazeres» (v. 40b). Isso quer dizer que ela
recebeu Jesus em casa, mas ainda não o tinha acolhido plenamente, ou seja, a
atenção dela ainda não estava voltada para ele. Temos aqui a descrição de uma
situação normal para uma dona de casa, principalmente tendo de preparar
refeição para uma visita importante. É a imagem típica da dona de casa
disciplinada que não perde tempo para manter a casa em ordem e servir da melhor
maneira possível aos hóspedes. Por isso, ela pede que Jesus intervenha, pois,
fazendo tudo sozinha, talvez, não conseguisse preparar a refeição a tempo: «Senhor,
não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que
ela me venha ajudar!» (v. 40b). Embora normal para uma dona de
casa, o pedido de Marta é absurdo para Jesus: tirar Maria dos seus pés seria
fazê-la renunciar à condição de discípula e privá-la de um direito conquistado,
um ato de emancipação feminina. Nesse sentido, Marta revela-se acomodada e até
egoísta, certamente por não ter ainda experimentado o que Maria já estava saboreando:
a escuta de Jesus, suas palavras de vida, que libertam e humanizam. É interessante
notar que ela não chama a irmã, mas pede a intervenção de Jesus, recorrendo à
autoridade masculina, o que demonstra a sua necessidade de emancipação, pois a
antiga mentalidade continuava arraigada nela. Para ela, somente a palavra de um
homem poderia fazer Maria mudar de atitude.
Com serenidade, Jesus responde à solicitação de Marta, sem, no entanto,
atender ao seu pleito, ou seja, sem tirar Maria dos seus pés: «O
Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada
por muitas coisas”» (v. 41). Antes de tudo, é necessário recordar que
Jesus não está repreendendo Marta, como tradicionalmente tem sido interpretado
esse versículo. De fato, ver essa passagem como uma repreensão é um dos maiores
equívocos das interpretações mais comuns. É inegável que Jesus vê o ativismo
desenfreado, no qual Marta estava envolvida, como um obstáculo à escuta da sua
Palavra. Diante disso Ele não a repreende, mas dá uma oportunidade, faz um
convite para o discipulado. Na linguagem bíblica, a dupla invocação de um nome
por Deus ou por um mensageiro seu, como aqui – «Marta, Marta!» – é indicativo
de chamado vocacional; recordemos alguns casos: «E Deus o chamou do
meio da sarça, dizendo: ‘Moisés, Moisés!’ Este respondeu: ‘Eis-me aqui!’» (Ex
3,4); «Veio o Senhor e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’
e Samuel respondeu: ‘Fala, pois, teu servo te escuta’» (1Sm
3,10); «Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9,4b). Como
Maria já tinha abraçado o discipulado, o que foi demonstrado pelo gesto de
sentar-se aos seus pés, Jesus chama também Marta a essa condição, ao invés de
repreendê-la pelas suas preocupações. Esse chamado pode ser visto também como
uma maneira de equilibrar a comunidade, pois já havia duas duplas de irmãos
entre os discípulos: Simão e André, João e Tiago (Lc 5,1-11; 6,14); é chegado
também o momento de ter uma dupla de irmãs: Marta e Maria. Por isso, essa
passagem é tão relevante para o caminho de Jesus e, consequentemente, para a
vida da comunidade cristã em todos os tempos.
Assim como os discípulos pescadores foram chamados a deixar as redes para
segui-lo, Marta é chamada a deixar certas preocupações e, assim como sua irmã,
optar pela “parte boa”, como indica Jesus: «uma só coisa é necessária. Maria
escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada» (v. 42). Embora a
tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa”,
conforme o texto na língua original (em grego: τήν άγαθήν μερίδα – tén agathén merída). A parte boa quer dizer que se trata de algo
incomparável, que não pode ser medido. Essa “parte boa” é o Evangelho, o
conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa, por isso, é a única
coisa necessária. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em
plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre, sobretudo, para servir. Depois
de escolher a parte boa, ou seja, sentar-se aos pés de Jesus e ouvi-lo, a
pessoa se torna também servidora, mas servirá com amor, com as motivações renovadas.
E isso faz o serviço deixar de ser um peso, como estava sendo para Marta. Ora,
Marta, por mais solícita que fosse ao receber Jesus em sua casa, Marta ainda estava
presa a muitos condicionamentos do seu tempo. Por isso, Jesus a chamou,
motivou-a a optar a parte boa também, para ela, finalmente, libertar-se.
Ser discípulo ou discípula de Jesus é optar pela liberdade, abrir mão de
todas as formas de prisão existentes. Esse chamado é aberto a todos e todas.
Foi compreendido por Maria e Jesus o estende também à sua irmã. A própria Marta
já tinha dado um grande passo de emancipação ao atrever-se a acolher um homem
em sua casa. Faltava mais um: sentar-se aos pés do mestre para ouvi-lo. Fazendo
isso, ela estaria escolhendo a “parte boa” e, logo, conquistando a liberdade
plena. Esse chamado é dirigido a todas as pessoas, de todos os tempos e
lugares. Com isso, Jesus declara que mulher não foi criada simplesmente
para os cuidados do lar, mas para ser o que ela quiser ser, e estar onde
quiser, inclusive discípula de um nazareno pobre e mal-afamado, um mestre ao revés,
como era Ele.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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