sábado, julho 27, 2024

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,1-15 (ANO B)

 


Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia inicia uma sequência de cinco domingos de leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, dando uma pausa temporária na leitura de Marcos. Trata-se de uma particularidade do ano litúrgico B, em virtude da brevidade do Evangelho de Marcos, comparado aos outros sinóticos. Por não ter material suficiente para todo o ano, recorre-se ao Quarto Evangelho, como complemento. Para hoje, especificamente, a liturgia contempla os primeiros quinze versículos deste capítulo: Jo 6,1-15. É o relato do episódio chamado popularmente de “multiplicação dos pães”, embora esse não seja o título mais apropriado. Se a liturgia estivesse seguindo a sequência de Marcos, seria também esse o episódio lido, pois corresponde à sequência imediata do que fora lido domingo passado. Portanto, a liturgia trocou o livro, mas não alterou a sequência temática.

É importante recordar que, no domingo passado, o evangelho foi concluído com a afirmação que Jesus, ao ver a multidão, «teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc 6,34). A primeira reação de Jesus, ao ver a multidão, foi a compaixão, e a primeira atitude foi ensinar. Mas, como não bastava o ensinamento, a esse seguiu-se o gesto da partilha dos pães (Mc 6,35-42), como resposta à situação de abandono e sofrimento vividos pela multidão. Ora, a primeira consequência do abandono vivido pelo povo era a fome, como continua sendo hoje, devido à negligência dos maus governantes. A passagem do ensinamento à partilha do alimento mostra como Jesus sabia associar bem o ensinamento com a práxis, como deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos. Os sentimentos de Jesus eram acompanhados de respostas concretas aos sofrimentos das pessoas. Portanto, apesar de estarmos hoje lendo outro Evangelho, é importante que este episódio seja compreendido como consequência da compaixão de Jesus diante do abandono e sofrimento do povo.

O episódio da “condivisão dos pães”, expressão mais apropriada do que multiplicação, é o único milagre ou sinal de Jesus narrado pelos quatro Evangelhos, com seis versões (Mateus e Marcos narram duas vezes), sendo que a versão joanina é a mais rica em detalhes e, consequentemente, em teologia, sendo ainda completada por um longo discurso de revelação de Jesus, no qual ele se autoapresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas, como veremos nos domingos seguintes. Esse discurso é considerado uma verdadeira catequese eucarística. Convém recordar que o Evangelho de João é muito contido em relação aos milagres de Jesus. Narra somente sete, aos quais nem sequer chama de milagres, mas de sinais, o que revela bastante prudência e profundidade da parte do evangelista. Ora, o sinal não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade que lhe ultrapassa, que vai além do que se experimenta e se vê. E no conjunto do Quarto Evangelho, a condivisão dos pães (e peixes) é o quarto sinal; está localizado exatamente no meio dos sete, e no centro literário da primeira parte da obra, chamada de “Livro dos sinais” (Jo 1–11). Logo, é clara também a sua centralidade teológica.

O texto diz que «Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades» (v. 1). Como se sabe, o que os evangelhos chamam de mar da Galileia era apenas um grande lago. O único evangelista que o chama de lago mesmo é Lucas. Os demais chamam de mar, certamente, por razões teológicas, tendo em vista o significado de adversidade e hostilidade que o mar representava para a mentalidade semita, o qual era considerado a morada do mal e, por isso, era sinônimo de perigo. Logo, atravessá-lo significava superar o mal. Enquanto nos sinóticos a passagem para outra margem significa a abertura ao mundo pagão e o encontro com as pessoas marginalizadas, em João é mais uma recordação do êxodo. Essa abertura ao mundo pagão já estava consolidada na época da redação do Quarto Evangelho, por isso, já não entra em discussão aqui. A travessia de uma margem a outra do mar por Jesus recorda o primeiro êxodo, mas não como mera repetição, e sim como superação.

A superioridade do novo êxodo proposto por Jesus ficará mais evidente no evangelho do próximo domingo (Jo 6,24-35), quando ele fará a contraposição entre o pão dado por ele, que é a sua própria pessoa, e o pão dado aos antepassados no deserto (o maná), por intercessão de Moisés. Ora, mesmo vivendo na terra dado por Deus, o povo tinha perdido a verdadeira liberdade; logo, os efeitos do êxodo já não eram mais experimentados. O sistema religioso vigente, aliado ao sistema político dominante – o império romano – tinha assumido o papel do faraó do Egito, oprimindo o povo em todos os sentidos, desde o campo ideológico ao econômico. Por isso, a mensagem de Jesus é um convite à libertação porque o povo tinha se tornado escravo novamente. O destino do novo êxodo não é uma terra distante nem uma vida no além: é o Reino de Deus, uma sociedade alternativa, com um sistema baseado na partilha, solidariedade, amor, justiça e dignidade.

Jesus chamava a atenção das pessoas e atraía a multidão em seu seguimento «porque viam os sinais que ele operava a favor dos doentes» (v. 2). O termo que o texto litúrgico traduz por “doentes” significa muito mais, na língua original (em grego: ἀσθενούντων - asthenunton): significa as pessoas fracas, debilitadas, sem forças, fragilizadas, dentre as quais incluem-se os doentes; enfim, significa a totalidade das pessoas das marginalizadas, sendo que uma das principais causas da marginalização era mesmo a doença. Eram as pessoas que a religião tinha descartado, exatamente porque não tinham o que oferecer aos cofres do templo. E os sinais operados por Jesus eram, preferencialmente, em favor dessas pessoas, visando restituir-lhes a dignidade e o sentido para a vida. Portanto, as multidões se admiravam com Jesus, devido ao seu jeito de acolher, porque se sentiam representadas pela sua mensagem humanizadora e, é claro, porque também queriam aproveitar-se materialmente dos sinais realizados por ele, o que será advertido por ele mesmo no discurso seguinte, como veremos nos próximos domingos.

As multidões seguiam Jesus enquanto «estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus» (v. 4). Com isso, o evangelista enfatiza Jesus como único sinal autêntico de libertação e alternativa para aquele povo abandonado como ovelha sem pastor. A Páscoa, como “festa dos judeus”, tinha sido transformada em instrumento de exploração, dominação e manutenção da ordem vigente. Por isso, mesmo sutilmente, o evangelista apresenta uma grande ironia: aquela festa celebrada em Jerusalém já não era Páscoa de Iahweh, não era mais a celebração da libertação do povo pobre escravizado, mas a “festa dos judeus”. É importante recordar que quando João usa o termo judeus, e o faz com bastante frequência, não se refere a todo o povo, mas às classes e grupos dirigentes, principalmente aos sacerdotes do templo que, de fato, tinham desfigurado o rosto verdadeiro de Deus. Assim, Jesus é apresentado como a alternativa de Deus à religião opressora do templo, e os primeiros a perceber isso são as pessoas mais simples e humildes, os pobres e excluídos que o seguem, as pessoas que tinham sido abandonadas pelos maus pastores de Israel.

A multidão que segue Jesus é um povo com necessidades concretas que não podem ser ignoradas. E Jesus reconhece logo qual é a primeira necessidade: o alimento. De acordo com o texto, ninguém lhe pediu nada, ninguém lhe disse que estava com fome; foi ele mesmo quem percebeu e logo se solidarizou, se preocupou com a fome do povo. Jesus se sente responsável, junto com seus discípulos, e transmite essa responsabilidade para a sua comunidade cristã, ao longo da história. Ele percebeu que aquele seria um bom momento para medir o aprendizado e a maturidade dos seus discípulos, por isso, provocou Filipe, mesmo já sabendo o que iria fazer: «Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?» (v. 5). A resposta de Filipe é baseada em cálculos. Ele simplesmente apela para o campo da economia, avaliando a situação com as categorias do mercado: «Nem duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão a cada um» (v. 7). Como se vê, a tentação de Filipe é de reproduzir na comunidade do Reino as relações do sistema econômico, baseado na lógica de compra e venda, enquanto a dinâmica da comunidade cristã deve ser outra: a partilha.

André, o outro discípulo que interage com Jesus e atua diretamente no episódio, parece começar a compreender a lógica de Jesus, embora ainda não tivesse muita convicção: «Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isso para tanta gente?» (v. 9). Ora, enquanto Filipe pensou em solucionar o problema com base na lógica do mercado, através das relações de compra-venda, André olhou para a própria comunidade, percebendo o que já tinha para ser colocado em comum, mesmo reconhecendo não ser suficiente. Aqui está a transição para a proposta de Jesus, que é a lógica do Reino: a solução dos problemas da comunidade deve ser buscada em seu próprio interior, ou seja, a partir de dentro. Os cristãos e cristãs não podem esperar chegarem as condições ideais para o Reino de Deus se estabelecer plenamente; devem começar a viver os valores do Reino, mesmo em condições desfavoráveis, com o pouco que tem, e é assim que o Reino vai se edificando na história, aos poucos, a tempo e contratempo.

Embora considerando insuficiente, a observação de André é muito importante e merece ser recordada: «um menino tem cinco pães de cevada e dois peixes». Um menino era uma figura muito pouco representativa na época, sem nenhum valor reconhecido, uma vez que não produzia. Para enfatizar ainda mais esse aspecto, o evangelista emprega o diminutivo: um menininho (em grego: παιδάριον – paidárion), embora a tradução do lecionário não favoreça a percepção desse detalhe. À luz da lógica vigente, um menininho era uma pessoa que nada nada teria a contribuir na solução de um grande problema. Pelo contrário, ele era visto como parte do problema, ao invés de iluminar a solução. Isso torna a ideia de André altamente revolucionária para o contexto, embora necessite aprimorá-la. O pão de cevada era o alimento dos pobres, pois a cevada era o grão mais barato; os ricos comiam o pão de trigo. Os dois peixes servem de complemento numérico para chegar a sete, número que evoca completude. Certamente, essa quantidade era tudo o que a família do menininho tinha levado. Com isso, o evangelista indica que, para resolver os problemas mais urgentes, é suficiente cada um colocar à disposição de todos o pouco que tem, o que André ainda não tinha compreendido suficientemente, mas estava a caminho da plena compreensão. O menininho com os cinco pães e os dois peixes é, portanto, a imagem ideal do discípulo/discípula e da comunidade cristã. Antes de tudo, para entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo é o que realmente conta. As soluções para os problemas da comunidade devem vir de dentro, e dependem essencialmente dos pequeninos. A comunidade é saciada quando o pouco que cada um tem é colocado em comum; isso ocorre quando cada um considera aquilo que tem como dom de Deus e, por isso, destina à partilha.

O menininho não mostrou resistências, entregou tudo o que tinha e «Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes» (v. 11). André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam suficientes. Jesus foi mais além: “tomou os pães e deu graças”, ou seja, agradeceu pelo pouco que se tinha! O evangelista usa aqui o verbo grego do qual originou-se a palavra eucaristia (verbo εὐχαριστέω – eukharistêo). Eucaristia é, portanto, agradecimento, ação de graças pelos dons partilhados. Logo, para ter sentido na vida das comunidades, a eucaristia deve estar relacionada à partilha, à vivência da comunhão fraterna, incluindo a condivisão do pão e de outras necessidades, conforme a realidade de cada comunidade. O pão aparece como primeiro sinal, porque a fome é o problema urgente, é algo que não pode esperar. Sem essa relação com as necessidades concretas, o que as comunidades chamam de Eucaristia pode não passar de teatro, sem sequer aproximar-se da Eucaristia de Jesus. Assim como o evangelista começava a distinguir a Páscoa dos judeus da páscoa de Jesus, nos tempos atuais pode-se distinguir a Eucaristia de Jesus do conjunto de ritos que certos grupos fechados chamam de eucaristia, onde os pequeninos não tem espaço.

Ainda sobre a(s) atitude(s) de Jesus, ao receber os pães e os peixes, merece atenção a sequência apresentada pelo evangelista, que indica a lógica do Reino e constitui uma verdadeira rede de solidariedade: «tomou os pães, deu graças e distribuiu-os», dito de maneira mais simples, temos: “receber – agradecer – partilhar”. É essa lógica que o evangelista quer imprimir em cada comunidade leitora da sua obra, à luz dos ensinamentos e atitudes de Jesus. Muitos pormenores e dúvidas ficam, certamente, nas entrelinhas do texto, o que não ofusca o grande ensinamento de Jesus para a sua comunidade. André observou que um menininho estava com cinco pães e dois peixes, mas não diz que era somente aquele que tinha algo que poderia ser partilhado. O importante é que alguém teve coragem de começar a colocar à disposição dos outros o pouco que tinha, e Jesus deu graças por aquilo. No final, todos ficaram satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade, e começando por quem menos parecia ter condições de ajudar a solucionar um grande problema: um menininho. Tendo ficado todos satisfeitos, percebendo o que ainda tinha sobrado, «Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido”» (v. 12-13). O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas, ou seja, ninguém passaria fome se todos vivessem concretamente o espírito da partilha. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.

Assim como todos os sinais cumpridos por Jesus no Evangelho de João visam a manifestação da glória de Deus e o despertar da fé no Verbo Encarnado, também o sinal da condivisão dos pães despertou reação e reconhecimento: «Este é verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo» (v. 14). Porém, essa é uma imagem insuficiente para descrever Jesus. Vê-lo como apenas como profeta é colocá-lo em continuidade com a antiga aliança e, portanto, negar a insuficiência e decadência daquela aliança que ele denuncia com os sinais cumpridos. Inclusive, a continuidade dos sinais ao longo do livro, mostra a necessidade de Jesus continuar revelando sua novidade messiânica e a superação da antiga aliança. A prova definitiva da incompreensão do povo em relação a Jesus está no último versículo: «Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte» (v. 15). Enquanto Jesus queria ver o povo livre e emancipado, ensinando inclusive a encontrar a solução para os problemas dentro da própria comunidade, o povo faz o contrário: ao invés de viver a liberdade, quer um soberano para si, alguém que o domine e governe. Para o problema da fome, por exemplo, Jesus mostrou que a comunidade tem capacidade de superar quando vive o espírito da partilha e da solidariedade. A proclamação de Jesus como rei seria uma deformação do seu messianismo, o que persistirá por muito tempo na comunidade, inclusive entre os discípulos, como mostrará João na última ceia, com a resistência de Pedro à atitude serviçal de Jesus no lava-pés (Jo 13,6ss).

O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, e deve saber reconhecer as situações que não podem esperar, como a fome. O exemplo do menininho, colocando à disposição da comunidade os cinco pães e os dois peixes, e a atitude de Jesus rendendo graças pelo pouco que tinha, oferecem muitas luzes para os cristãos de todos os tempos. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do Reino, mas é ela mesma que tem de criar tais condições, encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, como veremos nos próximos domingos. Mas, no texto específico de hoje, a ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

quinta-feira, julho 25, 2024

SÃO TIAGO, APÓSTOLO

 



Hoje é a festa de São Tiago, apóstolo. Costuma-se denominá-lo de Maior, como maneira de distingui-lo de outros personagens de mesmo nome que aparecem no Novo Testamento. Era filho de Zebedeu e, junto com seu irmão João, pertence ao primeiro grupo de discípulos de Jesus, chamados no mesmo dia que André e Pedro, às margens do mar da Galileia, pois eram todos pescadores, conforme os evangelhos (Mt 4,18-22; Mc 1,16-21; Lc 5,1-11).

Junto a Pedro e João, está entre os apóstolos mais citados nos evangelhos. Os três são os que mais testemunham momentos importantes da vida de Jesus, o que pode indicar, por um lado, um certo privilégio, por outro, uma necessidade maior.

Certamente, eles não eram os melhores nem os piores discípulos, mas possuíam certas características que os tornavam mais difíceis de lidar, demonstrando mais dificuldades de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias pobre e servo. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipava, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, era aquele que mais se expunha e, por isso, era o primeiro a ser corrigido por Jesus.

João e Tiago ficaram conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), devido ao temperamento forte e explosivo. Eram os mais fanáticos, ambiciosos e também os mais intolerantes. Até provocaram um racha no grupo dos discípulos, quando pediram que Jesus lhes desse mais privilégios do que aos demais, fazendo-os sentar um à esquerda e outro à esquerda, na glória. Isso causou divisão e rivalidade no grupo, por isso foram duramente repreendidos por Jesus. O evangelista Mateus, para poupar a imagem deles, diz que o pedido foi feito pela mãe; Marcos, cujo texto é mais antigo, diz que foram eles mesmos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28).

Certa vez, Jesus repreendeu João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram no caminho para Jerusalém (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele.

Há outros momentos em que Jesus prefere estar só com eles três, como no episódio da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37) e na oração e agonia no Getsêmani (Mc 14,37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

Os evangelistas não tiveram medo de os apresentarem tão humanos, tão plenos, e também tão carregados de defeitos. Esses defeitos se tornaram motivo para Jesus investir mais na formação deles, até deixá-los aptos para o testemunho supremo: dar a vida pelo Evangelho. E Tiago foi o primeiro a cumpri-lo, conforme o relato de Atos dos Apóstolos: «Naquele tempo, o rei Herodes lançou as mãos sobre alguns membros da Igreja para matá-los. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João» (At 12,1-2).

Tiago pode até não ter sido digno de ficar à direita ou à esquerda de Jesus. Mas bebeu o cálice que ele bebeu e recebeu o batismo que ele recebeu (Mc 10,38-39). Foi intensamente humano, cheio de contradições, mas louco por Jesus e seu Evangelho.

Pe. Francisco Cornelio

sábado, julho 20, 2024

REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 6,30-34 (ANO B)


Neste décimo sexto domingo do tempo comum, o evangelho proposto pela liturgia é Marcos 6,30-34. Trata-se de um texto bastante curto, mas muito significativo. Está em continuidade direta com aquele lido no domingo passado (Mc 6,7-13), mesmo havendo um intervalo de dezesseis versículos entre os dois textos, saltados pela liturgia (Mc 6,14-29). O episódio narrado no trecho lido no domingo passado correspondia ao envio missionário dos Doze discípulos-apóstolos, dois a dois, por Jesus, que lhes conferiu autoridade para que fizessem o mesmo que ele já fazia. O texto de hoje refere-se ao retorno da missão. E, ao retornar da missão, os discípulos se reúnem com Jesus para lhe contar tudo o que tinha acontecido na missão, ou seja, para partilhar com o mestre toda a experiência vivenciada. Entre o envio e o retorno dos discípulos, o evangelista narra dois episódios, que correspondem aos versículos saltados pela liturgia, como acenamos acima. Trata-se do questionamento de Herodes sobre a identidade de Jesus (Mc 6,14-16), e do relato da morte de João Batista (Mc 6,17-29).

Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante, devido aos prodígios realizados e aos efeitos da sua pregação, o povo começou a confundi-lo com grandes profetas, como Elias e João Batista. Essa confusão parece ter perdurado bastante tempo, como será evidenciada novamente no episódio da confissão de Pedro, em Cesaréia de Filipe (Mc 8,27-30). Imaginava-se que Jesus fosse um profeta que tivesse ressuscitado. Isso chegou ao conhecimento de Herodes, que ficou preocupado. De fato, a atuação de um profeta é sempre motivo de preocupação para qualquer tirano. E como João Batista tinha sido morto a mando de Herodes, o boato de que ele teria ressuscitado deve tê-lo deixado apreensivo. Diante disso, o evangelista narra o martírio de João, instigando seus leitores a pensarem nas consequências da missão, enquanto supõe-se que os discípulos de Jesus estavam espalhados pela Galileia, em missão.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar o episódio que vem depois do texto lido hoje: a multiplicação (condivisão/partilha) dos pães e dos peixes (Mc 6,30-44). Esse acontecimento é um desdobramento do episódio de hoje, o que deveria ser o evangelho do próximo domingo, mas a liturgia do ano B o substituiu pela versão do Quarto Evangelho (Jo 6,1-15). Por sinal, a partir do próximo domingo, inicia-se uma série de cinco domingos de leitura do Evangelho de João, uma vez que, naquele Evangelho, o episódio da partilha dos pães é seguido de um amplo discurso, no qual Jesus se apresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas. É imprescindível recordar a relação entre os dois episódios na dinâmica narrativa de Marcos, pois assim se percebe melhor que alimentar as pessoas famintas e preocupar-se com elas faz constitui uma dimensão essencial do seguimento de Jesus.

Feita a contextualização, olhemos então para o texto de hoje, o qual começa afirmando que «Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado» (v. 30). Logo neste primeiro versículo, identificamos a continuidade entre evangelho de hoje e o do domingo passado: os apóstolos retornam da missão e contam tudo a Jesus. Essa é a única vez em que Marcos usa o termo apóstolos (em grego ἀπόστολος), cujo significado literal é enviado. Logo, não se trata de um título, mas de uma dimensão do discipulado, conforme o relato da constituição do grupo dos Doze: «E constituiu Doze, para estarem com ele, e para enviá-los a pregar, com autoridade para expulsar os demônios» (Mc 3,14). Estar com Jesus e ser enviado é, portanto, a síntese do discipulado. Por isso, é importante a ênfase que o evangelista dá à reunião dos discípulos-apóstolos com Jesus, logo após o retorno da missão. E como aquela tinha sido a primeira experiência de missão, certamente tinham muito o que contar sobre o que tinham feito e ensinado. Tudo o que fizeram foi à maneira de Jesus, conforme as instruções recebidas. E tudo o que Jesus fazia e ensinava visava à libertação do ser humano, em todos os sentidos. Seus ensinamentos não era conhecimento teórico de caráter doutrinal, mas princípio de humanização.

O evangelista recorda esse fato com muito interesse para a sua comunidade. Nas idas e vindas da vida e da missão, é necessário fazer paradas para estar com Jesus e confrontar com ele o que se faz e o que se prega. É preciso contar tudo a ele. Não se trata de uma prestação de contas, nem de autopromoção ou propaganda. É preciso estar com ele e contar-lhe tudo para aprofundar as convicções e corrigir as eventuais incoerências. Daí, a necessidade da conversão contínua. Provavelmente, como era a do próprio Jesus, a missão dos discípulos também deve ter sido marcada pelas situações paradoxais, previstas nas recomendações do envio: acolhida e rejeição, fé e incredulidade, elogio e difamação (Mc 6,7-13). Os verbos “Fazer e ensinar” constituem uma expressão que sintetiza a missão de Jesus (At 1,1); significa que sua práxis consiste em obras e palavras. Aplicada aos discípulos, quer dizer que eles estavam em sintonia com Jesus, reproduzindo o seu agir no mundo e, consequentemente, recebendo acolhida e rejeição, como ele.

Os discípulos, enquanto apóstolos, voltaram cansados e Jesus sentiu a necessidade do descanso para eles. Ora, assim como era intensa a missão de Jesus, deveria ter sido também a dos seus discípulos. Por isso, «ele lhes disse: “vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco”» (v. 31a). É interessante notar a humanidade de Jesus: ele percebe o cansaço físico dos discípulos e reconhece a necessidade do descanso. Com isso, o evangelista adverte a comunidade para não cair no ativismo desenfreado que pode se tornar prejudicial. É necessário equilíbrio. E o descanso proposto por Jesus não é um mero lazer, mas um aprofundamento nas convicções da vocação e da missão. É uma espécie de retiro. Por isso, ele convida-os para ir a um lugar deserto. Como se sabe, na linguagem bíblica, o lugar deserto é propício para o encontro com Deus. Aqui, o descanso dos discípulos no deserto significa, além do necessário e importante repouso físico, a meditação das palavras de Jesus, a oração e a necessidade de renovar constantemente as convicções. O convite para que os discípulos fossem sozinhos, separando-se por um tempo das multidões, indica o aspecto formativo desse retirar-se. Sempre que Jesus os convida para estarem sozinhos com ele quer dizer quer queria também ensiná-los.

Apesar da necessidade, não era fácil para Jesus e nem para os discípulos reservarem um momento de descanso e retirada em um lugar deserto, para estarem sozinhos, pois «havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não tinham tempo nem para comer» (v. 31b). Essa é a segunda vez que o evangelista afirma que a presença das multidões ao redor de Jesus e dos discípulos os impediam até mesmo de comer; a primeira vez, foi na casa, em Cafarnaum, logo após a constituição dos Doze (3,20), no episódio dos conflitos com os familiares e os escribas. Isso evidencia a intensidade do seu “fazer e ensinar”, e revela que ele não ignorava as pessoas com suas necessidades, o que lhe custava muitas renúncias. Porém, a necessidade do descanso dos discípulos e o tempo para “ficarem sozinhos” com ele é indispensável, e a comunidade cristã precisa ser ensinada a sentir a necessidade desses momentos. Por isso, ele insistiu, como afirma o evangelista: «Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado» (v. 32). Como se vê, o evangelista faz questão de mostrar a insistência de Jesus com o descanso dos discípulos, sobretudo ao ressaltar o fluxo constante de pessoas ao redor. Se apesar desse fluxo ele se retira com os discípulos, isso quer dizer que esse retirar-se era mesmo imprescindível.

A experiência do lugar deserto é indispensável ao longo da caminhada, mesmo que não seja prolongada, tendo em vista às necessidades das pessoas. Na tradição profética, o deserto é o lugar onde “Deus fala ao coração” (Os 2,16), por isso é imprescindível para a comunidade fazer constantemente essa experiência. É importante ressaltar que, ao insistir com a ida ao lugar deserto, Jesus não estava fugindo do povo, nem induzindo os discípulos a fazerem o mesmo; pelo contrário, estava ressaltando a necessidade de aprofundar a experiência de Deus em suas vidas para compreenderem melhor as necessidades do povo e, assim, servi-lo cada vez melhor. Essa insistência pela ida ao lugar deserto serve também de preparação para o episódio seguinte, que é a partilha dos pães (Mc 6,35-44). Se antes, apenas com a pregação de Jesus, mesmo sofrendo rejeição em alguns lugares, as multidões já se aglomeravam ao seu redor (Mc 2,1; 3,9.20; 4,1; 5,21), muito mais agora com a sua mensagem ampliada pela missão dos doze apóstolos. Com isso, tornava-se cada vez mais difícil encontrar o tempo necessário para a experiência importante do lugar deserto.

Enquanto Jesus e os discípulos partiram de barco, o evangelista diz que «muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles» (v. 33). A busca das multidões por Jesus parece ter sido muito intensa, como recorda o evangelista constantemente. Isso mostra a carência de vida no povo e, ao mesmo tempo, a esperança que Jesus transmitia. Certamente, a maioria eram pessoas marginalizadas pela religião e a sociedade, pessoas sem vez e sem voz que se sentiam acolhidas, consoladas e encorajadas pela mensagem de Jesus. Eram mulheres, enfermos, pecadores públicos, pobres; pessoas que tinham sido descartadas pelo sistema. Ao saber que Jesus inclui a todos e todas, essas pessoas não queriam perder a oportunidade de encontrar-se com ele. É isso o que justifica a pressa das pessoas, a ponto de chegarem ao local antes mesmo que ele e os discípulos. A princípio, parece um exagero do evangelista dizer que pessoas a pé chegaram antes de quem ia de barco, no entanto, a depender da direção do vento, era muito comum, sobretudo porque os itinerários de Jesus com seus discípulos eram já conhecidos.

O descanso dos discípulos parecia um direito sagrado, reconhecido pelo próprio Jesus, ao insistir tanto com a ida ao lugar deserto. Mas nada é mais sagrado do que a vida e nada é mais urgente do que o cuidado com a vida, sobretudo para Jesus, um verdadeiro mestre de humanização. Por isso, diz o evangelista que, ao chegar no deserto e ver a multidão, ele reconheceu uma prioridade maior: «ao desembarcar, Jesus viu numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (v. 34). Embora irrenunciável, a experiência do encontro no lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Essa cena, portanto, não pode ser ignorada pela comunidade que tem acesso ao Evangelho, hoje e em todos os tempos. O evangelista Marcos é muito econômico nas palavras: só utiliza a palavra compaixão em quatro ocasiões (1,41; 6,34; 8,2; 9,22) que são situações de extrema necessidade. Vale a pena recordar que compaixão significa misericórdia; portanto, sentir compaixão quer dizer ter misericórdia. No Novo Testamento, é a tradução de um verbo grego que, literalmente, significa “contorcer as entranhas” (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknizomai). Em Marcos, esse verbo sempre tem Jesus como sujeito. Ao invés de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam incansavelmente, Jesus sente compaixão delas. Ele sente o amor profundo e máximo de Deus, que nasce das entranhas, por isso, comparável somente ao amor materno.

As entranhas são o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano; é algo mais profundo do que o próprio coração, sede dos pensamentos e dos sentimentos para a mentalidade semita. Todo coração pode conter amor, mas o amor de uma mãe é sempre mais intenso, pois brota de uma realidade mais profunda do que o coração: as entranhas. Por isso, é a imagem que representa o amor de Deus pela humanidade. Sentir compaixão é sentir dor por causa da dor do outro. No Antigo Testamento, a compaixão/misericórdia sempre foi a resposta de Deus às necessidades do seu povo. Na pessoa de Jesus, o Verbo de Deus feito carne, a misericórdia também se fez carne, pois constitui a essência da sua pessoa. E o que fazia Jesus contorcer-se por dentro era a situação em que o povo se encontrava: «estavam como ovelhas sem pastor». Essa comparação reflete a situação de extremo abandono e exploração em que se encontravam as multidões que iam ao seu encontro, e revela, ao mesmo tempo, a corrupção e hipocrisia dos dirigentes, tanto religiosos quanto políticos, a causa principal daquela situação. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade; a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos perigos. A ausência de pastores que cuidem da multidão é uma nítida crítica aos dirigentes religiosos, principalmente. Antes de Jesus, os profetas já tinham denunciado essa situação, principalmente Jeremias e Ezequiel, que viveram um dos momentos mais dramáticos da história de Israel (Ez 34,23-24; Ez 37,22.24; Jr 3,15; 23,4). Jesus se encontra com um problema que já se arrastava há séculos; poderia até ter “naturalizado” a situação, como muitos fizeram e fazem. Mas ele não aceitou como normal o sofrimento das pessoas, nem a exclusão, nem a fome. Logo, nenhuma situação de abandono, de dignidade ferida pode ser ignorada ou tratada como normal pelos seguidores e seguidoras de Jesus.

O plano de Jesus retirar-se para um lugar deserto com seus discípulos e ali descansarem foi alterado porque havia uma necessidade muito mais urgente: cuidar das pessoas que estavam “como ovelhas sem pastor”, ou seja, exploradas e abandonadas pelos sistemas dominantes da época: a religião oficial judaica e o império romano. Assim como fez Jesus, também deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos: ser flexível com seus programas, diante das situações que exigem ações concretas e urgentes. A necessidade da multidão fez Jesus alterar seu programa. Por isso, ele «Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas». É importante perceber que o primeiro fruto da compaixão de Jesus é o ensino (em grego: διδασκαλία – didaskalia); isso porque sua Palavra liberta, humaniza. E o seu ensinamento consistia no anúncio do Reino de Deus, que comporta a construção de um mundo novo já aqui, sem exploração, sem discriminação, sem fome, sem desigualdades. É um ensinamento emancipatório que denuncia e desmente os discursos oficiais do império e da religião oficial, que naturalizavam o sofrimento das pessoas. O ensinamento de Jesus não era a exposição de uma doutrina, mas consistia em palavras de vida, de encorajamento para a superação da situação degradante em que o povo se encontrava. É um ensinamento universal, serve para todas as situações e lugares. Ele já tinha ensinado nas sinagogas (cf. 6,2), na casa (cf. Mc 3,20), na praia (cf. Mc 4,1), e agora ensina também no deserto. Isso quer dizer que em todos os ambientes a mensagem libertadora de Jesus deve ecoar, para gerar vida e libertação, e eliminar preconceitos e exclusões.

Embora curto, o Evangelho de hoje é bastante rico, como se vê, conforme o que acabamos de refletir. Percebemos que, enquanto comunidade enviada por Jesus, é sempre necessário estar com ele e confrontar o “fazer” e o “ensinar” com aquilo que o Evangelho propõe. A comunidade não pode medir esforços nem pôr obstáculos diante daquilo que é essencial, sobretudo o cuidado com as pessoas mais necessitadas. Também não deve elaborar programas, fazer planejamentos, se esses não estiverem em sintonia com a situação concreta das pessoas. Se uma regra básica para o seguimento de Jesus é a disponibilidade para o serviço, as necessidades do próximo devem estar sempre em primeiro lugar, mesmo que sejam necessárias renúncias e sacrifícios para isso, como Jesus sacrificou o descanso dos discípulos que tinham acabado de chegar da missão, porque viu uma necessidade maior: o cuidado com as pessoas necessitadas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, julho 12, 2024

REFLEXÃO PARA O 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 6,7-13 (ANO B)


O evangelho deste décimo quinto domingo do tempo comum é Mc 6,7-13, texto que relata o primeiro envio missionário dos Doze apóstolos por Jesus, sendo, por isso, paradigmático para a missão cristã em todos os tempos. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos, sendo a versão de Marcos considerada mais original, sobretudo por ser a mais antiga, servindo de base para os outros (Mt 10,1.9-14; Lc 9,1-6). Para compreendê-lo adequadamente, é necessário inseri-lo no devido contexto, como faremos a seguir. E começamos recordando o episódio anterior: a ida de Jesus com os discípulos à sua terra natal, Nazaré, num dia de sábado, quando ele foi desacreditado e rejeitado pelos seus conterrâneos, enquanto pregava na sinagoga (Mc 6,1-6), conforme refletimos no domingo passado. Ao sentir-se rejeitado enquanto portador da Boa Nova de Deus, e até ridicularizado, como foi, a reação de Jesus não foi de desespero, nem de condenação, mas uma tomada de consciência de que havia muito mais a ser feito, os esforços deveriam ser ainda mais intensificados daquele momento em diante. Era necessário, portanto, que a missão fosse ampliada com urgência. Ora, Jesus sabia que a rejeição sofrida em Nazaré, marcada pela incredulidade dos seus conterrâneos na sinagoga, não era um caso isolado, mas um retrato de todo o Israel. Diante disso, tomou a decisão de enviar seus discípulos, especialmente o grupo dos Doze, para que sua missão se expandisse e os sinais do Reino de Deus frutificassem com mais urgência.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que, quando constituiu o grupo dos Doze, Jesus lhes conferiu duas atribuições: «E constituiu Doze para estarem com ele e para enviá-los a pregar, com autoridade para expulsar os demônios» (Mc 3,14). Como se vê, o discipulado comporta duas dimensões essenciais: o “estar com Jesus” e a missão. A missão, ou seja, o “ser enviado” é consequência do “estar com ele”. Ora, até aqui, no capítulo sexto, os Doze tinham apenas estado com Jesus, acompanhando-o na sua itinerância, escutando a sua pregação e observando os sinais realizados. Em outras palavras, até então eles estavam aprendendo com Jesus, vivendo o indispensável processo formativo, o que revela as habilidades pedagógicas de Jesus e serve de advertência para a comunidade cristã em todos os tempos, pois o anúncio do Evangelho não pode ser improvisado. Antes do envio, os discípulos vivem um intenso processo de formação estando com Jesus, no qual, mais do que aprender conhecimentos teóricos, eles são humanizados pelo estilo de vida do mestre. O episódio de Nazaré fez Jesus perceber que tinha chegado o momento de enviá-los, pois a necessidade era grande. Jesus sabia que eles ainda não estavam totalmente prontos, pois no prosseguimento do Evangelho lhes fará diversas correções e advertências pelas incoerências percebidas (Mc 8,33; 10,35), mas isso faz parte de todo processo pedagógico, daí a necessidade da formação permanente em todos os âmbitos da existência. Era necessário fazer uma primeira experiência de missão, tendo em vista as exigências das circunstâncias.

Como já foi acenado, ao invés de fechar-se diante da rejeição sofrida, Jesus toma consciência da necessidade de ampliar o arco da sua missão, por isso, diz o evangelista que ele «chamou os Doze, e começou a enviá-los dois a dois» (v. 7a). Certamente, na Galileia havia muitos outros povoados com gente fechada e incrédula como em Nazaré. O envio dos discípulos visa fazer a Boa Nova chegar a mais lugares simultaneamente, o que reforça a urgência da instauração do Reino. Por isso, Jesus chama os Doze e os envia dois a dois para enfatizar a dimensão comunitária da fé. É significativo o emprego do verbo chamar, aqui, uma vez que o chamado vocacional já tinha acontecido há certo tempo. Com efeito, os Doze já eram discípulos, mas o evangelista quer apresentar o chamado como uma novidade contínua e é assim que o discípulo deve se sentir: chamado todos os dias para ser sinal do Reino no mundo, partilhando com todos a experiência fundante do discipulado que é o “estar com Jesus”. De fato, Jesus os chama para estar com ele e, em seguida, para enviá-los. O andar dois a dois já constitui uma primeira evangelização, pois significa fraternidade, é a superação do egoísmo e da autossuficiência. De acordo com a Lei, o testemunho de pelo menos duas pessoas era necessário para confirmar um fato (Dt 17,6; 19,15), mas não é esse o sentido aplicado nesta passagem, como alguns estudiosos chegaram a defender. Para Jesus e sua comunidade, o mais importante aqui era a dimensão comunitária da vivência da fé. Não há espaço para individualismos na vida da comunidade cristã. A fé deve ser vivida e testemunhada em espírito de partilha, ou seja, comunitariamente. Andando dois a dois, os discípulos têm mais possibilidades de recordar que os dons do Reino não são propriedade deles, mas pertencem a Deus.

E Jesus confere aos discípulos os mesmos dons que recebeu do Pai, e os capacita a tornarem real a sua própria presença durante a missão: «dando-lhes poder sobre os espíritos impuros» (v. 7b). Esses espíritos impuros são todas as forças do mal presentes no mundo, é tudo aquilo que gera violência, injustiça, exclusão, morte e preconceito; é tudo o que impede o ser humano de uma relação saudável com o Deus da vida, com o próximo e consigo mesmo; por isso, se constituem como obstáculos à realização do Reino de Deus. Logo, devem ser combatidos pelos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré. Muitas vezes, esses elementos são criados pela própria religião, como a segregação e condenação por doenças físicas e psíquicas, bem como pela condição social. O poder (em grego: ἐξουσία – exousia) conferido sobre tudo isso é o mesmo que o próprio Jesus já exercia. Na verdade, ao invés de poder, o termo mais apropriado é autoridade, o que significa ter liberdade e direito de agir. Nada tem a ver com domínio, força ou imposição. E como o próprio texto deixa claro, não se trata de um poder sobre as pessoas, mas de um poder sobre as forças do mal, que escravizam e privam o ser humano de sua liberdade e dignidade plenas. Portanto, Jesus não envia seus discípulos para dominarem nem submeterem as pessoas a uma doutrina, mas para atuarem com liberdade e pela liberdade das pessoas. Enfim, a autoridade e a missão dos discípulos de Jesus no mundo consistem em fazer-se agentes de humanização.

E o envio comporta algumas recomendações, das quais depende o êxito da missão: «Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura. Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas túnicas» (vv. 8-9). Essas recomendações refletem o estilo de vida que devem adotar os discípulos e discípulas de Jesus. A austeridade e simplicidade é exigência indispensável para o cumprimento da missão conferida por Jesus, pois foi assim que ele mesmo viveu, pobre entre os pobres. Somente vivendo assim se assemelha a ele, e ser discípulo é, acima de tudo, assemelhar-se ao mestre. Isso quer dizer que o discípulo não deve ter outra preocupação além do anúncio do Reino, por isso deve deixar de lado tudo o que possa distraí-lo e torná-lo sobrecarregado. E a simplicidade ajuda a manter o foco naquilo que é essencial, além de revelar total confiança na providência de Deus. Desprovidos de qualquer segurança e conforto, os discípulos missionários sentem a necessidade de adaptação ao que lhes for oferecido. Especificamente nas recomendações práticas aos discípulos para a missão é onde se encontram mais particularidades de cada evangelista. Somente em Marcos consta a recomendação para que os discípulos levem um cajado e andem de sandálias. Ora, ao mandar que os discípulos andem de sandálias, Jesus reforça o caráter itinerante da sua missão, apresentando-a como um constante caminhar. Com isso, ele ensina que o lugar do discípulo não é o lar com seu conforto, mas a estrada com seus perigos e adversidades, o que torna necessário também o uso do cajado, sobretudo para que os missionários se proteja de animais ferozes e se apoiem nos terrenos acidentados. A missão é desafiadora não apenas no contato com pessoas e realidades diferentes, mas também nos deslocamentos. Por isso, o cajado e as sandálias são essenciais. Ora, embora a casa tenha um lugar privilegiado na teologia de Marcos, essa não está relacionada a estabilidade ou conforto; significa o espaço de encontro fraterno, em oposição à sinagoga. Mas o verdadeiro lugar do discípulo de Jesus é a estrada, pois a Igreja nasceu para estar em saída, levando adiante o estilo de vida de Jesus.

Escrito cerca de três décadas após a morte e ressurreição de Jesus, o Evangelho de Marcos já reflete uma tendência preocupante para a comunidade cristã: o distanciamento do estilo de vida de Jesus em seus seguidores. Ao recordar essas recomendações de Jesus aos discípulos, o evangelista quis reforçar o que é essencial, chamando a atenção da comunidade para não se distanciar do modelo de vida que Jesus viveu e propôs. Além do estilo de vida, o evangelista também se preocupava com outros elementos importantes que corriam o risco de desaparecer da comunidade, como a hospitalidade, por exemplo. Por isso, recordou também as palavras de Jesus sobre essa dimensão da vida cristã: «E Jesus disse ainda: “Quando entrardes numa casa, ficai ali até vossa partida”» (v. 10). Aqui, além de advertir os discípulos missionários para aceitarem o que lhes for oferecido como hospedagem, também chama a atenção da comunidade para acolher os peregrinos e missionários nas casas. Se estabelece, assim, uma reciprocidade na missão e na edificação do Reino. É necessária uma real inserção nas diversas realidades pelos discípulos, de modo que se sintam família na casa em que forem acolhidos, permanecendo nela enquanto estiverem no mesmo povoado ou cidade. Permanecer quer dizer criar relações e laços duradouros. Da mesma forma, é necessário que as casas dos membros da comunidade estejam sempre disponíveis para a acolhida dos missionários, peregrinos e necessitados.

Tendo sido rejeitado em seu próprio povoado, Jesus via a rejeição como uma possibilidade bem concreta e possível também para os discípulos, por onde passassem, por isso os preveniu: «Se em algum lugar não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles» (v. 11). Essa recomendação reflete bem o momento vivido por Jesus em Nazaré. Ainda chocado (Mc 6,6) com a rejeição ali recebida, em meio aos seus conterrâneos, ele alertou os discípulos a não insistirem, pois devem respeitar a liberdade das pessoas; o Reino é anunciado e oferecido, mas não pode ser imposto. Mais uma vez, o evangelista aproveita também essas mesmas palavras para combater a tendência na comunidade de afastar-se do princípio da hospitalidade. Todos devem estar disponíveis a acolher o peregrino, sobretudo, quando esse é portador da Boa Nova do Reino, como os discípulos missionários de Jesus. O «testemunho contra» não é uma forma de condenação, mas a confirmação de que o Evangelho foi proposto, porém foi rejeitado. As consequências para quem rejeita o Evangelho é viver privado do amor e da bondade de Deus, essenciais para o sentido da vida. Contudo, essa privação não se dá porque o amor de Deus diminua, mas porque a pessoa não quer experimentá-lo. O amor de Deus é sempre intenso por todas as pessoas, sendo acolhido ou não. Considerando a radicalidade do Evangelho, a rejeição ao anúncio sempre existirá. O gesto de sacudir a poeira dos pés recorda a prática dos judeus quando passavam por algum território pagão.

Dadas as instruções de envio, diz o texto que «Então os doze partiram e pregaram que todos se convertessem» (v. 12). Quanto ao conteúdo específico da pregação, o evangelista não entra em detalhes. Apenas diz que consistia num anúncio de conversão. Ora, conversão (em grego: μετάνοια– metanoia) significa mudança de mentalidade e pensamento. A adesão aos valores do Evangelho exige rupturas com a maneira tradicional de pensar e compreender as coisas, sobretudo a relação com Deus. Jesus percebeu em Nazaré que era urgente que aquele povo passasse por um processo de conversão, passando a um jeito novo de conceber o mundo, a vida e Deus. Por isso, enviando seus discípulos a outros povoados, propõe que todas as pessoas passem por esse processo. Com a mentalidade antiga, conservadora, apegada à lei, era impossível acolher a novidade do Reino de Deus. Embora o texto mencione apenas o chamado à conversão como objeto da pregação dos discípulos, certamente eles anunciaram o que tinham aprendido com Jesus até então, ou seja, os mistérios do Reino e a urgência da sua implantação, como Jesus tinha anunciado em parábolas (Mc 4,1-34). A conversão é pressuposto para acolhida do Reino com seus traços característicos essenciais: justiça, igualdade, fraternidade e amor.

Imediatamente, o evangelista já antecipa o resultado da missão, por sinal, bastante positivo: «Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo» (v. 13). Como se vê, o resultado da missão possui duas vertentes principais, além do anúncio: a dimensão exorcística e a terapêutica, ou seja, expulsão de demônios e cura de doentes. Tudo isso aponta para a humanização do mundo, meta do Evangelho. A principal razão para chegar a tais resultados é a fidelidade ao que foi recomendado. Quando a proposta de conversão proposta pelo Evangelho é aceita, os sinais do Reino de Deus se evidenciam. O evangelista pensa na sua comunidade, sobretudo: perseguições do império e hostilidade dos judeus. Ora, com muita probabilidade, o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma, durante o reinado de Nero, quando os cristãos viveram a primeira grande perseguição. Era uma época em que o mal prevalecia explicitamente e a ação dos cristãos parecia ter pouco efeito no combate. Diante disso, o evangelista quis ensinar que, se as palavras de Jesus forem realmente vividas, muitos resultados serão alcançados. O mal não tem a última palavra. A recomendação do uso do óleo neste episódio é mais um elemento recordado apenas por Marcos. Parece um detalhe proposital para diferenciar do agir de Jesus, o qual bastava impor as mãos, sem uso de qualquer recurso medicinal. Como se sabe, o uso do óleo como um elemento medicinal e terapêutico era muito comum na antiguidade e o cristianismo conservou essa tradição, adotando-o como elemento sacramental (Lc 10,34; Tg 5,15). Os doentes são, em Marcos, a síntese da pessoa necessitada e excluída e, por isso, são os destinatários privilegiados do anúncio da Boa Nova, que não é a propagação de uma doutrina, mas um processo de humanização e emancipação por meio do amor.

Ao ler e meditar hoje esse trecho do Evangelho de Marcos, a comunidade cristã é convidada a refletir sobre a sua fidelidade aos ensinamentos de Jesus e ao seu envio, para recuperar aquilo que é realmente essencial à vida cristã. No mundo de hoje, marcado pelo individualismo e pela competitividade, não faltam questionamentos sobre a eficácia do anúncio cristão. A única resposta adequada a esses questionamentos é a coragem dos cristãos e cristãs para voltarem a viver à maneira de Jesus, como ele mesmo recomendou aos primeiros discípulos enviados.

Se em apenas três décadas após a morte de Jesus, Marcos percebeu que sua comunidade já dava sinais de distanciamento da sua proposta de vida, muito mais pode ser percebido depois de dois mil anos. Por isso, a necessidade de conversão é cada vez mais urgente. Que possamos, enquanto cristãos e cristãs, identificar os males que nos impedem de viver radicalmente o que Jesus propõe, e combatê-los, para o Reino de Deus ser de novo experimentado e vivido.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 06, 2024

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 6,1-6 (ANO B)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, interrompida no último domingo, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. O texto lido neste domingo – Mc 6,1-6 – corresponde ao episódio da visita de Jesus a Nazaré, em dia de sábado, acompanhado de seus discípulos. Na oportunidade, ele sofreu forte oposição dos seus conterrâneos, os quais tentaram desqualificar sua mensagem e o seu agir. Esse texto ocupa uma posição estratégica no conjunto do Evangelho de Marcos. O episódio retratado pode ser considerado até um divisor de águas no ministério de Jesus, pois o que vem logo após esse aponta para uma mudança de rumo e estratégia na sua missão, com o envio missionário dos Doze (6,7-13), o qual será lido na liturgia do próximo domingo. Contudo, antes de recordar o que vem depois, é importante lembrar o que vem antes do episódio de hoje: a cura da mulher hemorroíssa e a reanimação da filha de Jairo (5,21-43). Esses dois milagres aconteceram logo após Jesus fazer a travessia de retorno do território dos pagãos, junto com seus discípulos, cuja viagem de ida fora marcada pela tempestade que ameaçou a barca e ele a acalmou (4,35-41).

A localização estratégica de um episódio nos evangelhos é sempre um indicativo de importância para o conjunto do livro, o que se verifica no texto de hoje. Outro dado que aponta para a sua importância na vida de Jesus é o fato de tratar-se de um episódio transmitido também pelos outros sinóticos (Mt 13,53-58; Lc 4,16-30). No Evangelho de Lucas, por exemplo, esse episódio foi transformado no evento programático e inaugural do ministério de Jesus. Por isso, ele o transferiu para o início da obra. Contudo, é mais lógica e plausível a posição que este episódio ocupa em Marcos e Mateus, ou seja, quando a atividade de Jesus já estava em pleno desenvolvimento e as notícias sobre a sua mensagem e o seu agir libertador já tinham se espalhado pela Galileia e, por isso, tinham repercutido também em Nazaré. Inclusive, seus familiares já tinham recebido notícias sobre o seu agir pouco ortodoxo, por isso, certa vez, saíram à sua procura, com objetivo de prendê-lo, imaginando que estivesse louco (Mc 3,20-31). Também a hierarquia religiosa de Jerusalém já estava a par da sua atividade, fiscalizando e vigiando o seu agir, por considerá-lo subversivo e herético e, por isso, perigoso para o sistema.

Uma vez apresentados alguns elementos a nível de contexto, voltamos a atenção para o próprio texto, partindo do primeiro versículo, no qual se diz que «Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos foram com ele» (V. 1). Aqui, chamamos a atenção para uma primeira incoerência da tradução litúrgica, pois a palavra Nazaré não aparece no texto original. O que o evangelista diz é que Jesus foi à sua pátria (em grego: πατρίς – patrís), o que deve ser compreendido como a terra natal. Contudo, sabemos que a terra natal de Jesus era um pequeno vilarejo chamado Nazaré (Mc 1,9). Somente Lucas menciona Nazaré explicitamente neste episódio, certamente por razões mais teológicas do que históricas e geográficas (Lc 4,16). É muito provável que a ausência do nome Nazaré, neste contexto, em Marcos e Mateus, seja proposital, visando ampliar a dimensão do evento, transformando a rejeição dos nazarenos em projeção da rejeição de Israel à mensagem de Jesus. De fato, o apego exagerado às tradições e o fechamento às novidades do Reino foram as principais atitudes de Israel diante da mensagem libertadora e humanizante de Jesus. Por isso, na rejeição de um pequeno povoado, o evangelista prefigura a rejeição futura de todo o país, sobretudo das autoridades, cujo desfecho será a morte de Jesus.

Como era seu costume, «quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga» (v. 2a). Ao contrário de Lucas, Marcos não faz qualquer referência ao conteúdo do ensinamento de Jesus, mas o leitor do seu Evangelho já sabe que a pregação dele consistia no anúncio da chegada do Reino de Deus e o apelo à conversão (Mc 1,15). É importante recordar que essa é a última vez que Marcos mostra Jesus ensinando numa sinagoga. Isso reforça o quanto esse episódio é relevante, pois parece delimitar um antes e um depois na vida de Jesus. A reunião litúrgica do sábado na sinagoga, além da oração, era também uma ocasião para as pessoas se reencontrarem, se saudarem. Como fazia tempo que Jesus não retornava à sua terra, era de se esperar que fosse bem acolhido, saudado por todos, afinal, num povoado pequeno todos se conheciam, como o texto vai mostrar mais adiante. Quanto à acolhida, parece até que houve um certo entusiasmo, no início da pregação: «Muitos que o escutavam ficavam admirados e diziam: “De onde ele recebeu tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos?”» (v. 2bc). Os questionamentos, enquanto consequência da admiração, confirmam que a fama de Jesus enquanto pregador e operador de milagres já tinha realmente se espalhado e os nazarenos estavam constatando, porém, sem acreditar ser possível, pois lhe faltavam credenciais razoavelmente aceitáveis, como uma origem que lhe rendesse prestígio social e religioso.

Ao questionarem precisamente a origem do conhecimento e da sabedoria de Jesus, bem como dos milagres realizados, seus conterrâneos preparam o rechaço, pois não o viam habilitado para fazer tudo aquilo, pois ele era apenas uma pessoa simples, como eles, como fica evidente no versículo seguinte: «“Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?” E ficaram escandalizados por causa dele» (v. 3). Aqui são apresentados os traços comuns de Jesus, o que parece contradizer os atributos anteriormente identificados nele, para a mentalidade dos seus conterrâneos. A primeira característica é sua identificação como carpinteiro, embora não seja o termo mais adequado para traduzir a palavra grega empregada pelo evangelista (τέκτων – tékton). De fato, essa palavra significa artesão, o que pode incluir uma variedade de habilidades, incluindo, além de carpinteiro, marceneiro, pedreiro e construtor. Como era difícil a sobrevivência com apenas uma atividade, geralmente se fazia um pouco de tudo, sobretudo nos lugares pequenos como Nazaré. Anteriormente, os nazarenos tinham se admirado com os milagres feitos pelas mãos de Jesus, agora recordam sua condição de artesão, imaginando que de suas mãos simples, que deveriam estar cheias de calos, não era possível sair milagres, não poderiam conter força de salvação.

Da profissão como primeiro elemento de contraste com as qualidades identificadas, seus contestadores passam a citar os parentes conhecidos que viviam no lugar, também como contradição ao que ele estava demonstrando. O identificam pejorativamente como o “filho de Maria”, apenas. Para a mentalidade da época, referir-se a alguém sem mencionar o pai era uma demonstração de desprezo. As pessoas eram identificadas pelo nome do pai, o chefe do clã, mesmo quando esse já tivesse morrido. O nome da mãe não tinha importância alguma para a sociedade, na época. Inclusive, poderia tratar alguém a partir do nome da mãe era indicação de que o filho era ilegítimo. Porém, o evangelista se serve desse artifício para recordar a origem divina de Jesus, não o associando a um pai humano. Quer dizer que Jesus é filho de Maria porque seu Pai é somente Deus, e os isso os nazarenos não conseguiam compreender nem aceitar. A referência aos outros parentes próximos, chamados de irmãos e irmãs, só reforça a condição de homem comum que Jesus era, como viam seus conterrâneos. Imaginavam que, sendo Jesus parente de gente comum do povoado, não poderia ser um enviado de Deus, logo, não teria como ser o Messias esperado, que deveria vir ao mundo como um guerreiro e potente. O embate entre as diversas tradições cristãs sobre o grau de consanguinidade desses parentes mencionados é totalmente desnecessário e sem sentido.

Até então, Jesus tinha recebido oposição severa das autoridades religiosas e da família, apenas. Do povo, em geral, tinha recebido boa aceitação por onde passava. Esse episódio de Nazaré apresenta a primeira oposição coletiva à sua mensagem. Para a mentalidade provinciana dos habitantes de Nazaré, o que deveria ter nas mãos de um simples artesão seria calos, e não capacidade de operar sinais extraordinários. Embora ali não tenha feito milagres (v. 5), a sua fama já tinha chegado como milagreiro. Sendo Jesus uma pessoa simples, tendo crescido em um vilarejo simples, não era normal que ele tivesse tamanha sabedoria e, muito menos, que fosse o Messias. Jesus reage à oposição dos seus conterrâneos com um provérbio: «Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares» (v. 4). Para ele, não era surpresa um profeta ser rejeitado em sua terra, por parentes e conhecidos. Esse provérbio nasceu e amadureceu a partir da própria vivência dos profetas ao longo da história de Israel. Os principais exemplos dessa experiência de rejeição na própria terra foram Jeremias (cf. Jr 11,18-23; 12,6) e Ezequiel (cf. Ez 2,2-5). Com isso, ele prepara os seus discípulos para envio missionário que vai ser feito a seguir: também eles deverão sofrer rejeições por onde passarem. Ser rejeitado se torna a sina de quem permanece fiel a Deus e à missão por ele confiada. O que Marcos aqui constata em forma de narração, João antecipa poeticamente no prólogo do seu Evangelho, apresentando Jesus como a Palavra que se fez carne: «Veio para o que é seu, mas os seus não a acolheram» (Jo 1,11).

A rejeição a Jesus bloqueia a ação salvífica de Deus, o que significa que ele tenha se tornado impotente. O evangelista diz que «ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos» (v. 5). Isso quer dizer, acima de tudo, que ele não teve oportunidade, o clima criado ao possibilito que ele se revelasse plenamente como o verdadeiro enviado de Deus. Ora, os milagres de Jesus não eram meras demonstrações de poder e força, mas comunicação de Deus com a humanidade, e isso exigia interação e reciprocidade através da fé. Jesus se sentiu bloqueado, não imune de força, mas impedido de interagir, porque o Deus que ele veio revelar é alguém que se comunica, se relaciona com o ser humano de modo pessoal, e não através de sinais grandiosos. A fé é adesão à sua proposta de vida. Se a reação dos habitantes de Nazaré foi de perplexidade, também Jesus «admirou-se com a falta de fé deles» (v. 6a). A falta de fé é o fechamento ao seu amor humanizante, a incapacidade de adesão à sua mensagem; aqui, significa o fechamento e a dureza de coração, a insensatez. E, diante de toda essa rejeição recebida, a resposta de Jesus é a missão: «Jesus percorria os povoados da redondeza, ensinando» (v. 6b). Como em Nazaré ele diagnosticou que Israel todo padecia, eis que reagiu a isso indo ao encontro de mais povoados, e enviando também os Doze com a mesma autoridade com que ele mesmo agia, como refletiremos no próximo domingo.

Os habitantes de Nazaré rejeitaram Jesus porque ele lhes apresentou um Deus acolhedor, misericordioso, justo e simples, fora dos esquemas apresentados pelas tradições de Israel. O Deus de Jesus não age pela força, nem pela imposição, mas se revela na simplicidade e na pequenez. Os nazarenos não reconheceram a simplicidade e o cotidiano coo lugar privilegiado de revelação de Des. O erro dos habitantes de Nazaré é repetido pelos cristãos quando imaginam e desejam uma Igreja triunfante, forte e poderosa. Que o Evangelho de hoje nos ajude a compreender e viver o que é essencial para a nossa fé, e a acolher a grandeza de Deus que se revela na pequenez.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,31-37 (ANO B)

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum é Mc 7,31-37, texto que compreende o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus,...