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sábado, junho 24, 2023

REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 10,26-33 (ANO A)



Neste décimo segundo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do discurso missionário de Jesus no Evangelho de Mateus, iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de ler a parte inicial desse discurso (vv. 1-8), compreendendo a convocação dos doze discípulos e o envio deles como apóstolos, após receberem autoridade para fazer o mesmo que Jesus fazia, e ainda as primeiras instruções para a missão. O texto lido hoje – Mt 10,26-33 – já se aproxima do final do discurso, pois foram saltados alguns versículos. O discurso missionário é o segundo dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, e ocupa todo o décimo capítulo. Ora, de todos os evangelistas, Mateus é aquele que mais priorizou a dimensão do ensino e a função de mestre na vida de Jesus, distribuindo os principais aspectos do seu ensinamento (em grego: διδασκαλία – didascalía) em cinco grandes discursos que delineiam a estrutura de todo o Evangelho, a saber: o discurso da montanha (Mt 5–7); o discurso missionário (Mt 10); o discurso em parábolas (Mt 13); o discurso comunitário (Mt 18) e o discurso escatológico (Mt 24–25).

Como indica o próprio título, o segundo discurso trata da missão, e foi motivado pelo inconformismo de Jesus diante da situação das multidões que estavam cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor, ou seja, abandonadas e exploradas pelos chefes dos poderes político, econômico e religioso da época. Em suas andanças, Jesus constatou um mundo abandonado, desumanizado, um povo vulnerável. Vendo isso, ele teve compaixão, ou seja, sentiu contorcerem-se as suas entranhas (Mt 9,36) e, inconformado, tomou uma atitude: chamou os seus discípulos e os enviou em missão, autorizando-os a fazer o mesmo que ele fazia: restituir vida, dignidade e esperança, anunciando o Reino e denunciando tudo o que impedia o ser humano de viver com dignidade. Isso indica que a missão cristã é uma verdadeira intervenção no mundo para humanizá-lo; por isso, implica em ações transformadoras em prol do bem do ser humano. Os discípulos-apóstolos de Jesus não são portadores de uma doutrina estática ou de um código moral, mas de uma mensagem transformadora e altamente comprometedora. Assim como Jesus, também eles não podem assistir passivamente às injustiças e sofrimentos do povo.

Anunciar que o “Reino dos Céus está próximo” exige a luta, o empenho e compromisso ativo para que tudo o que se opõe a esse Reino seja suprimido. Por Reino dos Céus, entende-se um mundo solidário, justo e fraterno, sem violência e nem ódio; um mundo humanizado. Quem assume essa causa, inevitavelmente, está sujeito a incompreensões, sendo vítima de perseguições hostilidades, como previu o próprio Jesus (Mt 10,16-25). Após alertar os discípulos sobre a quase certeza da perseguição, Jesus os encoraja para não desanimarem. E é isso o que compreende o texto lido hoje: o convite à coragem, à confiança no Pai e no próprio Jesus. Como última observação a nível de contexto, convém recordar que toda essa lógica e estrutura do texto correspondem mais à época da redação do evangelho e à situação da comunidade do evangelista, que já sofria perseguições, tanto do judaísmo oficial quanto da administração imperial romana, do que mesmo à época de Jesus. O evangelista recolheu os principais ensinamentos de Jesus e os distribuiu conforme suas intenções teológicas, habilidades literárias e a necessidades da sua comunidade, transmitindo-os como válidos para todos os tempos.

Tendo previsto a perseguição como inevitável na vida dos seus discípulos missionários, Jesus procura encorajá-los. Por isso, o imperativo negativo “Não tenhais medo” aparece três vezes no evangelho de hoje, funcionando como uma espécie de refrão; essa expressão é muito significativa em toda a Bíblia; nos dois testamentos, ela aparece com frequência nos contextos de vocação e missão. Vejamos o texto: «Não tenhais medo dos homens, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido. (v. 26) O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados!» (v. 27). A primeira motivação à coragem diz respeito ao anúncio. Como a mensagem de Jesus é transformadora e comprometedora, não pode ser anunciada por quem tem medo, pois é certo que trará consequências. Ao invés do medo que paralisa e acomoda, os discípulos devem proclamar o que Deus revela por meio de Jesus. Inclusive com os mesmos sentimentos de inconformismo e compaixão, como Jesus, diante do sofrimento e abandono das multidões.

O que havia de encoberto até então, e que não poderia mais permanecer, era o que Jesus já tinha ensinado somente aos discípulos. Não se trata de planos secretos e mistérios, mas da mensagem de Jesus, até então pouco conhecida. Tinha chegado o momento de tornar público, fazer espalhar o que os discípulos estavam aprendendo com o mestre, especialmente o seu jeito de viver. Por isso, é um anúncio que não tem sentido se não for acompanhado pelo testemunho. O estilo de vida de Jesus, retratado nas bem-aventuranças (Mt 5,1-12), já é uma grande denúncia do sistema, e a única maneira de anunciá-lo com credibilidade é vivendo à sua maneira. As expressões “o que vos digo na escuridão” e “o que vos digo no pé do ouvido” significam tudo aquilo que somente os discípulos ouviram e viram Jesus fazer, até então; é o aprendizado que somente a convivência favorece. Na verdade, tudo de Jesus deve ser anunciado sem medo, com palavras e testemunho, de modo que se torne conhecido por todo o mundo. Por isso, o imperativo “proclamai-o sobre os telhados”, que é um convite ao esforço e à criatividade no anúncio. Na época da redação do evangelho, a comunidade de Mateus estava em processo de separação do judaísmo oficial; era um grupo marginalizado. Os discípulos não tinham os púlpitos das sinagogas à disposição, como os rabinos da época tinham, nem podiam acomodar-se a estruturas estáticas e cômodas, tampouco poderiam recuar do anúncio por medo. Por isso, deveriam buscar alternativas para o anúncio, com ousadia e criatividade, transformando até mesmo os telhados da casa em púlpitos, se fosse necessário.

O convite à coragem é recordado novamente: «Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!» (v. 28). Dessa vez, Jesus alerta para a real possibilidade do martírio na vida dos seus discípulos missionários. Um pouco antes, tinha alertado que eles sofreriam açoites, seriam entregues nas sinagogas e tribunais (10,17). Agora, alerta que até a morte é provável, mas apesar disso eles não devem ter medo, pois a vida em sua totalidade pertence somente a Deus. Aqueles que imaginam matar, na verdade só podem destruir o corpo; eles não têm poder sobre a alma, que significa a totalidade do ser da pessoa; é a vida mesma em sua inteireza. Aqui, essa distinção não corresponde ao dualismo corpo–alma, típico do pensamento grego. Para a mentalidade hebraica, a alma (em grego: ψυχή – psiquê) é a totalidade do ser da pessoa, é a própria vida; o corpo não é o seu oposto, mas um elemento integrante que, ao perecer, não significa o fim da vida. Portanto, Jesus está encorajando os discípulos a não terem medo e, ao mesmo tempo, garantindo que a vida deles está nas mãos de Deus, o Pai. O que os discípulos devem temer é a perda total da vida, o que não é um castigo, mas consequência das próprias escolhas. O termo grego empregado pelo evangelista e traduzido por inferno (γέεννα – ghéena) descreve o “lixão” de Jerusalém: o local onde era jogado e queimado todo o lixo da cidade, incluindo os restos de animais, o que aumentava consideravelmente durante as festas religiosas; isso gerava um fogo permanente, com odor desagradável, e passou a ser usado por muitos pregadores como imagem do inferno, o destino dos pecadores. Mateus emprega com uma conotação mais amena: não vê como castigo, mas como sinônimo do que não tem sentido, o que é inútil. E, para ele, inútil e sem sentido é a vida de quem tem medo de anunciar o Evangelho e assumir as suas consequências.  

O encorajamento à missão passa pela confiança na providência do Pai, o que vem ilustrado pelo exemplo dos pardais e dos fios de cabelo, elementos considerados insignificantes, conforme a mentalidade da época: «Não se vendem dois pardais por algumas moedas? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai. (v. 29) Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados (v. 30) Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais» (v. 31). De fato, só é possível superar o medo com a confiança no Pai. Os pardais eram os pássaros de menor valor, inclusive considerados nocivos para as plantações, pois devoravam os grãos antes da colheita. Também serviam de alimentação para os pobres, sendo comercializados como a carne mais barata. Não obstante essa aparente insignificância, eles fazem parte da criação e estão também sob os cuidados do Pai, por isso, são também importantes. Um fio de cabelo era considerado o menor e mais inútil elemento do corpo humano e, mesmo assim, cada um é contado pelo Pai, logo, também tem a sua importância. Ora, se até com coisas aparentemente tão insignificantes Deus tem cuidados, muito mais tem com a vida dos discípulos e discípulas do seu Filho, os anunciadores do seu Reino e construtores de um mundo novo.

É preciso, portanto, coragem para anunciar e testemunhar, declarando-se a favor de Jesus e do seu projeto de vida e libertação: «Portanto, todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele. (v. 32) Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus» (v. 33). Declarar-se a favor de Jesus significa ser no mundo sinal da sua própria presença; indignando-se ao contemplar pessoas abandonadas e sofridas, e buscar soluções transformadoras; é agir com misericórdia diante do sofrimento das pessoas, denunciando as injustiças e todos os impedimentos ao florescer do Reino dos Céus. É ser agente de humanização do mundo. Negar Jesus diante dos homens, portanto, não é deixar de proclamar uma fórmula de fé ou doutrina, mas deixar de viver o seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças. Tudo isso, é claro, gera consequências, o que não deve ser interpretado como prêmio ou castigo, mas apenas como fruto de escolhas e opções feitas. Declara-se a favor de Jesus, portanto, quem se empenha na humanização do mundo, quem age em favor da vida em todas as suas dimensões, incluindo a inteira criação.

Pela intimidade entre Jesus e o Pai, obviamente, o declarar-se a seu favor é também receber o seu testemunho diante do Pai. Quem tem intimidade com Jesus se torna íntimo do Pai que lhe enviou. E essa intimidade se constrói fazendo as mesmas opções de Jesus e vivendo como ele. Para isso, é preciso, acima de tudo, coragem e perseverança, pois essas opções comportam exigências e, inevitavelmente, trazem consequências, como a doação da própria vida.

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, junho 16, 2023

REFLEXÃO PARA 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36–10,8 (ANO A)





Neste décimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia continua a leitura sequencial do Evangelho de Mateus, retomada no domingo passado, após o ciclo pascal e o ciclo de solenidades seguintes. O texto proposto para hoje – Mt 9,36–10,8 – compreende o envio dos doze apóstolos em missão, por Jesus, para sanar a situação de abandono do povo de Israel, devido à negligência e corrupção de seus líderes, os dirigentes políticos e religiosos que fugiram das responsabilidades de pastores. Esse envio é fruto do olhar compassivo de Jesus, que não fica indiferente diante das situações de abandono e opressão pelas quais passam os seres humanos. Jesus sempre toma iniciativas que visam a transformação de todas as situações de ameaça à vida. E essa postura deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

A nível de contexto, podemos observar que se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma das principais características literárias do Evangelho segundo Mateus, conforme já recordamos no domingo passado, ao contextualizar o texto daquele dia. O texto de hoje compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao discurso da montanha (Mt 8,1–9,38) e a introdução de um novo discurso, o chamado “discurso missionário” ou “apostólico” (Mt 10), composto pelo envio missionário e uma série de instruções e advertências sobre a missão. O discurso missionário é o segundo dos cinco discursos atribuídos a Jesus no Evangelho Mateus, o evangelista que mais se preocupou em apresentar Jesus como o mestre que ensina com autoridade. Para compreender melhor o texto, é importante recordar também o que afirma o versículo que o antecede, que sintetiza a missão de Jesus até então: «Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade» (9,35). O que Jesus irá fazer nos versículos seguintes, correspondentes ao evangelho de hoje, é habilitar os seus discípulos como cooperadores da sua missão, para fazer o mesmo que ele fazia. E o que ele fazia era proclamar o Evangelho do Reino, cujo efeito primordial é a humanização do mundo.

Ao longo dos Evangelhos, podemos perceber que são sempre as situações concretas que motivam a ação e a pregação de Jesus. Ele nunca parte de meras abstrações, mas da realidade. O texto de hoje é uma boa demonstração disso. Olhemos, então, para o início, compreendendo os três primeiros versículos: «Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: (v. 36) ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. (v. 37) Pedi, pois, ao dono da messe que que envie trabalhadores para a sua colheita!» (v. 38). A itinerância da atividade de Jesus (Mt 9,35) lhe permitia conhecer com profundidade as situações em que o povo se encontrava. Seu olhar nunca era superficial, mas sempre profundo, e amparado na realidade. Jesus contempla um povo abandonado, oprimido e maltratado; é isso o que significa a expressão “as multidões cansadas e abatidas”; não se trata de um cansaço físico e desânimo, apenas, mas de uma situação deplorável de total abandono e miséria. A comparação com ovelhas que não tem pastor é a prova disso. A ovelha era considerada o animal símbolo de vulnerabilidade e dependência; não possuía nenhum mecanismo de defesa próprio; dependia essencialmente dos cuidados dos pastores. Logo, ovelha sem pastor é imagem de completo abandono. Com essa imagem, portanto, Jesus descreve a situação do povo e, ao mesmo tempo, faz uma dura denúncia às classes dirigentes da época, tanto religiosas quanto políticas, responsáveis pelo abandono do povo.

Ao ver as multidões abandonadas, “Jesus compadeceu-se”, ou seja, sentiu compaixão, misericórdia. Não se trata de um mero sentimento, mas de algo muito mais profundo. O evangelista emprega aqui o verbo que expressa a máxima misericórdia de Deus (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknízomai), que significa literalmente “contorcer-se nas entranhas”. Para a mentalidade hebraica, as entranhas ou vísceras são o núcleo mais íntimo e profundo do ser humano. É uma realidade mais profunda até do que o coração, e é de lá que brota a misericórdia de Deus. E, mais do que sentimento, a misericórdia de Deus é ação libertadora. Portanto, é núcleo mais íntimo de Deus que é desencadeada a missão, inicialmente de Jesus, e compartilhada por ele com toda a comunidade cristã, tendo em vista a libertação do povo abandonado e explorado pelos sistemas dominantes nos âmbitos da economia, da política e da religião. Compadecido com a situação das multidões, Jesus não se desespera e nem se conforma; e é muito importante essa sua postura. Antes de tudo, ele reforça sua confiança no Pai, o dono da messe, outra imagem aplicada às multidões, a exemplo de ovelhas. A messe é a lavoura que está pronta para ser colhida, não pode mais esperar, pois pode perder-se, caso a colheita não aconteça logo. Aplicada às multidões abandonadas, significa que aquela situação exigia uma atitude urgente. Sem uma intervenção libertadora urgente, o povo perece. É importante que os discípulos e discípulas de todos os tempos tenham a sensibilidade de perceber as situações que necessitam de intervenção urgente, como a fome, as doenças, as manipulações ideológicas e tantos outros males. Diante disso, Jesus concilia a confiança no Pai com atitudes concretas: a designação de operários para a colheita, o que faz com o envio dos discípulos, transformados em apóstolos.

A messe é de Deus, quer dizer, é a Deus que o povo pertence, mas para que não se perca é necessária a colaboração humana. Por isso, «Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar todo tipo de doença e enfermidade» (10,1). A iniciativa de chamar os discípulos é uma advertência: o discipulado não é puro voluntarismo e nem hereditário, como era o sacerdócio do templo de Jerusalém; a iniciativa é sempre de Deus. Jesus está pondo em prática os efeitos da oração exigida antes: que os discípulos pedissem ao dono da messe que enviasse operários para a colheita. Como o enviado de Deus por excelência e intérprete autêntico da sua vontade, Jesus mesmo envia, compartilhando com seus discípulos a mesma autoridade recebida de Deus. «Expulsar espíritos maus e curar todo tipo de enfermidade» é uma imagem que significa o compromisso dos discípulos e discípulos de Jesus, em todos os tempos, de lutar contra todo o tipo de mal que ameaça a vida humana em sua integridade. Funciona como síntese da missão libertadora que deve caracterizar a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. Dessa missão depende a humanização do mundo. Por isso, não deve ser confundida com propaganda religiosa nem proselitismo. É o esforço da comunidade cristã para abolir as forças do mal presentes no mundo. Aqui, pela primeira e única vez, Mateus chama os doze primeiros discípulos de apóstolos (10,2), termo que significa “enviados”. Literalmente, apóstolo é uma pessoa enviada para representar fisicamente aquele que lhe enviou, inclusive em processos judiciais. Mas antes de ser apóstolos eles são discípulos. Também é a primeira e única vez em que ele elenca os nomes dos doze, começando por Simão, chamado Pedro, e terminando com Judas, o qual se desintegrará do grupo após a traição, durante o processo (10,2-4). Não se trata de uma lista hierárquica, bem como a designação de discípulos em apóstolos não é uma promoção, mas um compromisso: é a responsabilidade de todos os cristãos e cristãs de estar com Jesus e, ao mesmo tempo, ser a sua presença no mundo, especialmente restituindo vida e dignidade a quem se encontra em estado de abandono.

Após o elenco dos nomes, o evangelista passa às atribuições dos doze, enquanto enviados, iniciando a sequência de instruções que se estenderá por todo o décimo capítulo, e hoje temos a oportunidade de ler as primeiras: «Jesus enviou estes doze com as seguintes recomendações: ‘Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! (10,5) Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!’» (10,6). As primeiras recomendações dizem respeito à circunscrição da primeira missão: os discípulos devem ir exclusivamente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ora, a designação de Israel como primeiro destinatário da missão apostólica não significa um privilégio histórico, tampouco uma tentativa de reconstrução do povo da aliança, como algumas interpretações apontam, mas uma necessidade, uma urgência. Mais do que qualquer outro povo, eram os israelitas que estavam abandonados, o que significa que, de todos os dirigentes do mundo, eram os líderes de Israel os mais pervertidos. Por isso, era Israel o povo mais abandonado e, consequentemente, o mais necessitado de libertação e humanização. Seus líderes tinham fugido das responsabilidades de cuidar do povo, o que já era motivo de denúncias há muitos séculos, desde os profetas, como o exemplo de Ezequiel, que denunciou os pastores que cuidaram de si mesmos, ao invés de cuidar do rebanho (Ez 34). Ora, de todas as formas de dominação, a pior é a dominação religiosa, e Jesus tinha consciência disso. Por isso, sua primeira iniciativa foi promover a libertação de quem estava sendo explorado em nome de Deus.

Na sequência, o evangelista descreve o conteúdo e o agir dos apóstolos, deixando claro que não se trata de uma teoria ou doutrina, mas de um anúncio acompanhado de consequências práticas: «Em vosso caminho, anunciai: ‘O Reino dos Céus está próximo (10,7) Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios» (10,8a). A mensagem que os discípulos devem anunciar é a mesma de Jesus, desde o início do seu ministério (Mt 4,17): a chegada do Reino dos Céus; o “estar próximo”, aqui, não significa a temporalidade, mas a materialidade: na pessoa de Jesus, o Reino se instaura e, enquanto apóstolos, os discípulos são uma extensão da sua pessoa, logo, neles também o Reino começa a se realizar. Esse Reino é dos Céus porque sua origem é o amor misericordioso de Deus, mas começa já aqui, onde há pessoas abandonadas e exploradas, para quem a libertação não pode mais ser adiada. Como a missão compreende palavras e ações, também os gestos que os apóstolos devem cumprir são os mesmos que Jesus já estava cumprindo (Mt 4,23; 8,16; 9,35), e que já tinha sido antecipado no início deste segundo discurso (Mt 10,1): curas, ressurreição, purificação e expulsão de demônios, ações que evidenciam um mundo sem males, um mundo onde a vida prevalece, ou seja, um mundo humanizado.

Os discípulos-apóstolos ou missionários são responsáveis pela transformação do mundo, sanando as multidões abandonadas e exploradas, restituindo vida e dignidade. Isso só é possível colocando em prática o programa de Jesus. Por isso, o evangelista não se cansa de dizer que Jesus envia os seus discípulos para anunciar e realizar o mesmo que ele fez e pregou, sem distorções, mas também sem esquecer dos sinais dos tempos. A última recomendação do evangelho de hoje diz respeito à gratuidade do Reino: «De graça recebestes, de graça deveis dar!» (8b). Os discípulos e discípulas de Jesus não são mercadores do sagrado, como tinham se transformado as antigas lideranças de Jerusalém, e continua acontecendo hoje. Tudo o que a comunidade cristã tem a oferecer ao mundo é o que recebeu gratuitamente de Jesus. E tudo o que Jesus recebeu do Pai, como dom, compartilhou com os seus seguidores e seguidoras que, por sua vez, também devem compartilhar gratuitamente com o mundo para sanar as situações de degradação e negação da vida, muitas vezes provocadas por ações e omissões de falsos pastores. É necessário, portanto, olhar o mundo com o mesmo olhar de Jesus, sentir compaixão e buscar a transformação, na gratuidade do amor misericordioso de Deus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...