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sábado, agosto 12, 2023

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 14,22-33 (ANO A)



A liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a leitura de Mt 14,22-33. Trata-se do relato da manifestação de Jesus andando sobre o mar, indo ao encontro dos seus discípulos que corriam perigo na barca, devido à agitação das ondas. É um episódio narrado também por Marcos e João (Mc 6,45-52; Jo 6,12-21), sendo que a versão de Mateus se sobressai sobre as demais, possuindo mais elementos exclusivos. O fato de ser um episódio comum a Mateus, Marcos e João já constitui uma primeira novidade, pois, geralmente, quando uma cena é narrada apenas por três evangelhos, esses são Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como os três sinóticos. É sempre importante recordar que os evangelhos enquanto livros escritos não são relatos cronísticos da vida de Jesus, mas narrativas catequéticas para a formação do discipulado e a edificação das comunidades cristãs de todos os tempos, começando por aquelas onde atuavam os respectivos evangelistas (autores). No caso específico do Evangelho de Mateus, escrito cerca de cinco décadas após a morte e ressurreição de Jesus, ele visa responder a uma comunidade profundamente marcada por crises, causadas tanto por aspectos externos quanto internos. E o evangelista responde às crises da sua comunidade recordando momentos de crise vividos pelo próprio Jesus junto com seus primeiros discípulos, e ilustrando conforme a sua própria criatividade e o uso de tradições disponíveis. O evangelho de hoje é uma boa demonstração desse processo.

O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, que fora decapitado a mando de Herodes (Mt 14,1-12). Apesar das divergências de mentalidade, Jesus e João eram muito próximos afetivamente, e eram conscientes da continuidade entre os dois. Inclusive, há fortes indícios de que, antes de constituir o seu próprio grupo de seguidores, Jesus fora discípulo de João. Contudo, apesar dessa proximidade, é certo que Jesus não correspondeu às expectativas de João, que esperava um messias guerreiro, justiceiro e até violento (Mt 3,1-12), conforme a ideologia nacionalista vigente, ancorada no messianismo davídico. Contudo, os dois eram próximos. Por isso, inevitavelmente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial. Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar. Por isso, o evangelista diz que ele «foi a um lugar deserto para estar a sós» (Mt 14,13). Porém, ele não conseguiu de imediato esse desejado momento para estar sozinho porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança, como agente humanizador no mundo, mediante o amor misericordioso de Deus que ele revelava.

O drama era total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, e sabendo ele também não demoraria muito a ser condenado e morto, Jesus encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Diante disso, seu sentimento não poderia ser outro: «teve compaixão» (Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento; era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude nas pessoas, essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma. A compaixão de Jesus era força humanizante para as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, marginalizadas e pobres. Essa situação, inclusive, gerou um pequeno atrito entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, pois encontravam-se numa região deserta, e os discípulos, por comodismo, sugeriram a Jesus que as mandasse embora e, assim, cada um se virasse por conta própria. Jesus, ao contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento para as multidões famintas: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mt 14,16); os discípulos reclamam que aquilo que eles têm é muito pouco para tanta gente: apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu e todos ficaram saciados. A partilha é sempre um milagre, sobretudo quando é motivada pelo amor. Certamente, o clima entre Jesus e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão para a oração e reflexão se tornou ainda mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise entre os discípulos.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto de hoje, partindo do primeiro versículo, que diz: «Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões» (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original que “Jesus obrigou” os discípulos a entrar na barca. Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir «para o outro lado do mar», ou seja, para a outra margem. Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se aos perigos, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, sobretudo no Evangelho de Mateus; ela só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos e levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Com isso, o evangelista recorda que ser Igreja é estar sempre em saída. Sem movimentos de travessia não existe fidelidade ao projeto de Jesus. Talvez, os discípulos esperassem até um reconhecimento ou comemoração, após o milagre da partilha dos pães, afinal, eles tinham colaborado diretamente, pois o próprio Jesus ordenou que eles providenciassem o alimento das multidões, com a ordem «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mt 14,16). Mas o que Jesus faz é encaminhá-los para novos desafios, como enfrentar o mar e chegar nas terras dos pagãos, o que todo judeu observante queria evitar.

Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, el «subiu ao monte para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho» (v. 23). A oração pessoal de Jesus é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, por exemplo, mas indispensável. Na verdade, na narrativa de Mateus, Jesus só se retira para rezar duas vezes: aqui, e já no contexto da paixão, quando reza no Monte das Oliveiras (Mt 26,36). Trata-se de um dado que pode parecer simples, mas é muito significativo. Quer dizer que a oração, na perspectiva de Mateus, está sempre associada a momentos dramáticos da vida de Jesus, marcados por crises e necessidade de renovação das convicções da missão. Isso significa que o evangelista não ignora nem torna secundária a oração na vida de Jesus, mas a valoriza tanto, a ponto de reservá-la para momentos de grande relevância. Nesse primeiro momento, a oração está associada à crise provocada pela morte do Batista e o confronto com os discípulos; no segundo, já no contexto da paixão, está associada à própria morte de Jesus, que também ocasionará crise entre os discípulos, tanto durante o processo e condenação quanto até mesmo nos primeiros momentos após a ressurreição. A oração acontece no monte que, na tradição bíblica, é o lugar do encontro com Deus, lugar da intimidade com o Pai e Criador. Embora a fé cristã seja essencialmente comunitária, a necessidade de momentos para estar sozinho e em silêncio é indispensável. Jesus sentiu essa necessidade e nada lhe fez renunciar. É importante recordar essa dimensão, até para evitar ativismos desenfreados. E ele tinha acabado de fazer um “milagre” maravilhoso: junto com os discípulos, tinha alimentado uma grande multidão de pessoas famintas. Certamente, sua oração foi também um agradecimento ao Pai por isso.

Logo nos dois primeiros versículos do evangelho de hoje, portanto, percebemos duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã, ensinadas por Jesus e tão bem recordadas pelo evangelista: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída, em alto mar, enfrentando os riscos que isso comporta. Por isso, na continuidade do relato, o evangelista diz que, quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela «era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário» (v. 24). Essa imagem da barca agitada pelas ondas é exclusiva de Mateus. Nos outros evangelhos que possuem versão paralela do episódio, fala-se apenas do vento contrário e da dificuldade de os discípulos remarem na adversidade. Apenas Mateus diz que a barca estava agitada. Embora a barca seja imagem da Igreja em praticamente todas as tradições literárias e teológicas da Igreja nascente, é em Mateus que ela é mais valorizada. A barca agitada pelas ondas representa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: άνεμος – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino, na época da redação do Evangelho de Mateus, em meados dos anos 80 do primeiro século: 1) a oposição das lideranças da sinagoga (judaísmo oficial); 2) as forças do império romano, 3) o medo/comodismo dos próprios discípulos. São três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem e chegar no mundo inteiro.

Dos três obstáculos que a ameaçavam a comunidade em sua “travessia”, o principal era o medo/comodismo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou até mesmo a desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas. Mas, quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro «andando sobre o mar» (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo do que é caótico, algo que o ser humano não tem forças para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele. A imagem de Jesus andando sobre o mar, portanto, não é a crônica de mais um milagre, e sim a demonstração de ele não se intimida diante do mal; ele enfrenta e vence. Por isso, esse texto é altamente carregado de ressonâncias pascais: faz memória do primeiro êxodo e antecipa o êxodo definitivo, que é a Ressurreição de Jesus, quando ele venceu definitivamente o mal e sua principal consequência, que é a morte.

Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: «Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo» (v. 26). O medo (em grego: φόβος – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar “inimigos” para si ao longo da história, distanciando-se do Evangelho. O medo é o tipo de vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: «Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!» (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, É! De fato, com a afirmação «Sou eu» (em grego: έγώ είμι – egô eimí), Jesus recorda e atualiza a ação do Deus libertador do Êxodo (Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado. Toda vez que Jesus pronuncia a fórmula «Sou eu/Eu sou» ele está afirmando sua identidade divina. No Evangelho de Mateus, essa afirmação possui uma relevância ainda maior, pois recorda, além da identidade de Jesus, também a sua presença constante na vida da comunidade. No início do Evangelho, ele fora apresentado como «Deus é conosco» ou «Deus está conosco», e trata-se do mesmo Deus libertador e do êxodo. É o Deus que liberta e humaniza, não porque faz grandes prodígios, mas porque está presente, caminha e é.

Diante da presença de Jesus que anda sobre as águas, Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: «Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água» (v. 28). É exatamente nessa passagem que Pedro assume o protagonismo entre os discípulos, especialmente no Evangelho de Mateus. A partir de agora, sempre que ele falar, será como síntese do grupo. Sua fé é parâmetro da fé da comunidade. Ele assume um protagonismo único, mas que nem sempre será um protagonismo positivo; na verdade, é cheio de contradições, cuja demonstração maior será a tríplice negação. De agora em diante, ele será sempre o primeiro a agir, a responder e a propor, e quase sempre será repreendido por Jesus. Mas é exatamente por isso que ele se torna modelo de discípulo válido para todos os tempos, pois as suas atitudes mostram que Jesus não busca pessoas perfeitas para o seu seguimento, mas homens e mulheres normais, com qualidades, defeitos e contradições. Inclusive aqui, nessa primeira intervenção como como porta-voz dos discípulos, Pedro já começa de maneira bastante negativa, pondo Jesus à prova. A sua proposta aqui é a mesma do diabo no episódio das tentações (Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (Mt 27,40): «se tu és...». Essa forma condicional de pedir sinais a Jesus é sempre uma tentação, além de ser também uma demonstração de falta de convicção e de fé sólida. Por isso, o próprio Pedro se sentirá afundando, como dirá a sequência do texto.

A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: «Vem!» (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua fé imatura e contraditória. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo ainda estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: «Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!» (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Por isso, queria vencê-los milagrosamente. Essa passagem específica também reforça a importância e a necessidade da comunidade na vivência da fé. Pedro começou a afundar porque deixou a barca, fez uma proposta individual, deixando os demais discípulos na barca, a mercê. No meio da tempestade, a barca se agitou pela força das ondas, mas resistiu, não afundou. Quando saiu da barca, Pedro começou a afundar. Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, «Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?’» (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, chamando-o de homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: όλιγόπιστος – oligópistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer. Assim, Jesus repreende a Igreja e seus membros quando buscam sinais extraordinários e não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo, apoiando-se em falsos triunfalismos. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, desempenhando a função de tentadora de Jesus, ao invés de ser edificadora do Reino.

Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que «O vento se acalmou» (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. Assim, «Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: ‘Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!’»  (v. 33). Temos aqui uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções. A prostração, especialmente no Evangelho de Mateus, é a atitude de adoração, de reconhecimento da divindade de Jesus. Inclusive, os primeiros a fazer isso foram os magos estrangeiros (Mt 2,11), os quais também têm a oferecer e a ensinar. No encontro com o Ressuscitado, no final do Evangelho, os discípulos repetirão o gesto e, também ali, dirá o evangelista que alguns ainda duvidaram (Mt 28,17). Logo, a dúvida sempre estará presente na vida da comunidade; porém, não pode levar os discípulos a trocarem o compromisso de superar as adversidades com responsabilidade por sinais extraordinários e fantasiosos. As situações de perigo e provação devem levar a Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: «Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem?» (8,27). A resposta foi dada agora, seis capítulos depois: é o Filho de Deus, aquele que é e está sempre presente, oferecendo amor e misericórdia, dando a mão aos necessitados, humanizando o mundo.

 O evangelho deste dia interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhecê-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 08, 2020

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 14,22-33 (ANO A)

 

O evangelho deste décimo nono domingo do tempo comum – Mt 14,22-33 – é a continuação direta daquele que fora lido na liturgia do domingo passado. Por isso, o contexto é o mesmo. É sempre importante recordar que os evangelhos enquanto livros escritos não são relatos cronísticos da vida de Jesus, mas narrativas catequéticas para a formação do discipulado e a edificação das comunidades cristãs de todos os tempos, começando por aquelas onde atuavam os respectivos evangelistas (autores). No caso específico do Evangelho de Mateus, escrito há cerca de cinquenta anos após os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ele visa responder a uma comunidade profundamente marcada por crises, causadas tanto por aspectos externos quanto internos. E o evangelista responde às crises da sua comunidade recordando momentos de crise vividos pelo próprio Jesus junto com seus primeiros discípulos, e ilustrando conforme a sua própria criatividade e o uso de tradições recebidas de outros. O evangelho de hoje é uma boa demonstração desse processo.

O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, que fora decapitado a mando de Herodes (Mt 14,1-12). Apesar das divergências de mentalidade, Jesus e João eram muito próximos afetivamente, e eram conscientes da continuidade entre os dois. Jesus não correspondeu às expectativas de João, que esperava um messias guerreiro, justiceiro e violento (Mt 3,1-12). Apesar disso, os dois eram próximos. Por isso, inevitavelmente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que Ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial.

Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar; por isso, “foi a um lugar deserto para estar a sós” (Mt 14,13). Porém, não conseguiu logo esse desejado momento de solidão porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança. O drama é total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, sabendo que em breve também Ele seria condenado e morto, encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Seu sentimento não poderia ser outro: “teve compaixão” (Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento; era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude; essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma.

Disso, surgiu um pequeno desentendimento entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, os discípulos, por comodismo, sugeriram que Jesus as despedissem; Jesus, pelo contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16); os discípulos reclamam que o que eles têm é muito pouco, apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu. Certamente, o clima entre Ele e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão se tornou cada vez mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise nos discípulos.

Terminada a contextualização, olhamos para o nosso texto: “Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões” (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original “Jesus obrigou”. Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir “para o outro lado do mar”, ou seja, para a outra margem. Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se ao perigo, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, a qual só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos, mas levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Ser Igreja é estar sempre em saída!

Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, “subiu ao monte para orar a sós” (v. 23). A oração pessoal de Jesus é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, mas indispensável. Na verdade, em Mateus Jesus só se retira para rezar duas vezes: aqui e já no contexto da paixão, quando reza no Monte das Oliveiras (Mt 26,36). O monte é, na tradição bíblica, o lugar do encontro com Deus, da intimidade com o Criador. Nesses dois primeiros versículos do Evangelho de hoje, Jesus apresenta duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída. Subir ao monte sem descer depois para enfrentar os mares da vida é inútil, bem como é inevitável o naufrágio quando se arrisca no mar sem ter feito antes a experiência do monte.

Quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela “era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (v. 24). É essa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: άνεμος – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino: 1) a oposição das lideranças da sinagoga (judaísmo oficial), 2) as forças do império romano, 3) o medo/comodismo dos discípulos. Três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem, ou seja, chegar no mundo inteiro. Desses, o principal era o medo/comodismo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou até mesmo a desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas.

Quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro “andando sobre o mar” (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo de caótico, algo que o ser humano não tem forças para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele.

Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: “Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo” (v. 26). O medo (em grego: φόβος – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar ‘inimigos’ para si ao longo da história. É o vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, É! De fato, com a afirmação “Sou eu” (em grego: έγώ είμι – egô eimí), Jesus recorda e atualiza ação do Deus libertador do Êxodo (Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado.

Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). É exatamente nessa passagem que Pedro assume o protagonismo entre os discípulos, especialmente no Evangelho de Mateus. Porém, não se trata de um protagonismo sempre positivo; na verdade, é cheio de contradições, cuja demonstração maior serão as negações. De agora em diante, ele será sempre o primeiro a agir, a responder e a propor, e quase sempre será repreendido por Jesus. Mas é exatamente por isso que se torna modelo de discípulo válido para todos os tempos, pois as suas atitudes mostram que Jesus não busca pessoas perfeitas para o seu seguimento, mas homens e mulheres normais, com qualidades e defeitos. Inclusive aqui, nessa primeira intervenção como como porta-voz dos discípulos Pedro já começa de maneira bastante negativa, pondo Jesus à prova. A proposta de Pedro aqui é a mesma do diabo no episódio das tentações (Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (Mt 27,40): “se tu és...”. Pedir sinais a Jesus é sempre uma tentação, além de ser também uma demonstração de falta de convicção e de fé sólida. Por isso o próprio Pedro se sentirá afundando, como dirá a sequência do texto.

A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: “Vem!” (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua falta de fé e convicção. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: “Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!” (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Por isso, queria vencê-los milagrosamente.

Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, “Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?” (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, chamando-o de homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: όλιγόπιστος – oligópistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer. Jesus repreende a Igreja e seus membros quando buscam não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo, apoiando-se em falsos triunfalismos. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, desempenhando a função de tentadora de Jesus, ao invés de edificadora do Reino.

Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que “O vento se acalmou” (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. Assim, “Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”  (v. 33). É uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções. A prostração, especialmente no Evangelho de Mateus, é a atitude de adoração, de reconhecimento da divindade de Jesus. Inclusive, os primeiros a fazer isso foram os magos estrangeiros (Mt 2,11), os quais também têm a oferecer e a ensinar. No encontro com o Ressuscitado, no final do Evangelho, os discípulos repetirão o gesto e, também ali, dirá o evangelista que alguns ainda duvidaram (Mt 28,17). Logo, a dúvida sempre estará presente na vida da comunidade; porém, não podem levar os discípulos a trocarem o compromisso de superar as adversidades com responsabilidades por sinais extraordinários e fantasiosos.

As situações de perigo e provação devem levar à Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: “Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem? (8,27). A resposta foi dada seis capítulos depois: é o Filho de Deus!

 O Evangelho interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhece-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, agosto 01, 2020

REFLEXÃO PARA O 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 14,13-21 (ANO A)


O evangelho que a liturgia propõe neste domingo, o décimo oitavo do tempo comum, corresponde ao primeiro relato do episódio conhecido popularmente como “multiplicação dos pães” no Evangelho segundo Mateus – Mt 14,13-21. De todos os gestos de Jesus considerados milagres, esse é o único relatado nos quatro evangelhos, com seis versões ao todo, já que em Mateus e Marcos aparece duas vezes (Mt 14,13-21; 15,32-38; Mc 6,30-44; 8,1-9). Esses dados indicam a importância que o episódio teve para as primeiras comunidades cristãs e, provavelmente, o cuidado para que não fosse distorcido e nem fantasiado; por isso, preferiram narrá-lo integralmente várias vezes, embora cada uma das versões apresente certas particularidades.

Hoje, lemos a primeira versão de Mateus e, como sempre, iniciamos considerando o seu contexto. O texto localiza-se praticamente na metade do evangelho; mais do que importância, esse dado indica que Jesus já realizou muita coisa, o seu ministério já estava bem avançado, basta olhar um pouco para trás e perceber isso: três dos cinco discursos já foram proferidos (Mt 5–7; 10; 13), os discípulos já foram enviados em missão, muitas curas já foram realizadas. Portanto, mesmo que não compreendessem totalmente e nem aceitassem completamente o que Jesus proponha, a sua mensagem se popularizava cada vez mais, e as multidões que o seguiam atestam isso. Logo, tornava-se cada vez mais necessário que Jesus deixasse clara a natureza do seu messianismo, que não correspondia aos anseios nacionalistas e triunfalistas da época. Por isso, Jesus procurava cada vez mais evitar atitudes que pudessem insinuar triunfalismos em seu ministério. Tudo isso aponta para o cuidado com que esse episódio chamado de “multiplicação dos pães” deve ser interpretado.

O contexto imediato é fornecido pelo próprio texto, na versão litúrgica, que recorda o evento anteriormente narrado, a morte de João, o Batista, por ordem de Herodes: “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado” (v. 13a). Apesar das diferenças, era inegável a proximidade entre Jesus e João Batista. Jesus nutria grande afeto por ele, mesmo não correspondendo ao ideal de messias violento e justiceiro que João tinha anunciado (Mt 3,1-12). Inclusive, o reconheceu como o maior entre os nascidos de mulher e como profeta (Mt 11,7-14). Jesus reconhecia a continuidade entre a sua missão e a de João, o seu mentor, não obstante as divergências. Por isso, inevitavelmente, a morte de João mexeu com Jesus, ainda mais pela forma cruel como aconteceu. Daí, a necessidade de retirar-se, não por medo, mas por comoção. Seu estado interior pedia um momento de recolhimento.

O lugar deserto e afastado seria ideal para esse recolhimento que, certamente, seria marcado pela oração profunda, pela reflexão e, talvez, até pelo choro. Porém, não conseguiu ficar sozinho com seus discípulos porque “quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé” (v. 13b). O movimento das multidões em busca de Jesus demonstra o quanto ele já estava conhecido e o bem que ele fazia. As multidões o seguem porque ele tinha respostas para as suas necessidades. Abandonadas e exploradas pelas lideranças religiosas e políticas, as multidões recebiam atenção e cuidado de Jesus (Mt 9,36–10). O seu olhar era diferente, marcado pela compaixão: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (v. 14). As multidões até se anteciparam, chegando primeiro ao lugar deserto. Ao vê-las, Jesus não foge e nem as expulsa, mas se enche de compaixão. Numa ocasião anterior, o evangelista disse que ele sentiu compaixão, aos ver as multidões; agora, ele diz que Jesus encheu-se de compaixão. Quer dizer que a compaixão ocupa todo o ser de Jesus, faz parte da sua essência.

Compaixão significa um amor visceral; é um comover-se no mais profundo do ser – as vísceras ou entranhas – que resulta em ação concreta de libertação. Não se trata de um mero sentimento, mas de ação libertadora; é nisso que consiste a misericórdia de Deus, cuja expressão mais concreta é a própria pessoa de Jesus. Por isso, ele “curou os que estavam doentes”. Por doentes, o evangelista emprega um termo (em grego: arostos – άρρωστος) que compreende todas as pessoas frágeis, e não apenas os doentes fisicamente. São todas as pessoas destinatárias privilegiadas da misericórdia de Deus: doentes, aflitas, pobres, abandonadas, exploradas. Como o Evangelho de Jesus é um programa de vida completo, que contempla a vida em todas as suas dimensões, todas essas classes de pessoas são as primeiras contempladas. Por isso, a reação de Jesus ao ver essas pessoas foi encher-se de compaixão.

Diferente de Jesus foi o que os discípulos sentiram: “Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: ‘Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (v. 15). Pela referência ao entardecer, supõe-se muita coisa já realizada. Certamente, muito contato físico de Jesus com o povo, muito toque, muita escuta e muitas palavras proferidas; tudo ao contrário de quem estava procurando ficar sozinho. A reação dos discípulos parece ser de preocupação e cuidado com Jesus, mas na verdade é de indiferença e pouco compromisso com as multidões. A tendência deles é lavar as mãos diante das necessidades dos outros. Aconselham Jesus a mandar as multidões embora e que cada um “se virasse” para conseguir o alimento necessário.

Apesar do tempo de convivência e aprendizado, os discípulos ainda não tinham absorvido a mentalidade de Jesus; ainda não tinham assimilado a lógica da partilha e da solidariedade. Diante disso, a resposta de Jesus é praticamente uma repreensão: “Jesus, porém, lhes disse: ‘Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer” (v. 16). Como se vê, Jesus compromete os discípulos. Ao invés de lavar as mãos diante das necessidades dos outros, os seus discípulos devem sentir-se responsáveis. A comunidade cristã não pode assistir indiferente ou passivamente à fome no mundo. Biblicamente, a fome é também uma doença que deve ser curada, conforme ensinou Jesus, ao ordenar aos discípulos que dessem de comer às multidões. A mensagem de Jesus é um programa de vida que contempla também a dimensão material, inegavelmente. Portanto, saúde e pão devem ser prioridades na comunidade cristã.

Talvez indignados ou envergonhados com a advertência de Jesus, “Os discípulos responderam: ‘Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v. 17). Certamente, foram realistas. Tinham pouca coisa, provavelmente o suficiente para eles, mas quase nada para as multidões. A quantidade era pequena, mas total, era tudo o que tinham. O número sete, como resultado de cinco mais dois (5+2=7), significa totalidade. Logo, não se trata de números reais, mas de simbologia. Independentemente da quantidade, é como se os discípulos dissessem a Jesus que tudo o que tinham era insuficiente para o grande número de pessoas que estavam ali. Porém, Jesus não se importa com a quantidade; pede que os discípulos lhe levem tudo o que tem: “Jesus disse: ‘Trazei-os aqui” (v. 18). O problema começa a ser solucionado aqui, quando Jesus pede que os discípulos coloquem a disposição tudo o que têm, apesar de pouco. É isso o que Jesus espera das comunidades de todos os tempos. O pouco que cada um possui deve ser colocado a serviço de todos e, assim, o que é pouco se torna muito. Quando cada um apresenta o seu pouco, é premissa de fartura.

É interessante perceber que os discípulos recebem a responsabilidade de curar a fome, o que se faz pela partilha, mas tudo deve passar por Jesus. Primeiro, devem a apresentar a ele o que têm; nesse gesto está o reconhecimento de que tudo é dom de Deus e, por isso, deve ser destinado à partilha. Na continuação, diz o evangelista que “Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões” (v. 19). Como se vê, Jesus toma a iniciativa, e age como verdadeiro pastor, ao contrário dos líderes religiosos e políticos que tinham explorado e abandonado as multidões (Mt 9,36). Inclusive, todo este relato tem como pano de fundo o Sl 22(23), no qual o salmista reconhece Deus como o pastor que alimenta o povo e o faz descansar num prado verdejante (grama), como aqui. Os gestos de Jesus com os pães e os peixes antecipam a eucaristia, mas vão muito além de um rito: olhar para o céu – abençoar – (re)partir – dar/distribuir. São os passos que a comunidade cristã não pode parar de dar, não apenas como rito semanal, mas como vivência cotidiana, sobretudo onde e quando há multidões famintas de pão.

Como resultado da partilha, aliás, de todo um processo, o resultado foi este: “Todos comeram e ficaram satisfeitos e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios” (v. 20). Recordemos que houve todo um processo, o que não seria necessário caso se tratasse de um puro gesto sobrenatural de Jesus. De seu olhar compassivo, Jesus conferiu responsabilidade aos discípulos, provocou neles a disposição de colocar em comum tudo o que tinham, um gesto que inevitavelmente motivaria também outras pessoas, fazendo de tudo uma ação de graças a Deus, até a partilha que deixou todos satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade. A abundância é gerada quando ninguém considera somente seu o que possui, mas oferece, como dom, às necessidades do próximo. E a primeira necessidade do ser humano é o alimento, o pão de cada dia. No final, ainda sobrou, o que foi tudo recolhido. O alimento é sempre um dom de Deus, e o que é dom de Deus não pode ser desperdiçado. O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.

No final, a referência ao número dos que se alimentaram, o que também é um número simbólica que significa uma grande quantidade: “E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” (v. 21). Entre o número inicial de dons disponíveis para a partilha e a multidão alimentada há uma enorme diferença. Com isso, o evangelista quer ensinar que os resultados são sempre surpreendentes quando se põe em prática o que Jesus ensinou, e reforça o convite para a comunidade não ter medo de partilhar o que tem. O último dado considerado é a menção do evangelista às mulheres e crianças, o que reforça ainda mais a importância da partilha, pois significa que havia uma multidão incontável, e que a partilha gera sempre abundância. Somente Mateus faz essa observação. Apesar de sutil, é um aceno à inclusão. Mulheres e crianças eram consideradas categorias insignificantes, na época. O evangelista acena, com isso, que a comunidade cristã é aberta a todos e todas.

O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, como encontrar solução para o problema da fome, por exemplo. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do Reino, mas é ela mesma que tem que criar tais condições, encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, mas, no texto específico de hoje, a ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...