Todos os anos, na solene liturgia da
noite de Natal se lê o mesmo texto do evangelho: Lc 2,1-14. Isso se explica
pelo fato de tratar-se do único texto do Novo Testamento que, de fato, narra o
nascimento de Jesus. Como se sabe, somente dois evangelhos canônicos contêm
relatos e informações sobre o nascimento e a infância de Jesus, que são Mateus
e Lucas, respectivamente. Tanto é que os dois primeiros capítulos destes evangelhos
ficaram conhecidos como “evangelhos da infância” (cf. Mt 1–2; Lc 1–2). Contudo,
o evangelho de Mateus não chega a narrar o nascimento, propriamente: da
aceitação de José ao anúncio do anjo (cf. Mt 1,24-25), o evangelista salta para
o episódio da visita dos magos, já depois do nascimento (cf. Mt 2,1-12). Essa
lacuna de Mateus rendeu ainda mais privilégio e importância ao relato de Lucas,
fazendo com que o texto lido nesta noite se tornasse um dos mais conhecidos e
valorizados de toda a Bíblia. Por se tratar de um texto relativamente longo, não
comentaremos detalhadamente versículo por versículo. Procuraremos colher a
mensagem em seu conjunto, embora seja necessário enfatizar alguns versículos em
particular.
Apesar da longa extensão do texto, o
relato do nascimento propriamente é muito curto, ocupando apenas dois
versículos (vv. 6-7). O restante da narrativa é composta de uma ampla
introdução (vv. 1-5) e do anúncio festivo aos pastores (vv. 8-14), os primeiros
a se beneficiarem da libertação inaugurada pelo nascimento de Jesus. Este é um
dos textos que mais revela as qualidades literárias de Lucas e uma de suas
linhas teológicas mais relevantes: a preferência de Deus pelos pobres e marginalizados.
Ainda a nível de introdução e contexto, é importante recordar que os relatos da
infância de Jesus, tanto em Mateus quanto em Lucas, não possuem finalidade cronística
ou histórica, mas catequética e teológica. Aliás, esse pressuposto vale para
todos os relatos evangélicos. No entanto, isso não significa que os fatos
narrados não possuam raízes históricas. Mas quer dizer que todas as informações
e detalhes do texto estão a serviço de um plano teológico e catequético, que
visam responder a questionamentos e necessidades de comunidades concretas do
final do primeiro século. O que o evangelista quis deixar claro foi que Jesus verdadeiramente
nasceu, viveu, fez opções bem concretas e eliminou todas as barreiras entre
Deus e a humanidade.
Feitas as considerações contextuais,
passemos a olhar diretamente para o texto, partindo das primeiras informações: «Aconteceu
que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento
de toda a terra» (v. 1). De todos os evangelistas, Lucas é o que mais se
preocupa em situar os eventos narrados na história universal. Ele faz isso para
ressaltar que Jesus não é um personagem inventado, não é uma lenda, mas um
homem concreto que não caiu do céu, e sim que teve uma existência real em
circunstâncias de tempo e espaço definidos. Com isso, ele também indica a
viabilidade do projeto de salvação e libertação inaugurado por Jesus. Não se
trata de uma promessa de felicidade para o além, mas uma forma de vida para ser
vivida já neste mundo. É um programa de humanização; o único capaz de inverter
a injusta ordem vigente, transformando o mundo em verdadeira irmandade. E os relatos
da infância de Jesus (cf. Lc 1–2), sobretudo o nascimento, marcam o início
dessa transformação, são o começo da reviravolta na história. Por isso, o
episódio começa mencionando a maior autoridade do mundo conhecido na época, o
imperador romano, para terminar com os últimos, os pastores, para quem o céu se
abre em festa. Por isso, os dados do primeiro versículo são muito importantes
para a compreensão de todo o texto.
César Augusto, chamado também de Otaviano,
que comandou o império romano de 27a.C. a 14d.C., foi um dos imperadores mais
ambiciosos e poderosos da história. Foi ele quem criou a “pax romana”, que não
passava de uma política de repressão e controle, com o falso pretexto de manter
a lei e a ordem. Foi com ele que se consolidou a atribuição do título de “divino”
ao imperador, que significava ser tratado como um deus. Sem dúvidas, era o
homem mais poderoso da terra, na época. O decreto do recenseamento de “toda a
terra” é uma prova disso. Porém, esse dado é fruto da criatividade de Lucas.
Não se tem notícias históricas de um recenseamento de abrangência universal na
antiguidade. Quando aconteciam recenseamentos nos grandes impérios, incluindo o
romano, se fazia por províncias ou, no máximo, por regiões. Provavelmente,
Lucas soube de um recenseamento na província da Judeia e superdimensionou o
fato, com a intenção de evidenciar a ambição do imperador com sua força
opressora, uma vez que os recenseamentos eram abomináveis em Israel, por serem mecanismos
de controle do povo, e só Deus tinha poder verdadeiro sobre o povo, segundo a
mentalidade judaica. Por isso, os únicos recenseamentos considerados legítimos
foram aqueles da época de Moisés, pois foram ordenados pelo próprio Deus, como
demonstra o livro dos Números. Quando era proposto por um rei ou imperador era
considerado pecado grave, porque servia para o controle dos impostos e a
recrutamento de soldados para o exército. Inclusive, um dos pecados mais graves
de Davi foi a realização de um recenseamento (2Sm 24,1-17).
Outra intenção de Lucas com o dado do
recenseamento foi encontrar um pretexto para levar o nascimento de Jesus para
Belém e, assim, conferir-lhe as credenciais messiânicas, além de enfatizar a
importância do caminho, que é outra linha teológica relevante na sua obra. Por
isso, o texto diz que, «Por ser da família e descendência de Davi, José
subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na
Judeia» (v. 4). Esse versículo também é muito rico de significado e possui
grande importância para o sentido do texto. A pertença de José à descendência
davídica dá legitimidade à messianidade de Jesus. A distância entre Nazaré e
Belém é de aproximadamente 150 km, dificilmente percorrível por uma mulher em
gravidez avançada, como se encontrava Maria. Mas a motivação é teológica. Com
esse dado, ele mostra o segundo grande movimento de Jesus, ainda no ventre da
mãe. O primeiro foi na visitação de Maria a Isabel. Nesse segundo, a distância
percorrida é ainda maior. Com isso, ele antecipa que nenhum obstáculo impedirá
o percurso da Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Quem se reveste do
Espírito Santo, como Maria, jamais se acomoda, por mais que encontre
adversidades. E essa deve ser a postura da comunidade cristã em todos os
tempos, da qual Maria e José são modelos.
Apesar de ser a cidade natal de Davi,
personagem importante da história de Israel, Belém era um lugar praticamente
esquecido, sem importância. Possuía apenas um valor simbólico, a começar pelo
nome, que significa “casa do pão”. Na prática, era considerada apenas um
vilarejo da periferia de Jerusalém, separadas por apenas 10 km. Assim, o
nascimento de Jesus nela não significa apenas o cumprimento das Escrituras, mas
também a opção de Deus pelos últimos, pelo que é periférico e excluído. Com
isso, percebemos uma das principais demonstrações da genialidade de Lucas: ao
afirmar que «enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto»
(v. 6), ele confirma que Jesus será o Messias esperando, anunciado pelas
Escrituras. Em seguida, quase como advertência, ele ensina que não será um
Messias glorioso, guerreiro e poderoso como a religião de Israel esperava, ao
narrar a situação de completa pobreza em que ele nasceu: «E Maria deu à luz
o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não
havia lugar para eles na hospedaria» (v. 7). Enfaixar os recém-nascidos era
um sinal de cuidado e proteção, na antiguidade; acreditava-se que o
enfaixamento ajudava a criança a crescer reta, sem deficiências. A falta de lugar
na hospedaria é a primeira demonstração de que Jesus já nasceu excluído e entre
os excluídos. Ele já nasce banido e, ao longo do seu ministério, vai juntar-se
aos banidos de sempre. Pelas expectativas de Israel, o Messias deveria nascer
em berço de ouro, enquanto o berço de Jesus foi uma manjedoura (em grego: φάτνῃ – fatne), ou
seja, um cocho para alimentação de animais. Foi colocado num cocho de animais
por falta de lugar digno. Ele nasce um Messias às avessas das expectativas.
Nasceu em condições sub-humanas. Numa sociedade desigual, dividida entre
privilegiados e injustiçados, ele ficou do lado dos injustiçados, desde o
nascimento. Israel não estava preparado para receber um Messias assim e o
cristianismo também parece ainda não ter assimilado como ele veio e viveu.
O episódio começou pelo imperador (v.
1), o maior na escala social, passou pelo governador (v. 2), e parou num casal
desabrigado com um recém-nascido (v. 7), que é o ponto de partida de uma nova
história, de um novo jeito de compreender o mundo. A partir de Jesus, os
humildes passam a ter vez, começam a ser lembrados, como diz o texto: «Naquela
região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu
rebanho» (v. 8). Apesar de romantizados na Bíblia, devido às origens
pastoris do povo de Israel, os pastores constituíam a escória da sociedade;
ocupavam o último degrau da escala social, desde que Israel deixou a condição
de povo nômade para sedentário. Devido aos cuidados que os rebanhos exigiam, eles
não tinham condições de observar a Lei, sobretudo o repouso sabático; por causa
das andanças dos rebanhos, eram obrigados a atravessar terras pagãs, e o
contato constante e direto com os animais os tornavam impuros. Por isso, eram
mais rejeitados até do que os cobradores de impostos. Além da total exclusão,
também eram duramente explorados; cuidavam de rebanhos que não eram deles;
tinham de vigiar durante e noite, para defender os rebanhos de ameaças de lobos
e assaltantes.
Como o nascimento de Jesus inaugura uma
nova história, também marca o início de uma nova ordem, com novos
protagonistas. Os últimos começam a se tornar primeiros, e o anúncio aos
pastores é uma prova disso, como diz o texto: «Um anjo do Senhor apareceu aos
pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo.
O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande
alegria, que o será para todo o povo’» (v. 9-10). Ora, de acordo com a
religião da época, os últimos a receber uma mensagem de Deus seriam os
pastores. Eles já tinham sido condenados antecipadamente. Mas, como Deus
surpreende, eles se tornaram os primeiros destinatários do anúncio do
nascimento de Jesus. A notícia dada pelo anjo é para todo o povo, como é a
mensagem libertadora de Jesus. Mas algumas pessoas tem prioridade nesse
anúncio: os pobres e excluídos. Essa é uma das grandes certezas que os
evangelhos revelam. A opção preferencial pelos pobres é clara! Por isso, esse
anúncio é dado com uma grande alegria para os pastores. Explorados e excluídos,
eles nunca tinham recebido mensagem de alegria; quando alguém se dirigia a
eles, o que era raro, era com palavras de condenação ou impondo ordens. O
anúncio do nascimento de Jesus para eles é uma grande alegria porque traz eles
para o centro da história, que começa a ser reescrita a partir de baixo, a
partir dos pequenos e últimos.
E a notícia dada aos pastores é mesmo
de alegria, é maravilhosa: «Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador,
que é o Cristo Senhor» (v. 11). Como se vê, o anúncio é atual, indica que a
salvação não é um evento futuro, mas um fato cotidiano: é para hoje! Temos
aqui, mais uma linha importante da teologia de Lucas: o hoje (em grego: σήμερον – semeron), que
indica a urgência da salvação/libertação, sobretudo para quem não pode mais
esperar, como os pastores, na época, e tantas pessoas marginalizadas ainda
hoje. E isso constitui uma séria advertência para a comunidade: é preciso
discernir quais são as situações que exigem tomadas de posição e meios de
transformação com urgência. Neste versículo, aparecem os três principais
títulos cristológicos de Jesus: Salvador (em grego: σωτὴρ – sotér), Cristo,
que significa messias/ungido (em grego: χριστὸς – Christós), e
Senhor (em grego: κύριος – Kýrios). Quer
dizer que Jesus possui a totalidade dos dons de Deus, e tudo foi disponibilizado
à humanidade, a partir do seu nascimento. E tudo isso de uma vez, no hoje da
história, sendo que todo dia é uma atualização desse hoje. O imperador romano
exigia ser reconhecido com essas qualidades, mas o anúncio do anjo está
denunciando que era mentira; o poder dele era ilegítimo.
Para não deixar dúvidas, o anjo indica
como os pastores encontrarão o Salvador nascido para eles (v. 12). A lógica
seria procurá-lo num palácio ou num templo, em meio a refinados ornamentos. Mas
desse modo os pastores jamais encontrariam, pois, as portas dos templos e
palácios não se abririam para eles. Um recém-nascido é sinal de impotência e
fragilidade, a manjedoura indica a extrema pobreza. Temos aqui um grande
paradoxo: é nessa impotência, fragilidade e pobreza que está a glória de Deus
em plenitude, o que é confirmado pela «multidão da coorte celeste» (v.
13) que se juntou ao primeiro anjo para cantar e festejar. Essa cena marca o
fim definitivo da separação entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. O
nascimento de Jesus superou as antigas barreiras de separação. Diante dos
pastores, os anjos não só cantam, mas proclamam uma nova imagem de Deus, mas
também um jeito novo de se relacionar com ele e uma nova ordem para o mundo: «Glória
a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados» (v.
14). Como se vê, a glória de Deus está intrinsecamente relacionada ao bem-estar
da humanidade. A paz não é um sentimento, nenhuma tranquilidade interior; é a
totalidade de todos os bens sonhados por Deus para a humanidade: justiça,
liberdade, dignidade, igualdade, fraternidade, terra para trabalhar… logo, não
tem sentido proclamar Deus como glorioso sem preocupar-se com essa paz entre os
homens. Se as pessoas não podem viver bem na terra, pouco sentido tem a proclamação
da glória de Deus nos céus.
Que a celebração de mais um Natal nos
ajude a assimilar o seu verdadeiro sentido, abraçando as causas que ele pressupõe.
Como diz o Papa Francisco, «Deus faz morada entre nós pobre e necessitado,
para nos dizer que é servindo aos pobres que amamos a ele».
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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