Para marcar a conclusão da oitava de natal e o início
do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria,
recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano 431) que a definiu como
“Theotókos”, cujo significado literal é “aquela que gerou Deus”. O objetivo da
Igreja com esta festa e com a definição conciliar, no entanto, é afirmar a
identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e não
necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. Inclusive, até o ano de
1970, esta festa se chamava “festa da circuncisão de Jesus”, fundamentada na
tradição judaica de circuncidar as crianças do sexo masculino no oitavo dia
após o nascimento, como aconteceu, sem dúvidas, com Jesus. O título atual da
festa já é, portanto, fruto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. No
ano de 1968, o então papa Paulo VI proclamou este dia – primeiro de janeiro –
também como o Dia Mundial da Paz, convidando a inteira humanidade a empenhar-se
na construção da paz e da fraternidade universal. Isso torna esta celebração
ainda mais significativa.
O evangelho lido na liturgia deste dia é a continuação
quase exata daquele da noite de Natal, sendo separado por apenas um versículo:
Lc 2,15. Enquanto na noite de Natal o evangelho foi Lc 2,1-14, na solenidade de
hoje o texto proposto é Lc 2,16-21. Por isso, consideramos que o primeiro passo
para uma boa compreensão do evangelho de hoje é recordar o versículo que o
antecede: «Quando os anjos os deixaram e foram para o céu, os pastores
disseram uns aos outros: ‘Vamos já a Belém para ver o que aconteceu e que o
Senhor nos deu a conhecer’» (Lc 1,15). Ora, os pastores ficaram
maravilhados com a Boa Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um Salvador
nasceu para eles, naquela noite (cf. Lc 2,10). E, ao anúncio do anjo, seguiu-se
o canto da multidão da corte celeste que desceu à terra, para junto dos pastores,
proclamando a glória de Deus nos céus e a correspondente paz na terra entre a humanidade
(cf. 2,13-14). Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres
pastores, assim como a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da
época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à
categoria das pessoas mais simples e marginalizadas, e eram considerados impuros,
compondo o último estrato social e religioso da época.
Uma das grandes novidades de Jesus, desde o
nascimento, foi contradizer o que a sua religião tinha afirmado sobre o Messias
e sobre Deus. Ora, a religião oficial tinha classificado as pessoas como puras
e impuras, justas e pecadoras, imaginando que a vinda do Messias seria marcada
pelo extermínio das classificadas como impuras e pecadoras, como eram
considerados os pastores na época. Ao invés de seguir as determinações da
religião, Jesus preferiu, desde o início, exatamente as categorias excluídas,
contradizendo e frustrando muitas expectativas. É nessa perspectiva que podemos
e devemos compreender a reação dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus.
A eles, a religião tinha ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois
eram gente da pior qualidade e que não observava a Lei. De repente, eles
recebem um anúncio de salvação e sentem-se amados por Deus. Além, disso, a religião
de Israel tinha alimentado as expectativas pela vinda de um messias poderoso,
guerreiro e glorioso, e o que veio foi uma criança pobre, nascida em condições
sub-humanas. Perplexos diante de tudo isso, eles decidiram ir a Belém para conferir
e tirar todas as dúvidas (cf. Lc 2,15).
Diante de uma novidade sem precedentes, é impossível
esperar, por isso diz o texto que «Os pastores foram às
pressas a Belém e encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na
manjedoura» (v. 16). Merece destaque a expressão adverbial “às
pressas” (em grego: σπεύσαντες – speussantes), a qual
possui grande relevância no vocabulário da teologia lucana: encontra-se logo
após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo a visita a Isabel (cf. Lc 1,39),
e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça da árvore, para acolher a
salvação em sua casa (cf. Lc 19,5-6). Isso quer dizer que, para Lucas, a
salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve ser experimentada
sem demora, com urgência. Tanto quem recebe quanto quem proclama o anúncio da
salvação devem ter pressa. No caso dos pastores, mais ainda: como passaram a
vida inteira às margens, sofrendo o desprezo e a exclusão, não poderiam mais
perder tempo. Para eles e todas as categorias de pessoas marginalizadas, a
inclusão tem de ser agora, hoje. Por isso, foram às pressas a Belém.
Se os pastores ficaram surpresos com o anúncio do
anjo, talvez tenham ficado mais ainda com o que viram em Belém: «encontraram
Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16b). Na
verdade, encontraram tudo conforme lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12), mas
é impossível que não tenham se surpreendido, tamanha a reviravolta na história.
Ouviram que tinha nascido para eles um Salvador, e encontram na manjedoura,
junto aos pais, uma pequena criança, provavelmente em meio às moscas e esterco
de gado, sem nenhum sinal distintivo que revelasse glória ou poder, atributos próprios
de um salvador. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido
anunciado (cf. Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da
novidade e da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um
Salvador conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não
conseguiriam sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos,
foram compreendendo que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem
estava às margens estava passando para o centro, como eles. E essa mudança só
se tornava possível porque o Salvador veio identificado com eles. Nesta cena,
Lucas delineia o primeiro grande esboço de uma Igreja pobre e para os pobres!
Na sequência, o evangelista diz que
os pastores «tendo-o visto,
contaram o que lhes fora dito sobre o menino» (v. 17),
tornando-se assim, também eles, mensageiros de salvação, portadores de Boa
Notícia. Contaram que o anjo lhes aparecera anunciando o nascimento do
Salvador, e que depois “uma multidão da corte celeste” baixou perto deles
glorificando a Deus e anunciando a paz em toda a humanidade (cf. Lc 2,10-14).
Contaram coisas maravilhosas, de modo que quem os escutava também se
maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados, pois, até então, não se
tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente pouco importante e sem
currículo, como eram eles, conforme os padrões da sociedade e da religião da
época. Com isso, o evangelista ensina que os pastores foram os primeiros
evangelizados com o nascimento de Jesus e se tornaram os primeiros
evangelizadores de tão grande acontecimento. Assim, Lucas faz deles modelos de anunciadores,
prefigurando neles a missão dos apóstolos e dos discípulos e discípulas de
todos os tempos. De fato, mais adiante, no auge da missão e sofrendo as primeiras
perseguições, os apóstolos vão confirmar a fidelidade seguindo o exemplo dos
pastores: «não podemos deixar de falar sobre
o que vimos e ouvimos» (At 4,20). Não calar
diante do que se vê e se ouve é exigência básica da evangelização. E os
pastores foram os primeiros a fazer isso.
De todas as pessoas que ouviram o
relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o texto destaca a reação de Maria
como mais profunda, com menos surpresa e mais reflexão. Afinal de contas, ela
já estava habituada às maravilhas de Deus, pois foi a primeira destinatária do
anúncio salvífico através do anjo Gabriel (cf. Lc 1,26-38) e tinha assistido à
exaltação de Isabel quando a visitou (cf. Lc 1,39-52). No entanto, ela não
deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de Jesus lhe trará outras
surpresas, como no episódio da apresentação no templo, quando ela e José ficarão
admirados com o que se dizia do menino (cf. Lc 2,33). A reação de Maria é
diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a imagem da discípula
modelo: «guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu
coração» (v. 19). Se na atitude dos pastores já havia esboço do modelo
de discípulo e discípula, esse modelo se aperfeiçoa em Maria: não basta contar
o que se vê e se escuta, mas é necessário também meditar, assimilar bem,
interiorizar. O verbo grego empregado pelo evangelista, traduzido pelo
lecionário como “meditar” (συμβαλλω – symbálô),
possui um significado ainda muito mais profundo: quer dizer “colocar junto”, “unir”,
“reunir”. E era isso que Maria fazia: percebia os diversos sinais e
acontecimentos do agir de Deus e juntava-os, fazendo sua própria síntese, cuja
melhor demonstração está no canto do Magnificat: uma síntese da história da
salvação, com ênfase na opção de Deus pelos pobres e humildes de sempre.
Certamente, a meditação de Maria consistia em
relacionar os acontecimentos do presente com as ações libertadoras de Deus ao
longo da história, como ela mesma já expressara no Magnificat (cf. Lc 1,46-55)
e experimentara em sua vida. É exatamente aqui que ela se sobressai sobre os
demais ouvintes, porque ela guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que
os pastores tinham dito, e juntava com o que já sabia: as palavras do anjo
Gabriel e as declarações de Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e
humildes. Aquela que já era mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e
isso ela vai fazer ao longo de toda a sua vida e a de Jesus. Ao invés de ver os
fatos isoladamente, ela vai juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no
seu coração, que a história da salvação está sendo reescrita com novos
parâmetros, uma inversão de ordem: os últimos, como ela e os pastores, passaram
a ser os primeiros. E é essa a prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu
na história. Nesse sentido, Maria se torna autêntica intérprete da nova história
da salvação, sendo, por isso, modelo ideal de discípula e discípula.
Tendo comprovado e visto que tudo o que lhes tinha
sido anunciado era verdade, «os pastores regressaram, glorificando e
louvando a Deus» (v. 20). Realmente, não faltavam motivos para os
pobrezinhos dos pastores glorificarem a Deus! É importante lembrar que a
alegria e o louvor também são traços bem característicos de Lucas; quem faz a
experiência do amor misericordioso de Deus reage louvando e glorificando. O
louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o abismo entre o humano e o divino
foi eliminado; céus e terra foram unidos definitivamente. Cantar glória a Deus
era função dos anjos no céu que, excepcionalmente desceram à terra e louvaram a
Deus diante dos pastores (cf. Lc 1,13-14), mas logo retornaram para o céu.
Agora, também aos pastores, os últimos da terra, tem esse direito. Temos aqui
uma mudança completa de paradigma: o que era privilégio dos primeiros do céu,
se torna acessível aos últimos da terra. O louvor continuado dos pastores mostra
que a experiência vivenciada por eles foi verdadeira. O mistério contemplado
deixou marcas permanentes. Eles não assistiram apenas a um evento, mas se
tornaram participantes e construtores de uma etapa nova da história. Regressaram
transformados, renovados, animados, se sentindo gente de verdade. Por isso,
daquele momento em diante, dificilmente eles deixaram de anunciar tudo o que
tinham visto, escutado e vivido.
No final, vem evidenciado o papel
importante de José e Maria na educação de Jesus, levando para a circuncisão
conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a liberdade que tinham para seguir
mais a Deus do que a Lei: «Quando se completaram os oitos dias para a circuncisão do menino,
deram-lhes o nome de Jesus como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido» (v. 21). A
circuncisão não era exclusividade de Israel. Era um costume comum a vários
povos do antigo Oriente, sendo que a motivação era por questão de higiene e
saúde. Em Israel se transformou em preceito religioso, passando a ser o principal
sinal de pertença de um homem ao povo eleito. Com esse dado, Lucas reforça a
concretude da encarnação. O que está sendo evidenciado mesmo é o nome dado à
criança: Jesus, cujo significado é o “Senhor salva”. A Lei determinava que se
desse o nome de um parente próximo. Contudo, o nome Jesus fora indicado pelo
anjo, no momento do anúncio (cf. Lc 1,31). Com isso, Lucas mostra que, entre a
Lei e o Espírito Santo, Maria e José preferiram se orientar pelo Espírito
Santo, prefigurando, assim, mais uma característica da comunidade cristã. E
Lucas faz essa referência à circuncisão mais como dado cronológico do que mesmo
identitário. O importante aqui é o nome que sintetiza a missão de Jesus. E o
conjunto dos eventos, do anúncio do nascimento até aqui, mostra a atualidade
desse nome.
O significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: «Hoje, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (cf. 2,11). Portanto, hoje, especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e seguir seu exemplo de discípula fiel.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
Mais uma bela reflexão, parabéns. Feliz Ano Novo!!!
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