Neste vigésimo sexto domingo do
tempo comum, a liturgia nos oferece Mateus 21,28-32 para o Evangelho, texto que
contém a curta parábola dos dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na sua
vinha. Embora haja um considerável intervalo espacial e temporal entre a parábola
proposta no domingo passado (“parábola dos trabalhadores da vinha” – Mt 20,1-16)
e a de hoje, é inegável a relação entre as duas, como veremos a seguir.
Iniciamos com a devida
contextualização, para chegarmos a uma interpretação mais adequada do texto. A
parábola está inserida no acirrado confronto entre Jesus e as autoridades
religiosas de Jerusalém, os sumos sacerdotes e os anciãos do povo. Com isso,
concluímos que Jesus já se encontra em Jerusalém e, portanto, seu ministério
está em sua última fase. Após uma entrada triunfante na cidade (cf. Mt
21,1-11), logo começaram os conflitos com as autoridades que não aceitavam sua
proposta de Reino dos Céus, uma vez que esse compreendia uma verdadeira
transformação da ordem vigente com a supressão de todas as estruturas de poder
e formas de dominação vigentes.
O confronto com as autoridades
começou com a denúncia do templo (cf. Mt 21,12-17); embora a maioria dos
estudiosos intitulem esse episódio como “purificação do tempo”,
preferimos usar o termo denúncia, uma vez que a atitude de Jesus em relação a
essa instituição é de completa oposição, desejando, inclusive, a sua destruição
(cf. Mt 24,1-2; Lc 21,6; ). Portanto, não tem sentido imaginar Jesus
purificando algo que, para Ele, nem deveria mais existir. Esse episódio do
templo foi o estopim para o conflito com as autoridades, e o Evangelho de hoje
faz parte desse conflito.
Ao ver Jesus ensinar na área do
templo, os sumos sacerdotes e anciãos lhe perguntaram com que autoridade Ele
fazia aquilo (cf. 21,23). Ora, o ensinamento de Jesus divergia completamente do
magistério oficial da época. Jesus não respondeu de modo afirmativo, mas também
interrogando-os, partindo do exemplo de João Batista e seu batismo,
deixando-os, assim, embaraçados (cf. 21,24-27). A nossa parábola de hoje está,
portanto, inserida nesse confronto e, através dela, Jesus denuncia a falsa
autoridade dos chefes religiosos de seu tempo, apresentando um novo caminho de
relacionar-se com o Deus que é Pai, e reforçando o que já havia introduzido no
discurso da montanha: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará
no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos
céus.” (cf. Mt 7,21).
Como o início do texto sugere, “Que
vos parece?” (em grego: Ti, de.
u`mi/n dokei/È – Tí
dé hímen dokei?), o que vem a seguir visa reforçar algo já introduzido na
discussão de Jesus com seus interlocutores, os sumos sacerdotes e anciãos do
povo. Essa introdução interrogativa é uma chamada de atenção para o que vem a
seguir; significa que se trata de um ensinamento de fundamental importância: “Um
homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai
trabalhar hoje na vinha” (v.
28). A vinha (em
grego: avmpelw/n – ampelon) é uma
imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus (cf. Is Is
5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino dos Céus (cf. Mt 20,1-16) por
Ele inaugurado. Diz o texto que o pai dirigiu-se também ao outro filho e fez a
mesma proposta (v. 30a), ou seja, também pediu para ir trabalhar na sua vinha.
A imagem de Deus como pai já soava
como provocação aos chefes religiosos do tempo de Jesus, afinal, o Deus deles
era um patrão e juiz. Essa imagem se torna ainda mais chocante quando Jesus diz
que aquele pai tinha dois filhos. Ora, Deus tinha escolhido um único povo,
Israel, e nada tinha a dizer aos outros povos. Portanto, comparar Deus a um pai
com dois filhos tratados da mesma maneira era uma proposta absurda, conforme a
imagem de Deus cultivada e transmitida pela religião oficial da época.
O pai fez a mesma proposta aos
dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu respostas
diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do pai: “Não
quero’. Mas depois mudou de opinião e foi” (v. 29). Aqui, é necessário
fazer uma pequena correção à versão litúrgica do texto: ao invés de “mudou
de opinião”, o evangelista diz, na língua original do texto, que ele “arrependeu-se”
(em grego: metamelhqei.j – metamelteis). Em outras
palavras, podemos dizer que aquele filho “converteu-se e foi trabalhar na
vinha”. Eis,
agora, a resposta-reação do segundo filho: “Sim, Senhor, eu vou’. Mas não
foi” (v. 30). Como vimos, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes
de cada um deles. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola está
exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos dois
filhos. Historicamente, Israel, como povo da aliança, disse sim a Deus com
palavras, embora seu comportamento tenha se distanciado tanto da verdadeira
vontade de Deus. Com esse contraste entre os dois filhos, Jesus provoca seus
interlocutores e os convida a uma reflexão.
Como a parábola foi usada por
Jesus para provocar em seus interlocutores uma reflexão, eis que Ele lhes pede
um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: “Qual dos dois fez a vontade do
pai?” Os sumos sacerdotes sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “O
primeiro” (v. 31a). Os sumos sacerdotes e anciãos do povo não poderiam
responder de outra maneira: de fato, quem fez a vontade do pai foi o primeiro
filho, aquele que disse “não”, verbalmente, ao convite do pai, mas mudou de
ideia, ou seja, converteu-se e foi trabalhar na vinha. Ao ir trabalhar, esse
primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do pai, mesmo tendo respondido
negativamente, uma vez que o importante para Deus não são as palavras, mas sim
as atitudes. O segundo, pelo contrário, não fez a vontade do pai porque ficou
apenas no discurso, não levou a solene resposta “Sim, Senhor” para a
prática.
A resposta dos interlocutores
de Jesus, os sumos sacerdotes e anciãos do povo, foi uma verdadeira sentença de
auto-condenação. Aplicando a imagem do pai a Deus e dos dois filhos a Israel e aos
pagãos, Jesus queria levá-los a conscientização das contradições da
religiosidade que praticavam. E, ao recordar isso, Mateus chama a atenção da
sua comunidade para também não cair nos mesmos erros da antiga religião. Por sinal,
Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha: “Não é aquele
que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que
realiza a vontade do meu Pai que está nos céus.” (cf. Mt 7,21), e em uma
discussão com os escribas e fariseus, ao citar diretamente o profeta Isaías: “Este
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (cf. Mt
15,8 = Is 29,13).
Com certeza os chefes
religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação em que
tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o clima
piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: “Então
Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as
prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (v. 31b). Dessa vez, Jesus
passou dos limites, pensaram eles. Enquanto os acusava em linguagem simbólica,
poderiam ignorar ou mudar o foco. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não
era possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a
mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da
sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdariam primeiro o Reino de Deus do
que as pessoas religiosas de Israel. Essa afirmação soava como absurdo para o
auditório de Jesus.
A rejeição dos chefes à
mensagem de Jesus é comparável a rejeição sofrida por João (v. 31). De fato,
também o precursor viera “num caminho de justiça” (em grego: evn o`dw/| dikaiosu,nhj – en hodô dikaiosines), mas fora rejeitado pelos
conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas religiosas como os
sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à autossuficiência de
suas convicções religiosas. Já “os cobradores de impostos e as prostitutas”
(v. 31b), rejeitados pela religião e abertos à conversão, sedentos de
compreensão e acolhimento, acreditaram no Batista e em Jesus, tornando-se,
assim, herdeiros do Reino dos Céus, a nova vinha do Pai, que é Deus. Desse modo,
a máxima proverbial que concluía a parábola do domingo passado, é atualizada na
parábola de hoje: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros
serão os últimos” (Mt 20,16).
É importante que, assim como a
comunidade de Mateus soube atualizar essa mensagem, também as nossas
comunidades de hoje saibam. Os primeiros de sempre, transformados em últimos na
dinâmica do Reino serão sempre as pessoas autossuficientes, arrogantes,
conhecedoras dos mínimos detalhes das leis religiosas, como eram os sacerdotes,
anciãos e escribas da época de Jesus. Hoje, embora em outras modalidades, essas
pessoas continuam presentes em nossas comunidades, com a mesma autossuficiência,
julgando, excluindo e determinando como o outro deve agir.
É preciso identificar quem são
os últimos de hoje para os reconhecermos como primeiros no Reino. Na época,
Jesus identificou os cobradores de impostos e as prostitutas, exemplos máximos
de perversão para a época. Hoje, certamente há uma relação muito maior de
categorias de pessoas excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que
Jesus as colocaria como primeiras no Reino dos céus. Todos os que sofrem
descriminações e exclusões por quem controla e impõem as normas de
comportamento: as prostitutas, a população LGBT, ex-presidiários, moradores de
rua, mães solteiras, menores infratores e tantas outras categorias, estariam na
lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os lábios, mas pouco fazem
para o Reino de fato acontecer, ou seja, não fazem a vontade do pai!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues