sábado, dezembro 28, 2019

REFLEXÃO PARA A FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – MATEUS 2,13-15.19-23 (ANO A)





Na continuidade da oitava do Natal, a Igreja celebra neste domingo a festa da Sagrada Família. Por estarmos vivenciando o “ano A” do ciclo litúrgico, o texto evangélico é retirado de Mateus, especificamente da parte introdutória que convencionalmente chamamos de “evangelho da infância”, correspondente aos dois primeiros capítulos, os quais funcionam como introdução e síntese de todo o seu Evangelho, como acontece também com o Evangelho de Lucas. O trecho lido hoje – Mt 2,13-15.19-23 – contém dois episódios, bastante conexos entre si: a fuga de José, Jesus e sua mãe para o Egito (vv. 13-15), e o respectivo retorno dos três (vv. 19-23). Como se vê, a liturgia preferiu saltar alguns versículos entre os dois episódios (vv. 16-18), correspondentes ao relato da matança dos inocentes a mando de Herodes, o que foi o motivo da fuga de José com o menino e a mãe para o Egito.

De todos os evangelistas, Mateus é aquele que mais recorre ao Antigo Testamento para construir a sua “história de Jesus”, empregando, inclusive, os métodos de interpretação usados pelos rabinos do seu tempo, embora com uma finalidade diferente. Os rabinos ligados ao judaísmo oficial usavam passagens do Antigo Testamento para negar que Jesus fosse o Messias e Filho de Deus. Mateus, por sua vez, buscava passagens para confirmar e afirmar Jesus como o Messias, procurando constantemente colocá-lo em paralelo com os principais personagens da história de Israel, principalmente com Moisés.  Insiste em apresentar Jesus como o messias anunciado e prometido pelos profetas. Isso acontece em todo o seu Evangelho, mas com mais intensidade no “evangelho da infância” (cc. 1 – 2). O trecho lido hoje é uma clara demonstração disso.

A principal motivação para o evangelista fazer isso foi a realidade e a composição das suas comunidades, formadas predominantemente por cristãos que tinham saído do judaísmo e necessitavam de provas escriturísticas de que Jesus era mesmo o Messias esperado e Filho de Deus. Na época da redação do Evangelho, essas comunidades também viviam um período muito difícil, perseguidas pelo império romano e o judaísmo oficial. Para fortalecê-las, o evangelista apresenta Jesus sendo perseguido desde os seus primeiros dias de vida, como mostra o evangelho de hoje, um aspecto que Lucas não enfatiza em seu relato da infância.

Feita a introdução contextualizada, olhemos para o texto: “Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse” (v. 13a). Temos novamente a figura do Anjo que aparece em sonho a José; o mesmo tinha acontecido quando ele descobriu a gravidez de Maria e pensava abandoná-la em segredo (cf. Mt 1,19). A expressão “Anjo do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo. Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. O evangelista aproveita a ocasião também para fazer um paralelo entre o esposo de Maria e o patriarca José, o penúltimo filho de Jacó, habilidoso em sonhar e interpretar sonhos (cf. Gn 37; 40 – 41), de acordo com o livro do Gênesis, o qual também salvou a vida dos descendentes de Israel, levando-os para o Egito numa época de carestia.

Através do anjo, o Senhor dá uma ordem a José: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais injustiças. É nítida aqui também a intenção do evangelista de comparar Jesus com Moisés: ambos, quando ainda eram crianças, foram alvos da fúria de governantes violentos e injustos; o que Herodes faz é semelhante ao que o faraó do Egito fez na época de Moisés, ordenando que todos os meninos hebreus fossem mortos (cf. Ex 1,22 = Mt 2,16). É claro que, além da continuidade, o principal objetivo do evangelista ao comparar Jesus com os personagens do Antigo Testamento é demonstrar a sua superioridade. Isso será feito no decorrer de todo o Evangelho, e teremos a oportunidade de perceber isso ao longo do ano litúrgico.

Ao longo de todo o seu “evangelho da infância”, Mateus apresenta José como exemplo de abertura e obediência à vontade de Deus, constituindo-o como modelo antecipado de discípulo. Por isso, à recomendação do anjo, temos a imediata resposta de José: “José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14). Os verbos “levantar-se”, “pegar (o mesmo que ‘tomar consigo’)” e “partir/entrar”, que formam um refrão neste texto (vv. 13-14.20-21), tanto como ordem do anjo quanto como execução da parte de José, conforme indica o narrador, são aqui uma síntese do discipulado de Jesus, e fazem deste trecho um verdadeiro tratado missionário. Mesmo sem dizer uma única palavra, José é aqui apresentado como autêntico e fiel discípulo missionário: o seu agir é todo conforme a Palavra de Deus. Na recomendação do anjo e no cumprimento por José é delineado também um ordenamento para a comunidade: Jesus, o menino, está sempre no centro: José – o menino – a mãe. José e a mãe, cujo nome não vem aqui mencionado, são aqui as imagens do antigo Israel que converge para Jesus, e também a imagem da comunidade cristã que será construída no decorrer do Evangelho. Eles só se inserem na história da salvação em função de Jesus. Logo, no centro de uma comunidade não pode estar outro senão Jesus Cristo.

Para a conclusão do primeiro episódio, o evangelista insere uma citação do profeta Oséias (Os 11,1): “Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Do Egito chamei o meu Filho’” (15). A morte de Herodes é o evento demarcatório de que o perigo diminuiu, pelo menos por enquanto, pois a sequência do texto mostrará o contrário. Na maioria das citações explícitas dos profetas, Mateus diz apenas “para se cumprir o que disse o profeta”; em algumas, nas mais importantes, como essa, ele diz “para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta”; assim, ele coloca as palavras na boca de Deus, para demonstrar que quem chamou Jesus de Filho foi próprio Deus. O Filho ao qual Oséias se refere é povo de Israel, recordando o êxodo. Aplicada a Jesus, a citação antecipa a confissão da sua filiação divina para a comunidade de Mateus. O evangelista afirma aqui a messianidade de Jesus como Filho de Deus, o que será reafirmado no decorrer do Evangelho, especialmente na cena do batismo (Mt 3,17) e na confissão de Pedro (Mt 16,16).

Tendo omitido os versículos da “matança dos inocentes” (vv. 16-18), o texto continua com o dado da morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos” (v. 20). A ordem para voltarem à terra de Israel, saindo do Egito, alude à ordem de Deus a Moisés, quando estava refugiado em Madiã: “Vai, volta ao Egito, porque aqueles que queriam te matar estão mortos” (Ex 4,19). Embora no texto de Mateus o movimento seja o contrário, ou seja, é do Egito que devem partir, o objetivo é atualizar a experiência do êxodo. Mesmo sendo José o executor das determinações de Deus por meio do anjo, é Jesus o motivo de tudo. Assim, o evangelista o apresenta como o libertador definitivo, não apenas de Israel, mas de toda a humanidade. Aqui, temos também um elemento novo: antes, era apenas Herodes quem queria matar Jesus recém-nascido (v. 13); agora, o evangelista diz “aqueles que procuravam matar”.  Portanto, é uma antecipação do complô final formado pelos poderes político e religioso de Jerusalém, que levará Jesus à cruz.

Novamente, José fez a vontade de Deus. O evangelista não se cansa de repetir que tudo o que José faz é conforme o dizer de Deus: “José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, e entrou na terra de Israel” (v. 21). A entrada na terra de Israel é a realização parcial do novo êxodo, o qual será consumado com a ressurreição. Como o poder dominante usa de todos os métodos para se perpetuar, a morte de um tirano não significa melhora na vida do povo. É um poder que passa de pai para filho com os mesmos métodos. Por isso, mesmo após a morte de Herodes Jesus corria perigo: “Mas quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia” (v. 22). Novamente, Deus intervém em favor de Jesus e da comunidade reunida em seu redor, prefigurada por José e Maria. Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação. Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para outro. Apenas iluminou com a Palavra. A iniciativa de partir de um lugar para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por Jesus (cf. Mt 4,14).

Toda a história dramática até aqui apresentada teve como objetivo principal levar Jesus para Nazaré, ou seja, para as margens: “E foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: ‘Ele será chamado Nazareno’” (v. 23). Ora, toda a Galileia era discriminada pela elite de Israel, sobretudo pela pouca ortodoxia do seu povo. Inclusive, era chamada de “Galileia dos pagãos” (cf. Mt 4,15). E parece que Nazaré era a pior das cidades que havia lá. Na verdade, Nazaré era apenas uma aldeia de menos de quinhentos habitantes; seu nome não é citado uma única vez no Antigo Testamento. O evangelista se arriscou até a usar uma profecia “inexistente”, para explicar a ida de Jesus para lá. Nenhum texto do Antigo Testamento fala de um “nazareno”; já foram feitas várias explicações para esta referência, mas nenhuma convincente. A maior prova da má fama de Nazaré na época de Jesus é dada pelo evangelista João: “De Nazaré pode sair coisa boa?” (Jo 1,46). No entanto, foi lá que Deus escolheu para dar início ao seu Reino. Assim, o evangelista conclui o seu “evangelho da infância”, delineando a missão de Jesus e a sua identificação com tudo o que é marginalizado e descartado. Para Mateus, portanto, é das margens que brota a libertação de toda opressão e injustiça. Os centros de poder são sempre ameaça à liberdade, à justiça e, consequentemente, ao Reino de Deus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 21, 2019

REFLEXÃO PARA O QUARTO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 1,18-24 (ANO A)





O Evangelho deste quarto domingo do advento – Mateus 1,18-24 – nos convida a contemplar os últimos acontecimentos que antecederam o nascimento de Jesus, de acordo com o Evangelho de Mateus. Tudo gira em torno da inesperada gravidez de Maria, pelo Espírito Santo, o embaraço criado em José, e a providência divina na resolução do problema criado. Ao contrário de Lucas, que evidencia mais a figura de Maria, na narrativa mateana o personagem humano que se destaca neste contexto do nascimento de Jesus é José, sendo ele o destinatário do anúncio divino. É importante recordar que, mais do que descrever fatos, o autor quer mostrar que a vinda de Jesus Cristo não é obra humana, e que, através dessa vinda, Deus faz uma forte interrogação de Deus à humanidade. De fato, à humanidade, representada no texto por José, é lançada uma proposta de vida e libertação, tendo ela a liberdade de acolher ou não.

O texto inicia com um enunciado bastante rico de informações: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a um homem chamado José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18). Tudo o que será desenvolvido nos versículos seguintes gira em torno desse primeiro enunciado. Além das informações explícitas no texto, também as implícitas são importantes; por isso, é necessário fazermos um percurso passo a passo.

O primeiro passo necessário para compreender melhor a “origem” de Jesus Cristo é recordar a “genealogia” apresentada nos versículos anteriores (Mt 1,1-16), na qual prevalece a fórmula “A gerou B”, com o uso predominante do verbo gerar (em grego: γεννάω – ghennáo) aplicado aos grandes personagens da história de Israel, desde Abraão, terminando com o desconhecido Jacó, o pai de José. Para falar do nascimento de Jesus, o evangelista abandona a fórmula “A gerou B”, e apenas diz que ele nasceu de Maria, esposa de José. Com isso, o ele quer mostrar que, mesmo inserido na história do povo eleito, Jesus provoca rupturas com os esquemas tradicionais desde a sua concepção. Nenhuma tradição religiosa ou estrutura familiar e social conseguem controlar a pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora.

Devemos ver este primeiro versículo, portanto, como um elemento de ruptura: a origem de Jesus é, ao mesmo tempo, a origem de uma nova humanidade, uma nova criação e, portanto, de novas relações. Ao afirmar que Jesus não foi gerado por José, o evangelista está dizendo que Ele não está atrelado a nenhuma estrutura familiar, é independente, ou seja, ninguém terá domínio sobre Ele. Com isso, quebram-se os paradigmas da sociedade patriarcal fundada no clã e no domínio do masculino. Aqui, o Reino dos Céus, nome dado por Mateus ao que os outros sinóticos chamam de Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, começa a ser delineado como uma sociedade alternativa, em contraposição às antigas instituições, principalmente a familiar patriarcal.

O segundo passo necessário é compreender o contexto, recordando a estrutura do casamento judaico no tempo de Jesus, como recurso para entender o significado da expressão “Maria estava prometida em casamento a José” (v. 18b). Ora, isso quer dizer que, de fato, eles já estavam casados. O casamento se realizava em duas etapas: a primeira, a da promessa, consistia no compromisso firmado entre os noivos e suas respectivas famílias, inclusive com assinatura de contrato, não podendo mais ser dissolvido, a não ser por motivo grave. Essa etapa durava aproximadamente um ano, cada um ainda morava com os pais e não podiam ainda ter relações sexuais; como casava-se muito jovem, as mulheres tinham entre 12 e 13 anos nessa etapa, e os homens entre 16 e 18 anos. Essa foi a fase vivida por Maria quando ficou grávida: embora ainda não vivessem juntos, já estavam literalmente casados. A segunda etapa do casamento iniciava-se quando os esposos passavam a viver juntos. Essa etapa era marcada por uma grande festa que durava cerca de uma semana, sendo que na primeira noite da festa já havia a consumação: ou seja, a relação sexual.

Diz o texto que “antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18c). Trata-se de um fenômeno extraordinário e inexplicável, como, de fato, são os planos de Deus. A originalidade de Jesus começa exatamente aqui: gerado pelo Espírito Santo, sem a participação da figura masculina, marcando, assim, uma ruptura total com a sociedade patriarcal. Isso será confirmado pelas palavras do próprio Jesus a seus discípulos, posteriormente: “Na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu” (Mt 23,9). Ora, a figura do pai na família patriarcal, como expressão de autoridade máxima, era um impedimento à construção de uma comunidade igualitária. Por isso, Jesus faz de tudo para tirar essa figura do horizonte da comunidade de discípulos. Assim, mais do que a contemplar um nascimento prodigioso, o evangelista nos convida a aderir às novas relações inauguradas com esse nascimento. É o surgimento de um mundo novo e um novo tempo.

A sequência do texto, como desenvolvimento do primeiro versículo (v. 18), apresenta o esposo de Maria com boas credenciais: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (v. 19). Uma informação que o texto não traz de modo explícito, mas implicitamente devemos imaginar, é a forma como José tomou conhecimento da gravidez de Maria. É necessário percebermos o vácuo entre o versículo 18 e o 19 para imaginarmos essa cena: o texto diz que ela ficou grávida do Espírito Santo (v. 18) e, em seguida, que José, como homem justo, não quis denunciá-la (v. 19), mas não diz como ele ficou sabendo. É muito provável que Maria mesma tenha lhe contado. Aqui, recordemos que o anjo do Senhor só entra em cena quando José pensa em abandoná-la. O plano de abandoná-la prova que a explicação de Maria não fora convincente. Reconstruir essas entrelinhas do texto é essencial para acolhermos melhor a mensagem do texto.

Como “José, seu marido era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria em segredo” (v. 19). Aqui, ao afirmar que José era esposo, mais uma vez se confirma a informação de que os dois já eram casados, embora ainda na primeira etapa do casamento. Mas, o centro do versículo é o adjetivo atribuído a José: justo (em grego: δίκαιος – dikaios), o que confirma, ainda mais, a revolução de valores apresentada por Mateus. Ora, o que caracterizava um judeu como “justo” era a observância minuciosa e exata da Lei, e aqui, José é considerado justo por recusar-se a aplicar a lei que recomendava o apedrejamento para a mulher que engravidasse de outro na primeira etapa do casamento, a fase da promessa (cf. Dt 22,23-27).

O plano de abandonar Maria em segredo mostra que José já tinha compreendido o sentido verdadeiro da Lei, da qual Jesus será constituído o intérprete oficial, credenciado pelo Pai (cf. Mt 5,17-48), ao trocar o mero preceito pela misericórdia. De fato, abandonar Maria em segredo quer dizer que ele se recusou a expô-la publicamente, rompeu com a sinagoga ao não buscar testemunhas entre os anciãos da sua cidade para testemunharem o divórcio e o consequente apedrejamento, como era o costume. Certamente, uma grande crise envolveu José, levando-o a muitas reflexões e discernimento.

Como Deus tinha agido em Maria, também agiu nele: “Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo” (v. 20). Certamente, ele não tinha acreditado plenamente na explicação de Maria, ficando na dúvida e amadurecendo a ideia de abandoná-la. Algo de extraordinário se apresenta, com a expressão “eis que”. Sempre que essa fórmula de introdução “eis que” aparece no Novo Testamento, é sinal de que a informação que lhe segue é uma novidade e tem grande importância; é sempre algo surpreendente. De fato, é muito importante a intervenção de Deus através do anjo, seu mensageiro, personagem relevante para a mentalidade judaica, considerando a distância entre Deus e os seres homens e, portanto, muito propícia para a existência de um ser intermediário. Assim, a expressão “anjo do Senhor” significa o próprio Deus; os autores bíblicos a empregam para diminuir o impacto de uma intervenção direta de Deus na vida do ser humano.

As palavras do anjo são encorajadoras e convidam José a participar diretamente da nova humanidade criada por Deus, recebendo Maria como esposa, ou seja, levando o casamento à segunda etapa. Mas, ao mesmo tempo deixa claro que ele não terá nenhum domínio sobre o menino, uma vez que Maria concebeu pelo Espírito Santo. A José, cabe um papel, por sinal muito relevante: “Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). Na Bíblia, o nome significa a identidade e a própria essência da pessoa. Como o nome Jesus significa “Deus salva”, isso já indica a sua missão: salvar o seu povo de seus pecados. Essa informação é carregada de significado e, mais uma vez, expressa a novidade de Jesus. Ora, esperava-se um Messias para condenar o povo por causa dos pecados; Jesus vem salvar o povo dos seus pecados, o que significa libertar o povo das injustiças e dos erros, individuais e comunitários, inclusive do sentimento de culpa por erros do passado, o que tanto pesava sobre o povo judeu. Isso Jesus fará muito bem ao longo do seu ministério, com sua práxis libertadora.

Como é típico dos evangelhos, e mais ainda de Mateus, o uso de textos e expressões do Antigo Testamento é imprescindível, sobretudo em momentos marcados pela dúvida e o medo. Por isso, o autor recorre ao profeta Isaías com o “oráculo do Emanuel” (Is 7,14) para confirmar que o fato presente tem respaldo na história da salvação: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado de Emanuel, que significa Deus está conosco’” (v. 23). Mais do que cumprimento de promessa e atestado da virgindade de Maria, a citação do profeta quer evidenciar que é necessário buscar referências nas Sagradas Escrituras para a construção da história e a compreensão do presente e, sobretudo, para afirmar no que consiste o nascimento de Jesus: a presença definitiva de Deus Conosco, ou seja, o divino veio definitivamente ao encontro da humanidade para habitar em seu meio. Como se sabe, nem a criança anunciada por Isaías, provavelmente o rei Ezequias, herdeiro do trono de Acaz, e nem Jesus receberam o nome de Emanuel. Esse nome expressa um traço característico de Deus: ele está próximo da humanidade, ou seja, está conosco.

Com a citação de Isaías 7,14, Mateus apresenta uma das principais chaves de leitura de sua grande obra: Deus está presente no dia-a-dia da comunidade. Por isso, o seu Evangelho pode ser considerado o “Evangelho da presença”, pois do começo ao fim, essa presença é evidenciada: no início, com o anúncio do anjo (cf. 1,23), no discurso sobre a vida em comunidade, quando Jesus promete ficar junto “quando dois ou mais se reunirem em seu nome” (cf. 18,20), e no final, nas últimas palavras do Ressuscitado, quando promete estar com os discípulos para sempre, até o fim dos tempos (cf. 28,20). À comunidade, de outrora e de hoje, foi conferida a responsabilidade de manifestar essa presença com o anúncio e o testemunho, sobretudo.

Após o anúncio do anjo, o evangelista diz que “José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa” (v. 24). Ao invés de seguir a letra morta da Lei, José obedeceu à Palavra dinâmica de Deus, anunciada pelo anjo, antecipando o que Jesus recomendará aos seus discípulos (cf. Mt 5,17-48; 9,13). José percebeu que Deus não estava mais na antiga Lei, mas está conosco, no próximo que necessita de acolhida e compreensão; enfim, está com a humanidade inteira caminhando, sonhando e lutando, porque é EMANUEL!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, dezembro 14, 2019

REFLEXÃO PARA O TERCEIRO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 11,2-11 (ANO A)




Neste terceiro domingo do advento, o evangelho nos apresenta a figura de João, o Batista, como personagem importante no caminho de preparação para o reconhecimento do Senhor que já veio, embora estejamos empenhados ainda nos preparativos festivos do seu nascimento, visando a solenidade do seu natal que se aproxima. O texto proposto para hoje, Mateus 11,2-11, apresenta a dúvida ou crise de João quanto à messianidade de Jesus (vv. 2-3) e a resposta do próprio Jesus (vv. 5-6), seguida de um importante testemunho a respeito do seu “precursor” (vv. 7-11). Alguns estudiosos, inclusive, intitulam esta perícope de “A crise do Batista”

Para compreendermos a dúvida de João e suas motivações, é necessário ter em mente o conteúdo do evangelho do segundo domingo do advento (Mt 3,1-12), o qual foi saltado pela liturgia, infelizmente, devido a coincidência com a data da solenidade da Imaculada Conceição. O texto omitido (Mt 3,1-12) apresentava alguns traços das características da figura de João Batista, bem como o conteúdo do seu anúncio messiânico, ou seja, sua descrição do messias por ele esperado. Portanto, a dúvida apresentada no Evangelho de hoje deve-se ao fato de que Jesus não correspondeu, como Messias, às expectativas alimentadas por João Batista.


Mas, quais foram as expectativas alimentadas por João Batista? Ou melhor, que traços de messias ele descreveu? Ora, assim como muitos de seu tempo, João esperava um messias potente, guerreiro e juiz que, de fato, viesse para recompensar os bons e castigar os maus; tinha usado imagens muito fortes como o machado na raiz das árvores, pronto para cortar (cf. Mt 3,10), o fogo que queima a palha (cf. Mt 3,12). Ele esperava um messias que viesse mais para condenar do que para salvar, por isso frustrou-se, uma vez que Jesus veio somente para salvar (cf. Lc 19,10). Em em outras palavras, João anunciou um messias severo demais, enquanto Jesus veio misericordioso demais. 


Só podemos compreender bem o Evangelho de hoje à luz destes aspectos introdutórios que recordamos. E iniciamos nossa compreensão partindo das primeiras informações: “João estava na prisão” (v. 2a); os motivos da prisão de João serão apresentados somente no capítulo quatorze, embora já os conheçamos: a denúncia da relação ilegítima de Herodes com Herodíades, a esposa de seu irmão Filipe (cf. Mt 14,1-12). Uma vez preso, João poderia dar como cumprida a sua missão, uma vez que, ao contrário de todos os profetas que vieram antes, ele conseguiu ver o messias com os próprios olhos, inclusive o batizou (cf. Mt 3,14-15).


Houve, no entanto, uma inquietação em João: “tendo ouvido falar das obras do Cristo” (v. 2b). De fato, as obras do Cristo eram preocupantes para quem tinha idealizado nele o messias esperado pelas antigas tradições judaicas, como apresentamos na introdução. Ao invés de condenação, Jesus cumpria somente obras de salvação, como cura de doenças (cf. Mt 8,14-15; 9,27-31), inclusive de leprosos (cf. Mt 8,1-4), libertação de demônios (cf. Mt 8,28-34), e o pior: ao invés de condenar os pecadores, como João havia predito, Jesus gostava era de misturar-se com eles.


Além de não cumprir certos ritos e práticas devocionais caras a João e a muitos da sua época, Jesus ainda incentivava seus discípulos a fazerem o mesmo, levando-os a uma discussão com os próprios discípulos de João sobre o jejum (cf. Mt 9,14-17). Nessa ocasião da discussão sobre o jejum, os discípulos de João preferiram se alinhar aos fariseus, aqueles mesmos que tinham sido chamados de “cobras venenosas” por João (cf. Mt 3,7), o que vem a confirmar, ainda mais, a insatisfação de João e seus discípulos com as atitudes de Jesus.


E, se as obras de Jesus deixaram João embaraçado, muito mais ainda deve ter ficado com as palavras dele, como: “Felizes os mansos, felizes os misericordiosos, felizes os que promovem a paz” (Mt 5,4.7.8), “amai os vossos inimigos” (Mt 5,43), “não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Foi ouvindo falar sobre isso, e muito mais, que João enviou alguns discípulos para fazer uma pergunta decisiva a Jesus.


A pergunta de João deixa muito clara a sua preocupação: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” (v. 3). Mais que preocupação, essa pergunta reflete angústia e decepção. Realmente, pela prática de Jesus, as informações que chegavam até João não poderiam animá-lo; na verdade, ele tinha dado características messiânicas que Jesus não tinha. Ao invés do rigorismo predito pelo Batista, Jesus apresentou-se cheio de amor e misericórdia, não aplicando os terríveis castigos aos pecadores, como esperava João. Portanto, a crise do Batista tornou-se inevitável.


João não foi o primeiro e nem o último a se decepcionar com o nazareno. Por isso, a resposta de Jesus foi muito serena, mas cheia de vida e de convicção: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperaram a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (vv. 4-5). Jesus não responde com o tradicional “sim ou não”; mas responde com o seu legado, o resultado das suas obras, sobre as quais João ouviu falar e ficou preocupado (v. 2). Aqui, não entra em discussão a autenticidade dos milagres e curas de Jesus, mas o que, de fato, estes sinais representam: a renovação completa da humanidade. Com estas categorias de pessoas sendo reabilitadas, Jesus está afirmando que o seu messianismo consiste em restaurar, resgatar o que parecia perdido, ao invés de destruir com o fogo, como tinha anunciado o Batista (cf. Mt 3,10.12).


Nessa resposta de Jesus está a certeza de que o Reino dos céus que estava próximo, segundo João (cf. Mt 3,2), tinha, finalmente, chegado. E, esse Reino é de inclusão e vida nova. Diante disso, Jesus proclama uma bem-aventurança: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (v. 6); é provável que a desconfiança de João a seu respeito lhe entristeceu um pouco, mas Jesus tinha consciência de que o Batista era fruto do seu tempo e carregava em si os anseios de um povo e de uma tradição.

Assim, passado o desconforto inicial, Jesus faz um grande elogio a João Batista, quando seus discípulos foram embora levando a resposta. Nesse testemunho elogioso a respeito do Batista, Jesus exalta suas qualidades de profeta, ressaltando seu testemunho, integridade, honestidade e austeridade (v. 7-9). Para Jesus, João foi até maior do que todos os antigos profetas. Nisso, é perceptível o afeto que unia os dois, apesar da inegável crise. Se houve um pouco de angústia em Jesus ao receber o “ultimato” dos discípulos de João, muito mais deve ter tido o próprio João pois, encarcerado, não podia ver o que Jesus fazia, apenas ouvia falar a seu respeito e, certamente, com distorções.


Jesus reconheceu a importância de João Batista, interpretando-o, inclusive, à luz da Escritura, através da profecia de Malaquias (cf. Ml 3,1): “É dele que está escrito: ‘eis que envio o meu mensageiro à tua frente...” (v. 10). Fez-lhe um elogio tão grande, a ponto de considerá-lo o maior dos seres humanos até então: “Em verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do João Batista” (v. 11a). No entanto, João pertence a uma ordem antiga, cujos esquemas não coincidem com a nova ordem que Jesus veio inaugurar, o Reino dos céus. Esse Reino é uma sociedade alternativa, incompatível com todas as formas de organização social até então experimentadas. Para entrar nesse Reino, não contam os títulos de honra e grandeza, mas apenas a adesão livre ao projeto libertador de Jesus, cujo critério principal de pertença é a capacidade de fazer-se pequeno (cf. Mt 18,3; 19,14). Por isso, “o menor no Reino dos céus é maior do que ele” (v. 11b). Não se trata de uma desvalorização do Batista, mas de evidenciar que Jesus inaugura uma nova humanidade em todos os sentidos.

Diante de tudo isso, queremos aprender com o Batista a não ter medo de duvidar; é na dúvida que a fé autêntica pode crescer e se tornar sólida. Mas, o que queremos, sobretudo, é abraçar o Reino com seus valores e a humanidade nova proposta por Jesus, da qual somos construtores. É assim que podemos perceber o Senhor que já está aqui, no meio de nós!


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)

O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de Joã...