sábado, dezembro 09, 2023

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO ADVENTO – MARCOS 1,1-8 (ANO B)



Todos os anos, a liturgia do segundo e do terceiro domingos do advento destaca a figura de João, o Batista, como o profeta que antecede, de modo imediato, a missão de Jesus. Neste ano, por ocasião do Ciclo litúrgico B, o evangelho proposto para o segundo domingo é Mc 1,1-8. Como o Evangelho de Marcos é menos extenso do que os demais, também o seu relato sobre a missão do Batista é mais abreviado. Por isso, no próximo domingo – o terceiro do advento – a liturgia utilizará um texto do Evangelho de João para falar do testemunho do Batista. Sendo o advento o tempo por excelência de preparação para o Natal do Senhor, mas também um convite à conversão contínua, é muito importante voltarmos o olhar para o princípio do evangelho, reconhecendo o papel dos personagens que estiveram em tal princípio, como hoje recordamos a figura de João, o Batista. O texto lido hoje contém os primeiros versículos do Evangelho de Marcos, o que lhe confere uma grande importância, pois, além de descrever os elementos essenciais da missão de João, funciona também como introdução geral à toda a obra. João Batista é um personagem importante em todos os evangelhos, mas em Marcos possui uma relevância ainda mais acentuada, pois ele é o primeiro personagem a entrar em ação. Mateus e Lucas, por exemplo, antes de apresentarem a missão de João, colocam José e Maria como protagonistas humanos dos preparativos para o nascimento de Jesus. O Quarto Evangelho, por sua vez, antes de descrever o testemunho de João, faz uma ampla apresentação da existência eterna do Palavra-Verbo, que é o próprio Jesus. Portanto, é somente em Marcos que o Batista abre, de fato, o evangelho.

Olhemos então para o texto, percebendo as grandes novidades que ele traz. De maneira única no Novo Testamento, o Evangelho de Marcos começa com um título programático: «Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus» (v. 1). A palavra evangelho (em grego: εὐαγγελίον – euanguélion) significa boa notícia, boa nova, notícia agradável. No mundo greco-romano, essa palavra era mais utilizada no campo político do que no religioso. No império romano, por exemplo, usava-se a palavra “evangelho” para anunciar os acontecimentos relativos à vida imperial, como o nascimento de um filho do imperador, as vitórias em uma guerra, a construção de grandes obras, como aquedutos e estradas, para anunciar a investidura de um novo imperador e até para apresentar um programa de governo. Quando se ouvia qualquer notícia sobre algo que trouxesse alguma melhoria para a vida do povo, dizia-se que se tinha ouvido um “evangelho”, mesmo que não passasse de propaganda política, pois dificilmente o povo experimentava algum tipo de melhoria, pelo contrário, as coisas só pioravam. É nesse contexto que, de modo subversivo, os primeiros cristãos passaram a empregá-la em referência a Jesus, tanto à sua vida, quanto à sua mensagem. A palavra só passou a ser utilizada como títulos dos livros sobre a Jesus na segunda metade do século segundo. Em meados do século XIX, com o avanço da exegese, a palavra evangelho foi reconhecida também como um gênero literário particular, do qual fazem parte todos os relatos sobre a vida de Jesus, incluindo os considerados canônicos e os apócrifos.

Ao utilizar a palavra “euanguélion” para referir-se à vida e à missão de Jesus, Marcos se assume como um autor altamente revolucionário e subversivo, afirmando que boa notícia não era o que saía de Roma, através de decretos imperiais e outros meios, mas o que saiu de Nazaré, na vida de um homem simples, corajoso e cheio de amor: Jesus. Ora, se Marcos se assume subversivo politicamente, aplicando a palavra “euanguélion” a Jesus, é nítida também a sua subversão religiosa, ao abrir a “história” de Jesus com a mesma palavra com a qual se abre o primeiro livro da Bíblia (Gn 1,1), para falar do início da criação: início ou princípio (em grego: Ἀρχὴ – arkê). Assim, o evangelista está afirmando que a vida e a história têm, em Jesus, um novo princípio, um novo fundamento, desafiando o judaísmo oficial da época que, até então, imaginava ter o controle das coisas de Deus na terra. Por princípio, como aplica Marcos, devemos compreender não apenas o início ou começo, mas também o fundamento, o elemento basilar. Esse elemento passa a ser a Boa Notícia de Jesus, que é a sua própria pessoa com sua mensagem, e não mais a Lei de Moisés. Para o judaísmo da época, essa nova concepção soava como uma verdadeira heresia.

O homem do qual o evangelista irá falar ao longo da sua obra – Jesus de Nazaré – é o Cristo, ou seja, o messias e, ao mesmo tempo, Filho de Deus. Nestes dois títulos aplicados a Jesus – Cristo e Filho de Deus – está a síntese de toda obra de Marcos, e é assim que ele responde à pergunta “Quem é Jesus?”, objetivo geral do seu Evangelho. O termo Cristo (em grego: Χριστὸς – Cristós) significa messias ou ungido; aquele que, sendo ungido, está habilitado para cumprir uma missão; aplicando-o a Jesus, um judeu, o evangelista está afirmando que o tão esperado messias libertador de Israel chegou, mas não como tinha ensinado a religião, ou seja, ele não veio como rei, guerreiro e vencedor, mas simples e pobre, a começar pelas suas origens aldeãs. Ao afirmar que Jesus é também Filho de Deus, Marcos desafia, ao mesmo tempo, tanto o império quanto a religião da época. Ora, o judaísmo esperava um messias filho de Davi, o qual viria para proteger e libertar somente o povo de Israel; ao denominar Jesus como Filho de Deus, Marcos diz que Jesus veio para a humanidade toda, e não para um povo exclusivo, ao mesmo tempo em que desmascara a religião imperial que cultuava o imperador romano como o filho de Divino (em latim: Divi Filius). Portanto, de modo simples, mas ao mesmo tempo profundo, com o seu escrito, Marcos enfrenta dois poderes fortes e organizados: o império romano e a religião oficial judaica.

Até aqui, refletimos apenas sobre o primeiro versículo, o qual funciona como título e introdução geral a todo o Evangelho segundo Marcos. Na continuidade, do segundo versículo em diante, o evangelista apresenta a figura de João, o Batista, e sua missão profética de precursor de Jesus. Para introduzir a missão de João, Marcos recorre à tradição profética, apresentando-o, obviamente, como profeta: «Está escrito no livro do profeta Isaías: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!’» (vv. 2-3). Aqui, embora mencione somente Isaías, a citação é, na verdade, uma junção de trechos dos livros do Êxodo e das profecias de Malaquias e Isaías (Ex 23,20; Ml 3,1; Is 40,3). Como o livro de Isaías era o mais utilizado nas liturgias, entre os escritos proféticos, tanto no judaísmo quanto no cristianismo das origens, muitas vezes atribuía-se a ele qualquer citação profética, como aqui. Inclusive, ele é o único profeta citado nominalmente em Marcos e somente em duas ocasiões: aqui e em 7,6. Com essa citação, o evangelista está afirmando que a missão de João continua e atualiza o profetismo bíblico tradicional, do qual Jesus é o seu verdadeiro cumprimento. A missão de João é clara: preparar o caminho do Senhor. Na linguagem bíblica, sobretudo nos profetas, a palavra caminho indica a dimensão ética da fé. Significa a proposta de vida que Deus oferece à humanidade, marcada pela justiça e o amor. Por isso, na sequência vem apresentado o convite à conversão. Mas, ao mesmo tempo em que esse caminho ainda deve ser preparado, há também uma alusão prefigurativa da identidade da comunidade cristã: um caminho que se faz continuamente.

Após a fundamentação bíblico-profética, o evangelista descreve a missão de João e os seus efeitos, dizendo que ele «apareceu no deserto, pregando um batismo de conversão para a remissão dos pecados» (v. 4). Como se sabe, mais do que uma indicação espacial, a palavra deserto possui um profundo significado teológico na Bíblia. Ora, o deserto (em grego: ἐρήμος – erémos) é o lugar clássico do encontro com Deus; representa uma etapa importante no processo de libertação, como aconteceu no primeiro êxodo. Ao longo da história, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Assim, a presença de João no deserto é um convite para Israel romper com as estruturas vigentes de injustiça e opressão, e retornar às suas origens. Mas é também indicativo de um novo tempo, de uma nova história. Ora, pelas convenções do judaísmo da época, esperava-se que a manifestação do esperado Messias começasse em Jerusalém, no templo. Logo, a localização da pregação preparatória de João no deserto significa também um deslocamento do centro para as margens. Por isso, o deserto aqui significa também a identificação do Messias Jesus com as periferias. Seu ministério será uma demonstração disso, conforme vem mostrado ao longo dos evangelhos. No deserto, João estava “pregando”, palavra que poderia ser substituída por “proclamando” ou “anunciando”. Do verbo pregar (em grego: κηρύσσωkerysso), empregado pelo evangelista, deriva a palavra “kerygma” (κήρυγμα), termo empregado nos primórdios do cristianismo como síntese de todo o anúncio cristão. E, de fato, o objeto da pregação de João tem tudo a ver com a pregação cristã, pelo menos na perspectiva de Marcos: um “batismo de conversão” (em grego: βάπτισμα μετανοίας – baptisma metanoías).

O batismo de conversão serve como chamada de atenção: todos tem um certo grau de culpa na situação de degradação do povo; há culpas coletivas e pessoais. É necessário que cada um tome consciência de sua responsabilidade na construção de um mundo novo, através da conversão simbolizada pelo batismo, sendo que o significado real de conversão é mudança de mentalidade. E para acolher um Messias tão às avessas como Jesus era indispensável uma profunda mudança de mentalidade. A pregação de João, como proposta de libertação, atraía «toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro» (v. 5a). Certamente, o evangelista exagera ao dizer que “todo mundo” ia ao encontro do Batista, mas faz parte de suas intenções teológicas. Com isso, ele está propondo que um novo êxodo estava para acontecer, iniciando com a pregação do Batista e se completando com a missão de Jesus. A antiga terra prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se transformado em terra de escravidão. Dessa vez, não era um faraó o algoz, mas a própria casta sacerdotal do templo em conluio com o poder imperial romano. Foi dessa gente que controlava a vida do povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar, em primeiro lugar. A religião institucionalizada era sinal de exploração e abuso de poder. E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o nome de Deus, ou seja, a exploração religiosa. Nessa passagem, especialmente, a tradução litúrgica não expressa o real significado do texto: ao invés de afirmar que “as pessoas iam da Judeia e de Jerusalém ao encontro de João”, a tradução correta seria «toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém, saíam ao encontro». Ora, essa saída significa que há um novo êxodo em curso. As pessoas saíam de onde estavam sendo exploradas em busca da libertação, cujo processo é iniciado com a pregação de João e realizado plenamente por Jesus.

As pessoas que saíam das antigas estruturas de escravidão e injustiça e «confessavam os seus pecados e João as batizava no rio Jordão» (v. 5b). A confissão aqui, não é um rito sacramental ainda, mas um reconhecimento do pecado e arrependimento, conforme rezava o salmista: «Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não te encobri; eu disse: ‘Vou ao Senhor, confessar a minha iniquidade!» (Sl 32,4); é a decisão de aceitar trilhar o caminho do Senhor, enquanto prática concreta de justiça e amor. Esse salmo era muito utilizado na liturgia judaica e, por isso, bastante conhecido pelo povo. Ser batizado no Jordão quer dizer atravessá-lo, passar por ele, como passou o povo do primeiro êxodo; de fato, a travessia do Jordão foi a última etapa da longa caminhada do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, já sob a liderança de Josué, após a morte de Moisés (Js 1,2). Assim, a proposta de João é um convite a um novo êxodo, ou seja, uma nova libertação que se aproxima, e só pode participar quem faz a experiência do deserto e da travessia, ou seja, quem passa de uma mentalidade antiga para uma nova. Além das anteriores citações de Isaías e Malaquias e Êxodo, a descrição que o evangelista faz de João também reforça suas credenciais de profeta: «João se vestia com uma pele de camelo e comia gafanhotos e mel do campo» (v. 7). De fato, A descrição do vestuário e da dieta de João revelam seu estilo de vida; é típico dos profetas (Zc 13,4; 2Rs 1,8). É mais uma prova de que o verdadeiro profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente, com o testemunho. O estilo de vida simples de João comprova esse testemunho e ainda serve de contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de Jerusalém. Essa descrição funciona como um apelo do evangelista para a comunidade cristã configurar-se como religião profética, combatendo as primeiras tendências de institucionalização do cristianismo.

Até aqui, a pregação de João, como convite à conversão, fora apenas mencionada, mas nenhuma palavra sua fora ainda citada. Eis, então, a sua pregação: «Depois de mim, virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo» (vv. 7-8). Certamente, muitas pessoas confundiam João com o messias, por isso, ele esclarece. Como verdadeiro profeta, sabe que seu papel na história da salvação é de instrumento de Deus, Aquele que é maior! A referência ao gesto de desamarrar as sandálias pode ter duas interpretações; no Evangelho de Marcos e nos demais Sinóticos, certamente, significa o reconhecimento da inferioridade de João em relação a Jesus. Desamarrar as sandálias fazia parte dos serviços cotidianos dos escravos em relação aos patrões. O evangelista apresenta esse reconhecimento como um gesto de humildade do Batista. A outra explicação, que vê nestas palavras uma referência à lei do levirato (Rt 3,5-11), aplica-se à passagem correspondente do Evangelho de João, o qual recorre à imagem do matrimônio para descrever a vida e a missão de Jesus. A referência ao “mais forte” que virá é uma confissão antecipada da divindade de Jesus, pois o “mais forte” na tradição bíblica significa o próprio Deus. Outro detalhe que chama a atenção na pregação de João apresentada por Marcos é, além da sobriedade, a ausência de qualquer conotação apocalíptica, ao contrário do que se vê nas versões de Mateus e Lucas que, em tom de ameaça, mostram João anunciando um Messias castigador. Inclusive, Marcos não fala sequer de um batismo de fogo, como falam Mateus e Lucas (Mt 3,11; Lc 3,16). Enfim, Marcos faz questão de manter a coerência: se abriu seu relato como Boa Notícia, ou seja, como Evangelho, não pode anunciar outra coisa que não seja boas notícias, de fato.

Para concluir, recordemos que João administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente um sinal do batismo por excelência: com o Espírito Santo. O batismo com o Espírito Santo é definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28) e, ao mesmo tempo, sinal da universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. Somos, então, neste segundo domingo do advento, convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão, fazendo um êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as práticas das antigas estruturas, renovando a maneira de conceber a Deus e abrindo-se ao Espírito Santo, dom de Jesus, o batizador por excelência.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

3 comentários:

  1. Olá. Ir. Paulo David de Caxias do Maranhão. Tenho um BLOG. Podemos linkar nossos blogs?

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    1. Olá, caríssimo, antes de tudo, muito obrigado pela leitura e interesse. É claro que podemos sim, fazer o intercâmbio.

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