sábado, setembro 30, 2017

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 21,28-32 (ANO A)



Neste vigésimo sexto domingo do tempo comum, a liturgia nos oferece Mateus 21,28-32 para o Evangelho, texto que contém a curta parábola dos dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na sua vinha. Embora haja um considerável intervalo espacial e temporal entre a parábola proposta no domingo passado (“parábola dos trabalhadores da vinha” – Mt 20,1-16) e a de hoje, é inegável a relação entre as duas, como veremos a seguir.

Iniciamos com a devida contextualização, para chegarmos a uma interpretação mais adequada do texto. A parábola está inserida no acirrado confronto entre Jesus e as autoridades religiosas de Jerusalém, os sumos sacerdotes e os anciãos do povo. Com isso, concluímos que Jesus já se encontra em Jerusalém e, portanto, seu ministério está em sua última fase. Após uma entrada triunfante na cidade (cf. Mt 21,1-11), logo começaram os conflitos com as autoridades que não aceitavam sua proposta de Reino dos Céus, uma vez que esse compreendia uma verdadeira transformação da ordem vigente com a supressão de todas as estruturas de poder e formas de dominação vigentes.

O confronto com as autoridades começou com a denúncia do templo (cf. Mt 21,12-17); embora a maioria dos estudiosos intitulem esse episódio como “purificação do tempo”, preferimos usar o termo denúncia, uma vez que a atitude de Jesus em relação a essa instituição é de completa oposição, desejando, inclusive, a sua destruição (cf. Mt 24,1-2; Lc 21,6; ). Portanto, não tem sentido imaginar Jesus purificando algo que, para Ele, nem deveria mais existir. Esse episódio do templo foi o estopim para o conflito com as autoridades, e o Evangelho de hoje faz parte desse conflito.

Ao ver Jesus ensinar na área do templo, os sumos sacerdotes e anciãos lhe perguntaram com que autoridade Ele fazia aquilo (cf. 21,23). Ora, o ensinamento de Jesus divergia completamente do magistério oficial da época. Jesus não respondeu de modo afirmativo, mas também interrogando-os, partindo do exemplo de João Batista e seu batismo, deixando-os, assim, embaraçados (cf. 21,24-27). A nossa parábola de hoje está, portanto, inserida nesse confronto e, através dela, Jesus denuncia a falsa autoridade dos chefes religiosos de seu tempo, apresentando um novo caminho de relacionar-se com o Deus que é Pai, e reforçando o que já havia introduzido no discurso da montanha: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus.” (cf. Mt 7,21).

Como o início do texto sugere, “Que vos parece?” (em grego: Ti, de. u`mi/n dokei/È – Tí dé hímen dokei?), o que vem a seguir visa reforçar algo já introduzido na discussão de Jesus com seus interlocutores, os sumos sacerdotes e anciãos do povo. Essa introdução interrogativa é uma chamada de atenção para o que vem a seguir; significa que se trata de um ensinamento de fundamental importância: Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha”  (v. 28). A vinha (em grego: avmpelw/n – ampelon) é uma imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus (cf. Is Is 5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino dos Céus (cf. Mt 20,1-16) por Ele inaugurado. Diz o texto que o pai dirigiu-se também ao outro filho e fez a mesma proposta (v. 30a), ou seja, também pediu para ir trabalhar na sua vinha.

A imagem de Deus como pai já soava como provocação aos chefes religiosos do tempo de Jesus, afinal, o Deus deles era um patrão e juiz. Essa imagem se torna ainda mais chocante quando Jesus diz que aquele pai tinha dois filhos. Ora, Deus tinha escolhido um único povo, Israel, e nada tinha a dizer aos outros povos. Portanto, comparar Deus a um pai com dois filhos tratados da mesma maneira era uma proposta absurda, conforme a imagem de Deus cultivada e transmitida pela religião oficial da época.

O pai fez a mesma proposta aos dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu respostas diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do pai: “Não quero’. Mas depois mudou de opinião e foi” (v. 29). Aqui, é necessário fazer uma pequena correção à versão litúrgica do texto: ao invés de “mudou de opinião”, o evangelista diz, na língua original do texto, que ele “arrependeu-se” (em grego: metamelhqei.j – metamelteis). Em outras palavras, podemos dizer que aquele filho “converteu-se e foi trabalhar na vinha”. Eis, agora, a resposta-reação do segundo filho: “Sim, Senhor, eu vou’. Mas não foi” (v. 30). Como vimos, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes de cada um deles. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola está exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos dois filhos. Historicamente, Israel, como povo da aliança, disse sim a Deus com palavras, embora seu comportamento tenha se distanciado tanto da verdadeira vontade de Deus. Com esse contraste entre os dois filhos, Jesus provoca seus interlocutores e os convida a uma reflexão.

Como a parábola foi usada por Jesus para provocar em seus interlocutores uma reflexão, eis que Ele lhes pede um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: “Qual dos dois fez a vontade do pai?” Os sumos sacerdotes sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “O primeiro” (v. 31a). Os sumos sacerdotes e anciãos do povo não poderiam responder de outra maneira: de fato, quem fez a vontade do pai foi o primeiro filho, aquele que disse “não”, verbalmente, ao convite do pai, mas mudou de ideia, ou seja, converteu-se e foi trabalhar na vinha. Ao ir trabalhar, esse primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do pai, mesmo tendo respondido negativamente, uma vez que o importante para Deus não são as palavras, mas sim as atitudes. O segundo, pelo contrário, não fez a vontade do pai porque ficou apenas no discurso, não levou a solene resposta “Sim, Senhor” para a prática.

A resposta dos interlocutores de Jesus, os sumos sacerdotes e anciãos do povo, foi uma verdadeira sentença de auto-condenação. Aplicando a imagem do pai a Deus e dos dois filhos a Israel e aos pagãos, Jesus queria levá-los a conscientização das contradições da religiosidade que praticavam. E, ao recordar isso, Mateus chama a atenção da sua comunidade para também não cair nos mesmos erros da antiga religião. Por sinal, Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus.” (cf. Mt 7,21), e em uma discussão com os escribas e fariseus, ao citar diretamente o profeta Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (cf. Mt 15,8 = Is 29,13).

Com certeza os chefes religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação em que tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o clima piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: “Então Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (v. 31b). Dessa vez, Jesus passou dos limites, pensaram eles. Enquanto os acusava em linguagem simbólica, poderiam ignorar ou mudar o foco. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não era possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdariam primeiro o Reino de Deus do que as pessoas religiosas de Israel. Essa afirmação soava como absurdo para o auditório de Jesus.

A rejeição dos chefes à mensagem de Jesus é comparável a rejeição sofrida por João (v. 31). De fato, também o precursor viera “num caminho de justiça” (em grego: evn o`dw/| dikaiosu,nhj – en hodô dikaiosines), mas fora rejeitado pelos conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas religiosas como os sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à autossuficiência de suas convicções religiosas. Já “os cobradores de impostos e as prostitutas” (v. 31b), rejeitados pela religião e abertos à conversão, sedentos de compreensão e acolhimento, acreditaram no Batista e em Jesus, tornando-se, assim, herdeiros do Reino dos Céus, a nova vinha do Pai, que é Deus. Desse modo, a máxima proverbial que concluía a parábola do domingo passado, é atualizada na parábola de hoje: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16).

É importante que, assim como a comunidade de Mateus soube atualizar essa mensagem, também as nossas comunidades de hoje saibam. Os primeiros de sempre, transformados em últimos na dinâmica do Reino serão sempre as pessoas autossuficientes, arrogantes, conhecedoras dos mínimos detalhes das leis religiosas, como eram os sacerdotes, anciãos e escribas da época de Jesus. Hoje, embora em outras modalidades, essas pessoas continuam presentes em nossas comunidades, com a mesma autossuficiência, julgando, excluindo e determinando como o outro deve agir.

É preciso identificar quem são os últimos de hoje para os reconhecermos como primeiros no Reino. Na época, Jesus identificou os cobradores de impostos e as prostitutas, exemplos máximos de perversão para a época. Hoje, certamente há uma relação muito maior de categorias de pessoas excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que Jesus as colocaria como primeiras no Reino dos céus. Todos os que sofrem descriminações e exclusões por quem controla e impõem as normas de comportamento: as prostitutas, a população LGBT, ex-presidiários, moradores de rua, mães solteiras, menores infratores e tantas outras categorias, estariam na lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os lábios, mas pouco fazem para o Reino de fato acontecer, ou seja, não fazem a vontade do pai!


 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, setembro 23, 2017

REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 20,1-16 (ANO A)



A liturgia deste vigésimo quinto domingo do tempo comum propõem o texto de Mateus 20,1-16 para o Evangelho. É um texto rico e complexo, exclusivo do Evangelho segundo Mateus, e contém uma das mais belas e difíceis parábolas sobre o Reino. A primeira dificuldade gira em torno do título mais adequado a ser atribuído a essa parábola: “Parábola dos trabalhadores da vinha” ou “Parábola do patrão generoso”? Talvez seja melhor não atribuirmos nenhum título, pelo menos inicialmente, e percebermos a sua riqueza ao longo da leitura. O certo é que se trata de mais uma parábola do Reino dos céus, como prefere Mateus.

Antes de adentrarmos diretamente no texto, é justo e necessário que o contextualizemos, tendo em vista uma compreensão mais adequada do mesmo. O contexto geral é o da viagem de Jesus com seus discípulos para Jerusalém (cf. Mt 19 – 20). É importante recordar que, quanto mais Ele se aproximava de Jerusalém, mais necessidade tinha de instruir seus discípulos sobre a natureza do Reino que estava propondo. Ora, os discípulos e as multidões que o seguiam sonhavam com a restauração do reino davídico-salomônico e, por isso, tinham dificuldades de compreender e aceitar a sua proposta de Reino. Com isso, Jesus procurava cada vez mais apresentar as particularidades do Reino dos céus e a mudança de mentalidade que esse exigia, com suas novas relações, sobretudo, no que diz respeito à religião, ao mundo do trabalho, à prática da justiça e, enfim, a todos os âmbitos da vida humana.

Os episódios que antecedem o nosso texto no Evangelho são: o encontro de Jesus com o jovem rico (cf. 19,16-22) e a reação dos discípulos ao desfecho desse encontro (cf. 19,23-30). A parábola que estamos tentando compreender é, portanto, a resposta de Jesus a essas duas situações, principalmente à pergunta de Pedro, em nome do grupo: “E nós que deixamos tudo e te seguimos, que recompensa teremos?” (19,27). Ora, Pedro aproveitou a falta de coragem ao despojamento do jovem rico para tirar vantagem da situação. Jesus lhe assegura que não ficarão sem recompensa, mas não garante privilégios, uma vez que “Muitos dos primeiros serão últimos, e muitos dos últimos serão primeiros” (19,30). Essa expressão proverbial que antecede a parábola é a mesma que a conclui, de modo que a longa parábola nada mais é que a explicação dessa máxima: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (19,30; 20,16).

Podemos, agora, voltar a nossa atenção diretamente para o texto, recordando que, por ser uma parábola, não nos deteremos em cada um dos versículo, uma vez que o mais importante é a mensagem geral, embora seja necessário observar alguns pormenores. Eis o início do texto: “O Reino dos Céus é como a história de um patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha” (v. 1). Jesus está introduzindo uma parábola do Reino dos Céus (em grego: h` basilei,a tw/n ouvranw/n – hé basiléia ton uranón), e isso confere ao texto um grau de importância considerável, considerando a centralidade do Reino em sua pregação. As parábolas apresentam imagens comparativas, jamais descritivas, do Reino. Como o Reino consiste em um mundo novo, uma sociedade alternativa, completamente diferente das sociedades humanas até então experimentadas, ele não pode ser descrito, uma vez que ainda não fora experimentado. O texto litúrgico erra ao apresentar a figura de um patrão; na língua original, o texto fala de pai de família ou dono de casa (em grego: oivkodespo,th|j  – oikodespótes), uma imagem bem mais suave e mais próxima do Deus que Jesus quis revelar do que a de um patrão.

Desde o Antigo Testamento, Deus é apresentado como o dono de uma vinha (cf. Is 5,1-7). A vinha (em grego: avmpelw/n – ampelón) é, portanto, imagem clássica do povo de Deus e, nessa passagem, passa a ser imagem da comunidade cristã, embrião do Reino dos céus. Chama a atenção o fato de ser o próprio proprietário a sair em busca de operários para a vinha. Ele não manda um encarregado, mas vai pessoalmente. Com isso, Jesus ensina que o antigo sacerdócio do templo e toda a hierarquia religiosa da época está descartada e vencida. Os chefes religiosos do seu tempo não estavam mais autorizados a falar em nome de Deus Pai, por isso, apresentavam um Deus patrão e castigador. O Deus Pai de Jesus, pelo contrário, ao invés de castigar, apenas ama, sai ao encontro, inclui e, por isso, salva!

O proprietário demonstra um zelo ímpar para com a sua vinha: sai diversas vezes durante o dia em busca de trabalhadores: pela madrugada (v. 1), às nove da manhã (v. 3), ao meio dia (v. 5), às três (v. 5) e às cinco da tarde (v. 6). O contato interpessoal do proprietário com os operários contratados deixa ainda mais clara as novas relações entre a humanidade e o Deus da vida que Jesus revelou. Um Deus presente, realmente “Conosco”, como apresenta Mateus ao longo de todo o seu Evangelho (cf. 1,23; 18,20; 28,20). Um Deus que apenas chama, não pede currículo algum, porque sua intenção é a inclusão: Ele não quer que ninguém fique fora do seu Reino, ao contrário da religião que segrega e exclui, ao classificar as pessoas entre justos e pecadores.

Ao contrário do sistema vigente na época de Jesus e no período da redação do Evangelho segundo Mateus, no Reino por Ele anunciado, não havia lugar para a competitividade, nem para a meritocracia. É claro que nem todos conseguiam assimilar com facilidade essa nova mentalidade inclusiva: a passagem da religião da lei para a da misericórdia. Essa dificuldade é demonstrada na parábola pela reação dos primeiros contratados à lógica do patrão no momento do pagamento. Ora, ao pagar primeiro aos últimos contratados, e dar-lhes o mesmo valor dado aos contratados ainda na madrugada, o patrão inverteu completamente a lógica da economia e do mundo do trabalho, fez uma reviravolta total nas relações: ao invés de agir conforme a lei, ele agiu com misericórdia e bondade, deixando furiosos aqueles que tinham sido contratados primeiro, como diz o texto: “ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos, trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’” (vv. 11-12). O patrão tinha duas opções: agir conforme a lei e, assim, perpetuar a desigualdade, ou agir pela bondade e, assim, promover a igualdade. Como preferiu a segunda opção, foi contestado.

Com a reação dos primeiros contratados, Jesus denuncia a mentalidade competitiva entre os discípulos e, ao recordar isso, Mateus também denuncia a situação da sua comunidade, composta predominantemente por cristãos provindos do judaísmo. Esses, reivindicavam vantagens e privilégios sobre os cristãos convertidos do paganismo. Assim como os primeiros contratados alegavam ter suportado cansaço e calor, os cristãos de origem judaica alegavam conhecer e observar a lei e os profetas, imaginando que isso lhes daria privilégios dentro da comunidade, por serem os verdadeiros herdeiros das antigas promessas. Esse comportamento se assemelha ao do filho mais velho na parábola do “Pai misericordioso” ou “Filho pródigo” de Lucas (cf. Lc 15,11-31), de modo que podemos equipará-las na ênfase à misericórdia do Pai revelada por Jesus.

A reação do patrão ao murmúrio dos primeiros contratados é a clara denúncia de Jesus e de Mateus às pessoas religiosas que queriam controlar o agir de Deus, prendendo-o a doutrinas e normas: “Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja porque estou sendo bom?” (v. 15). O desconforto de uma religião sustentada pela mentalidade meritocrática, retributiva e legalista é grande quando se descobre que o Deus verdadeiro é um Pai que ama, perdoa, vai pessoalmente ao encontro das pessoas afastadas e promove a igualdade. Jesus contesta radicalmente a religião que se propõe a determinar a maneira de Deus agir. Para Ele, isso é um verdadeiro atentado.

Certamente, a denúncia de Jesus e do evangelista continua válida também para os dias atuais. Pois, como sabemos, ainda hoje, muitas pessoas religiosas ainda tem dificuldade de aceitar um Deus misericordioso que age com liberdade e doa seu amor a todos, sem distinção. Na verdade, esse Deus continua sendo negado por essas pessoas. É inadmissível um Deus que não premia os bons e castiga os malvados! Para essas pessoas, a salvação é um prêmio, e não um dom; Deus é um soberano, e não um Pai; o outro é um concorrente, e não um irmão; a Igreja é um tribunal, e não uma família. Infelizmente, essa mentalidade prevalecido em muitas comunidades, grupos e movimentos nos dias atuais!

Assim, chegamos à conclusão da conclusão e síntese da parábola: Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (v. 16). Como tínhamos afirmado na introdução, a parábola em si é a explicação para essa máxima proverbial. Não se trata de uma exclusão aos que chegaram primeiro no grupo de discípulos ou na comunidade, mas uma demonstração de que, o fato de chegarem primeiro, não lhes dá privilégios nem supremacia sobre os que vierem depois. Essa expressão é apenas um modo de enfatizar que aqueles que forem chamados por último terão os mesmos direitos que os primeiros e, principalmente, que na comunidade do Reino não há distinção entre os seus membros, uma vez que o Reino é família e, em família, todos são irmãos e irmãs.


Mossoró-RN, 23/09/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues   

sábado, setembro 16, 2017

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 18,21-35 (ANO A)



Neste vigésimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia propõe Mateus 18,21-35 para o Evangelho. É a continuidade e conclusão do quarto dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus. Esse discurso é comumente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”, porque trata das relações entre os membros da comunidade cristã. No âmbito das relações, a principal dimensão apresentada pelo Evangelho de hoje é  a capacidade e a necessidade do perdão entre os irmãos que compõem a comunidade. Como no domingo passado (vigésimo terceiro domingo), cujo texto evangélico proposto pela liturgia foi Mt 18,15-20, já fizemos a contextualização de todo o capítulo dezoito, hoje podemos nos isentar dessa tarefa.

Como esse discurso foi dirigido exclusivamente aos discípulos, é deles que vem as reações. Por isso, diz o texto que “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21). Como vemos, é Pedro o primeiro a se manifestar, não por exercer uma atividade de proeminência sobre os demais, mas apenas por refletir a voz de todo o grupo e ser ele o que melhor sintetiza as características do grupo, sobretudo, no que diz respeito às contradições e incoerências. Ao invés de líder dos doze, Pedro é a cara dos doze: professa a fé (cf. Mt 16,16), mas também nega (cf. Mt 26,69-75), ora fala conforme a vontade do Pai, ora conforme satanás (cf. Mt 16,17.23). Portanto, a figura de Pedro funciona como uma síntese do grupo dos doze, sobretudo, em Mateus.

Jesus tinha apresentado apresentado a necessidade da reconciliação como uma busca irrenunciável para a comunidade (cf. 18,15-20). Como não há reconciliação sem perdão, Ele vai apresentar a necessidade do perdão permanente e contínuo na vida da comunidade. Aqui, Pedro encontra a oportunidade de interagir, através de uma pergunta. Nessa pergunta de Pedro há, mais que uma dúvida, uma convicção: se deve perdoar, mas deve haver limite para tudo! Esse limite seria sete vezes (em grego: e`pta,kij – heptákis), afinal, o número sete evoca perfeição e completude. Os rabinos da época, observantes da “Torá oral”, aconselhavam o perdão até três vezes. De positivo, a pergunta de Pedro demonstra que, aos poucos, a lógica da antiga religião estava sendo superada entre os discípulos; o lado negativo é a insistência em querer medir quantitativamente aquilo que deve ser ilimitado.

 Certamente, Pedro imaginava receber um elogio de Jesus, pois tinha demonstrado uma “justiça superior à dos escribas e fariseus” (cf. Mt 5,20). Jesus vai muito além, com a sua resposta: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v. 22). Sem dúvidas, Pedro e os demais ficaram desconcertados com essa resposta. A pergunta de Pedro já refletia uma abertura na comunidade para ir além dos costumes da época, mas com certos limites. A resposta de Jesus ensina a romper todos os limites. Não se trata de um convite ou ordem para os discípulos fazerem uma multiplicação e chegarem a uma cifra elevada, porém, contável (70 x 7 =490), mas simplesmente um sinal de que não há espaço para números no que diz respeito às relações com o próximo na comunidade cristã. Essa expressão numérica não indica quantidade, mas qualidade: o perdão é ilimitado e incontável.

Para deixar ainda mais clara a necessidade do perdão entre os irmãos, Jesus apresenta uma parábola, concluindo o discurso. Nesse mesmo discurso Ele já tinha contado uma primeira parábola, aquela da ovelha perdida (cf. 18,10-14), ao enfatizar que as relações na comunidade devem refletir o amor e a misericórdia do Pai. Agora, com essa segunda parábola, Ele reforça esse ensinamento: “O Reinos dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados” (v. 23). Antes de tudo, convém recordar que uma parábola é apenas uma comparação, e não uma descrição. É importante fazer esse esclarecimento para não distorcermos a imagem do Pai misericordioso, convertendo-o em um soberano vingativo.

O primeiro objetivo dessa parábola é mostrar a abundância do perdão ilimitado de Deus e alertar para a dificuldade que a comunidade tem de praticar o perdão. O segundo objetivo é levar a comunidade a superar essa dificuldade, tendo em vista que é em vão pedir o perdão do Pai quando não há disposição de perdoar ao próximo também de modo ilimitado.

De modo simplificado, podemos compreender a parábola da seguinte maneira: tudo o que se recebe de Deus é dom, e tudo o que é dom deve ser partilhado. O primeiro empregado ou servo (em grego: dou,loj – dúlos) devia uma quantidade incalculável (v. 24), ou seja, possuía uma dívida milionária, a ponto de ser impossível quitá-la. O rei, o patrão, manda vendê-lo como escravo, juntamente com toda a família (v. 25). Certamente, esse não era apenas um empregado, mas alguém que participava diretamente da administração, o qual deve ter desviado ilicitamente muito dinheiro para ficar tão endividado para com o rei. Sabendo da impossibilidade de pagar, não lhe resta outra coisa senão suplicar o perdão da dívida, como o fez, pedindo um prazo como pretexto (v. 26). O patrão teve compaixão e perdoou a dívida (v. 27), representando o agir de Deus diante da incapacidade humana de corresponder aos seus propósitos.

O servo, perdoado de maneira absoluta e ilimitada, se mostra incapaz de partilhar o perdão recebido (vv. 28-32); e isso é intolerável para aquele que lhe havia perdoado (v. 33-34). O centro da parábola está exatamente aqui: advertir e prevenir a comunidade, principalmente as lideranças, da hipocrisia, covardia e mesquinhez de não partilhar o perdão, de não ser instrumento e sinal de reconciliação. O servo foi condenado porque reteve o perdão somente para si, não partilhou o perdão recebido. Jesus quer evitar esse perigo na(s) sua(s) comunidade(s). Assim, a comunidade contradiz o projeto de Jesus e do Pai quando classifica o pecado, determinando se é “perdoável” ou não, e quando impõe limites ao aplicar o perdão.

Longe de comparar Deus a um soberano vingativo, o que Jesus fez com essa parábola foi reforçar um ensinamento necessário e urgente para o bem da comunidade, que insistia em neglicenciar. Enfim, Jesus apenas reforçou o que já tinha dito no seu primeiro discurso, o da montanha: “Pois, se perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos delitos” (cf. Mt 6,14-15). Podemos, assim, colocar o perdão como critério de reconhecimento se uma comunidade/igreja é cristã ou não: se há restrição ao perdão e medição quantitativa e qualitativa do pecado, essa está longe de ser aquela sonhada por Jesus!



Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, setembro 09, 2017

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 18,15-20 (ANO A)


A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe Mateus 18,15-20 para o Evangelho. O capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus é composto pelo quarto dos cinco grandes discursos de Jesus apresentados nesse Evangelho. Esse discurso é dirigido especialmente aos discípulos, e trata das relações entre os membros da comunidade, por isso é comumente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”. O ensinamento de Jesus nesse discurso tem como primeiro objetivo apresentar a comunidade cristã como uma comunidade de iguais, marcada pelo amor, humildade e perdão recíprocos.

Como o texto que a liturgia oferece não compreende o início do discurso, convém retornarmos ao início para contextualizá-lo e, assim, compreendermos melhor.  Ora, o discurso é a resposta de Jesus a uma pergunta absurda dos discípulos, conforme o primeiro versículo do capítulo: “Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: ‘Quem é o maior no Reino dos céus?” (18,1). A pergunta é absurda para Jesus porque ela revela que os discípulos ainda não haviam compreendido quase nada do Reino dos céus. Desde o início da sua pregação, Jesus tinha apresentado o Reino dos céus como uma sociedade alternativa ao sistema vigente, sem relações de poder, nem hierarquia entre os seus membros. Se os discípulos ainda perguntavam quem era o maior, é porque ainda não haviam compreendido nem aceitado essa proposta.

Além da introdução ao discurso, é importante recordar também que, pouco antes, Jesus havia feito o segundo anúncio da paixão (cf. Mt 17,22-23). Por incrível que pareça, quanto mais Jesus falava em cruz, perseguição e sofrimento, mais os discípulos alimentavam seus sonhos de grandeza e poder (cf. Mt 20,20-28), demonstrando que não estavam ainda vivendo segundo as bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12). Sem dúvidas, essa era também a crise da comunidade de Mateus, cerca de quatro décadas após a morte de Jesus. A tendência hierarquizante era cada vez mais forte, por isso o evangelista faz questão de recordar às palavras de Jesus contrárias a essa tendência.

Voltando para o discurso em si, convém ainda recordar que o trecho proposto pela liturgia é precedido pela parábola da ovelha perdida (cf. 18,10-14). Assim, podemos dizer que o nosso texto é uma espécie de explicação da parábola, uma vez que, ao tratar da correção fraterna, o texto evidencia o esforço da comunidade para que o perdão e a reconciliação aconteçam. Os membros da comunidade devem esforçar-se ao máximo para refletirem em suas vidas o esforço do Pai: “Vosso Pai, que está nos céus, não quer que se perca nenhum destes pequeninos” (18,14). Ora, para que nenhum dos pequeninos se perca, a comunidade não pode medir esforços; deve empenhar-se com todos os meios disponíveis para que prevaleça o amor, o perdão e haja a reconciliação.

Feita a devida contextualização, voltamos a nossa atenção para o nosso texto específico (18,15-20), o qual funciona como uma expécie de explicação da parábola que o precede, como afirmamos antes. Eis o primeiro versículo: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão.” (v. 15). A possibilidade do pecado e da ofensa já deixa muito claro que a comunidade não é perfeita, pois seus membros também não são perfeitos. Não obstante as imperfeições, a comunidade é, antes de tudo, um espaço fraterno, pois seus membros são todos irmãos. De fato, uma das informações e ensinamentos mais importantes desse versículo é o uso da palavra irmão  (em grego: avdelfo,j – adelfós). Independentemente da falta cometida, a fraternidade, como regra básica da comunidade cristã, deve ser buscada em todas as circunstâncias. A correção em particular é o primeiro recurso: nada de exposição e humilhação; entre irmãos, deve haver liberdade para perceber juntos o erro e a necessidade de correção para o bem da comunidade. Não é a posição de um superior para com um subalterno, mas de um irmão que busca outro irmão para recompor a unidade da comunidade. Ganhar o irmão significa recuperá-lo para a comunidade, ou seja, reatar com ele os laços de fraternidade.

Caso essa primeira tentativa não funcione, novos meios devem ser buscados: “Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas testemunhas para que a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas” (v. 16). O cuidado com o irmão continua muito evidente: nada de expô-lo publicamente. Contudo, para que não se perca, é necessário continuar buscando a sua reconciliação e seu retorno à fraternidade. Tendo falhado a primeira tentativa, busca-se uma segunda. Nessa, recorre-se ao princípio judaico do testemunho, ao aconselhar que se tome uma ou mais testemunhas, para que o testemunho seja válido (cf. Dt 19,15). Aqui, no entanto, não se trata de um recurso jurídico, mas sim da ajuda mútua. Mais do que mostrar o erro, o esforço da comunidade deve ser um convencimento para que o irmão não se aparte dela.

Mesmo que a segunda tentativa funcione, ainda há outros recursos e meios, como sugere Jesus: “Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja” (v. 17a). A terceira tentativa para que o irmão não se perca da comunhão fraterna é levá-lo à comunidade, ou seja, à Igreja. Essa, não como instância jurídico-institucional, mas como espaço de comunhão e fraternidade, deve ser comunicada e ficar a par de todas as situações que envolvam seus membros. A Igreja aqui, como já falamos, não é uma instituição nem um grupo hierárquico, mas a comunidade reunida, a assembleia (evkklhsi,a| – ekklesia). Esse conselho de Jesus é mais um sinal da sinceridade e transparência com que os irmãos e irmãs da comunidade cristã devem viver. Como um corpo que é a comunidade, seus membros tem direito de saber como andam as relações entre os demais membros, afinal, o bom funcionamento do corpo depende da saúde e do bem de todos os membros. A comunidade reunida, como espaço de comunhão e oração, deve também fazer da celebração uma oportunidade de crescimento com a reconciliação de seus membros.

É possível que até mesmo a comunidade reunida não seja suficiente para convencer o irmão da necessidade da reconciliação. Assim como é espontâneo o ingresso na comunidade, também deve ser o afastamento, o que muitas vezes ocorre até por falta de compreensão e acolhida. Por isso, Jesus previne: pode ser que nem mesmo o conselho da assembleia reunida seja suficiente para o retorno do irmão: “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público” (v. 17b). Muitos interpretam, equivocadamente, que após todas as tentativas de conversão, a Igreja pode e deve excomungar, abandonar e excluir o membro pecador. É claro que esse pensamento distorce completamente o pensamento de Jesus. Contradiz, inclusive, a parábola que antecede o nosso texto, aquela da ovelha perdida. O real significado dessa expressão é: se aquele irmão não se convenceu da necessidade de viver em paz com outro, se ele não se deixou mais convencer pela beleza da vida fraterna e comunitária e, por isso, depois de várias tentativas, ele precisa refazer o caminho.

Ser tratado como pagão ou publicano é ser, de novo, destinatário do Evangelho. Embora o texto litúrgico use a expressão “pecador público”, é mais correto usar “publicano” ou “cobrador de impostos” (em grego: telw,nhj – telónes)  por uma questão de fidelidade ao texto original. Ora, ao longo de todo o Evangelho, os cobradores de impostos e os pagãos são destinatários do interesse de Jesus e, portanto, do Evangelho. Essas duas categorias de pessoas eram desprezíveis para os fariseus, mas jamais para Jesus. A comunidade cristã não pode ser pautada pelos mesmos princípios dos fariseus, e sim pelo amor de Jesus e do Pai, por Ele revelado. Por isso, deve ter coragem de voltar atrás e recomeçar seu caminho formativo para o discipulado, quantas vezes for necessário, indo ao encontro daqueles e daquelas que se afastaram. Portanto, como comunidade inclusiva, a Igreja deve buscar todos os meios para que nenhum pequenino se perca.

O que já dissera aos discípulos no episódio de Cesaréia de Felipe, Jesus agora reforça: “Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v. 18). É claro que não se trata de uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade que vive, de fato, as bem-aventuranças é reflexo do céu. As relações fraternas de amor e perdão são os distintivos da comunidade cristã. Não é necessário ter poder para que as coisas da terra sejam confirmadas pelo céu; basta coerência, testemunho e, sobretudo, amor! Ao Pai, importa apenas amor, concórdia e fé (v. 19). São esses os requisitos para tornar válida a oração. Antes de dobrar os joelhos e abrir os lábios para dirigir uma prece ao Pai, a comunidade deve viver a concórdia interna, respeitando as diferenças, obviamente.

A autêntica comunidade cristã, reconciliadora e orante, é o lugar privilegiado da presença de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (v. 20). Aqui, o evangelista retoma um dos temas principais de todo o seu Evangelho: a presença do Senhor no meio da comunidade (cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20). Aqui está também a justificativa para que a comunidade nunca se canse de buscar o retorno daqueles que se afastam: é a presença do irmão que gera comunhão, e essa comunhão garante a presença de Jesus. Na época da redação do Evangelho, como o templo já havia sido destruído, os judeus afirmavam que Deus estava presente onde dois ou mais estivessem reunidos para estudar a Lei. Com essas palavras, Jesus diz que não é o estudo da lei que garante a presença divina, mas é o seu nome. O evangelista entende que reunir-se no nome de Jesus não é apenas pronunciar palavras juntos, mas viver de acordo com o seu ensinamento. Com isso, ele combate as tendências individualistas que começavam a aparecer na sua comunidade.

Uma comunidade só é autenticamente cristã quando é possível perceber e sentir nela a presença de Jesus. Essa presença só se manifesta quando há amor, perdão, reconciliação e compreensão. Havendo esses elementos, independente do número de membros, mesmo que sejam só dois ou três, o Senhor estará presente. Por isso, a comunidade deve empenhar-se ao máximo possível para recuperar um irmão ou irmã afastado; mesmo que seja somente um, a sua ausência pode comprometer a presença do Senhor!


Mossoró-RN, 09/09/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

terça-feira, setembro 05, 2017

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 16,21-27 (ANO A)



Neste vigésimo segundo domingo do tempo comum, a liturgia propõe Mateus 16,21-27 para o Evangelho. Se trata do primeiro anúncio explícito da paixão feito por Jesus aos discípulos, e da reação desses, marcada pela não aceitação de um messias sofredor. Esse trecho é a sequência imediata do Evangelho do domingo passado, Mateus 16,13-20, quando Jesus perguntou sobre a sua identidade, e Pedro, em nome do grupo, confessou a sua fé, afirmando com aparente convicção que Jesus era o Messias esperado, o Filho do Deus vivo.

Com a confissão solene e objetiva da fé por Pedro (cf. Mt 16,13-20), Jesus imaginava que o grupo dos discípulos havia atingido um grau considerável de maturidade para compreender o seu destino de sofrimento, por isso, começou a anunciar de modo explícito quais seriam as consequências da forma como estava vivendo e fazendo as suas opções. Esse destino não poderia ser outro, senão a cruz, ou seja, a condenação total e humilhante pelos detentores de poder, político e religioso, incomodados com a sua mensagem de libertação.

Podemos dizer, logo de início, que o Evangelho de hoje apresenta a negação ou o recuo das palavras firmes que Pedro tinha pronunciado no episódio anterior, na região de Cesaréia de Filipe. Assim, podemos também dizer que, juntando esses dois episódios, temos as duas faces de uma mesma moeda, opostas obviamente. De elogiado a reprovado, Pedro é a imagem da comunidade de Mateus, marcada pela inconstância, ambiguidade, incoerência e incompreensão.

O episódio de Cesaréia de Filipe foi um divisor de águas na vida de Jesus e no seu relacionamento com os discípulos. Por isso, o texto evangélico de hoje começa com uma indicação cronológica importante, infelizmente omitida pelo liturgia: “a partir de então” ou “desse momento em diante”  (v. 21a), (em grego: Apo. to,te – apó tote). Sem essa indicação, o texto litúrgico começa assim: “Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia” (v. 21). Como vemos, são muitas informações para um único versículo, o que requer uma explicação cuidadosa e lenta.

A primeira informação importante do versículo é a mudança de rumo e sentido na pregação de Jesus. Como Ele já havia anunciado bastante sobre o Reino dos céus; agora, é chegado o momento de deixar claro quais são as consequências para a vida de quem “busca em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça” (cf. Mt 6,33). Como a busca pelo Reino requer opções, tais opções trazem também consequências. Assim, o que Ele começou a mostrar aos discípulos, do episódio de Cesaréia em diante, foi exatamente essas consequencias. Ora, fazer opção pelo Reino é, antes de tudo, mostrar indignação, inconformismo e resistência à todas as forças que impediam a concretização desse Reino.

Tendo optado pelo Reino acima de tudo, Jesus tinha muita clareza do seu destino: sofrer e morrer pelas mãos dos inimigos do Reino. Não se trata de uma predestinação, mas de uma necessidade. Jesus tinha muita clareza da sua missão de instaurar o Reino do seu Pai na terra, e sabia que para isso deveria enfrentar muitas forças hostis e adversas, principalmente a religião que oprimia, excluía e matava em nome de um Deus que em nada parecia com o seu Pai. Era necessário desmascarar essa religião, e isso lhe traria consequências inevitáveis. Como era em Jerusalém que essa religião estava enraizada institucionalmente, era para lá que Jesus devia ir. Por isso, sua ida até ela era necessária.

Jesus sabia antecipadamente quem seriam seus algozes principais: “os anciãos, os sumos sacerdotes e os mestres da lei”, a elite religiosa de Jerusalém. Não sabia disso por possuir conhecimento de coisas misteriosas e futuras, mas pela consciência de que seu projeto colidia com os interesses dessa elite. Era o confronto de dois projetos bem distintos: o Reino de Deus com sua justiça, acolhida, misericórdia e amor, de um lado e, a instituição religiosa com seus dogmas, sua lei e seus preceitos excludentes, segregadores, manipuladores e exploradores, do outro lado. O confronto era inevitável. Como centro de poder e, portanto, de exploração, Jerusalém e sua elite religiosa e política eram conhecidas por “matar profetas” (cf. Mt 23,37; Lc 13,34). Aliás, convém recordar que, de acordo com o Evangelho de Mateus, desde o seu nascimento, Jesus é almejado pelos detentores de poder (cf Mt 2,16ss). Portanto, nenhuma novidade!

As elites se enganam ao imaginar que matando Jesus poriam fim ao projeto do Reino. A confiança de Jesus no Pai ultrapassa todos os limites da existência humana. Vai morrer sim, mas irá ressuscitar ao terceiro dia. Assim como Herodes imaginava, no início do Evangelho (cf. Mt 2,16ss), que matando os inocentes estaria eliminando as ameaças ao seu falso senhorio, também a elite religiosa imagina que matando Jesus estaria eliminando o perigo da instauração do Reino de Deus. O Reino de Deus é perigo mesmo para qualquer sistema incompatível com sua proposta!

A certeza da ressurreição era fruto de uma íntima e profunda confiança no Pai, confiança essa ainda não experimentada pelos discípulos, como a sequência do texto mostrará. A ressurreição é certeza somente para quem confia verdadeiramente no Pai. A expressão “no terceiro dia” (em grego: th/| tri,th| h`me,ra| – té trité heméra), no entanto, não é um dado cronológico, mas teológico. Ao longo da história bíblica, “o terceiro dia” indica uma intervenção extraordinária de Deus na história, basta recordar a narrativa da teofania do Sinai: foi no terceiro dia que Moisés recebeu as tábuas da Lei (cf. Ex 19,16ss). Portanto, na ressurreição, Deus agirá de modo admirável e novo.

Mais uma vez, a reação dos discípulos às palavras de Jesus é encabeçada por Pedro: “Então Pedro, tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não te permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” (v. 22). A atitude de Pedro é de reprovação total ao que Jesus tinha acabado de dizer. Com essa atitude, Pedro e todo o grupo, pois é em nome do grupo que ele age e fala, jogam por terra toda uma caminhada de discipulado. É como se ele revogasse a belíssima confissão proferida pouco tempo antes (cf. Mt 16,23-20). Ora, ao repreender Jesus, Pedro deixa de lado sua condição de discípulo para ser mestre. É uma atitude arrogante e arbitrária, totalmente incompatível com o que Jesus tinha ensinado até então. Pedro sabia que, inevitavelmente, o caminho do discípulo é o mesmo do mestre. Assim, se Jesus morresse pelo Reino, também ele e os demais discípulos morreriam. Por isso, tenta tirar essa ideia de Jesus. Essa tem sido uma das grandes tentações da Igreja ao longo da história: desconsiderar a força das palavras de Jesus e seus impactos na vida de cada um e na sociedade. Convicto de seguir o messias glorioso, Pedro não aceita de modo algum a ideia de um messias sofredor.

Jesus logo percebe a ideia infeliz de Pedro e, com muita sinceridade, chama-lhe a atenção: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensa as coisas de Deus mas sim as coisas dos homens” (v. 23). Aqui, o texto liturgico apresenta um grande equivoco: Jesus não manda Pedro ir para longe, mas para atrás de si, ou seja, voltar ao lugar de discípulo. O evangelista usa aqui a mesma expressão empregada no momento do chamado: “vinde atrás de mim” (cf. Mt 4,19), ou seja, “segui-me” (em grego: ovpi,sw mou – opíssô um). Jesus não afasta Pedro, mas o convida a colocar-se em seu devido lugar: no seguimento, deve continuar aprendendo, afinal, tinha demonstrado não ter aprendido praticamente nada a respeito do seguimento de Jesus com suas opções e consequências. Pedro é chamado de satanás porque, na verdade, satanás não é uma pessoa ou um ser específico, mas é uma atitude. Impedir a realização do Reino é o papel e a atitude de satanás. Essa atitude é, na maioria das vezes, assumida pelos de dentro, ou seja, por quem se apresenta como seguidor, mas não se abre aos desígnios do Pai.

Pouco tempo antes, após ter confessado a sua fé, Pedro tinha sido proclamado bem-aventurado pela sua sintonia com o Pai (cf. Mt 16,17); agora, ele é duramente repreendido por trocar os pensamentos do Pai pelas coisas dos homens, e gerenciar sua vida a partir dessas coisas. As coisas do Pai às quais Jesus se refere são: doação, serviço e amor; as coisas dos homens são o medo, a ambição e a sede de poder e dominação. Esse paradoxo não poderia passar despercebido por Jesus. Por isso, de pedra da construção, ele passa a ser pedra de tropeço, ou seja, escândalo para a comunidade (em grego ska,ndalon – skandalon).
É importante estarmos atentos a essa situação: a edificação do Reino é confiada à comunidade cristã, a Igreja. Essa, tanto pode construí-lo, quanto fazê-lo sucumbir. A construção depende da fidelidade e da capacidade de doação da vida, o que requer renúncias e perdas. Mais importante ainda é saber que o que é escândalo para Jesus não é a transgressão de regras morais, mas sim a omissão, a falta de convicção e de capacidade para doar a própria vida em prol do Reino de Deus. Em outras palavras, escândalo é a falta de amor!

Ao perceber o recuo de Pedro, Jesus sente a necessidade de reforçar a sua catequese aos discípulos e de falar com cada vez mais clareza. Ninguém tem obrigação de segui-lo, pois o seguimento é livre e opcional. No entanto, a quem opta pelo seguimento, são feitas exigências, ou seja, opções bastante radicais, e isso Jesus deixa muito claro: “Se alguém que me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (v. 24). Com essa afirmação, Ele chama a atenção dos discípulos para a seriedade do seguimento.

A primeira exigência não é um convite à negação de si nem à resignação, mas a todo e qualquer projeto pessoal e individualista de realização. Renunciar a si mesmo é assumir um projeto coletivo, cujo centro de interesse será sempre o bem do próximo. É ter consciência dos desafios inerentes ao seguimento de Jesus e, mesmo assim, abraçá-los. É o que estava faltando a Pedro naquele momento, ao trocar os pensamentos de Deus pelas coisas dos homens.

O convite a carregar a cruz é a certeza de que o projeto de Jesus é incompatível com o sistema vigente. É importante ressaltar que não é Jesus quem oferece a cruz. A cruz é consequência do seu seguimento fiel. Jesus convida o discípulo a assumir corajosamente uma atitude de repulsa ao domínio religioso e imperial vigentes. A cruz é, portanto, sinal e prova de que tal atitude foi assumida com seriedade. Tudo isso, claro, considerando que a cruz não era um adorno sacro, como foi adotado posteriormente, mas um sinal de morte, de rebeldia, inconformismo e humilhação, já que era a pena reservada ao que havia de pior na sociedade, ou seja, aos rebeldes que ameaçavam a ordem vigente e, por isso, “mereciam” uma pena humilhante e exemplar.

É lamentável que, de sinal de rebeldia, o cristianismo tenha transformado a cruz em sinal de resignação. Hoje, quando se fala em carregar a cruz, geralmente, se faz referência à aceitação passiva dos problemas e sofrimentos causados pelo sistema. Uma pena, pois esse tipo de cristianismo nada tem a ver com os propósitos de Jesus. A exigência de carregar a cruz foi e sempre será um convite à desobediência, à subversão e não aceitação das injustiças oficialmente cometidas pelas classes detentoras de poder. Sem essas disposições, se vive uma religião de fachada, se faz teatro, mas não há seguimento de Jesus.

O autêntico seguimento de Jesus é desafiador porque exige uma lógica completamente nova no modo de conceber a vida. Por isso, seus discípulos ainda não tinham compreendido. Ora, eles estavam seguindo-o como Messias, mas segundo o messianismo tradicional, ou seja, esperavam que Jesus fosse o messias glorioso, potente e guerreiro que, eliminando o poder romano, imporia o seu poder, restaurando o reino davídico-salomônico para impor-se sobre outros povos. Jesus, pelo contrário, proponha o Reino do seu Pai, um reino sem dominador nem dominados, mas um reino de servidores, iguais em dignidade e amor. Abraçar esse projeto ousado de Jesus é ver o mundo com outros olhos, é deixar de pensar somente em si para pensar no bem comum.

O jogo de palavras perda/ganho empregado por Jesus significa a passagem de uma mentalidade individualista para uma concepção comunitária de sociedade e de mundo (vv. 25-26). Mais que salvar sua vida, o cristão autêntico pensa no advento do Reino. Somente no Reino de Deus a vida pode ser vivida em sua plenitude e dignidade e, portanto, tentar vivê-la fora desse projeto é perdê-la, simplesmente. Vale lembrar que o Reino de Deus não é uma vida no além, mas a vida presente, uma vez que é no hoje, no dia-a-dia que o Reino de Deus deve ser edificado.

Somos desafiados por esse trecho do Evangelho a refletir e redefinir nossa maneira de viver e seguir a Jesus, cada vez mais conscientes dos desafios e dificuldades, renovando a coragem de abraçar a cruz, não como mero simbolismo, mas como disposição para a luta por um mundo novo, mesmo que isso nos renda, como rendeu a Jesus, o título de loucos, subversivos, bandidos e marginais. Os sinais do Reino só se tornam visíveis quando os cristãos tem coragem de viver na contramão do sistema!

   
 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...