O evangelho
deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum é Mc 7,31-37, texto que
compreende o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus, enquanto passava por
terras pagãs e, por isso, consideradas impuras. É um texto exclusivo do Evangelho
de Marcos, e que possui grande significado para a sua teologia e catequese.
Isso se evidencia pela riqueza de pormenores que traz, desde a dimensão
espacial até a forma como se dá a relação de Jesus com o personagem por ele
curado. Os estudiosos observam, mas a simples leitura faz qualquer leitor perceber,
que de todos os relatos de cura atribuídas a Jesus, esse é o mais rico em
detalhes, o mais carregado de gestos simbólicos. Inclusive, é muito provável
que tenha servido de inspiração para o evangelista João ter construído o relato
da cura do cego de nascença, justamente pela riqueza de detalhes presentes também
ali (Jo 9,1-41). Trata-se, portanto, de um episódio paradigmático. Nele, Jesus
revela o máximo da sua pedagogia do cuidado e da atenção, visando a humanização
da pessoa e da humanidade de inteira. Para compreendê-lo de modo mais adequado,
seguimos com a contextualização.
Tendo decretado a inutilidade e o
fim das leis de pureza alimentar, como vimos no passado, ao refletir sobre o confronto
com os fariseus e mestres de Lei de Jerusalém, que forma à Galileia para fiscalizar
sua missão (Mc 7,1-23), Jesus aboliu, pelo menos para os seus seguidores,
qualquer obstáculo que impedisse a relação com os povos pagãos. Ora, como nada
do que é externo pode tornar a pessoa humana impura, como ele recordou, mas
somente o que é gerado no coração, não pode mais haver impedimento para o
contato físico e a convivência fraterna com as pessoas de outras etnias,
culturas e religiões diferentes. Por isso, Jesus fez, logo em seguida àquele
episódio, uma pequena campanha missionária em terras pagãs, cumprindo, também
ali, sinais semelhantes aos já cumpridos na Galileia, com duas curas
exemplares: a expulsão de um demônio da filha de uma mulher pagã, a
siro-fenícia (7,24-30) – episódio saltado pela liturgia – e a cura de um
surdo-mudo, episódio relatado no evangelho de hoje: 7,31-37.
Os relatos de milagres de Jesus
relacionados com os olhos, os ouvidos e a língua têm um significado simbólico
muito relevante, sobretudo no Evangelho de Marcos. Muito mais do que uma
demonstração de poderes sobrenaturais de Jesus, são oportunidades para o
evangelista chamar a atenção da comunidade cristã a respeito das suas
necessidades concretas, com as deficiências que a impedem de um seguimento mais
perseverante e fiel. Significa que, na comunidade cristã, todos os seus membros
devem ter a capacidade e a oportunidade de ver, ouvir e falar,
independentemente dos condicionamentos físicos, naturais e das condições
sociais. As atitudes de ver, ouvir e falar constituem metáfora do que é ser discipulado
de Jesus; são síntese também da liberdade humana, na perspectiva do evangelista.
Além disso, constituem uma forma de conscientização, entre os membros da
comunidade, sobre a responsabilidade comum na luta pela superação de todas as
barreiras que impedem as pessoas de viverem com a justa e necessária dignidade,
bem como um convite à inclusão, tolerância e respeito às diferenças individuais
e culturais.
A grande densidade simbólica do
episódio narrado no evangelho de hoje já se evidencia no primeiro versículo,
com a descrição de uma dimensão espacial inusitada e bastante improvável, do ponto
de vista geográfico. Eis o que diz o evangelista: «Jesus saiu de novo
da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia,
atravessando a região da Decápole» (v. 31). A forma como o versículo
está estruturado no texto litúrgico não denuncia tanto a incoerência do
percurso, mas em uma tradução mais criteriosa isso se torna muito evidente.
Porém, como sabemos, os evangelhos não são livros de crônicas, mas de teologia.
O importante nessa descrição é a passagem de Jesus por regiões pagãs, abrindo o
horizonte da comunidade para essa necessidade. O retorno de Tiro e Sidônia para
o mar da Galileia não prevê qualquer passagem pela Decápole, que ficava no
outro lado. Contudo, a inconsistência do dado geográfico não reflete
desconhecimento do evangelista, como alguns estudiosos já chegaram a defender, mas
é consequência de suas intenções teológicas. Tanto Tiro, quanto Sidônia e as
dez cidades da Decápole eram consideradas terras pagãs, pelos judeus, mas
ficavam em lados opostos. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da Lei,
o Evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro, enquanto força
de humanização. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão
do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida.
Após os indicativos espaciais
controversos, o evangelista apresenta o personagem com quem Jesus irá
interagir: um homem surdo, que falava com dificuldade. Pela língua original do texto,
o grego, a expressão “falava com dificuldade” poderia ser substituída por gago
ou mudo. Para Jesus e o evangelista, a situação desse homem é uma verdadeira
parábola. Além de mostrar a necessidade de inclusão das pessoas portadoras dessas
deficiências, o evangelista quer descrever a situação da comunidade: quando
está fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar,
ou seja, de falar do amor e da justiça propostos por Jesus. Essa precisa ser
ajudada, como foi o personagem do evangelho: «Trouxeram então um homem
surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão» (v.
32). O gesto de alguém ter levado o homem até Jesus revela a necessidade da
comunidade para a experiência da fé. É importante que quem já conhece o Evangelho
facilite para que outras pessoas também possam conhecê-lo, não obstante as
dificuldades e barreiras. Nesse gesto de alguém levar o homem até Jesus o
evangelista sintetiza a missão do/a catequista na comunidade. A surdez era
sinônimo de maldição, conforme a mentalidade judaica, pois impedia a pessoa de
ouvir a proclamação e a explicação da Torá; ora, sem as normas da Torá, o ser
humano estava perdido, sem rumo, impedido de caminhar retamente. Portanto, ao
colocar Jesus em contato com um homem surdo-mudo, o primeiro ensinamento
transmitido pelo evangelista é a acolhida e a inclusão.
A acolhida de Jesus ao homem revela
a grandeza da sua pedagogia do cuidado: ele olha para cada um em particular, e
age de acordo com as reais necessidades, possibilitando a humanização, antes de
tudo. A imagem da multidão no Evangelho tem sempre um papel ambíguo e, na
maioria das vezes, negativo; representa a indecisão, a falta de compromisso, a
superficialidade e a indiferença à proposta de vida de Jesus. Por isso, um
passo importante para a conversão e adesão ao Evangelho, muitas vezes, é
afastar-se da multidão, como mostra o evangelista, ao afirmar que «Jesus
afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos
seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele» (v. 33). Esse
afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da
relação estabelecida por Jesus: o contato com ele é pessoal, ele olha e toca em
cada um e cada uma em particular, olha nos olhos, interage, cria relação.
Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e
discípula. A multidão, obviamente, não deve ser evitada, e Jesus nunca a evitou.
Pelo contrário, sempre teve multidões ao seu redor. É da multidão que saem
discípulos e discípulas. Por isso, aqui, o afastar-se indica a gestação de um
novo discípulo, cujo primeiro passo é a humanização.
Os gestos descritos pelo
evangelista são muito significativos, e é isso o que mais impressiona neste
relato. Até então, Jesus tinha curado pessoas e feito exorcismos usando a
palavra e o gesto de um simples toque apenas. Dessa vez, tudo é diferente. Ele toca
nos ouvidos e cospe com a saliva. Isso supõe um contato mais demorado com o
enfermo, e não um encontro acidental. Esses gestos significam o cuidado ímpar
que Jesus dispensa a cada pessoa necessitada, e o evangelista ensina que essa
deve ser a postura da comunidade. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro,
transmite a sua essência. É também um modo de denúncia à tendência de
espiritualizar demais o cristianismo, problema vivido pela comunidade de Marcos
e por tantas outras ao longo dos séculos. O cristianismo deve ser a religião do
toque, do contato e do cuidado; só se cuida bem tocando, sem medo e nem
preconceitos, reconhecendo a sacralidade do corpo. O toque é um modo de
comprometer-se com a situação do outro. Ao tocar nos ouvidos, Jesus transmite o
dom da escuta ao Evangelho. As palavras comprometedoras do Evangelho não
conseguem ressoar em quaisquer ouvidos; antes de tudo, trata-se de um dom, como
ele estava concedendo àquele homem. Do dom da escuta, nasce o do anúncio; é
esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a
saliva continha o espírito da pessoa; por isso, o evangelista quer afirmar que
Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também
para o anúncio do Evangelho e para expressar suas necessidades, externar seus
dramas. Com isso, ensina o evangelista que a comunidade não é espaço de
silenciamento. Todos devem ter vez e voz na comunidade onde há seguimento autêntico
de Jesus.
A sequência do episódio mostra,
ainda mais, a sua importância. O evangelista diz que, Jesus «olhando
para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!”» (v.
34). Ora, o detalhe de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos.
Ele não faz isso em qualquer situação. Esse gesto significa a oração e a
comunhão com Deus, o Pai. É o reconhecimento dos limites das forças humanas e a
confiança no divino, o que revela ainda mais a importância desse sinal. O
imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada não apenas aos
órgãos deficientes (ouvidos e língua), mas à pessoa em sua totalidade. Sem dúvidas,
é um dos detalhes que tornam esse episódio tão atual, pois o leitor do Evangelho
de Marcos, em todos os tempos, se torna também destinatário dessa ordem. O
verbo grego usado pelo evangelista (διανοίγω – dianóigo)
significa abrir completamente, escancarar, como deve ser o ser humano diante do
Evangelho, para que esse possa ser um elemento transformador. Certamente, o
homem curado tinha muito para desabafar, muitos dramas para compartilhar e
denúncias a fazer, sobretudo pelo sofrimento causado pela deficiência, que na
época era considerada maldição, o que tornava a pessoa marginalizada, excluída pela
sociedade e a religião. De fato, para a religião judaica da época, deficiências
como surdez, mudez e cegueira eram consideradas castigo de Deus, consequência do
pecado da pessoa deficiente ou de seus pais. Por isso, com a cura Jesus também
o reintegra à vida social, restituindo-lhe a dignidade.
À ordem de Jesus, segundo o evangelista, «imediatamente
seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem
dificuldade» (v. 35). Isso revela a mudança radical que a palavra de
Jesus é capaz de provocar no ser humano. É claro que não se deve considerar
essa mudança como um toque de mágica. O texto quer dizer que a acolhida da palavra
de Jesus transforma a pessoa. O evangelista insiste, com isso, na urgência com
que a comunidade cristã deve estar atenta ao Evangelho. Por isso, esse episódio
também uma parábola do processo catequético. Quem se deixa tocar por Jesus e
ouve e abre-se à sua palavra se torna anunciador, fala sem dificuldade do seu projeto
de Reino. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre
para anunciar. Isso implica também uma abertura de horizonte e perspectiva, o
que os judeus tinham dificuldade de assimilar. Ora, sendo aquele homem um
pagão, o evangelista quer dizer que o anúncio do Evangelho não é privilégio de
um povo, como era a Lei, mas um dom ofertado a todas as nações. Os critérios de
etnia, religião e cultura não tem valor algum diante da palavra de Jesus. O que
importa é ter coração disponível para o amor.
Como é praxe em Marcos, mais uma
vez «Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas,
quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam» (v. 36). Esse
pedido de Jesus nunca era atendido. Ele costumava pedir segredo quando cumpria
um gesto prodigioso. Ele temia que sua fama de messias se espalhasse com
distorções, embora nesse episódio essa ordem não tenha muito sentido, pois a
fama de messias se espalhava entre os judeus e, nesse caso, ele se encontrava
em território pagão. A ênfase aqui é dada na difusão da sua atividade também em
terras pagãs, ou seja, fora de Israel. A conclusão é muito
significativa, pois associa a obra de Jesus à obra do Deus criador: «Muito
impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz
ouvir e aos mudos falar”» (v. 37). Fazer bem todas as coisas é a
característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava
que aquilo era muito bom (Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como
Deus, cuja ação é sempre em favor do bem das pessoas e de toda a criação. Fazer
os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas
anunciadas pelo profeta Isaías (Is 35,5), o que significa uma nova criação.
Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria, à maneira
do Pai, fazendo bem, e elevando a criação à sua máxima realização.
Como destinatários do evangelho,
hoje, somos chamados, antes de tudo, a permitir que sejam escancarados nossos
ouvidos a tudo o que Jesus ensinou, para que, vivenciando seu ensinamento, seja
autêntico o nosso anúncio. Devemos também lutar para que seja reconhecido o
lugar de fala de cada pessoa; que ninguém seja silenciado por posturas
autoritárias e antievangélicas. Como comunidade de fé, devemos promover a
libertação em todas as instâncias, sobretudo, identificando na multidão, quem
necessita de cuidado e atenção especiais, como fez Jesus com o homem
surdo-mudo. Que a ordem “abri-te” continue ecoando, para tornar nossas
comunidades mais acolhedoras, compreensivas, inclusivas e abertas.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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