No primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja
celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados
nesta solenidade se alternam conforme a dinâmica do ciclo litúrgico. Por
ocasião do ano B em vigência, o evangelho lido neste domingo é Mt 28,16-20. Ao contrário das solenidades
pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa festa já
foi introduzida no calendário litúrgico em um período mais tardio. Em alguns
países, começou a ser celebrada ainda por volta do séc. oitavo, mas só foi instituída
oficialmente como festa universal pelo papa João XII, já no ano de 1334, como resposta a alguns
movimentos heréticos que negavam a divindade de Jesus e/ou do Espírito Santo. Nela, recordamos o
mistério da comunhão de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Trindade
Santa, em cujo nome somos batizados, batizadas e, consequentemente, salvos e
salvas. É muito significativo que
esta solenidade seja celebrada logo no primeiro domingo após Pentecostes. Como
se sabe, em Pentecostes acontece o verdadeiro nascimento da Igreja. Desse modo,
a Solenidade da Santíssima Trindade vem indicar que toda a ação da Igreja é
trinitária, a começar pelo batismo, que se celebra em nome do Pai, e do Filho e
do Espírito Santo. Portanto, é em nome da Santíssima Trindade que ingressamos e
participamos da comunidade cristã. Isso faz da comunidade o lugar privilegiado
de comunhão com o Deus que é também comunidade. Como sempre, a nossa
reflexão será pautada exclusivamente a partir do evangelho, sem levar em
consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade.
O texto de hoje corresponde
aos últimos versículos do Primeiro Evangelho. Por isso, contém as últimas
palavras de Jesus na respectiva obra, funcionando como uma espécie de
testamento. O contexto é estritamente
pascal, bem como o conteúdo: a manifestação do Ressuscitado aos onze, na
Galileia. Podemos dizer que o evangelho de hoje é uma síntese conclusiva de todo o
Evangelho de Mateus. À medida em que escreve suas últimas linhas, o evangelista
e sua comunidade fazem questão de resumir a essência de tudo o que já tinha
sido apresentado ao longo da obra, sobretudo em relação aos ensinamentos de
Jesus. É isso que percebemos hoje. Portanto, para compreendê-lo bem é
necessário que o leitor esteja familiarizado com o conjunto da obra. Na
impossibilidade de recordar o Evangelho todo, recordamos, pelo menos, os
últimos acontecimentos narrados: o relato da ressurreição com a manifestação do
anjo e do próprio Ressuscitado às mulheres (Mt 28,1-10), e o suborno dos
guardas pelos sacerdotes com a mentira do roubo do corpo de Jesus pelos
discípulos (Mt 28,11-15). O texto de hoje sucede imediatamente a esses
acontecimentos. Tanto o anjo do Senhor (28,5-7), quanto o próprio Jesus (28,10)
ordenaram às mulheres que avisassem aos discípulos que retornassem à Galileia
para, ali, fazerem também eles a experiência do encontro com o Ressuscitado. Por
isso, além de recordar, é importante ressaltar que o encontro dos discípulos
com o Ressuscitado, narrado no evangelho de hoje, é fruto também do anúncio das
primeiras apóstolas da ressurreição: aquelas mulheres que, na madrugada do
primeiro dia, foram visitar o sepulcro e receberam o mandato de convencer os
discípulos a retornarem à Galileia para encontrarem o Ressuscitado (Mt
28,1-10).
É à luz das informações
recordadas anteriormente que podemos compreender o que o evangelho de hoje diz
logo em seu primeiro versículo: «Os onze discípulos foram para a
Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado» (v 16). A menção aos
onze recorda a perda de Judas, que já não fazia mais parte do grupo dos
discípulos, mas possui também um outro significado: o número doze representava
um projeto de reconstituição do antigo Israel, alimentando a ideologia
nacionalista e triunfalista. Esse projeto faliu, devido à rejeição de Israel ao
projeto de Jesus, cujo ápice foi a morte escandalosa na cruz. À luz da
ressurreição, a comunidade mateana, fazendo uma releitura dos últimos
acontecimentos, percebe que a missão universal confiada à Igreja não precisa
mais ser configurada às tradições de Israel. O projeto do Reino dos Céus que
Jesus anunciou ao longo do Evangelho não coincide com a restauração do reino de
Israel. Por isso, o número onze não significa incompletude da comunidade, mas é
sinal de uma nova perspectiva e ruptura com os antigos esquemas. Não podemos
esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento
exclusivo da teologia narrativa de Lucas (At 1,15-26). Na perspectiva de
Mateus, para a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário
abandonar os esquemas tradicionais do judaísmo. A base fornecida por Israel – a
Lei e os profetas – não perderam o seu valor, mas receberam o cumprimento (Mt
5,17). De Jesus em diante, o que conta é o anúncio e a construção do Reino,
cujas bases são as bem-aventuranças.
Segundo a recomendação, os
discípulos foram para a Galileia, ao monte indicado. Ora, em Jerusalém
acontecera a grande tragédia para a comunidade dos discípulos. Além de ter sido
o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia nenhuma perspectiva
para a comunidade do Ressuscitado ali florescer. Basta recordar o conluio dos
poderes religioso, militar e político para desacreditar a ressurreição, com a
ideia do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (28,11-15). Aliás, Jerusalém
foi hostil a Jesus desde o seu nascimento, com a matança dos inocentes
decretada por Herodes (Mt 2,16). O retorno à Galileia, portanto, era essencial
para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo, para o reencontro dos
discípulos com as motivações e bases originárias. Além das incompreensões ao
longo da caminhada, marcada inclusive pela rivalidade entre os discípulos (Mt
20,20), os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte de Jesus deixaram a
comunidade profundamente abalada. Daí a necessidade de um retorno ao ideal
primeiro para fazer a experiência do monte. Ora, de acordo com as tradições do
Antigo Testamento, o monte é, por excelência, o lugar do encontro com Deus e
com a sua palavra.
Ao longo de todo o seu
Evangelho, Mateus situou Jesus no monte em diversas ocasiões, desde às
tentações (Mt 4,8-10) até a paixão (Mt 26,30). Inclusive, foi no monte que
Jesus proferiu o mais importante dos seus cinco discursos: o discurso da
montanha (Mt 5–7), que se constitui como o seu programa de vida, cujo centro é
as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). De fato, nas bem-aventuranças está o centro da
mensagem de Jesus, ou seja, a essência de tudo o que ele ensinou aos seus
discípulos. Foi também no monte que Jesus se transfigurou diante de alguns
discípulos, revelando antecipadamente sua identidade crucificado-ressuscitado.
Logo, o convite para os discípulos retornarem à Galileia para o monte é
exatamente para voltarem à essência do projeto de vida proposto por Jesus,
percorrendo o seu mesmo caminho e fazendo as mesmas opções dele. É também um
modo de indicar a continuidade entre a mensagem de Jesus de Nazaré, o galileu,
e o Ressuscitado. E a Galileia como região desprezada entre os judeus é também
uma advertência aos discípulos quanto aos destinatários primeiros da missão: os
pobres e marginalizados.
Na sequência, o texto
descreve a reação dos discípulos: «Quando viram Jesus, prostraram-se
diante dele. Ainda assim alguns duvidaram» (v. 17). A princípio,
parecem duas posturas opostas diante da ressurreição, mas o evangelista as vê
como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na
ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo
já empregado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus
recém-nascido em Belém (Mt 2,2.11) e para descrever o gesto das mulheres quando
viram o Ressuscitado pela primeira vez (Mt 289); Esse verbo (em
grego: προσκυνέω – proskinêo) tanto indica adoração quanto sujeição a alguém, como
deve ser a postura da comunidade: adorar e sujeitar-se somente a Jesus e ao que
ele deixou como ensinamento, assumindo completa autonomia e emancipação em
relação aos preceitos da Lei e às imposições do imperador romano. Assim como os
magos e as discípulas mulheres, também os onze discípulos aceitam os valores do
Reino como universais e, por isso, lutarão para que cheguem a todos lugares da
terra, indistintamente. Ao contrário do que parece, a dúvida não faz mal à
comunidade. Tanto é que Jesus não repreende os discípulos por isso. A dúvida é
sinal de busca, e não de rejeição. Ao longo da missão universal da Igreja,
muitas dúvidas surgirão, tanto em quem anuncia quanto nos destinatários do
anúncio. As dúvidas abrem espaço para o Espírito Santo iluminar a comunidade e
conduzi-la à verdade. Enquanto as certezas geram autoritarismos e imposições, as
dúvidas dão margem ao diálogo, à abertura ao diferente. O antídoto à dúvida não
é a certeza, mas a fé e o amor. Quanto maiores forem as dúvidas, maior será a
necessidade da fé e do amor na comunidade.
Diante da reação dos
discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso que, de certo
modo, sintetiza todo o Evangelho de Mateus (vv. 18-20). É importante perceber
que não são palavras de despedida, mas de envio e comissionamento. Para Mateus,
Jesus nunca se despediu da comunidade, pois na sua essência está sua presença,
o “estar com”. Ao dizer «Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a
terra» (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes sediados
em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova ordem.
Está também reivindicando para si a identificação com a figura do “Filho do
Homem” (Dn 7,13-14) e, ao mesmo, tempo corrigindo-a: ao Filho do Homem do livro
de Daniel, foram dados poder e domínio. Jesus trocou o domínio pelo serviço (Mt
20,28), preferindo exercer sua autoridade no amor. A verdadeira autoridade,
motivada pelo amor, parte da periferia – a Galileia –, enquanto em Jerusalém
tem apenas força de morte, uma vez que lá o poder é exercido com base na mentira,
no medo, no suborno e na violência, conforme o relato da paixão mostrou
claramente. “Céu e terra”, aqui, significam a totalidade da criação submetida a
Jesus Ressuscitado; quer dizer que o Pai lhe entregou tudo. Significa que tudo
o que é de Deus passa por Jesus e está com ele, porque foi entregue em suas
mãos.
O discurso prossegue com o
envio universalista e inclusivo: «Portanto, ide e fazei discípulos meus
todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo» (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da sua
autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas de
exercício de poder. Ele não envia seus discípulos para impor e nem dominar, mas
para fazer novos discípulos, uma vez que no seu Reino não há súditos, mas
irmãos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e
de mundo. Não envia os discípulos para doutrinar ninguém, mas para apresentar
um programa de vida, delineado ainda no início do Evangelho, com a proclamação
das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Destacamos aqui a força do verbo empregado
pelo evangelista para a expressão “fazer discípulos”: no grego, idioma original
do evangelho, há o verbo “discipular” (μαθητεύω – matheteuô); com ele, o evangelista consegue
distinguir o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade
em nossa língua, com as traduções que temos. Gerar discípulos ou discipular é,
antes de tudo, viver o discipulado plenamente para torná-lo fecundo e,
consequentemente, gerar mais discípulos. Também é importante recordar que
os discípulos enviados para formar mais discípulos não deixam de ser
discípulos; não recebem títulos que os distingue dos demais, novos e futuros
discípulos. Sejam de os de primeira hora, sejam os que vierem depois, os
seguidores de Jesus não mais do que discípulos, tendo em vista que Ele é o
único mestre e Senhor.
O novo e universal
discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos
discípulos de primeira hora, os quais não são cumpridores de tarefas, mas
seguidores de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado. O conjunto do ensinamento de
Jesus é sua forma de viver. Logo, é vivendo à sua maneira que se ensina e,
consequentemente, faz nascer novos discípulos e discípulas. À missão de
“discipular”, é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à
comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade, obviamente, marcada
pela tensão entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão.
Dos novos discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal externo além do
batismo. A fórmula trinitária expressa a preocupação do evangelista para que o
batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito
penitencial praticada por João Batista. A expressão “Em nome de/do” indica a
força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua própria
identidade e essência, expressa a totalidade do seu ser. Portanto, ser batizado
em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência
mesma de Deus.
Como última recomendação do
mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais do que uma ordem: «E
ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!» (v 20a). Em nenhum
outro Evangelho essa expressão teria a profundidade que tem em
Mateus. Ora, Mateus é, por excelência, o Evangelho do ensinamento
(em grego: διδαχή – didakê), tanto que está estruturado em torno de cinco discursos: o
discurso da montanha (Mt 5–7); o discurso missionário (Mt 10); o discurso em
parábolas (Mt 13); o discurso comunitário (Mt 18) e o discurso escatológico (Mt
24–25). Nesses cinco discursos está totalidade do ensinamento de Jesus, para a
comunidade de Mateus, e é isso o que deve ser ensinado; dos cinco, destaca-se o
primeiro, o discurso programático, chamado de “discurso da montanha”. A
comunidade cristã tem a missão de ensinar tudo, sem distorção alguma, do que
Jesus ensinou e ordenou. Essa totalidade do ensinamento de Jesus, no entanto,
não passa de um jeito de viver, ou seja, é um programa de vida. Por isso, não
pode ser distorcido e nem substituído por uma doutrina ou ideologia. E o efeito
de ensinar a observar o conjunto da mensagem de Jesus é a construção de um
mundo novo, uma humanidade nova. Em outras palavras, é a humanização do mundo.
Finalmente, olhamos para a última frase de todo o evangelho, que é, na verdade,
uma síntese da obra de Mateus enquanto livro e da missão mesma de Jesus: a
certeza da sua presença permanente na comunidade: «Eis que eu estarei
convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (v. 20b). Embora a
tradução do texto litúrgico apresente o verbo “estar” no futuro, o evangelista
o emprega no presente, conforme o texto grego. Isso significa que Jesus nunca
se ausentou da comunidade, ou seja, Ele não foi embora para voltar depois, mas
permaneceu sempre. Aqui, ele diz «Eu estou convosco». Por sinal, a presença é
um tema teológico central no Evangelho de Mateus: no início, Jesus é
apresentado como Emanuel, cujo significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele
mesmo garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome
(18,20), e garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os
discípulos. Por isso, com essa certeza, Mateus não tinha motivos para descrever
Jesus subindo para o céu, como fez Lucas. O importante é que a comunidade possa
sentir sua presença e que essa a estimule a viver e ensinar somente o que Ele
ensinou.
Que
possamos, portanto, viver impregnados da essência de Deus, como discípulos e
discípulas de Jesus de Nazaré. Ressuscitado, ele está, de fato, presente na
comunidade que vive o ideal de vida proposto nas bem-aventuranças. Nessa
comunidade, todos são discípulos e discípulas e, portanto, irmãos e irmãs. Essa
comunidade celebra, acolhe, convence pelo testemunho e coloca-se em saída para,
com alegria, compartilhar tudo o que Ele ensinou. Ao colocar-se em saída, essa
comunidade cumpre a missão de humanizar o mundo, não impondo doutrinas, mas
vivendo intensamente o amor. Desse modo, a Santíssima Trindade é
glorificada.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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