Repetida acriticamente ao
longo dos séculos, a paciência de Jó se tornou provérbio popular e tema
proverbial, ao mesmo tempo, sendo frequentemente usada como fundamentação para
discursos de resignação e conformismo. Mas de onde vem a imagem de Jó como modelo
de homem paciente? Certamente, não vem de uma leitura atenta do livro bíblico
que leva o seu nome. Pode até vir do livro, mas de uma leitura muito
superficial, sem visão de conjunto.
O mais provável é que a fama
de modelo de paciência atribuída ao personagem Jó venha de uma tradução meio
confusa de uma certa passagem da Carta de Tiago – Tg 5,11. Nessa passagem, lhe
vem atribuída uma qualidade expressa por uma palavra que corresponde mais à
perseverança ou constância do que a paciência. Se trata do substantivo grego
“hypomonê” (ὑπομονὴ). Por muitos séculos, tem
prevalecido a tradução desta palavra por paciência, mas já há traduções
circulando com a palavra perseverança. A nova tradução da Paulinas – A Bíblia
–, uma das melhores em circulação no Brasil, atualmente, traduz o referido versículo
assim: «Vede como proclamamos bem-aventurados aqueles que perseveraram!
Ouvistes falar da perseverança de Jó e vistes o resultado que o Senhor lhe
concedeu; porque o Senhor é rico em misericórdia e compassivo.» (Tg 5,11).
O que se constata com a
leitura atenta do livro de Jó é a figura de um homem justo, perseverante, mas
muito revoltado com a vida e com Deus, e com razão, tendo em vista as coisas
que lhe tinham acontecido. O texto empregado pela liturgia deste domingo – 5º
do tempo comum, ano B – é uma demonstração disso, e pode ser considerado até
uma síntese do livro e da vida do personagem (Jó 7,1-4.6-7). Perceber em Jó o
homem inconformado, rebelde, impaciente e corajoso pode ajudar-nos mais na
compreensão e aceitação dos dramas pessoais que vivemos, como é típico do ser
humano contemporâneo. A impaciência de Jó ajuda-nos a aceitar a nossa condição
humana. Ele foi o homem do desabafo, da explosão dos sentimentos, corajoso para
questionar Deus e o sentido da vida.
Por causa dos problemas da
vida, Jó perdeu noites de sono, sofreu de insônia e nunca teve medo de
questionar Deus. Só questiona Deus quem confia, quem tem fé e coragem. E Jó
teve. Por isso, embora ache muito bonito o Jó da paciência, prefiro o Jó
rebelde, impaciente, inconformado. É muito triste constatar que muitas pessoas
sofrem caladas, tem seus dramas presos por escutar muitas pregações repressivas
que usam indevidamente a figura de Jó para justificar o sofrimento e situações
de opressão e exploração. Jó ensina que, em muitos momentos, o desabafo é o
único recurso para aliviar a dor, o desgosto, as decepções e outros dramas.
Para corroborar esta pequena
reflexão, recordo uma citação de um dos principais estudiosos do livro de Jó, o
notável Cardeal Ravasi, um dos maiores exegetas vivos, especialista em
literatura sapiencial, o bloco literário do qual o livro de Jó faz parte na
Bíblia. Assim diz Ravasi: «Certamente, o livro de Jó não é um elogio de
paciência. Jó é um impaciente por excelência, um rebelde. Mas mesmo que seja
rebelde, ele nunca perde a ligação com a fé». Ravasi é autor de um dos melhores
comentários exegéticos ao livro de Jó.
Pe. Francisco Cornélio
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