Todos os
anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza textos do
chamado «testamento de Jesus» do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos,
que correspondem à última ceia, contém o ensinamento mais precioso de Jesus no
contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de diversos
discursos que o evangelista reuniu como se fosse apenas um discurso,
apresentado como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante a sua vida.
Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12), expressão
máxima do agir serviçal de Jesus, e é concluído com a oração sacerdotal (Jo
17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade com o Pai, marcada pela
confiança e entrega, e seu cuidado com a humanidade, suplicando unidade e
fraternidade. Do lava-pés à oração de Jesus, portanto, está a síntese de toda a
sua vida. O evangelista fez isso como resposta às necessidades da sua
comunidade, que passava por crises, e das comunidades de todos os tempos.
À medida
em que o tempo pascal avança, após lermos os diversos relatos das manifestações
(aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a), é interessante
retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a proximidade da
ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença e vivência
dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus ensinou que se
pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo da história. Neste
quinto domingo do “Ano A”, o texto proposto é Jo 14,1-12. Para
compreendê-lo melhor, é necessário recordar o que lhe antecede, no contexto
narrativo da última ceia. E encontramos quatro acontecimentos precedentes que,
de certo modo, condicionam o texto de hoje: o lava pés ou o mandamento do
serviço (Jo 13,1-15), o anúncio da traição de Judas e seu desligamento do grupo
(Jo 13,21-30; ), a entrega do mandamento do amor por Jesus (Jo 13,31-35) e o
anúncio da negação de Pedro (Jo 13,36-38). A isso, soma-se o fato de Jesus ter
declarado que tinha chegado a sua hora de partir para o Pai (Jo 13,31-33), e os
discípulos, lamentavelmente, compreendiam a sua partida como perda definitiva, como
ausência e fim. Tudo isso deixou os discípulos desanimados e inquietos; a ceia
tinha perdido o seu clima festivo. Jesus tenta recuperar a alegria e o
entusiasmo dos discípulos com a continuidade do seu discurso, apesar de se
encontrar às vésperas da paixão.
Olhando
para o texto, percebemos que as palavras iniciais de Jesus denunciam a
inquietação e o mal-estar que havia entre os discípulos naquele momento: «Não
se perturbe o vosso coração» (v. 1a). A agitação no coração é
sinal de tristeza e confiança abalada. Significa que há uma situação difícil de
ser aceita e compreendida. É interessante que, embora fale para todo o grupo
dos discípulos, Jesus se refere ao coração (em grego: καρδία –
kardía) no singular. Com isso, o evangelista evidencia a importância da
unidade da fé na comunidade. Apesar dos conflitos internos, a comunidade não
pode desistir de ter um só coração, ou seja, um mesmo amor e um único
mandamento. Na verdade, os discípulos até tinham certa razão de se encontrarem
perturbados, humanamente falando, tendo a vista a certeza da morte próxima de
Jesus. Mas Jesus os convida a superar o medo e deixar de ver a morte como o
fim. Na verdade, ele quer ensinar que a morte não tem a palavra final, por
isso, insiste que os discípulos não se perturbem com ela. Além disso, ele quer
recordar tudo o que já tinha ensinado acerca do seu destino. E desde os
primeiros momentos da sua pregação, ele tinha deixado claro qual seria o seu
destino, tendo em vista sua extrema fidelidade ao Pai.
Mais do
que um conforto intimista e individual, Jesus quer assegurar a unidade. Ora, a
comunidade estava abalada e suscetível de rivalidades e exclusões, além da
tristeza pela sua aparente perda. Havia um clima de desconfiança entre eles,
sobretudo após a saída de Judas e o anúncio da negação de Pedro (13,21-30;
36-38). O princípio da unidade na comunidade é a fé em Deus e no próprio Jesus.
Por isso, ele pede que os discípulos lhe renovem a adesão plena, com uma fé
renovada: «Tendes fé em Deus, tende fé em mim também» (v. 1b).
O tema da fé é muito caro ao evangelho de João. Somente nesse texto de hoje, o
verbo que expressa fé e confiança (em grego: πιστεύω – pistêuo), aparece
cinco vezes (vv. 1.11.12). O evangelista está ensinando também que a fé em Deus
e a fé em Jesus são uma única fé. E somente a fé é capaz de fazer a comunidade
superar o medo, a perturbação e criar coragem para enfrentar as adversidades
que vêm como consequência da fidelidade ao projeto de Jesus. E a primeira
adversidade é a cruz.
Na
continuação, Jesus reforça cada vez mais a importância da comunidade cristã,
apresentando-a como a nova casa do Pai, uma vez que a antiga casa, o templo,
fora transformada em casa de negócio (Jo 2,16). Por isso, ele faz uma afirmação
categórica e bastante firme: «Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se
assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós» (v.
2). Essa é uma das afirmações mais revolucionárias de todo o Quarto
Evangelho, embora tenha sido muito mal compreendida ao longo dos séculos. Ao
contrário do que parece, Jesus não está se referindo ao céu enquanto morada do
Pai, e nem prometendo reservar lugares para os seus discípulos lá. Ele está, na
verdade, fazendo uma mudança radical de paradigma: a nova casa do Pai é a
comunidade cristã, na qual há espaço para todos e todas, compreendendo a
diversidade de dons e carismas. No templo de pedras, a antiga casa de Deus,
havia uma única morada. As pessoas iam até lá para encontrar-se com Deus, mas
somente Ele habitava lá, como ensinava a religião. No diálogo com a Samaritana,
Jesus já tinha antecipado que aquele modelo de religião estava com os dias
contados, uma vez que chegaria o tempo de adorar a Deus somente em espírito e
em verdade (Jo 4,21-24); esse tempo novo instaura-se com a ressurreição,
compreendida como a construção definitiva da morada de Deus na humanidade (Jo
2,19-22), através da extensão do corpo do Ressuscitado que é a comunidade
cristã. Ao invés de ir ao templo para encontrar-se com Deus, devemos acolhê-lo
em nossa vida, uma vez que é Ele que vem ao nosso encontro, numa relação oposta
ao que ensinava a antiga religião.
Jesus diz
que “vai preparar” porque é a sua ressurreição que inaugura essa nova relação;
por isso, garante: «E quando eu tiver ido preparar-vos um lugar,
voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também
vós» (v. 3). Mais uma vez, recordamos que Ele não está prometendo
transportar os discípulos de um lugar para outro, mas conduzi-los a uma nova
condição de vida, dando a certeza de que, acolhendo o ressuscitado com fé, a
comunidade estará em relação contínua com o Pai. Mais do que levar a comunidade
para Deus, na verdade Jesus traz Deus para a comunidade; essa será a casa do
Pai quando nela vigorar a lei do amor e sua aplicação prática, que é o serviço,
cuja demonstração ele fez há pouco tempo, com o gesto do lava-pés. Com isso,
ele dá um significado novo para a vida presente: essa vida que vivemos agora
não é apenas uma espera pela vida definitiva, mas ela já é eterna, pois já se
pode experimentar nela a presença do eterno, que é ele mesmo, pois onde se vive
como discípulo o Ressuscitado está presente. Portanto, o voltar de Jesus, após
sua morte de cruz, ao encontro dos discípulos, significa muito mais do que o
seu retorno glorioso no final dos tempos; no contexto do evangelho de hoje,
significa sua inseparabilidade da comunidade após a ressurreição. A morte
na cruz não tem força de separar Jesus dos seus porque, Ressuscitado, ele
estará sempre presente. Por isso, essa sua afirmação expressa um retorno
imediato: mediante o Espírito Santo, ele estará sempre presente entre os seus,
e a ocasião privilegiada de experimentar essa presença é a comunidade reunida
para a partilha do pão.
Considerando
tudo o que já havia ensinado, imaginava Jesus que os discípulos já conhecessem
o caminho, como ele mesmo afirma: «E para onde eu vou, vós conheceis o
caminho» (v. 4); esse caminho é a sua própria vida, marcada pelo amor
ilimitado e incondicional. No entanto, a incompreensão persiste nos discípulos,
dominados pelos ideais messiânicos triunfalistas e incapazes de reconhecer o
amor e a doação da vida como os únicos meios para uma relação autêntica com
Deus. Com muita sinceridade, Tomé confessa a sua ignorância diante do que está
sendo anunciado e vivido por Jesus: «Tomé disse a Jesus: ‘Senhor, nós
não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?’» (v. 5).
De fato, ele não compreendia a morte de Jesus como passagem para uma presença
permanente no meio da comunidade. Mas seu questionamento demonstra interesse em
aprofundar e conhecer mais Jesus e sua relação com o Pai. Ele via a morte como
o fim, embora seja louvável a sua coragem para enfrentá-la, como havia
demonstrado já no episódio da reanimação de Lázaro, quando os outros discípulos
queriam persuadir Jesus a não se aproximar de Jerusalém, pois já tinha sido
ameaçado de morte. Naquela ocasião, Tomé desafiou aos demais discípulos e
disse: «Nós iremos para morrer com ele» (Jo 11,16).
O
questionamento de Tomé se torna uma oportunidade para Jesus fornecer uma das
mais profundas revelações de si: «Jesus respondeu: ‘Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim’» (v. 6). Com a
declaração “Eu sou” (em grego: Εγώ είμι –
egô eimí) Jesus reafirma a sua condição divina, pois essa é a fórmula de
revelação do Deus do Êxodo, o Deus libertador (Ex 3,13ss); por sinal, o uso
dessa fórmula é muito frequente no Evangelho de João, mas essa é a única vez em
que vem seguida de três predicativos: Caminho, Verdade e Vida. Essa é a
afirmação em que Jesus mais revela traços da sua identidade. Embora pareça
enigmática, essa tríplice predicação é bastante simples. Ora, Jesus está
propondo um modelo de vida para uma comunidade, o que pode levantar muitas
dúvidas e questões, uma vez que Ele não escreve nenhuma regra, não estabelece
nenhuma lei e não deixa nenhuma doutrina. Isso gera dúvidas e medo nos
discípulos: como se comportar após a partida de Jesus? Quais os parâmetros a
seguir? Para simplificar, Jesus diz que ele mesmo é tudo o que a comunidade
necessita, é Ele o parâmetro, a sua pessoa. Ao apresentar-se como Caminho,
Verdade e Vida, Jesus quer dizer que é tudo para a comunidade e essa não pode
buscar nem viver algo que não esteja em consonância com a sua pessoa. O caminho
a ser percorrido pela comunidade cristã é a sua trajetória de vida, a verdade a
ser transmitida é a sua própria pessoa e a vida a ser vivida é aquela que Ele
viveu e doou em abundância, marcada pela liberdade, dignidade e amor. É claro
que na tradição bíblica encontramos significados aprofundados para cada um
destes termos: caminho, verdade e vida. Porém, o evangelista aplica aqui o
sentido prático e conhecido dos termos. Quer dizer que, sem Jesus, a comunidade
não tem rumo, não tem o que anunciar e, consequentemente, não tem também razão
para viver e existir, uma vez que sem Ele não há relação nem conhecimento de
Deus, o Pai. Portanto, se auto declarando como Caminho, Verdade e Vida,
Jesus diz que é tudo para a comunidade cristã e essa não pode alimentar-se de
nada além da sua pessoa.
Na
sequência, Jesus reafirma sua unidade com o Pai em tom de advertência e lamento
pela falta de perspicácia dos discípulos: «Se vós me conhecêsseis,
conheceríeis também o meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes» (v.
7). Num único versículo, o mesmo verbo conhecer aparece três vezes. Não se
trata de um conhecimento intelectual, mas de uma experiência de intimidade e
amor. O conhecimento de Deus não é fruto do intelecto, mas de uma disposição
para amar e ser amado. Jesus está denunciando a falta de amor nos discípulos,
até aquele momento. Se ainda não conheciam a Jesus e ao Pai, é porque ainda não
estavam amando verdadeiramente, o que se evidencia pela intervenção de
Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!» (v. 8).
Como se vê, persistia nos discípulos a incompreensão e não aceitação da unidade
entre Jesus e o Pai. Isso mostra, mais uma vez, que eles tinham dificuldade de
aceitar e assimilar um Deus presente na história e relacionando-se diretamente
com o seu povo, e é exatamente esse Deus que Jesus nos revela. Por isso,
a resposta a Filipe é uma espécie de desabafo de Jesus, em tom de
lamentação e repreensão: «Há tanto tempo estou convosco, e não me
conheces, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o
Pai?’» (v. 9). Ora, Filipe foi um dos primeiros discípulos chamados
por Jesus (Jo 1,43); certamente, presenciou todos os sinais realizados, mesmo
assim não tinha ainda assimilado Jesus como revelador do Pai e,
consequentemente, não ainda deixado se humanizar por ele.
Toda a
vida de Jesus é revelação de Deus; em tudo o que faz, ele revela o Pai porque
os dois vivem uma unidade perfeita: «Não acreditas que estou no Pai e o
Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo, mas é
o Pai, que, permanecendo em mim, realiza as suas obras» (v. 10). Os
discípulos devem perceber essa unidade pelo amor incondicional de Jesus,
expresso em suas palavras e ações. Como último critério, ou seja, quando a vida
de Jesus marcada pelo amor incondicional não for capaz de convencer, que pelo
menos considerem as suas obras, os sinais realizados, para reconhecê-lo como Um
com o Pai: «Acreditai-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim.
Acreditai, ao menos, por causa destas mesmas obras» (v. 11). É
importante essa recomendação: as obras são o último critério para a fé. O
primeiro critério é o amor envolvido e a certeza da vida abundante. A propósito
das intervenções de Tomé e Filipe, vale a pena ressaltar a importância que isso
significa para a comunidade joanina e, obviamente, para as comunidades cristãs de
todos os tempos. É perceptível que o Evangelho de João concede a palavra a
discípulos que não fazem parte do trio predominante na tradição sinótica:
Pedro, Tiago e João. No Quarto Evangelho, discípulos “secundários” para os
sinóticos, como André, Filipe e Tomé, tem um certo protagonismo (Jo 2,35-51;
11,26; 20,19-27), sendo que o principal de todos os discípulos é um anônimo: o
discípulo amado. Esse detalhe revela um cuidado do evangelista em relação
à organização da comunidade e uma precaução com as tendências hierarquizantes.
Na comunidade onde reina o amor, todos têm espaço, inclusive para questionar. O
que importa é que o amor fraterno seja vivido.
Certamente,
é vivenciando o mandamento do amor, estabelecendo relações fraternas e
sinceras, cultivando a igualdade e a fraternidade que a comunidade poderá, não
apenas repetir, mas realizar obras maiores que aquelas que o próprio Jesus fez;
é Ele mesmo quem dá essa garantia (v. 12). A confiança e fé em suas palavras
credencia a comunidade a manifestar a sua presença e, consequentemente, a
presença do Pai, tornando sua obra ilimitada temporal e espacialmente; isso
implica em compromisso para nós, cristãos de hoje: não devemos apresentar o
Evangelho como uma história a ser contada, mas como um caminho a ser
percorrido, uma verdade a ser anunciada e, principalmente, uma vida a ser
vivida, marcada pelo amor, acolhimento e perdão para, de fato, ser uma vida em
abundância (Jo 10,10).
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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