O evangelho
do trigésimo terceiro domingo do tempo comum, o penúltimo do ano litúrgico, continua
sendo tirado do discurso escatológico do Evangelho de Mateus, o último dos
cinco grandes discursos atribuídos a Jesus no primeiro evangelho (Mt 24-25). O trecho
lido hoje – Mt 25,14-30 – corresponde à chamada “parábola dos talentos”. Não se
trata de um material exclusivo de Mateus, pois possui uma versão paralela em
Lucas, a chamada “parábola das minas” (Lc 19,11-27) e uma breve alusão em
Marcos (Mc 13,34), que provavelmente serviu de fonte para Mateus e Lucas.
Porém, a versão de Mateus é carregada de particularidades, e isso lhe rende um
aspecto de originalidade, fruto da criatividade do evangelista e consequência
das necessidades da sua comunidade. Nessa parábola, continua em evidência o
tema da vigilância, embora de maneira menos explícita do que na parábola das
dez virgens (Mt 25,1-13), lida no domingo passado. A parábola dos talentos é
considerada uma das mais complexas e difíceis de Mateus, sendo bastante
passível de distorção em sua interpretação, pois, à primeira vista, poderia ser
considerada como um incentivo à meritocracia, à cultura do acúmulo e até mesmo
como justificativa para legitimar as desigualdades sociais. Por isso, é
importante que seja bem interpretada, levando-se bastante em consideração o seu
contexto.
Localizada
estrategicamente entre a parábola das dez virgens (Mt 25,1-13) e a cena do
julgamento final (Mt 25,31-46), essa parábola tem um significado muito
relevante para o conjunto do Evangelho de Mateus e, portanto, seu ensinamento é
de fundamental importância para o bem da comunidade cristã em todos os tempos. Na
época da redação do seu Evangelho, a comunidade de Mateus vivia um momento de
crises, provocadas por fatores externos e internos. A principal crise, sem
dúvidas, girava em torno da fé, com um certo relaxamento e desânimo na vivência
das bem-aventuranças, núcleo central da mensagem cristã. Ora, esperava-se um
retorno quase imediato do Senhor, pois a pregação cristã primitiva alimentava
isso; como não acontecia esse retorno, muitos cristãos começavam a desanimar,
abandonando a fé ou vivendo-a de modo indiferente e superficial. Com essa
parábola, o evangelista quis animar a comunidade, mostrando que o tempo de
espera não é perdido; pelo contrário, é o tempo oportuno para a comunidade
fazer crescer e multiplicar os dons que o Senhor lhe confiou. Logo, a parábola
é um incentivo à perseverança e um convite à mudança de foco durante o tempo da
espera: ao invés de preocupar-se com a vinda do Senhor propriamente, a
comunidade deve preocupar-se em realizar cotidianamente a sua vontade, vivendo
segundo o amor e a justiça, a síntese das bem-aventuranças.
Olhemos,
então, para o texto: «Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus
empregados e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu
dois, e ao terceiro, um; a cada um de acordo com a sua capacidade. Em seguida
viajou» (vv. 14-15). Antes de tudo, recordemos que parábola é um
gênero literário que apresenta uma mensagem por meio de comparação. Logo, é com
essa imagem apresentada que o evangelista compara a situação da sua comunidade
enquanto espera pelo retorno do Senhor. Não se trata, portanto, de uma
descrição, mas apenas de uma comparação com uma realidade conhecida do seu
auditório. Embora o texto litúrgico empregue a palavra empregados, o correto
seria servos, por corresponder melhor ao termo empregado pelo evangelista na língua
original (em grego: δούλος - dúlos). A palavra servo, na Bíblia, não significa apenas o escravo, mas
alguém que tem parte na obra, uma pessoa que goza de plena confiança do dono da
obra ou propriedade, como nesta parábola. E assim são todos os cristãos e
cristãs na edificação do Reino de Deus e na preservação de toda a obra da
criação. O homem viaja, mas não se ausenta, pois continua presente, de modo
implícito, nos bens confiados aos servos. À medida em que movimentam os bens
que lhes foram confiados, os servos tornam o proprietário presente. Também o
Senhor ressuscitado não se ausentou da comunidade; continua presente à medida
em que seus seguidores são capazes de fazer o seu projeto se desenvolver,
cultivando e multiplicando os dons que lhes foram confiados, e abertos ao
Espírito Santo.
Embora
distribuídos em quantidades diferenciadas, a parábola mostra que ninguém ficou
desprovido de bens, ou seja, de dons; cada um recebeu os talentos de acordo com
a sua capacidade. Esse detalhe é muito importante para o evangelista. Se todos
recebem, todos tem algo a partilhar, a trabalhar e fazer frutificar. A
quantidade diferenciada de bens recebidos por cada um pode ser uma alusão à
diversidade de dons e carismas existentes na comunidade. Os talentos não são
emprestados, são entregues, verdadeiramente doados, fazendo pressupor que as
pessoas têm liberdade para gerenciá-los cada um à sua maneira, embora não
estejam isentas de responder pelas consequências. Talento (em grego: τάλαντον – talanton) era uma medida de peso usada para pesar metais preciosos
como o ouro e a prata, na antiguidade. Seu uso começou na Babilônia e foi
adotado por diversos sistemas de dominação, inclusive pelo império romano. Quando
o talento deixou de ser usado como medida, e graças à intepretações desta
parábola, a palavra se universalizou como sinônimo de capacidade pessoal,
aptidão ou dom. Um talento equivalia a aproximadamente trinta quilos de ouro, o
que correspondia a seis mil denários; e um denário era o salário de um dia de
trabalho braçal (Mt 20,2). É claro que havia pequenas variações de uma cultura
para outra, em relação às medidas e valores. Mas é certo que um talento, em
qualquer lugar, tinha um grande valor. Por isso, até mesmo aquele que recebeu
apenas um talento, ainda recebeu uma grande fortuna. Isso significa a
benevolência e liberalidade do Senhor, bem como a perenidade dos bens que ele
doa à comunidade.
Ao receber
os talentos ou dons, cada um é livre para usá-los como quiser. A viagem do dono
evoca a liberdade dada àqueles que receberam os talentos para usá-los. Como o
dono não estava presente para vigiar os servos, eles poderiam multiplicar,
extraviar ou apenas conservar os talentos recebidos. E a parábola diz qual foi
a atitude de cada um: «o que havia recebido cinco talentos saiu logo,
trabalhou com eles, e lucrou outros cinco. Do mesmo modo o que recebeu dois
lucrou outros dois. Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco
na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão» (vv. 16-18). Tais atitudes
revelam duas concepções de mundo completamente opostas. Os dois primeiros
servos trabalharam até duplicarem o que haviam recebido. Embora o texto não
indique como eles fizeram isso, o certo é que não ficaram parados, nem tiveram
medo; foram ousados e criativos. Isso revela uma visão de mundo dinâmica,
própria de quem vê a vida como uma oportunidade de crescimento. O terceiro
servo simplesmente pensou na conservação do que havia recebido. Escondendo o
talento por medo, o conservou de modo íntegro e fiel. É a visão de mundo
própria de quem tem medo de correr riscos, tem medo de mudanças. Uma visão totalmente
conformista e, portanto, distante de tudo o que Jesus fez e ensinou.
A aparente
ausência do Senhor pode levar os membros da comunidade a diferentes posturas:
para uns, é oportunidade de crescimento, para outros é motivo de medo e
insegurança. A comunidade de Mateus vivia esse drama: o que fazer enquanto o
Senhor não retornava? O evangelista aconselha que cada membro da comunidade
seja criativo, que desenvolva os dons recebidos, procurem multiplicar,
transformando as realidades com amor e justiça. Na verdade, o Senhor nunca se
ausentou; deixou seus dons como forma de continuar presente e operante. Desse
modo, o convite à vigilância não visa um momento final específico, mas uma vida
toda vigilante, praticando o amor e a justiça, ou seja, vivendo segundo a
dinâmica das bem-aventuranças. A liberdade de cada um no uso dos talentos não
os isenta da responsabilidade, pelo contrário, torna-a ainda mais exigente. Por
isso, diz o texto que «depois de muito tempo, o patrão voltou e foi
acertar as contas com os empregados» (v. 19). Ora, se os talentos
entregues aos servos equivalem aos dons confiados aos membros da comunidade
para a sua edificação, é justo que o Senhor se interesse pelo uso que cada um
fez deles. E na comunidade não pode haver individualismo, indiferença nem
omissão. Muito menos medo. O que pertence a um é interesse de todos, e a
coragem de se arriscar é um imperativo.
Quem
recebeu dons e não os fez frutificar, colocando-os a serviço dos demais,
obviamente, não está apto a integrar a comunidade. É esse o sentido do acerto
de contas mencionado na parábola. O Senhor quer saber o que fazemos com o seu
Evangelho a nós confiado. Quem multiplicou os talentos, gerou vida, edificou o
Reino. Quem o manteve intacto como recebeu, foi omisso, cruzou os braços; na
comunidade cristã, responsável pela edificação do Reino, não há espaço para
pessoas assim. Por isso, os servos que souberam colocar os dons a serviço da
comunidade, multiplicando-os, ou seja, fazendo-os frutificar, são tratados, em
tom de elogio (v. 23), como «bom e fiel» (em grego: ἀγαθὲ καὶ πιστέ – agathé kai pisté). Embora o texto não descreva o que estes servos
fizeram precisamente, o certo é que agiram, não ficaram acomodados. O Senhor
quer que os dons confiados sejam usados em prol da justiça e do amor, tornando
o mundo mais humanizado e compatível com o Reino. Não se trata de um convite ao
acúmulo, o que seria contrário à lógica do Reino. É uma mensagem de esperança e
perseverança, um convite a perder o medo e arriscar tudo, inclusive a vida,
para que as sementes do Reino se multipliquem.
Ao
contrário dos dois primeiros servos, o terceiro foi repreendido (v. 26)
como «mau e preguiçoso» (em grego: πονηρὲ καὶ ὀκνηρέ – poneré kai oknêré). É interessante que o texto não menciona nenhuma ação
malvada desse servo; pelo contrário, menciona sua precaução e cuidado em não
estragar o talento recebido, o que poderia render-lhe um reconhecimento de
prudente. Ele apenas se preocupou em conservar o dom recebido do mesmo jeito
que recebeu. Ora, na lógica do Reino, lógica que a comunidade cristã deve
assumir, não basta cometer delitos para ser tratado como mal: basta ser omisso,
indiferente e medroso. Não basta não fazer o que é mal, basta deixar de fazer o
bem para ficar fora da comunidade e, consequentemente, do Reino. O medo
paralisa a comunidade e impede a instauração do Reino. E de todos os medos, o
mais perigoso é o medo de mudança. É esse medo que leva muitos grupos e
movimentos a simplesmente conservarem rigidamente certas tradições, ignorando a
ação criativa e constante do Espírito Santo.
Podemos,
finalmente, identificar o sentido da vigilância nessa parábola: a autêntica
vigilância não é espera passiva, mas é atitude, é serviço em prol do Reino,
através da multiplicação dos dons confiados pelo Senhor à comunidade. Quem
pensa apenas em conservar a doutrina, os costumes e tradições, trai a confiança
depositada pelo Senhor. O Reino exige decisão, ousadia, criatividade e
liberdade para o uso dos dons recebidos. Ser vigilante é, portanto, não ter
medo de arriscar, é colocar-se a serviço da comunidade, expondo os dons
recebidos, mesmo correndo riscos. Uma vez que os talentos não foram confiados
para serem conservados, mas para frutificarem, a atitude do dono é
completamente compreensível: «tirar do que tem pouco para dar ao que
tem muito» (v. 28). Ora, o que já tinha dez talentos, passando a onze,
poderá fazer multiplicar cada vez mais, e quem mais ganhará com isso será a
comunidade, ou seja, o Reino. Com essa afirmação «a todo aquele que tem
será dado mais, e terá em abundância, mas aquele que não tem, até o pouco que
tem lhe será tirado» (v. 29), o evangelho não está justificando as desigualdades
do mundo nem propondo a sua perpetuação, mas está acentuando a natureza da
comunidade cristã, enquanto espaço da criatividade e produção de frutos. Quem
recebe o dom e o retém somente para si, não pode entrar em um projeto de vida
comunitário como o Reino de Deus.
O destino
final de quem se autoexcluiu da comunidade enfatiza a privação total de vida e
amor: «choro e ranger de dentes» (v. 30). Essa expressão
significa o grau máximo de desespero para um ser humano, equivalente a uma vida
privada de sentido. Isso não é castigo, mas consequência de escolhas feitas e
posições assumidas enquanto havia tempo para agir de modo diferente. É uma plena
privação de humanização. De fato, é sem sentido a vida de quem não vive a
lógica das bem-aventuranças. Viver somente para si é um mal. No Reino, só vive
quem sabe viver a serviço do bem de todos; e só se vive assim com coragem e
amor. No atual contexto eclesial, pode-se constatar a assimilação de cada uma
das visões de mundo apresentadas na parábola pela adesão ou não à sinodalidade.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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