sexta-feira, maio 17, 2024

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PENTECOSTES (II) – JOÃO 15,26-27;16,12-15

A liturgia da solenidade de Pentecostes oferece uma segunda opção de evangelho para a missa do dia. Trata-se de Jo 15,26-27;16,12-15, cujo contexto ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da paixão. Como se vê, é um texto fragmentado, composto de passagens extraídas de dois capítulos diferentes. Mesmo assim, percebe-se que há uma clara unidade temática entre os dois fragmentos, e isso justifica o seu emprego na liturgia desde dia. Obviamente, o que une os dois fragmentos, formando um único texto, é a promessa do Espírito Santo por Jesus, assegurando aos seus discípulos uma assistência permanente na missão. No Evangelho de João, a missão cristã consiste no testemunho, acima de tudo. Em termos de contextualização, apresentaremos apenas o contexto narrativo do texto lido. Para o contexto bíblico e histórico da festa de Pentecostes, consultar a reflexão sobre Jo 20,19-23, disponível aqui: https://porcausadeumcertoreino.blogspot.com/2024/05/reflexao-para-o-domingo-de-pentecostes.html 

Como já afirmamos em outras ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco capítulos (Jo 13–17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia o que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que aconteceria dentrode pouco tempo, embora não tivessem ainda tanta clareza. Por isso, havia um clima de tensão e medo entre entre eles, o que era inevitável, dadadas as circunstâncias. Diante disso, Jesus procurou tranquilizá-los em diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, ele prometeu enviar o Espírito Santo quando retornasse para o mundo do Pai (14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio deles. 

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele já tinha dito nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos, de quem Ele nada esconde. E isso é uma demonstração muito grande de amor pelos seus discípulos, revelando-se por inteiro, falando claramente, deixando-se conhecer em plenitude. Isso se torna ainda mais concreto com a promessa da permanente assistência, mediante o Espírito Santo que será enviado: «Quando vier o Defensor que eu vos mandarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim» (15,26). Essa promessa é muito significativa, porque pouco tempo antes Jesus tinha prevenido os discípulos sobre as perseguições que haveriam de sofrer, como consequência do ódio do mundo ao seu projeto de amor sem limites.

Sozinhos, obviamente, os discípulos de Jesus não poderiam suportar o ódio e as perseguições sofridas como consequência da fidelidade ao seu amor. Por isso, necessitam de quem os defenda. Isso justifica o emprego do título funcional dado ao Espírito Santo, aqui e em outras ocasiões (Jo 14,16.26) dentro deste mesmo discurso: o Defensor. Esse título traduz o termo grego “parákletos” (παράκλητος), empregado no texto original, posteriormente adaptado ao português como paraclito. Literalmente, significa “aquele que é chamado a ficar junto”, com a função de defender, consolar, encorajar e até falar em nome do outro. E equivalente a palavra latina “advocatus”, da qual provém o termo português advogado. É importante essa reconstrução, pois ajuda a perceber a real função do Espírito Santo na comunidade, como pensou o próprio Jesus. Não se trata apenas de um simples título, mas de realidade viva e vivificante, sem a qual a comunidade cristã pereceria, longe da Verdade e incapaz de dar testemunho. Por sinal, Verdade e testemunho são outras duas palavras-chaves deste primeiro versículo. O próprio Espírito, que é o Defensor da comunidade, é caracterizado aqui como o “Espírito da Verdade”. No Evangelho de João, a Verdade é Jesus mesmo (Jo 14,6), com sua mensagem de libertação (Jo 8,31-32). Ora, quem conhece a verdade se torna livre, e quem liberta é ele, Jesus, a verdade em pessoa. Portanto, o Espírito Santo, que é Defensor, é o Espírito da Verdade porque só Jesus, em comunhão com o Pai, pode oferecer, pois só ele liberta.

O primeiro efeito do Espírito Santo, enquanto Defensor da comunidade, é encorajá-la para o testemunho. Ora, no contexto da última ceia, os discípulos ficavam angustiados (Jo 14,1ss), à medida em que Jesus deixava mais claro o seu destino. Inclusive, tinha acabado de alertá-los sobre o ódio e perseguições que haveriam de sofrer (15,23-25), por isso, a necessidade da coragem é fundamental. E tanto o Espírito Santo dará testemunho quanto os discípulos por ele impulsionados: «E vós também dareis testemunho, porque estais comigo desde o começo» (15,27). Em todos os tempos, a coragem para o testemunho é requisito básico para o seguimento de Jesus. Aqui, ele recorda a necessidade urgente dos primeiros discípulos, que estiveram com ele desde o início, destinatários primeiros do Espírito Santo, de darem testemunho dele. Esse testemunho deve ser continuado pela comunidade em todos os tempos, e disso depende a adesão do mundo ao projeto de Jesus. O testemunho, motivado pelo Espírito Santo, é capaz de humanizar o mundo e libertá-lo, pois significa a irradiação do amor de Jesus.

Os primeiros discípulos de Jesus, como estavam com ele desde o início, tiveram o privilégio de conhecer integralmente toda a sua mensagem. Contudo, mediante o Espírito Santo e a continuidade do testemunho, os discípulos e discípulas de todos os tempos também têm a oportunidade de conhecer tudo o que ele ensinou, e é importante que esse ensinamento seja recebido sempre como novidade. Por isso, ele declara: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, Ele não se refere a novos ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos. Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não tinham forças para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo. E Jesus garante que eles receberão essa força: «Quando, porém, vier o Espirito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará» (v. 13). A Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se auto intitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, realidade que só pode ser alcançada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno ao mundo do Pai. A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica.

Continuando a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade, Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos, que prevêem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (cf. Jo 13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (cf. Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, mais uma vez, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Na comunhão trinitária, há uma cadeia de comunicação e de amor, de modo que tudo o que um faz tem a ver com o outro. E o Espírito Santo é quem faz a irradiação desse amor no mundo, por isso, fechando-se a ele a comunidade cristã perde a razão de existir. A presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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