Neste
vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua
do Evangelho de Lucas, interrompida no domingo passado, para a celebração da
Solenidade da Bem-aventurada virgem Maria, na qual também se empregou um texto
lucano, porém, não fazia parte da sequência em curso, própria do tempo comum. Com
a retomada, após a interrupção, a necessidade de recordar o contexto se torna
ainda mais evidente. E, providencialmente, desta vez, o contexto é fornecido
pela própria passagem do evangelho – Lc 13,22-30 –, logo em seu primeiro
versículo, o que torna desnecessária uma contextualização introdutória mais
ampla como costumamos fazer, uma vez que essa será feita na explicação mesma do
texto. Por isso, podemos já olhar diretamente para ele, que começa com a
seguinte afirmação: «Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e
prosseguindo o caminho para Jerusalém» (v. 22). Como se vê, o contexto
continua sendo o do caminho de Jesus para Jerusalém, acompanhado por seus
discípulos e discípulas. Como o caminho constitui a seção narrativa mais longa
de todo o seu Evangelho (Lc 9–19), Lucas faz questão de recordar esse detalhe, de
vez em quando, para situar o leitor e evitar possíveis dispersões. De fato, ele
não quer que o leitor esqueça qual é a posição de Jesus, quais as suas atitudes,
a fim de orientar os seus discípulos a fazerem o mesmo que faz o Mestre,
colocando-se em caminho. Com isso, Lucas revela suas qualidades de narrador
exemplar, que sabe prender a atenção dos seus leitores, demonstrando também ser
um excelente catequista e formador.
Além
de nos situar no contexto, o primeiro versículo também aponta para a natureza
do caminho percorrido por Jesus: se trata de um itinerário catequético,
sobretudo, muito mais do que um percurso geográfico. Enquanto caminha, ele
ensina e forma o seu discipulado. Ao dizer que «Jesus atravessava
cidades e povoados ensinando», o evangelista prefigura a natureza
missionária e itinerante da Igreja, indicando que ela deve estar constantemente
em saída. Enquanto caminhava e ensinava, Jesus se relacionava com as pessoas, ajudando-as
a encontrar sentido para a vida. Ele promovia encontros e seus encontros eram transformadores.
Por onde passava, ele deixava rastros, mediante o seu amor humanizante e sua
misericórdia libertadora. Seu ensinamento impressionava pelo conteúdo e pela
sua maneira de ensinar, por isso, despertava curiosidade em pessoas anônimas e
desconhecidas que aproveitavam para lhe fazer perguntas, como mostram os
evangelhos, principalmente o de Lucas, na seção narrativa do caminho. Tudo revela
o quanto Jesus era uma pessoa acessível e aberta, que escutava a todos, sabia
fazer-se próximo, não se deixando aprisionar por círculos e grupos restritos. Temos
neste primeiro versículo, portanto, uma verdadeira síntese da vida e missão de
Jesus, um verdadeiro peregrino da esperança. De fato, ao atravessar cidades e
povoados ensinando, ele semeava esperança nas pessoas.
Na sequência,
o evangelista diz que «Alguém lhe perguntou: “Senhor, é verdade que são
poucos os que se salvam?”» (v. 23). Como se vê, trata-se de um
interlocutor anônimo quem interpela Jesus, um papel que pode ser assumido por
qualquer discípulo ou leitor do Evangelho de Lucas, independentemente da época.
Isso revela também a abertura de Jesus: toda pessoa pode ter contato com ele, dirigir-se
pessoalmente. E, Ressuscitado, ele continua assim: acessível, aberto. É muito
provável que essa pergunta tenha sido motivada por algum ensinamento anterior
de Jesus; provavelmente esta pessoa estava ouvindo sua pregação e teve essa
curiosidade. Se trata de uma pergunta que reflete um pensamento e uma
preocupação muito difundida nos ambientes judaicos do tempo de Jesus e,
posteriormente, também no cristianismo. Ora, nas escolas rabínicas da época,
circulavam três correntes principais que apresentavam diferentes respostas para
uma pergunta desse tipo: uma primeira, afirmava que todos os judeus, pelo
simples fato de pertencerem ao povo eleito, estavam automaticamente com a
salvação garantida; uma segunda, pregava que não bastava fazer parte do povo
eleito, mas era necessário observar a Lei de modo impecável e, por isso,
somente um pequeno “resto de Israel” se salvaria; havia ainda uma terceira via:
todos os judeus se salvariam e também os pagãos que aceitassem viver conforme a
Lei poderiam se salvar.
Como
de costume, Jesus não responde objetivamente ao seu interlocutor, mas lhe faz
um convite ao esforço, à perseverança e à reflexão, através de uma pequena
parábola, introduzida com a imagem da porta estreita: «Fazei todo o
esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos
tentarão entrar e não conseguirão» (v. 24). Embora neste contexto
esteja aplicada a uma casa, essa imagem da porta estreita faz referência a uma
pequena abertura que havia nos muros das cidades antigas. Como as cidades eram
muradas, nos muros havia uma grande porta para entrada e saída de pessoas e
transportes que, por motivos de segurança, era fechada à certa hora da noite e
só se abria no dia seguinte. Próximo à grande porta, geralmente, havia uma
pequena abertura, chamada de “porta estreita”, suficiente para a entrada
de apenas uma pessoa por vez, e ainda com dificuldades, usada por quem não
conseguisse chegar antes que a grande porta fechasse ou que necessitasse sair
antes da abertura, no dia seguinte. Algumas pessoas não conseguiam passar por
ela, tendo que ficar expostas aos perigos do lado de fora. Essa imagem era
muito aplicada na antiguidade para referir-se a coisas difíceis que exigiam
esforço e às situações de perigo.
Aplicada
a uma casa, ao invés de uma cidade, a imagem da porta estreita perde um pouco
do seu sentido, mas sendo usada por Jesus, neste contexto específico da
resposta ao interlocutor desconhecido, funciona muito bem. Ora, o que está em
questão é o acesso à salvação, ou seja, ao Reino de Deus, e isto depende do
acolhimento à Boa Nova de Jesus na vida da pessoa, com todas as suas
consequências. Um pouquinho antes de iniciar o caminho para Jerusalém (Lc
9,51), os discípulos tinham discutido entre si sobre quem era o maior entre
eles; ao repreendê-los, Jesus tomou uma criança junto de si e apresentou-a como
exemplo, dizendo que é necessário fazer-se pequeno para acolher a sua mensagem
(Lc 9,46-47). A imagem da porta estreita é, portanto, uma retomada dessa
temática e uma nova advertência aos discípulos, já que somente as pessoas
pequenas passavam com facilidade pela “porta estreita”. É importante,
recordar que, na dinâmica do caminho, mesmo quando Jesus entra em contato com
outros personagens, os destinatários principais dos seus ensinamentos são
sempre os discípulos, já que o caminho é, sobretudo, uma metáfora do seu
programa formativo. Assim, Ele propõe mais uma vez a necessidade de fazer-se
pequeno para lhe pertencer. Temos aqui, portanto, mais uma demonstração
excepcional das qualidades pedagógicas de Jesus, que é a própria porta de
acesso ao Reino de Deus. Passa por ele quem a ele se configura, assimilando
seus ensinamentos e seu jeito de viver. Isso exige mesmo muito esforço, mas não
sentido da meritocracia da lógica do mercado. Trata-se, acima de tudo, de
assumir uma vida que se doa constantemente, como fez ele, irradiando amor e
semeando justiça por onde passa.
O
acesso ao Reino definitivo exige esforço e compromisso. Por isso, ao invés de
dar uma resposta direta e exata ao interlocutor, Jesus fez um alerta para a
necessidade de aderir ao programa do Reino, antes que seja tarde demais. Eis a
continuação da parábola: «Uma vez que o dono da casa se levantar e
fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a bater, dizendo: “Senhor,
abre-nos a porta!” Ele responderá: “Não sei de onde sois”. Então começareis a
dizer: “Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças”.
Ele, porém, responderá: “Não sei de onde sois. Afastai-vos de mim todos que
praticais a injustiça!”» (vv. 25-27). Embora seja apresentado um dono
de casa severo, o centro do ensinamento aqui não é a sua severidade, mas uma
demonstração daquilo que conta e o que não conta para alguém fazer parte do
Reino. Logo, não temos aqui um anúncio de condenação ou castigo, mas uma
advertência sobre as credenciais para ter as portas do Reino abertas. Antes de
tudo, Jesus diz que não é suficiente ter comido e bebido com ele e nem ouvir o
ensinamento, se tais atitudes não se traduzem em prática de justiça. Na época
da redação do Evangelho, a celebração fraterna da fração do pão, versão
primitiva da atual Eucaristia, já estava consolidada e, temos aqui uma chamada
de atenção para quem não concilia essa celebração com uma conduta ética e justa
na vida cotidiana. Em outras palavras, o acesso ao Reino não depende das
práticas cultuais. Quem é praticante de injustiças está automaticamente
excluído do Reino, mesmo que seja frequentador assíduo das mais variadas
expressões cultuais, incluindo a celebração eucarística.
A
exclusão do Reino corresponde a uma vida sem sentido, e não propriamente a um
castigo: «Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão,
Isaac e Jacó, junto com todos os profetas no Reino de Deus, e vós, porém, sendo
lançados fora» (v. 28). Essa linguagem ameaçadora, tão frequente em
Mateus, é rara em Lucas, o evangelista da misericórdia; ele a emprega aqui por
fidelidade à fonte utilizada. O choro e o ranger de dentes é uma contraposição
à alegria e a paz, características básicas da comunidade do Reino, sobretudo na
perspectiva de Lucas. Embora o foco de Jesus e do evangelista seja a construção
da comunidade do Reino, temos aqui também uma clara crítica e denúncia às
pretensões de exclusivismo do povo judeu em relação ao acesso à salvação, o que
fica evidente pela seguinte afirmação: «Virão homens do Oriente e do
Ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus» (v.
29). Como o que garante o acesso ao Reino é a vivência da justiça e, por outro
lado, o que exclui é prática da injustiça, podem participar da mesa do Reino
pessoas dos quatro cantos da terra, desde que abracem o programa de vida de
Jesus e sejam adeptos da justiça. Pertencer a uma raça ou a uma religião não
determina a pertença ou exclusão do Reino de Deus; o que conta é a conduta
justa.
A
conclusão é uma máxima proverbial que mostra que os critérios de Deus não
seguem à lógica humana: «E assim há últimos que serão primeiros, e
primeiros que serão últimos» (v. 30). Embora essa afirmação não seja
exclusividade do Evangelho segundo Lucas, ela se encaixa muito bem na sua
teologia que prevê, desde o início, uma inversão completa de ordem e de valores
(Lc 2,51-52). Funciona também como uma chamada de atenção aos judeus que
imaginavam ter prioridade no Reino pelo simples fato de fazerem parte do povo
eleito. Hoje, o mesmo pensamento pode ser aplicado também a muitos seguimentos
do cristianismo que imaginam ter prioridade no Reino apenas pela pertença ou
assiduidade em certas práticas religiosas. O critério autêntico de pertença a
Jesus e seu Reino é e será sempre a vivência da justiça. Obviamente, não se
trata da justiça retributiva, mas a justiça emanada do amor.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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