Neste vigésimo primeiro domingo do tempo
comum, a liturgia retoma a leitura contínua do Evangelho segundo Lucas, após a
pausa para a solenidade da assunção de Nossa Senhora, celebrada no domingo
passado. Desta vez, o contexto é fornecido pelo próprio texto – Lc 13,22-30 –
em seu primeiro versículo, o que torna desnecessária uma contextualização
introdutória como costumamos fazer, uma vez que essa será feita na própria explicação
do texto. Por isso, podemos já olhar diretamente para ele: “Jesus
atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo o caminho para
Jerusalém” (v. 22). Como se vê, o contexto continua sendo o do caminho de
Jesus para Jerusalém, acompanhado por seus discípulos e discípulas. Como o caminho
constitui a seção narrativa mais longa de todo o seu Evangelho (cc. 9 – 19), Lucas
faz questão de recordar esse detalhe para situar o leitor e evitar possíveis dispersões.
Isso revela suas qualidades de um narrador exemplar que sabe prender a atenção
dos seus leitores.
Além de nos situar no contexto, o
primeiro versículo também aponta para a natureza do caminho percorrido por Jesus:
se trata de um itinerário catequético, sobretudo, e não apenas geográfico. Enquanto
caminha, Ele ensina e forma o seu discipulado. Ao dizer que “Jesus
atravessava cidades e povoados ensinando”, o evangelista prefigura a natureza
missionária e itinerante da Igreja, indicando que ela deve estar constantemente
em saída. Enquanto caminhava e ensinava, Jesus se relacionava com as pessoas,
promovia encontros. Seu ensinamento impressionava pelo conteúdo e pela sua maneira
de ensinar, por isso, despertava curiosidade em pessoas anônimas e desconhecidas
que aproveitavam para lhe fazer perguntas. Isso demonstra que Jesus era uma
pessoa acessível e aberta, que escutava a todos, não se deixava aprisionar por
círculos e grupos restritos.
O evangelista diz que “Alguém lhe
perguntou: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” (v. 23). Certamente,
a pergunta do interlocutor anônimo de Jesus foi motivada por algum ensinamento
anterior; provavelmente esta pessoa estava ouvindo sua pregação e teve essa
curiosidade. Se trata de uma pergunta que reflete um pensamento e uma preocupação
muito difundida nos ambientes judaicos do tempo de Jesus e, posteriormente,
também no cristianismo. Ora, nas escolas rabínicas da época, circulavam três
correntes principais que apresentavam diferentes respostas para essa pergunta: uma
primeira, afirmava que todos os judeus, pelo simples fato de pertencerem ao
povo eleito, estavam automaticamente com a salvação garantida; uma segunda,
pregava que não bastava fazer parte do povo eleito, mas era necessário observar
a Lei de modo impecável e, por isso, somente um pequeno “resto de Israel” se
salvaria; havia ainda uma terceira via: todos os judeus se salvariam e também os
pagãos que aceitassem viver conforme a Lei poderiam se salvar.
Como de costume, Jesus não responde
objetivamente ao seu interlocutor, mas lhe faz um convite ao esforço, à perseverança
e à reflexão, através de uma pequena parábola, introduzida com a imagem da
porta estreita: “Fazei todo o esforço possível para entrar pela porta
estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (v.
24). Embora neste contexto esteja aplicada a uma casa, essa imagem da porta
estreita faz referência a uma pequena abertura que havia nos muros das cidades
antigas. Como as cidades eram muradas, nos muros havia uma grande porta para
entrada e saída de pessoas e transportes que, por motivos de segurança, era
fechada à certa hora da noite e só abria no dia seguinte. Próximo à grande
porta, geralmente, havia uma pequena abertura, chamada de “porta estreita”,
suficiente para a entrada de apenas uma pessoa por vez, e ainda com
dificuldades, usada por quem não conseguisse chegar antes que a grande porta
fechasse ou que necessitasse sair antes da abertura, no dia seguinte. Algumas
pessoas não conseguiam passar por ela, tendo que ficar expostas aos perigos do
lado de fora. Essa imagem era muito aplicada na antiguidade para referir-se a
coisas difíceis que exigiam esforço e às situações de perigo.
Aplicada a uma casa, ao invés de uma
cidade, a imagem da porta estreita perde um pouco do seu sentido, mas sendo
usada por Jesus, neste contexto específico da resposta ao interlocutor
desconhecido, funciona muito bem. Ora, o que está em questão é o acesso à
salvação, ou seja, ao Reino de Deus, e isto depende do acolhimento à Boa Nova
de Jesus na vida da pessoa, com todas as suas consequências. Um pouquinho antes
de iniciar o caminho para Jerusalém (cf. Lc 9,51), os discípulos tinham
discutido entre si sobre quem era o maior entre eles; ao repreendê-los, Jesus
tomou uma criança junto de si e apresentou-a como exemplo, dizendo que é
necessário fazer-se pequeno para acolher a sua mensagem (cf. Lc 9,46-47). A
imagem da porta estreita é, portanto, uma retomada dessa temática e uma nova advertência
aos discípulos, já que somente as pessoas pequenas passavam com facilidade pela
“porta estreita”. É importante, recordar que, na dinâmica do caminho,
mesmo quando Jesus entra em contato com outros personagens, os destinatários
principais dos seus ensinamentos são sempre os discípulos, já que o caminho é,
sobretudo, uma alegoria do seu programa formativo. Assim, Ele propõe mais uma
vez a necessidade de fazer-se pequeno para lhe pertencer. Temos aqui, portanto,
mais uma demonstração excepcional das qualidades pedagógicas de Jesus.
O acesso ao Reino definitivo exige esforço
e compromisso. Por isso, ao invés de dar uma resposta direta e exata ao
interlocutor, Jesus fez um alerta para a necessidade de aderir ao programa do Reino,
antes que seja tarde demais. Eis a continuação da parábola: “Uma vez que o
dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a
bater, dizendo: “Senhor, abre-nos a porta!” Ele responderá: Não sei de onde
sois. Então começareis a dizer: “Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu
ensinaste em nossas praças”. Ele, porém, responderá: ‘Não sei de onde sois.
Afastai-vos de mim todos que praticais a injustiça! (vv. 25-27). Embora seja
apresentado um dono de casa severo, o centro do ensinamento aqui não é a sua
severidade, mas uma demonstração daquilo que conta e o que não conta para alguém
fazer parte do Reino. Logo, não temos aqui um anúncio de condenação ou castigo,
mas uma advertência sobre as credenciais para ter as portas do Reino abertas.
Antes de tudo, Jesus diz que não é suficiente ter comido e bebido com ele e nem
ouvir o ensinamento, se tais atitudes não se traduzem em prática de justiça. Na
época da redação do Evangelho, a celebração fraterna da fração do pão, versão
primitiva da atual Eucaristia, já estava consolidada e, temos aqui uma chamada
de atenção para quem não concilia essa celebração com uma conduta ética e
justa. Em outras palavras, o acesso ao Reino não depende das práticas cultuais.
Quem é praticante de injustiças está automaticamente excluído do Reino, mesmo
que seja frequentador assíduo das mais variadas expressões cultuais.
A exclusão do Reino corresponde a uma
vida sem sentido, e não propriamente a um castigo: “Ali haverá choro e
ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac e Jacó, junto com todos os
profetas no Reino de Deus, e vós, porém, sendo lançados fora” (v. 28). Essa
linguagem ameaçadora, tão frequente em Mateus, é rara em Lucas, o evangelista
da misericórdia; ele a emprega aqui por fidelidade à fonte utilizada. O choro e
o ranger de dentes é uma contraposição à alegria e a paz, características básicas
da comunidade do Reino, sobretudo na perspectiva de Lucas. Embora o foco de
Jesus e do evangelista seja a construção da comunidade do Reino, temos aqui
também uma clara crítica e denúncia às pretensões de exclusivismo do povo judeu
em relação ao acesso à salvação, o que fica evidente pela seguinte afirmação: “Virão
homens do Oriente e do Ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no
Reino de Deus” (v. 29). Como o que garante o acesso ao Reino é a prática da
justiça e, por outro lado, o que exclui é prática da injustiça, podem
participar da mesa do Reino pessoas dos quatro cantos da terra, desde que
abracem o programa de vida de Jesus e sejam adeptos da justiça. Pertencer a uma
raça ou a uma religião não determina a pertença ou exclusão do Reino de Deus; o
que conta é a conduta justa.
A conclusão é uma máxima proverbial que
mostra que os critérios de Deus não seguem à lógica humana: “E assim há
últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (v. 30). Embora
essa afirmação não seja exclusividade do Evangelho segundo Lucas, ela se
encaixa muito bem na sua teologia que prevê, desde o início, uma inversão
completa de ordem e de valores (cf. Lc 2,51-52). Funciona também como uma
chamada de atenção aos judeus que imaginavam ter prioridade no Reino pelo simples
fato de fazerem parte do povo eleito. Hoje, o mesmo pensamento pode ser
aplicado também a muitos seguimentos do cristianismo que imaginam ter
prioridade no Reino apenas pela pertença ou assiduidade em certas práticas religiosas.
O critério autêntico de pertença a Jesus e seu Reino é e será sempre a prática
da justiça.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues –
Diocese de Mossoró-RN
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