sábado, dezembro 30, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – LUCAS 2,16-21


Na conclusão da oitava de Natal e o início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano 431) que a definiu como “Theotókos”, cujo significado literal é “aquela que gerou Deus”. O objetivo da Igreja com esta festa e com a definição conciliar, no entanto, é afirmar a identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e não necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. Na verdade, de todas as festas marianas, essa é a que melhor exprime as motivações e o objeto do culto mariano, porque recorda que «a Virgem Maria é mãe de Deus porque pariu, segundo a carne, o Verbo de Deus» (afirmação do Concílio de Éfeso, ano 431). O sentido da festa, portanto, volta-se para o Cristo, recordando a participação decisiva de Maria na sua vinda ao mundo. Trata-se da festa mariana mais antiga, sendo celebrada desde o século VI. Ao longo do tempo, passou por diversas modificações, inclusive no título e na data. Por sinal, o título e a data atuais já são frutos da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. O último título anterior ao Vaticano II era “festa da circuncisão” de Jesus, fundamentada na tradição judaica de circuncidar as crianças do sexo masculino no oitavo dia após o nascimento, como aconteceu, sem dúvidas, com Jesus. No ano de 1968, o então papa Paulo VI proclamou este dia – primeiro de janeiro – também como o Dia Mundial da Paz, convidando a inteira humanidade a empenhar-se na construção da paz e da fraternidade universal. Isso torna esta celebração ainda mais significativa.

O evangelho lido na liturgia deste dia é a continuação quase exata daquele da noite de Natal, sendo separado por apenas um versículo: Lc 2,15. Enquanto na noite de Natal o evangelho foi Lc 2,1-14, na solenidade de hoje o texto proposto é Lc 2,16-21. Inclusive, é o mesmo texto para todos os anos. Por isso, consideramos que o primeiro passo para uma boa compreensão do evangelho de hoje é recordar o versículo que o antecede: «Quando os anjos os deixaram e foram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: ‘Vamos já a Belém para ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer’» (Lc 1,15). Ora, os pastores ficaram maravilhados com a Boa Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um Salvador nasceu para eles, naquela noite (cf. Lc 2,10). E, ao anúncio do anjo, seguiu-se o canto da multidão da corte celeste que desceu à terra, para junto dos pastores, proclamando a glória de Deus nos céus e a correspondente paz na terra entre a humanidade (cf. 2,13-14). Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres pastores, assim como a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à categoria das pessoas mais simples e marginalizadas, e eram considerados impuros, compondo o último estrato social e religioso da época.

Uma das grandes novidades de Jesus, desde o nascimento, foi contradizer o que a sua religião tinha afirmado sobre o Messias e sobre Deus. Ora, a religião oficial tinha classificado as pessoas como puras e impuras, justas e pecadoras, imaginando que a vinda do Messias seria marcada pelo extermínio das classificadas como impuras e pecadoras, como eram considerados os pastores na época. Ao invés de seguir as determinações da religião, Jesus preferiu, desde o início, exatamente as categorias excluídas, contradizendo e frustrando muitas expectativas. É nessa perspectiva que podemos e devemos compreender a reação dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus. A eles, a religião tinha ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois eram gente da pior qualidade e que não observava a Lei. De repente, eles recebem um anúncio de salvação e sentem-se amados por Deus. Além, disso, a religião de Israel tinha alimentado as expectativas pela vinda de um messias poderoso, guerreiro e glorioso, e o que veio foi uma criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Perplexos diante de tudo isso, eles decidiram ir a Belém para conferir e tirar todas as dúvidas (Lc 2,15).

Diante de uma novidade sem precedentes, é impossível esperar, por isso diz o texto que «Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16). Merece destaque a expressão adverbial “às pressas” (em grego: σπεύσαντες – speussantes), a qual possui grande relevância no vocabulário da teologia lucana: encontra-se logo após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo a visita a Isabel (cf. Lc 1,39), e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça da árvore, para acolher a salvação em sua casa (cf. Lc 19,5-6). Isso quer dizer que, para Lucas, a salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve ser experimentada sem demora, com urgência. Tanto quem recebe quanto quem proclama o anúncio da salvação devem ter pressa. No caso dos pastores, mais ainda: como passaram a vida inteira às margens, sofrendo o desprezo e a exclusão, não poderiam mais perder tempo. Para eles e todas as categorias de pessoas marginalizadas, a inclusão tem de ser agora, hoje. Por isso, foram às pressas a Belém. Além da necessidade que sentiam, tendo em vista o histórico de marginalização que sofriam, a pressa dos pastores é também uma demonstração de fé e obediência a Deus. E, assim, o evangelista evidencia ainda mais as diferenças na maneira de acolher a mensagem de Deus entre as pessoas simples e os representantes da religião oficial: Maria e os pastores agiram com pressa diante do anúncio, enquanto Zacarias, um sacerdote do templo, exitou em acreditar. Com isso, Lucas vai, desde o início, delineando os traços de quem vai se abrir à mensagem de Jesus, durante o seu ministério.

Se os pastores ficaram surpresos com o anúncio do anjo, talvez tenham ficado mais ainda com o que viram em Belém: «encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16b). Na verdade, encontraram tudo conforme lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12), mas é impossível que não tenham se surpreendido, tamanha a reviravolta na história. Ouviram que tinha nascido para eles um Salvador, e encontram na manjedoura, junto aos pais, uma pequena criança, provavelmente em meio às moscas e esterco de gado, sem nenhum sinal distintivo que revelasse glória ou poder, atributos próprios de um salvador. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da novidade e da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um Salvador conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não conseguiriam sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos, foram compreendendo que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem estava às margens estava passando para o centro, como eles. E essa mudança só se tornava possível porque o Salvador veio identificado com eles. Nesta cena, Lucas delineia o primeiro grande esboço de uma Igreja pobre e para os pobres!

Na sequência, o evangelista diz que os pastores «tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino» (v. 17), tornando-se assim, também eles, mensageiros de salvação, portadores de Boa Notícia. Contaram que o anjo lhes aparecera anunciando o nascimento do Salvador, e que depois “uma multidão da corte celeste” baixou perto deles glorificando a Deus e anunciando a paz em toda a humanidade (cf. Lc 2,10-14). Contaram coisas maravilhosas, de modo que quem os escutava também se maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados, pois, até então, não se tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente pouco importante e sem currículo, como eram eles, conforme os padrões da sociedade e da religião da época. Com isso, o evangelista ensina que os pastores foram os primeiros evangelizados com o nascimento de Jesus e se tornaram os primeiros evangelizadores de tão grande acontecimento. Assim, Lucas faz deles modelos de anunciadores, prefigurando neles a missão dos apóstolos e dos discípulos e discípulas de todos os tempos. De fato, mais adiante, no auge da missão e sofrendo as primeiras perseguições, os apóstolos vão confirmar a fidelidade seguindo o exemplo dos pastores: «não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos» (At 4,20). Não calar diante do que se vê e se ouve é exigência básica da evangelização. E os pastores foram os primeiros a fazer isso.

De todas as pessoas que ouviram o relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o texto destaca a reação de Maria como mais profunda, com menos surpresa e mais reflexão. Afinal de contas, ela já estava habituada às maravilhas de Deus, pois foi a primeira destinatária do anúncio salvífico através do anjo Gabriel (cf. Lc 1,26-38) e tinha assistido à exaltação de Isabel quando a visitou (cf. Lc 1,39-52). No entanto, ela não deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de Jesus lhe trará outras surpresas, como no episódio da apresentação no templo, quando ela e José ficarão admirados com o que se dizia do menino (cf. Lc 2,33). A reação de Maria é diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a imagem da discípula modelo: «guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração» (v. 19). Se na atitude dos pastores já havia esboço do modelo de discípulo e discípula, esse modelo se aperfeiçoa em Maria: não basta contar o que se vê e se escuta, mas é necessário também meditar, assimilar bem, interiorizar. O verbo grego empregado pelo evangelista, traduzido pelo lecionário como “meditar” (συμβαλλω – symbálô), possui um significado muito mais profundo: quer dizer “colocar junto”, “unir”, “reunir”, “interpretar”. E era isso que Maria fazia: percebia os diversos sinais e acontecimentos do agir de Deus e juntava-os, fazendo sua própria interpretação, cuja melhor demonstração está no canto do Magnificat: uma síntese da história da salvação, com ênfase na opção de Deus pelos pobres e humildes de sempre.

Certamente, a meditação de Maria consistia em relacionar os acontecimentos do presente com as ações libertadoras de Deus ao longo da história, como ela mesma já expressara no Magnificat (cf. Lc 1,46-55) e experimentara em sua vida. É exatamente aqui que ela se sobressai sobre os demais ouvintes, porque ela guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que os pastores tinham dito, e juntava com o que já sabia: as palavras do anjo Gabriel e as declarações de Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e humildes. Aquela que já era mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e isso ela vai fazer ao longo de toda a sua vida e a de Jesus. Ao invés de ver os fatos isoladamente, ela vai juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no seu coração, que a história da salvação está sendo reescrita com novos parâmetros, uma inversão de ordem: os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros. E é essa a prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu na história. Nesse sentido, Maria se torna autêntica intérprete da nova história da salvação, sendo, por isso, modelo ideal de discípula e discípula.

Tendo comprovado e visto que tudo o que lhes tinha sido anunciado era verdade, «os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus» (v. 20). Realmente, não faltavam motivos para os pobrezinhos dos pastores glorificarem a Deus! É importante lembrar que a alegria e o louvor também são traços bem característicos de Lucas; quem faz a experiência do amor misericordioso de Deus reage louvando e glorificando. O louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o abismo entre o humano e o divino foi eliminado; céus e terra foram unidos definitivamente. Cantar glória a Deus era função dos anjos no céu que, excepcionalmente desceram à terra e louvaram a Deus diante dos pastores (cf. Lc 1,13-14), mas logo retornaram para o céu. Agora, também aos pastores, os últimos da terra, tem esse direito. Temos aqui uma mudança completa de paradigma: o que era privilégio dos primeiros do céu, se torna acessível aos últimos da terra. O louvor continuado dos pastores mostra que a experiência vivenciada por eles foi verdadeira. O mistério contemplado deixou marcas permanentes. Eles não assistiram apenas a um evento, mas se tornaram participantes e construtores de uma etapa nova da história. Regressaram transformados, renovados, animados, se sentindo gente de verdade. Por isso, daquele momento em diante, dificilmente eles deixaram de anunciar tudo o que tinham visto, escutado e vivido.

No final, vem evidenciado o papel importante de José e Maria na educação de Jesus, levando para a circuncisão conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a liberdade que tinham para seguir mais a Deus do que a Lei: «Quando se completaram os oitos dias para a circuncisão do menino, deram-lhes o nome de Jesus como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido» (v. 21). A circuncisão não era exclusividade de Israel. Era um costume comum a vários povos do antigo Oriente, sendo que a motivação era por questão de higiene e saúde. Em Israel se transformou em preceito religioso, passando a ser o principal sinal de pertença de um homem ao povo eleito. Com esse dado, Lucas reforça a concretude da encarnação. O que está sendo evidenciado mesmo é o nome dado à criança: Jesus, cujo significado é o “Senhor salva”. A Lei determinava que se desse o nome de um parente próximo. Contudo, o nome Jesus fora indicado pelo anjo, no momento do anúncio (cf. Lc 1,31). Com isso, Lucas mostra que, entre a Lei e o Espírito Santo, Maria e José preferiram se orientar pelo Espírito Santo, prefigurando, assim, mais uma característica da comunidade cristã. E Lucas faz essa referência à circuncisão mais como dado cronológico do que mesmo identitário. O importante aqui é o nome que sintetiza a missão de Jesus. E o conjunto dos eventos, do anúncio do nascimento até aqui, mostra a atualidade desse nome.

O significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: «Hoje, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (2,11). Portanto, hoje, especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e seguir seu exemplo de discípula fiel.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, dezembro 29, 2023

REFLEXÃO PARA A FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA DE JESUS, MARIA E JOSÉ – LUCAS 2,22-40 (ANO B)

O evangelho da festa da Sagrada Família neste ano é Lc 2,22-40, texto que narra o episódio conhecido como apresentação de Jesus no templo de Jerusalém. De início, é importante recordar que, com este relato, o evangelista não pretendia apresentar um tratado sobre a família, mas revelar a identidade messiânica de Jesus e, ao mesmo tempo, a sua “normalidade”, mostrando que ele não caiu do céu, mas nasceu e criou-se no seio de uma família judaica comum, condicionado aos costumes e leis da sua época, embora capaz de contradizê-los e até negá-los, quando for necessário, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Trata-se, portanto, de um texto de alta concentração cristológica, no qual convergem diversos elementos do Antigo Testamento para a novidade de Jesus, como preparação para o seu reconhecimento como salvador universal e “luz de todas as nações (v. 32). Inserido no chamado “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), faz parte de uma sequência de episódios iniciada com o relato do nascimento de Jesus (Lc 2,1-7): o anúncio do anjo aos pastores (Lc 2,8-12), o canto dos anjos glorificando a Deus (Lc 2,13-14), a visita dos pastores à manjedoura em Belém (Lc 2,15-20), até a circuncisão e imposição do nome Jesus (Lc 2,21).

Além do relato da apresentação do menino e da purificação da mãe, como cumprimento dos preceitos da Lei (vv. 22-24), o texto compreende também os testemunhos de Simeão (vv. 25-35) e Ana (vv. 36-38), o que lhe confere uma riqueza ainda maior. De fato, o simples cumprimento dos preceitos da Lei não revela nada de extraordinário, pois todas as famílias da época faziam a mesma coisa. Inclusive, a intenção do evangelista, ao mencioná-lo, é mostrar a inserção de Jesus na história, na vida concreta de um povo, vivendo o seu cotidiano. O que, de fato, desconcerta e apresenta grande novidade neste texto são os testemunhos de Simeão e Ana, enriquecendo a cristologia do texto com suas respectivas revelações sobre a identidade messiânica de Jesus. Inclusive, o ponto alto do episódio é o cântico de Simeão. Na conclusão, o autor fala do retorno de Jesus com seus pais à vida cotidiana de Nazaré e apresenta uma pequena síntese do seu crescimento acompanhado da força e a graça de Deus (vv. 39-40). Tudo isso faz parte das intenções teológicas e das capacidades literárias de Lucas, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos todos os versículos. Por último, recordemos que tudo o que Lucas apresenta no seu “evangelho da infância” funciona como introdução e chave de leitura para toda a sua obra.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto, buscando a sua compreensão. Como afirmamos anteriormente, esse texto possui uma alta concentração cristológica; o seu centro é o Cristo, e isso já pode ser percebido no primeiro versículo, que diz: «Quando se completaram os dias da purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor» (v. 22). Ora, o preceito de purificação era aplicado somente à mãe: quarenta dias após o parto, se a criança fosse menino, e oitenta dias se fosse menina (Lv 12,1-8). A lei exigia apenas que a mãe se apresentasse ao sacerdote, levando a oferta prescrita. Ao inserir Jesus na cena, Lucas pretende evidenciar a sua importância e centralidade, mostrando que tudo no Evangelho gira em torno dele. Ora, não havia nenhum preceito que exigisse a apresentação da criança. A Lei determinava apenas a consagração do primogênito (v. 23 = Ex 13,2). Para essa consagração não havia necessidade de levar a criança ao sacerdote, mas apenas o pagamento do seu resgate (Ex 34,19-20). Ora, em Israel, todo primogênito menino pertencia a Deus, sendo consagrado para o serviço do templo, mas como esse serviço já era exercido pela tribo de Levi, os primogênitos de outras tribos ficavam mesmo com seus pais, que deveriam pagar um valor ao templo, como resgate. Exigia-se apenas que o pai fosse levar a oferta. As motivações de Lucas são estritamente teológicas, ao inserir no episódio elementos que, de certo modo, não se aplicavam à situação. Com isso, ele apresenta Jesus inserido na vida concreta do povo judeu com suas tradições, mas com plena liberdade para transgredir. Isso quer dizer que nenhuma tradição ou doutrina é capaz de conter Jesus e seu agir, como será mostrado nos relatos da sua vida pública.

Além de evidenciar a centralidade de Jesus na cena, mesmo sem correspondência com um preceito legal, com a apresentação dele no templo o evangelista introduz um dos temas mais  relevantes de seu projeto teológico: a cidade de Jerusalém como destino da missão de Jesus e, posteriormente, como ponto de partida da missão cristã que, de lá, deverá se estender por todo o mundo (At 1,8). Por isso, ainda no “evangelho da infância”, ele vai mostrar Jesus indo a Jerusalém mais uma vez, aos doze anos, quando se perde de seus pais e é encontrado em meio aos doutores, discutindo teologia, no templo (Lc 2,41-49). É, portanto, do interesse teológico de Lucas mostrar Jesus em Jerusalém. Além, disso, para ele é importante também mostrar Jesus em movimento, percorrendo caminhos desde os primeiros dias de sua vida. Inclusive, ele já apresentou Jesus em caminho antes mesmo de nascer, tão logo foi gerado no ventre de Maria, tanto no episódio da visitação a Isabel, quanto na viagem de Nazaré a Belém, para o recenseamento, terminando com o nascimento. Com isso, ele antecipa, de modo prefigurativo, alguns dos traços mais característicos identidade da Igreja: a missionariedade e a sinodalidade, temas que serão introduzidos ao longo do ministério de Jesus, no Evangelho, e desenvolvidos no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Outro tema relevante de toda a obra de Lucas introduzido neste episódio é a identificação de Jesus com os pobres e a consequente opção por eles, o que também deve nortear a vida da Igreja em todos os tempos. Neste episódio, esse tema vem evidenciado, em primeiro lugar, pela descrição da oferta de José e Maria pela purificação da mãe: «Foram também oferecer o sacrifício – um par de rolas ou dois pombinhos – como está ordenado na Lei do Senhor» (v. 24). Ora, para a purificação da mãe, a oferta deveria ser de um cordeiro, com exceção para as famílias pobres que podiam oferecer um par de rolas ou dois pombinhos (Lv 12,8), como fizeram José e Maria. Aqui, o evangelista diz com clareza que eles fizeram a oferta dos pobres. Com isso, isso, ele evidencia que Jesus veio ao mundo pobre, pelos pobres, para os pobres e para ficar com os pobres, sobretudo. Sua identificação é clara com os últimos de Israel e, consequentemente, de todo o mundo: humildes, pecadores, mulheres e todas as categorias de pessoas marginalizados em geral. É com esse detalhe que o evangelista encerra as descrições rituais do episódio. Portanto, pegando a deixa do título desta festa, é conveniente lembrar que a “Sagrada Família” foi uma família pobre. Nos versículos seguintes ele apresentará os testemunhos de Simeão e Ana como centro do relato. Na verdade, ele usou os preceitos da Lei e os ritos apenas como pretexto para tratar da identidade messiânica de Jesus, como faz em seguida.

Simeão e Ana são personagens exclusivos de Lucas. São frutos da sua teologia e são personalidades corporativas, ou seja, representam uma coletividade: a parcela do povo de Israel que permaneceu fiel às promessas de Deus, especialmente os mais pobres, e que reconhece Jesus como o cumprimento das promessas e a plenitude da Lei. Eis a descrição de Simeão: «Em Jerusalém havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso, e esperava a consolação do povo de Israel. O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor» (v. 25-26). As qualidades de justo e piedoso sintetizam o que Deus espera do ser humano. É sinônimo de conduta reta diante de Deus e do próximo. Esperar a consolação significa reconhecer e assumir uma situação de tristeza, de negação da vida. Por isso, Lucas enfatiza tanto a alegria ao longo do seu Evangelho. Israel vivia uma situação caótica e triste e, diante disso, muitos perderam a esperança e o gosto pela vida. Simeão, cujo nome significa “o que foi ouvido por Deus”, soube esperar e reconhecer em Jesus o consolo definitivo, a salvação de quem estava literalmente perdido, sem perspectivas, devido à opressão causada pelos sistemas de poder, tanto o político-econômico quanto o religioso. Certamente, ele clamou muito ao Senhor e, por isso, foi ouvido, literalmente, recebendo a consolação que tanto esperava. Vivendo em situação tão adversa e caótica, somente tendo consigo o Espírito Santo, Simeão poderia sentir a libertação definitiva tão próxima. Esse dado também é muito importante: é o Espírito Santo quem credencia o ser humano a reconhecer Jesus como Messias e Salvador e a acolher a novidade de Jesus e do seu Evangelho.

E o Espírito Santo é citado três vezes como fonte de inspiração e revelação para Simeão (vv. 25.26.27), embora a ocorrência do versículo 26 tenha sido omitida pela tradução do lecionário. É importante recordar esse dado porque o Espírito Santo também constitui um tema e personagem determinante para todo o conjunto da obra lucana (Lc-At). Por sinal, a consolação, objeto da espera de Simeão, na língua original dos evangelhos (em grego: παράκλησις – paráclesis), possui a mesma raiz de “paráclito” – consolador –, um dos títulos atribuídos ao Espírito Santo no Evangelho de João e adotado posteriormente no desenvolvimento da teologia cristã. Portanto, tudo o que Simeão faz é motivado pelo Espírito Santo, como mostra a continuação do texto, a começar pelo seguinte gesto: «Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus» (v. 28). Com esse gesto, Lucas quer afirmar que o velho acolheu o novo, os dois testamentos (alianças) se encontraram e podem, de agora em diante, conviver em harmonia, desde que haja abertura ao Espírito Santo da parte do antigo. O povo da antiga aliança é consolado ao participar da nova aliança, cedendo aos apelos do Espírito Santo. Isso requer um aprofundamento na vivência da fé, graças ao Espírito Santo. Conforme já profetizara Isaías (Is 49,6), Simeão percebe que é preciso abrir mão de certos pensamentos hegemônicos: a glória de Israel é compatível com a luz das nações. Ora, luz é também sinal de glória. Portanto, se Israel encontra sua glória, os povos de todo o mundo são também iluminados, e não dominados, como esperavam os movimentos mais nacionalistas e radicais.

Lucas aproveita a cena para introduzir mais um cântico no seu “evangelho da infância”, colocando-o, dessa vez, na boca de Simeão (vv. 29-32), conforme já fizera com Maria (Lc 1,46-55), com Zacarias (Lc 1,68-79), e com os anjos (Lc 2,14). Somente com olhos e coração atentos ao Espírito Santo, era possível afirmar que a salvação foi vista, contemplada. Assim, Simeão e, nele, todo o Israel fiel, pode dizer, finalmente: «podes deixar teu servo partir em paz» (v. 30). Com essa fala de Simeão, podemos dizer que, de fato, o Antigo Testamento deu ao Novo seu lugar! Simeão, ajudado pelo Espírito Santo, antecipa a missão de Jesus e o efeito dessa: ser sinal de contradição e causa de queda e reerguimento para muitos em Israel (v. 34). O Evangelho não será acolhido por todos e, portanto, a sua acolhida causará divisão, angústia e, consequentemente, queda e elevação. Na verdade, Lucas está reforçando o que já tinha apresentado no cântico de Maria: o Deus de Israel e de Jesus eleva os humildes e faz cair os soberbos (Lc 1,52ss). Quanto ao que Simeão diz em relação a Maria, a mãe, não é uma profecia sobre o drama da cruz, como muitas interpretações afirmam. A espada é uma imagem da palavra de Deus no Antigo Testamento (Is 49,2). Portanto, será a Palavra de Deus, revelada plenamente em Jesus, a atravessar a alma de Maria: o Evangelho dividirá o povo judeu; uns o acolherão, outros não. Como imagem e figura de Israel, Maria viveu em si esse drama: ela acolheu a Palavra de corpo e alma (Lc 1,38), mas assistiu a uma grande parcela do seu povo rejeitá-la.

Quanto a Ana, seu papel é semelhante ao de Simeão, embora a sua descrição seja bem diferente: «Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada e vivera sete anos com o marido» (v. 36). É característica de Lucas atribuir importância a pessoas praticamente destinadas ao esquecimento, conforme os condicionamentos da época. Assim ele faz com Ana. Ao mencioná-la, ele quer enfatizar o papel da mulher na nova aliança, resgatando uma importância que a antiga lhe tinha negado. Ao qualificá-la como profetisa, o evangelista lhe atribui um papel muito importante, pois cinco mulheres, em toda a Bíblia, receberam esse título; quatro no Antigo Testamento: Miriam, a irmã de Moisés (Ex 15,20), Débora (Jz 4,4), Hulda (2Rs 22,14), e a esposa de Isaías (Is 8,3); e ela no Novo. A tribo de Aser, da qual Ana era proveniente, localizada no extremo norte da Galileia, era a mais distante de Jerusalém, e sua população era considerada semi-pagã pelas autoridades religiosas da época. Esse dado também evidencia a predileção de Deus pelo que é rejeitado e marginalizado. Todos os dados sobre Ana, portanto, são muito significativos para o plano teológico de Lucas e para o projeto do Reino de Deus que será anunciado por Jesus e deve ser continuado pela comunidade cristã, ao longo da história.

A continuação da caracterização de Ana possui rico significado teológico, servindo também de introdução e chave de leitura para o conjunto da obra de Lucas. Eis o que se diz dela: «Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações» (v. 37). O estado de viuvez já é suficiente para Ana ocupar um espaço relevante na obra de Lucas, o autor do Novo Testamento mais atento à situação das viúvas (Lc 4,25-26; 7,12; 20,47; 21,2-3; At 6,1ss; 9,31.41), como exemplo de pessoas vulneráveis e necessitadas, que se tornam protagonistas da nova história e do mundo novo inaugurado por Jesus. Com isso, ele recupera o sentido do cuidado com as viúvas previsto na legislação de Israel, mas esquecido ao longo da história (Ex 22,22-23; Dt 24,19-21; Is 10,1), e reafirma as opções de Jesus, reforçando quais devem ser as opções da comunidade cristã. A idade de Ana também é bastante significativa: 84 anos, é idade plena para uma pessoa judia. Significa 7 vezes 12, ou seja, Israel (número 12) chegando à perfeição (número 7); portanto, Ana representa o Israel ideal que encontrou em Jesus a sua razão de ser. Por isso, ela «pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (v. 38). O louvor é consequência de quem se reencontra com a alegria e o gosto pela vida, algo que Lucas valoriza bastante em sua obra (Evangelho e Atos). Ana, ao louvar a Deus, se solidariza com todos aqueles que esperavam a libertação. Ora, libertação é o desejo de quem se sente na escravidão. Ela reconhece Jesus como a libertação definitiva de quem se encontrava escravizado pelos poderes econômico, político e religioso da época.

Diante de tudo o que se dizia do menino, a reação dos seus pais não poderia ser diferente: estavam maravilhados (v. 33). Assim como Simeão e Ana, José e Maria também estavam cansados da vida com suas mazelas, exploração e desencantos. Porém, mantiveram a esperança viva; não desanimaram, esperaram no Senhor e viram a chegada da libertação e da consolação. Por isso, são para nós testemunhas autênticas de um Deus que não deixa de cumprir as suas promessas e que olha, especialmente, pelos mais necessitados de todos os tempos. Em Jesus, as promessas de Deus são realizadas, o Antigo Testamento é cumprido, porém, de modo surpreendente: a mensagem salvífica de Jesus é tão grande que Israel não é capaz de comportá-la; por isso, transcende, é luz para todos os povos! Maravilhar-se é admirar-se, encantar-se. Em Jesus, uma nova história começa tendo como protagonistas os pobres, pequenos e humildes, ou seja, os necessitados de consolação e de libertação.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

domingo, dezembro 24, 2023

REFLEXÃO PARA O NATAL DO SENHOR – JOÃO 1,1-18


Assim como acontece com a liturgia da missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo para todos os anos. Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente, da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuraram explicar o nascimento e a origem divina de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo, inclusive, apresentando a participação da própria Palavra na criação do mundo. Pela diferença de estilo literário, sobretudo, muitos estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à tradição joanina. O debate em torno dessa questão continua aceso na exegese, sem perspectiva de conciliação. A extensão do texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher a mensagem central do texto.

E começamos recordando que o prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece com todos os escritos do Novo Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (em grego: logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (em grego: sofia – σοφίᾳ) no Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à Sabedoria e certamente influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica, pois os livros da Sabedoria e do Eclesiástico não são considerados inspirados pelos judeus.

Feitas algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo Testamento: «No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o Pai, como diz o texto: «Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito» (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Ora, no Novo Testamento, existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (Ef 1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais evidente se o compararmos aos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas que, empregando o gênero literário da genealogia, chegam ao máximo em Abraão e Adão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus. Afirmando a preexistência da Palavra na eternidade de Deus, o autor ensina que Deus fala, ele se comunica com a humanidade. Aliás, diz que todo o agir de Deus se dá por meio da Palavra. Isso evoca a ideia de um Deus acessível à humanidade, como, de fato, a vida de Jesus demonstra tão bem.

Na sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv. 4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer que veio ao mundo para trazer luz ao mundo e comunicar vida em abundância à humanidade (Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus, desde a criação até os tempos atuais, de modo que as trevas aqui mencionadas não dizem respeito apenas à história de Israel, mas ao mundo inteiro. Todo impedimento ao projeto de Deus e da Palavra encarnada, Jesus, representa o mundo das trevas, em todos os tempos e lugares. A primeira vitória da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos primordial (Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não conseguiram dominá-la.

Por ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados e, por consequência, a chegarem à fé, como consequência da luz contemplada e recebida. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia e, posteriormente, com os impérios dominantes, ofuscavam a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v. 17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz verdadeira do Pai e, por isso, ele é a própria luz (v. 18). Na verdade, tudo o que é propriedade do Pai só pode ser comunicado claramente por aquele que o conhece verdadeiramente, e é Jesus quem o conhece.

Até então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se claramente à humanidade tinham sido parciais e, por isso, insuficientes (Hb 1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Sobrepõe-se, inclusive, à fé na ressurreição, porque a ressurreição é consequência da encarnação. Ele ressuscitou porque morreu, e só morreu porque se fez carne. Não há contraposição entre os dois mistérios, o que há é uma relação de causa e efeito. E Para compreender bem esse versículo, e perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez homem, motivado pelo amor. E é somente por causa desse acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus poderia ser contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia.

A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado. O autor poderia dizer apenas que a Palavra se tornou humano ou homem, mas isso poderia ser distorcido; poderiam dizer que ele, em sua divindade, teria apenas se revestido de humanidade, sem, no entanto, ter-se tornado verdadeiramente humano e frágil. Inclusive, na própria comunidade do evangelista surgiu esse problema, o que se tornou um dos motivos principais para a redação da Primeira Carta de João: reafirmar que Jesus Cristo veio na carne (1Jo 4,1). Ora, o termo carne (em grego: σὰρξ – sarx) empregado pelo evangelista representa a dimensão mais frágil da condição humana. Inclusive, em algumas tendências teológicas, às vezes, é usado como sinônimo de pecado, em contraposição a “espírito”, como convite para o ser humano superar o “estado da carne”. Isso evidencia ainda mais o quanto a declaração de Jo 1,14 é revolucionária. A Palavra não apenas se fez carne. Mas escolheu o fazer-se carne para morar no meio da humanidade e como meio privilegiado de revelação da gloria de Deus. Ora, os judeus imaginavam a gloria de Deus como poder e forca, os gregos viam a gloria como a sabedoria fornecida pela filosofia, enquanto o cristianismo, na perspectiva do Quarto Evangelho, afirma que é na carne humana que a gloria de Deus se manifesta.

O Natal é, portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A NOITE DE NATAL – LUCAS 2,1-14

 


O evangelho da solene liturgia da noite de Natal é sempre o mesmo para todos os anos: Lc 2,1-14. Isso se explica pelo fato de tratar-se do único texto do Novo Testamento que, de fato, narra o nascimento de Jesus. Como se sabe, somente dois dos evangelhos canônicos contêm relatos e informações sobre o nascimento e a infância de Jesus, que são Mateus e Lucas, respectivamente. Tanto é que os dois primeiros capítulos destes evangelhos ficaram conhecidos como “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Contudo, o evangelho de Mateus não chega a narrar o nascimento, propriamente: da aceitação de José ao anúncio do anjo (Mt 1,24-25), o evangelista salta para o episódio da visita dos magos, já depois do nascimento do menino (cf. Mt 2,1-12). Essa lacuna de Mateus rendeu ainda mais privilégio e importância ao relato de Lucas, fazendo com que o texto lido nesta noite se tornasse um dos mais conhecidos e valorizados de toda a Bíblia, para as comunidades cristãs. Por se tratar de um texto relativamente longo, não comentaremos detalhadamente versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem em seu conjunto, embora seja necessário enfatizar alguns versículos em particular, após fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato. Por sinal, também a contextualização será breve, tendo em vista que muitos elementos do contexto são os mesmos do evangelho de ontem, o quarto domingo do advento.

A propósito do contexto narrativo, observamos que, apesar da longa extensão do texto, o relato do nascimento propriamente é muito curto, ocupando apenas dois versículos (vv. 6-7). O restante da narrativa compreende uma ampla introdução (vv. 1-5) e o anúncio festivo aos pastores (vv. 8-14), os primeiros a se beneficiarem da libertação inaugurada pelo nascimento de Jesus. Recordamos que este é um dos textos que mais revela as qualidades literárias de Lucas e uma de suas linhas teológicas mais relevantes: a preferência de Deus pelos pobres e marginalizados. Ainda a nível de introdução e contexto, é importante recordar que os relatos da infância de Jesus, tanto em Mateus quanto em Lucas, não possuem finalidade cronística ou histórica, mas catequética e teológica. Aliás, esse pressuposto vale para todos os relatos evangélicos. No entanto, isso não significa que os fatos narrados não possuam fundamentos históricos. Mas quer dizer que todas as informações e detalhes do texto estão a serviço de um plano teológico e catequético, que visam responder a questionamentos e necessidades de comunidades concretas do final do primeiro século. O que o evangelista quis deixar claro foi que Jesus verdadeiramente nasceu, viveu, fez opções bem concretas e eliminou todas as barreiras entre Deus e a humanidade. Como o “evangelho da infância” funciona como introdução e síntese ao inteiro evangelho, o texto de hoje contém indícios ainda mais evidentes daquilo que o evangelista pretende desenvolver no restante da obra. Na verdade, possui aponta temas que serão desenvolvidos até mesmo no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Feitas as considerações contextuais, passemos a olhar diretamente para o texto, partindo do primeiro versículo, que é bastante carregado de informações: «Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra» (v. 1). De todos os evangelistas, Lucas é o que mais se preocupa em situar os eventos narrados na história universal. Ele faz isso para ressaltar que Jesus não é um personagem inventado, não é uma lenda, mas um homem concreto que não caiu do céu, e sim que teve uma existência real em circunstâncias de tempo e espaço bem definidos. Com isso, ele também indica a viabilidade do projeto de salvação e libertação inaugurado por Jesus. Não se trata de uma promessa de felicidade para o além, mas de uma proposta de vida para ser vivida já neste mundo, como ele mesmo viveu. É um programa de humanização para toda a humanidade; o único capaz de reverter a injusta ordem vigente, transformando o mundo egoísta, violento e injusto em verdadeira irmandade. E os relatos da infância de Jesus (Lc 1–2), sobretudo o nascimento, marcam o início dessa transformação, são o começo da reviravolta na história. Por isso, o episódio começa mencionando a maior autoridade do mundo conhecido na época, o imperador romano, para terminar com os últimos, os pastores, para quem o céu se abre em festa. Por isso, os dados do primeiro versículo são muito importantes para a compreensão de todo o texto. O dado temporal “naqueles dias” tem relação com os últimos acontecimentos narrados pelo evangelista, como a dupla anunciação – do nascimento de João e de Jesus (Lc1,5-23.26-38) –, a visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-56) o nascimento de João (1,57-66). Do ponto de visto da história da salvação, era um tempo muito de intenso, repleto de acontecimentos importantes, embora inesperados. Enfim, eram dias de muitas novidades.

O evangelista localiza os eventos salvíficos, ocasionados pelo agir de Deus, no quadro da história universal, recordando também acontecimentos do mundo do império romano. Com isso, ele ensina que o agir de Deus se dá no curso da história. Não há duas histórias paralelas – uma sagrada e outra profana –, mas uma única história, na qual Deus age, salvado e libertando o seu povo. Assim, ele recorda as realizações do imperador romano César Augusto, chamado também de Otaviano, que comandou o império romano de 27a.C. a 14d.C., tendo sido um dos imperadores mais ambiciosos e poderosos da história. Foi ele quem criou a “pax romana”, que não passava de uma política de repressão e controle, com o falso pretexto de manter a lei e a ordem. Foi com ele que se consolidou a atribuição do título de “divino” ao imperador, que significava ser tratado como um deus. Sem dúvidas, era o homem mais poderoso da terra, na época. O decreto do recenseamento de “toda a terra” é uma prova disso. Aqui, por “toda a terra” (em grego: οἰκουμένην – oikumenen) compreende-se o território do império romano, o mundo habitado conhecido. Porém, esse dado é fruto da criatividade de Lucas. Não se tem notícias históricas de um recenseamento de abrangência universal na antiguidade. Quando aconteciam recenseamentos nos grandes impérios, incluindo o romano, se fazia por províncias ou, no máximo, por regiões. Provavelmente, Lucas soube de um recenseamento na província da Judeia e superdimensionou o fato, com a intenção de evidenciar a ambição do imperador com sua força opressora, uma vez que os recenseamentos eram abomináveis em Israel, por serem mecanismos de controle do povo, e só Deus tinha poder verdadeiro sobre o povo, segundo a mentalidade judaica. Por isso, os únicos recenseamentos considerados legítimos foram aqueles da época de Moisés, pois foram ordenados pelo próprio Deus, como demonstra o livro dos Números. Quando era proposto por um rei ou imperador era considerado pecado grave, porque servia para o controle dos impostos e a recrutamento de soldados para o exército. Inclusive, um dos pecados mais graves de Davi foi a realização de um recenseamento (2Sm 24,1-17). Quando Deus determinava um recenseamento, o fazia para saber se estava faltando algum dos seus filhos ou filhas, logo, era sinal de seu amor e cuidado.  

Outra intenção de Lucas com o dado do recenseamento foi encontrar um pretexto para levar o nascimento de Jesus para Belém e, assim, conferir-lhe as credenciais messiânicas, além de enfatizar a importância do caminho, que é outra linha teológica relevante na sua obra. Com isso, ele põe Maria em caminho pela segunda vez, sendo reforçando seu perfil de primeira missionária e peregrina do Evangelho. O primeiro caminho percorrido por Maria, já animada pelo Espírito Santo, se deu por ocasião da visita a Isabel (Lc 1,39-56). Agora, ele faz o segundo. Tudo isso, ressaltamos, está a serviço de um plano teológico traçado pelo evangelista. Por isso, o texto diz que, «Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia» (v. 4). Esse versículo também é muito rico de significado e possui grande importância para o sentido do texto. Tradicionalmente, a cidade de Davi era Jerusalém, embora ele tenha nascido e sido ungido rei em Belém (1Sm 16,1-13; 2Sm 5,7.9). A pertença de José à descendência davídica dá legitimidade à messianidade de Jesus, o que já tinha sido informado ainda no evangelho da anunciação (Lc 1,27). A distância entre Nazaré e Belém é de aproximadamente 150 km, dificilmente percorrível por uma mulher em gravidez avançada, como se encontrava Maria. Mas a motivação é teológica. Com isso, ele antecipa que nenhum obstáculo impedirá o percurso da Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Quem se reveste do Espírito Santo, como Maria, jamais se acomoda, por mais que encontre adversidades. E essa deve ser a postura da comunidade cristã em todos os tempos, da qual Maria e José são modelos.

Apesar de ser a cidade natal de Davi, personagem importante da história de Israel, Belém era um lugar praticamente esquecido, sem importância. Possuía apenas um valor simbólico, a começar pelo nome, que significa “casa do pão”, além de uma profecia de Miquéias, pouco recordada no mundo judaico da época, que previa para lá acontecer o nascimento do Messias. Na prática, era considerada apenas um vilarejo da periferia de Jerusalém, separadas por apenas 10 km. Assim, o nascimento de Jesus nela não significa apenas o cumprimento das Escrituras, mas também a opção de Deus pelos últimos, pelo que é periférico e excluído. Com isso, percebemos uma das principais demonstrações da genialidade de Lucas: ao afirmar que «enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto» (v. 6), ele confirma que Jesus será o Messias esperando, anunciado pelas Escrituras. Em seguida, quase como advertência, ele ensina que não será um Messias glorioso, guerreiro e poderoso como a religião de Israel esperava, ao narrar a situação de completa pobreza em que ele nasceu: «E Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria» (v. 7). Enfaixar os recém-nascidos era um sinal de cuidado e proteção, na antiguidade; acreditava-se que o enfaixamento ajudava a criança a crescer reta, sem deficiências. A falta de lugar na hospedaria é a primeira demonstração de que Jesus já nasceu excluído e entre os excluídos. Ele já nasce banido e, ao longo do seu ministério, vai juntar-se aos banidos de sempre. Pelas expectativas de Israel, o Messias deveria nascer em berço de ouro, enquanto o berço de Jesus foi uma manjedoura (em grego: φάτνῃ – fatne), ou seja, um cocho para alimentação de animais. Foi colocado num cocho de animais por falta de lugar digno. O texto não diz que a hospedaria estava lotada, apenas diz que não havia lugar para eles, mas poderia haver para outras pessoas. Não havia lugar para eles, talvez, pelas condições em que se encontravam: forasteiros, refugiados.

O evangelista deixa claro que Jesus nasce um Messias às avessas das expectativas. Nasceu em condições sub-humanas. Numa sociedade desigual, dividida entre privilegiados e injustiçados, ele ficou do lado dos injustiçados, desde o nascimento. Israel não estava preparado para receber um Messias assim e o cristianismo também parece ainda não ter assimilado como ele veio e viveu. Tudo isso aponta para um novo tempo, uma nova história, como a sequência do Evangelho de Lucas vai mostrar, mas o texto de hoje já antecipa. Ora, o episódio começou pelo imperador (v. 1), o maior na escala social, passou pelo governador (v. 2), e parou num casal desabrigado com um recém-nascido (v. 7), que é o ponto de partida de uma nova história, de um novo jeito de compreender o mundo. A partir de Jesus, os humildes passam a ter vez, começam a ser lembrados, como diz o texto: «Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho» (v. 8). Apesar de romantizados na Bíblia, devido às origens pastoris do povo de Israel, os pastores constituíam a escória da sociedade, conforme a mentalidade vigente; ocupavam o último degrau da escala social, desde que Israel deixou a condição de povo nômade para sedentário, quando chegou na terra prometida. Devido aos cuidados que os rebanhos exigiam, os pastores não tinham condições de observar a Lei, sobretudo o repouso sabático; por causa das andanças dos rebanhos, eram obrigados a atravessar terras pagãs, e o contato constante e direto com os animais os tornavam impuros. Por isso, eram mais rejeitados até do que os cobradores de impostos. Além da total exclusão, também eram duramente explorados; cuidavam de rebanhos que não eram deles; tinham de vigiar durante dias noites, para defender os rebanhos de ameaças de lobos e assaltantes.

Como o nascimento de Jesus inaugura uma nova história, também marca o início de uma nova ordem, com novos protagonistas. Os últimos começam a se tornar primeiros, e o anúncio aos pastores é uma prova disso, como diz o texto: «Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo’» (v. 9-10). Ora, de acordo com a religião da época, os últimos a receber uma mensagem de Deus seriam os pastores. Eles já tinham sido condenados antecipadamente. Mas, como Deus surpreende, eles se tornaram os primeiros destinatários do anúncio do nascimento de Jesus. A notícia dada pelo anjo é para todo o povo, como é a mensagem libertadora de Jesus. Mas algumas pessoas tem prioridade nesse anúncio: os pobres e excluídos. Essa é uma das grandes certezas que os evangelhos revelam e, sobretudo, o de Lucas. A opção preferencial pelos pobres é clara! Por isso, esse anúncio é dado com uma grande alegria para os pastores. Explorados e excluídos, eles nunca tinham recebido mensagem de alegria; quando alguém se dirigia a eles, o que era raro, era com palavras de condenação ou impondo ordens. O anúncio do nascimento de Jesus para eles é uma grande alegria porque traz eles para o centro da história, que começa a ser reescrita a partir de baixo, a partir dos pequenos e últimos. Com o anúncio do anjo aos pastores, portanto, o programa do Magnificat começou a ser realizado: finalmente, os humildes começaram a ser elevados. Os primeiros, como o imperador e o governador, passam a ser últimos, já não são mais lembrados na nova história que está começando.

E a notícia dada aos pastores é mesmo de alegria, é maravilhosa: «Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (v. 11). Como se vê, o anúncio é atual, indica que a salvação não é um evento passado nem futuro, mas um fato do presente, do cotidiano: é para hoje! Temos aqui, mais uma linha importante da teologia de Lucas: o hoje (em grego: σήμερον – semeron), que indica a urgência da salvação/libertação, sobretudo para quem não pode mais esperar, como os pastores, na época, e tantas pessoas marginalizadas ainda hoje. E isso constitui uma séria advertência para a comunidade: é preciso discernir quais são as situações que exigem tomadas de posição e meios de transformação com urgência. Neste versículo, aparecem os três principais títulos cristológicos de Jesus: Salvador (em grego: σωτὴρ – sotér), Cristo, que significa Messias/ungido (em grego: χριστὸς – Christós), e Senhor (em grego:  κύριος – Kýrios). Quer dizer que Jesus possui a totalidade dos dons de Deus, e tudo foi disponibilizado à humanidade, a partir do seu nascimento. Com todos esses títulos aplicados a Jesus, o evangelista confronta a teologia de Israel e a ideologia imperial. Ora, os títulos de Salvador, Messias e Senhor eram muito caros ao pensamento judaico, que os concebia do ponto de vista triunfalista, com o qual o menino nascido na manjedoura nada tinha a ver. As credenciais de Jesus como Salvador, Messias e Senhor são o reverso do que se esperava em Israel. À exceção do título de Messias, o imperador romano também exigia ser reconhecido com esses títulos – salvador e senhor. Mas, de modo sutil e poético, pela boca do anjo, o evangelista denuncia essa falsa pretensão: só um verdadeiro Salvador, Messias e Senhor do mundo: é o frágil menino, enrolado em faixas, colocando numa manjedoura porque lhe negaram um lugar na hospedaria.

Para não deixar dúvidas, o anjo indica como os pastores encontrarão o Salvador nascido para eles (v. 12). A lógica seria procurá-lo num palácio ou num templo, em meio a refinados ornamentos. Mas desse modo os pastores jamais encontrariam, pois, as portas dos templos e palácios não se abririam para eles. Um recém-nascido é sinal de impotência e fragilidade, a manjedoura indica a extrema pobreza. Temos aqui um grande paradoxo: é nessa impotência, fragilidade e pobreza que está a glória de Deus em plenitude, o que é confirmado pela «multidão da coorte celeste» (v. 13) que se juntou ao primeiro anjo para cantar e festejar. Essa cena marca o fim definitivo da separação entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. O nascimento de Jesus superou as antigas barreiras de separação. Diante dos pastores, os anjos não só cantam, mas proclamam uma nova imagem de Deus, mas também um jeito novo de se relacionar com ele e uma nova ordem para o mundo: «Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados» (v. 14). Como se vê, a glória de Deus está intrinsecamente relacionada ao bem-estar da humanidade. A paz não é um sentimento, nenhuma tranquilidade interior; é a totalidade de todos os bens sonhados por Deus para a humanidade: justiça, liberdade, dignidade, igualdade, fraternidade, terra para trabalhar… logo, não tem sentido proclamar Deus como glorioso sem preocupar-se com essa paz entre os homens. Se as pessoas não podem viver bem na terra, pouco sentido tem a proclamação da glória de Deus nos céus.

Que a celebração de mais um Natal nos ajude a assimilar o seu verdadeiro sentido, abraçando as causas que ele pressupõe. Como diz o Papa Francisco, «Deus faz morada entre nós, pobre e necessitado, para nos dizer que é servindo aos pobres que amamos a ele». Celebremos o Natal, portanto, acolhendo Jesus que vem ao nosso encontro, reconhecendo-o entre aqueles que não tem lugar onde ser acolhido. Que a manjedoura, lugar de manifestação e revelação do Deus que é Salvador, Messias e Senhor, não seja romantizada. Jesus foi parar nela porque não lhe deram lugar na hospedaria. A manjedoura foi o que lhe restou. Que nosso coração seja hospedaria para Jesus nascer a cada dia, e que sejamos promotores de paz, justiça, amor e humanização, para proclamarmos a glória de Deus com a consciência tranquila. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...