sábado, agosto 31, 2019

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,1.7-14 (ANO C)




A liturgia deste vigésimo segundo domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do longo caminho de Jesus, acompanhado de seus discípulos e discípulas, em direção à cidade de Jerusalém, onde consumará a sua missão com a paixão, morte e ressurreição. Como temos insistido ao longo dos últimos domingos, esse caminho é um itinerário catequético e uma metáfora da vida da comunidade cristã e do discipulado, sobretudo; é uma criação de Lucas, que selecionou os mais importantes ensinamentos de Jesus e distribuiu-os nesta longa seção narrativa (cf. Lc 9 – 19). Por isso, não consiste apenas no ato de caminhar, mas no ensinamento dos valores do Reino de Deus, sendo que Jesus é o próprio Reino em pessoa, de modo que tais valores se manifestam na sua maneira de agir diante das mais diversas situações. Enquanto caminhava, Jesus se servia dos fatos do cotidiano para instruir o povo e formar seus discípulos e discípulas.

O trecho escolhido para a liturgia de hoje – Lc 14,1.7-14 – apresenta Jesus numa refeição festiva do sábado, na casa de um fariseu. A refeição, para todas as culturas antigas, possuía um valor sagrado; na cultura judaica era, acima de tudo, um momento de memória e rendimento de graças a Deus por suas obras em favor de Israel, ao longo da história. No mundo greco-romano, que Lucas conhecia tão bem, a refeição era também ocasião de ensino e aprendizado, através dos diálogos travados entre os comensais, de modo que o banquete se tornou um elemento importante para a filosofia grega, considerado, inclusive, um gênero literário próprio. Neste texto, Lucas procura sintetizar as duas perspectivas. Por sinal, é exatamente Lucas o evangelista que mais apresenta Jesus sendo convidado e aceitando convites para participar de refeições, utilizando, assim, o banquete como ocasião de ensinamento (cf. Lc 5,29-39; 7,36-50; 11,37-54; 19,5-6), além das refeições pascais de antes e depois da ressurreição (cf. Lc 22,14-23; 24,41-43). Das refeições de Jesus que Lucas descreve, três foram em casa de fariseus (cf. Lc 7,36ss; 11,37ss; 14,1ss), sendo a de hoje a última. Por sinal, sempre havia conflito quando Jesus comia na casa de um fariseu.

Eis o texto: “Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam” (v. 1). Nos dias de sábado, após o culto matinal da sinagoga, as famílias almoçavam festivamente; a comida tinha sido preparada na véspera, a sexta-feira, o “dia da preparação”, como eles chamavam, uma vez que nenhum trabalho poderia ser feito no sábado, dia de culto e repouso. Nos povoados, os judeus mais influentes costumavam oferecer verdadeiros banquetes, convidando com frequência o pregador daquele dia na sinagoga, de modo que o almoço fosse uma extensão do culto. Assim, à mesa se discutia o assunto da pregação, tirando as dúvidas suscitadas. Isso nos faz supor que, naquele sábado, Jesus pregou na sinagoga do lugar por onde passava e, após o culto, recebeu o convite para uma refeição na casa de um chefe dos fariseus, alguém importante do lugar. Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante, os primeiros interessados em conferir o teor de sua mensagem eram os fariseus, como guardiães da sã doutrina na época. Ao dizer que “observavam” Jesus, o evangelista denuncia qual era a intenção deles com o convite: observar cuidadosamente seus gestos e palavras para o acusarem de blasfemo e transgressor da Lei de Deus, uma vez que a interpretação de Jesus geralmente trazia elementos novos que eles não aceitavam.

Podemos dizer que havia uma dupla malícia: os fariseus convidavam Jesus para observá-lo e depois acusá-lo, e Jesus aceitava tais convites para desmascará-los, muito mais que para desfrutar da fartura do banquete, como evidencia o próprio texto: “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então, contou-lhes uma parábola:” (v. 7). Com base em suas observações, Jesus faz sérias advertências, tanto aos convidados, quanto ao anfitrião, especificamente sobre a humildade (vv. 8-11) e a generosidade-gratuidade (vv. 12-14). Destas advertências a pessoas específicas, os fariseus, surge um ensinamento universal, direcionado inicialmente aos discípulos de primeira hora, mas estendido aos cristãos de todos os tempos: o cultivo da humildade e da gratuidade nas relações, ou seja, um estilo de vida baseado em novos critérios, em discordância com os valores defendidos pelas tradições ultrapassadas e excludentes do judaísmo da época.

Ao advertir os convidados (vv. 8-11), Jesus recorre à tradição sapiencial e constrói uma pequena parábola, baseada em uma citação do livros dos Provérbios: “Não te vanglories na frente do rei, nem ocupes o lugar dos grandes; pois é melhor que te digam: ‘Sobe aqui!’ do que seres humilhado na frente de um nobre” (Pr 25,6-7). Ora, tendo notado que os convidados escolhiam os primeiros lugares, foi muito oportuna a chamada de atenção. A princípio, parece um convite à esperteza: como lograr de sucesso na frente dos demais ao ser promovido, passando do último para o primeiro lugar (v. 10). Era essa a mentalidade do autor sapiencial. Mas, Jesus usou o texto de Provérbios apenas como ilustração. O que, de fato, Ele quer apresentar é a dinâmica do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, prevenir seus discípulos para não imitarem o comportamento dos fariseus. Por isso mesmo, Ele continuará essa observação em outras ocasiões: na parábola do fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14) e, já em Jerusalém, no discurso contra os escribas (cf. Lc 20,45-47). Portanto, o contexto é o da formação dos discípulos. Ora, a busca pelos primeiros lugares, característica do grupo dos fariseus, não pode fazer parte do discipulado de Jesus. A atitude do cristão deve ser sempre a do serviço, e quem serve não pensa nos lugares de honra, mas nas necessidades do próximo. Certamente, esse texto reflete também a preocupação de Lucas com a tendência hierarquizante nas suas comunidades. O banquete dos fariseus é, aqui, apresentado como o anti-modelo do banquete cristão, o qual deve prefigurar o banquete do Reino. Assim, renunciar aos lugares de destaque é, mais que humildade, um gesto de amor. É dar espaço para o outro, optando por uma modelo de sociedade alternativa, renunciando a qualquer indício de concorrência e egoísmo. É uma atitude inclusiva, como será desenvolvido na sequência do texto.

A segunda advertência completa a primeira: “E disse também a quem o tinha convidado: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (vv. 12-13). Ora, tendo antes “observado como os convidados escolhiam os primeiros lugares” (v. 7a), Ele percebeu também as características destes convidados, e os critérios usados pelo dono da casa para convidá-los. Estava muito clara a lógica da retribuição naquele ambiente. Aqui, Ele retoma o discurso das bem-aventuranças: “fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca” (cf. Lc 6,35). Esse conselho dado ao dono da casa é completamente contrário aos costumes da época. Trata-se de algo revolucionário. O convite à generosidade e gratuidade nas relações é, aqui, apenas um dos ricos significados desse trecho. Fazer o bem sem esperar recompensa é, de fato, uma atitude necessária para a comunidade dos discípulos.

Há um forte apelo a uma revolução social, ao conceber as novas relações, e um convite para uma luta da qual nenhum cristão pode fugir: a superação de todas as formas de exclusão e marginalização. Ele observou, naquele ambiente, quatro categorias de convidados: “amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos” (v. 12), e todas com capacidade de retribuir. Para reverter essa situação, Ele propõe outros critérios, sendo o primeiro a impossibilidade de retribuição. Por isso, sugere também quatro categorias: “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos” (v. 13). É aqui onde se encontra a máxima da novidade de Jesus neste episódio. Ora, é inegável que a religião dos judeus pregava uma atenção especial aos pobres, juntamente com os órfãos e as viúvas, sobretudo nos livros proféticos; mas a prioridade aos “aleijados, coxos e cegos” é uma exclusividade de Jesus; essa atenção é fruto do seu amor infinito pelos últimos. Inclusive, de acordo com a Lei, quem fosse portador de qualquer deficiência física, incluindo “cegos, coxos e aleijados”, não podia sequer entrar no templo (cf. Lv 21,18-20), enquanto Jesus diz que eles devem ser os convidados principais do banquete.

Para aquele fariseu e seus convidados, o que Jesus disse foi apenas uma sugestão. Para os cristãos, isso é compromisso e exigência: não há vida cristã sem luta pela inclusão e pela superação de todas as formas de discriminação e preconceitos. É interessante observar a fórmula “quatro por quatro”: tirar os privilégios de quatro grupos específicos, e incluir quatro grupos que representam todas as categorias de excluídos, inclusive da vida religiosa, uma vez que os aleijados, os coxos e os cegos nem entrar no templo podiam. Assim, o projeto do Reino, anunciado no Evangelho de Lucas, logo no cântico de Maria, prevendo a ascensão dos humildes e a queda dos poderosos (cf. Lc 1,52), vai ficando cada vez mais claro. Não podemos deixar de perceber aqui uma antecipação da Eucaristia e seu sentido mais profundo: banquete para todos, motivado por amor-doação, sem exclusão alguma.

Na conclusão, Jesus proclama uma bem-aventurança destinada a quem aceitar o seu projeto de inversão de ordem nas estruturas e nos costumes exclusivistas, conservados pela religião e a sociedade da época: Então, tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (v. 14). É feliz quem assimila a lógica do Reino. A única recompensa para quem acolhe os mais necessitados, e excluídos em geral, é a certeza do amor de Deus em demasia. A expressão “ressurreição dos justos”, aqui, não é uma definição doutrinal, mas significa uma relação tão íntima com Deus que nem a morte consegue interromper. E, aquilo que garante essa relação é o amor e a solicitude para com os mais necessitados.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: fco_cornelio.fr@hotmail.com

sábado, agosto 24, 2019

REFLEXÃO PARA O XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 13,22-30 (ANO C)




Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura contínua do Evangelho segundo Lucas, após a pausa para a solenidade da assunção de Nossa Senhora, celebrada no domingo passado. Desta vez, o contexto é fornecido pelo próprio texto – Lc 13,22-30 – em seu primeiro versículo, o que torna desnecessária uma contextualização introdutória como costumamos fazer, uma vez que essa será feita na própria explicação do texto. Por isso, podemos já olhar diretamente para ele: “Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo o caminho para Jerusalém” (v. 22). Como se vê, o contexto continua sendo o do caminho de Jesus para Jerusalém, acompanhado por seus discípulos e discípulas. Como o caminho constitui a seção narrativa mais longa de todo o seu Evangelho (cc. 9 – 19), Lucas faz questão de recordar esse detalhe para situar o leitor e evitar possíveis dispersões. Isso revela suas qualidades de um narrador exemplar que sabe prender a atenção dos seus leitores.

Além de nos situar no contexto, o primeiro versículo também aponta para a natureza do caminho percorrido por Jesus: se trata de um itinerário catequético, sobretudo, e não apenas geográfico. Enquanto caminha, Ele ensina e forma o seu discipulado. Ao dizer que “Jesus atravessava cidades e povoados ensinando”, o evangelista prefigura a natureza missionária e itinerante da Igreja, indicando que ela deve estar constantemente em saída. Enquanto caminhava e ensinava, Jesus se relacionava com as pessoas, promovia encontros. Seu ensinamento impressionava pelo conteúdo e pela sua maneira de ensinar, por isso, despertava curiosidade em pessoas anônimas e desconhecidas que aproveitavam para lhe fazer perguntas. Isso demonstra que Jesus era uma pessoa acessível e aberta, que escutava a todos, não se deixava aprisionar por círculos e grupos restritos.

O evangelista diz que “Alguém lhe perguntou: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” (v. 23). Certamente, a pergunta do interlocutor anônimo de Jesus foi motivada por algum ensinamento anterior; provavelmente esta pessoa estava ouvindo sua pregação e teve essa curiosidade. Se trata de uma pergunta que reflete um pensamento e uma preocupação muito difundida nos ambientes judaicos do tempo de Jesus e, posteriormente, também no cristianismo. Ora, nas escolas rabínicas da época, circulavam três correntes principais que apresentavam diferentes respostas para essa pergunta: uma primeira, afirmava que todos os judeus, pelo simples fato de pertencerem ao povo eleito, estavam automaticamente com a salvação garantida; uma segunda, pregava que não bastava fazer parte do povo eleito, mas era necessário observar a Lei de modo impecável e, por isso, somente um pequeno “resto de Israel” se salvaria; havia ainda uma terceira via: todos os judeus se salvariam e também os pagãos que aceitassem viver conforme a Lei poderiam se salvar.

Como de costume, Jesus não responde objetivamente ao seu interlocutor, mas lhe faz um convite ao esforço, à perseverança e à reflexão, através de uma pequena parábola, introduzida com a imagem da porta estreita: “Fazei todo o esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (v. 24). Embora neste contexto esteja aplicada a uma casa, essa imagem da porta estreita faz referência a uma pequena abertura que havia nos muros das cidades antigas. Como as cidades eram muradas, nos muros havia uma grande porta para entrada e saída de pessoas e transportes que, por motivos de segurança, era fechada à certa hora da noite e só abria no dia seguinte. Próximo à grande porta, geralmente, havia uma pequena abertura, chamada de “porta estreita”, suficiente para a entrada de apenas uma pessoa por vez, e ainda com dificuldades, usada por quem não conseguisse chegar antes que a grande porta fechasse ou que necessitasse sair antes da abertura, no dia seguinte. Algumas pessoas não conseguiam passar por ela, tendo que ficar expostas aos perigos do lado de fora. Essa imagem era muito aplicada na antiguidade para referir-se a coisas difíceis que exigiam esforço e às situações de perigo.

Aplicada a uma casa, ao invés de uma cidade, a imagem da porta estreita perde um pouco do seu sentido, mas sendo usada por Jesus, neste contexto específico da resposta ao interlocutor desconhecido, funciona muito bem. Ora, o que está em questão é o acesso à salvação, ou seja, ao Reino de Deus, e isto depende do acolhimento à Boa Nova de Jesus na vida da pessoa, com todas as suas consequências. Um pouquinho antes de iniciar o caminho para Jerusalém (cf. Lc 9,51), os discípulos tinham discutido entre si sobre quem era o maior entre eles; ao repreendê-los, Jesus tomou uma criança junto de si e apresentou-a como exemplo, dizendo que é necessário fazer-se pequeno para acolher a sua mensagem (cf. Lc 9,46-47). A imagem da porta estreita é, portanto, uma retomada dessa temática e uma nova advertência aos discípulos, já que somente as pessoas pequenas passavam com facilidade pela “porta estreita”. É importante, recordar que, na dinâmica do caminho, mesmo quando Jesus entra em contato com outros personagens, os destinatários principais dos seus ensinamentos são sempre os discípulos, já que o caminho é, sobretudo, uma alegoria do seu programa formativo. Assim, Ele propõe mais uma vez a necessidade de fazer-se pequeno para lhe pertencer. Temos aqui, portanto, mais uma demonstração excepcional das qualidades pedagógicas de Jesus.

O acesso ao Reino definitivo exige esforço e compromisso. Por isso, ao invés de dar uma resposta direta e exata ao interlocutor, Jesus fez um alerta para a necessidade de aderir ao programa do Reino, antes que seja tarde demais. Eis a continuação da parábola: “Uma vez que o dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a bater, dizendo: “Senhor, abre-nos a porta!” Ele responderá: Não sei de onde sois. Então começareis a dizer: “Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças”. Ele, porém, responderá: ‘Não sei de onde sois. Afastai-vos de mim todos que praticais a injustiça! (vv. 25-27). Embora seja apresentado um dono de casa severo, o centro do ensinamento aqui não é a sua severidade, mas uma demonstração daquilo que conta e o que não conta para alguém fazer parte do Reino. Logo, não temos aqui um anúncio de condenação ou castigo, mas uma advertência sobre as credenciais para ter as portas do Reino abertas. Antes de tudo, Jesus diz que não é suficiente ter comido e bebido com ele e nem ouvir o ensinamento, se tais atitudes não se traduzem em prática de justiça. Na época da redação do Evangelho, a celebração fraterna da fração do pão, versão primitiva da atual Eucaristia, já estava consolidada e, temos aqui uma chamada de atenção para quem não concilia essa celebração com uma conduta ética e justa. Em outras palavras, o acesso ao Reino não depende das práticas cultuais. Quem é praticante de injustiças está automaticamente excluído do Reino, mesmo que seja frequentador assíduo das mais variadas expressões cultuais.

A exclusão do Reino corresponde a uma vida sem sentido, e não propriamente a um castigo: “Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac e Jacó, junto com todos os profetas no Reino de Deus, e vós, porém, sendo lançados fora” (v. 28). Essa linguagem ameaçadora, tão frequente em Mateus, é rara em Lucas, o evangelista da misericórdia; ele a emprega aqui por fidelidade à fonte utilizada. O choro e o ranger de dentes é uma contraposição à alegria e a paz, características básicas da comunidade do Reino, sobretudo na perspectiva de Lucas. Embora o foco de Jesus e do evangelista seja a construção da comunidade do Reino, temos aqui também uma clara crítica e denúncia às pretensões de exclusivismo do povo judeu em relação ao acesso à salvação, o que fica evidente pela seguinte afirmação: “Virão homens do Oriente e do Ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus” (v. 29). Como o que garante o acesso ao Reino é a prática da justiça e, por outro lado, o que exclui é prática da injustiça, podem participar da mesa do Reino pessoas dos quatro cantos da terra, desde que abracem o programa de vida de Jesus e sejam adeptos da justiça. Pertencer a uma raça ou a uma religião não determina a pertença ou exclusão do Reino de Deus; o que conta é a conduta justa.

A conclusão é uma máxima proverbial que mostra que os critérios de Deus não seguem à lógica humana: “E assim há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos” (v. 30). Embora essa afirmação não seja exclusividade do Evangelho segundo Lucas, ela se encaixa muito bem na sua teologia que prevê, desde o início, uma inversão completa de ordem e de valores (cf. Lc 2,51-52). Funciona também como uma chamada de atenção aos judeus que imaginavam ter prioridade no Reino pelo simples fato de fazerem parte do povo eleito. Hoje, o mesmo pensamento pode ser aplicado também a muitos seguimentos do cristianismo que imaginam ter prioridade no Reino apenas pela pertença ou assiduidade em certas práticas religiosas. O critério autêntico de pertença a Jesus e seu Reino é e será sempre a prática da justiça.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 17, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE MARIA – LUCAS 1,39-56




Na solenidade da assunção de Maria, a liturgia propõe para o evangelho, o texto de Lucas 1,39-56, trecho que compreende a visitação de Maria à sua parenta Isabel, cujo ápice é a proclamação das maravilhas cumpridas por Deus ao longo da história da salvação, através do cântico que Lucas põe nos lábios de Maria, o Magnificat. Concentraremos a nossa reflexão somente no texto evangélico proposto, sem colocar em discussão as outras leituras propostas pela liturgia, nem as afirmações do dogma da Assunção, proclamado em 1950 pelo papa Pio XII.

Este é um dos trechos mais apreciados do Evangelho segundo Lucas, sobretudo, nas tradições católicas, devido a relevância dada à figura de Maria. É uma das raras cenas do Novo Testamento que tem somente mulheres como protagonistas, o que indica sua importância e peculiaridade. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; essa história será escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que o Evangelho foi escrito. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (cf. v. 48). O contexto do episódio é o da dupla anunciação: do nascimento de João a Zacarias, esposo de Isabel (cf. Lc 1,5-25), e do nascimento de Jesus a Maria (cf. Lc 1,26-38), dentro do chamado “Evangelho da Infância”, em Lucas.

Após a retirada do anjo de perto dela (cf. Lc 1,38), tendo ficado embaraçada com o anúncio (cf. Lc 1,29), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta, certamente com o propósito de confirmar a veracidade do anúncio feito pelo anjo: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que a chamavam de estéril” (cf. Lc 1,36). Realmente, a gravidez de uma mulher estéril e anciã seria tão surpreendente quanto a de uma jovem sem relação com homem. Por isso, Maria não pensou duas vezes e partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Muito se tem discutido a respeito da finalidade dessa partida tão apressada. As interpretações mais populares e devocionais atribuem essa partida à vontade de Maria de servir, de ajudar à sua parenta. Porém, o texto não aponta necessariamente para isso.

Podemos afirmar sem dificuldade que Maria pôs-se a caminho para a casa de Isabel com o intuito de comprovar a veracidade do anúncio da parte do anjo. Como uma mulher atenta e perspicaz, sensível aos sinais dos tempos, ela fez bem em conferir esse fato. Isso apenas comprova que era uma mulher prudente, de fé sólida. Além disso, o texto revela, de modo antecipado, muitos aspectos da teologia tratada por Lucas ao longo de toda a sua obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). É típico de Lucas, o movimento, o sair de si. O constante partir de um lugar para outro é um traço característico deste Evangelho, principalmente da parte de Jesus com os discípulos. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O fato de Maria não ter ido à casa de Isabel apenas para servi-la não diminui o seu papel e o seu valor. Antes de tudo, merece atenção e reverência a sua coragem e determinação de partir sozinha e apressada para uma região distante, percorrendo caminhos difíceis e perigosos. Para uma mulher, isso era praticamente inadmissível, e ela, com muita audácia o fez, rompendo muitas barreiras, antecipando o papel da Igreja, da qual ela é modelo: romper barreiras, colocar-se em estado constante de saída, independente do perigo a ser enfrentado. 

Ao chegar ao destino, Maria “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40). Muito mais que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto, por ser mais compatível com a língua original e o contexto em questão. A expressão hebraica para a saudação é desejar a paz (em hebraico: shalom). Ao enviar os discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (cf. Lc 10,5). Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser portador (a) da paz! Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher em lugar do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso porque Isabel fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho segundo Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no “evento Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova aliança, não mais portadora da Lei, mas portadora do amor e da misericórdia de Deus. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10), enquanto Isabel exclamou de alegria, o que mostra que Lei escraviza e o amor liberta.

E, mais uma vez, Maria é reconhecida como bem-aventurada: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45). Além de exaltar as qualidades de Maria, as palavras de Isabel são também uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (cf. Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: “Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei está completamente falida.

Provavelmente constrangida com tantos elogios da parte da sua parenta, Maria a interrompe e, exultando de alegria, expressa seu louvor a Deus com o seu cântico, conhecido como Magnificat (vv. 46-54). Isso reflete também a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja; o centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada do cântico de Ana (cf. 1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-lhe a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus.

Maria personifica todo o Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que “o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas” (v. 49), ao mesmo tempo se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). É o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e a comunidade dos discípulos, da qual Maria é modelo. A versão lucana das bem-aventuranças e maldições é também aqui antecipada: a expressão “Encheu de bens os famintos” (v. 53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (cf. Lc 6,20-21); já a expressão “Despediu os ricos de mãos vazias” (v. 53b) antecipa as repreensões – ai de vós –  dirigidas aos ricos (cf. Lc 6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista. Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com a humanidade.

  
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 10, 2019

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - LUCAS 12,32-48 (ANO C)




O texto evangelho deste décimo nono domingo do tempo comum continua a nos situar no caminho de Jesus para Jerusalém e, por isso, nos impele ainda mais a refletir na condição de discípulos e discípulas, uma vez que esse caminho é uma profunda catequese para o discipulado de ontem e de hoje. Como temos afirmado nos últimos domingos, trata-se do programa formativo de Jesus para o seu discipulado. Diversos temas são tratados nesse contexto, ambos conexos entre si. O texto de hoje – Lc 12,32-48 – apresenta o tema da vigilância e da responsabilidade como exigências para a comunidade herdeira do Reino, a qual é chamada ao encorajamento diante das dificuldades enfrentadas ao longo do “caminho”. Podemos dizer que esse caminho, aqui, é a própria história no seu desenrolar-se e, portanto, o que Jesus ensinou aos seus discípulos de primeira hora, continua válido para os cristãos e cristãs de todos os tempos e lugares.

Para uma melhor compreensão, uma vez que é bastante longo, podemos dividir o texto em duas partes: uma primeira, introdutiva (vv. 32-34), e uma segunda, composta de três pequenas parábolas (vv. 35-48) que visam ilustrar com imagens o tema apresentado na introdução. Trata-se de um texto longo, mas bastante compreensível, desde que esteja claro o seu contexto, que é o caminho formativo da comunidade. Por ser um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo; procuraremos colher a mensagem central, embora seja indispensável comentar alguns versículos com precisão.

O primeiro versículo é a grande chave de leitura para todo o texto: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o reino” (v. 32). O pedido de encorajamento (v. 32a) é sinal de que a proposta de Jesus não é de fácil assimilação. As exigências e responsabilidades para segui-lo são muitas, por isso havia tendência à desistência entre os discípulos. À medida em que caminhava com seus discípulos e discípulas, pois havia também mulheres no grupo (cf. Lc 8,1-3), aumentavam as hostilidades ao projeto revolucionário de Jesus, principalmente da parte da hierarquia religiosa judaica, responsável pelo confronto final em Jerusalém. Aumentavam também os conflitos internos no grupo, tanto por rivalidade entre os discípulos, quanto por medo e desilusão com as exigências que só aumentavam. Os discípulos começavam a perceber que Jesus não apresentava nenhum traço do messias ideal, esperado há séculos. Ao invés de messias triunfante, como esperavam os judeus, Jesus parecia um fracassado, fadado a terminar sozinho. Por isso, Ele insistia pedindo coragem e perseverança.

Os discípulos precisavam de muita coragem e perseverança, exatamente porque formavam um “pequenino rebanho” (v. 32b), praticamente invisível e sem importância, diante das grandes estruturas religiosa e política da época: o judaísmo oficial e o império romano, respectivamente. Paradoxalmente, o pequeno rebanho tem um grande valor, pois “foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (v. 32b). Realmente, trata-se de algo maravilhoso e até surpreendente, mas inconcebível para as pretensões triunfalistas vigentes naquele tempo. O reino proposto por Jesus, confiado pelo Pai à pequena comunidade, não contém os elementos esperados, tais como poder, riqueza, vaidade, concorrência e grandeza. A proposta de Jesus contempla uma verdadeira inversão de valores e, certamente, a comunidade dos discípulos não estava ainda pronta para absorver essa virada radical. Por isso, a insistência de Jesus ao pedir coragem e perseverança.

Na sequência do texto (v. 33), são apresentadas algumas das exigências para continuar ou não como membros do “pequeno rebanho”: “vendei vossos bens e dai esmola” (v. 33a). Com certeza, no grupo dos discípulos ainda havia alguns fazendo média com Jesus, aderindo pela metade, ou seja, aparentemente despojados, mas com algumas reservas escondidas, como Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos (cf. At 5,1-11). Percebendo isso, Jesus pede um desprendimento total. Parece que a parábola do rico insensato, refletida no domingo passado (cf. Lc 12,13-21), ainda não fora suficiente para esclarecer aos discípulos sobre a incompatibilidade entre o apego aos bens materiais e os valores do Reino. Não basta vender os bens, é necessário aplicar bem o valor destes para que, realmente, um tesouro no céu seja adquirido, isto é, partilhando com os pobres. “Dar esmola” na mentalidade semítica significa fazer justiça.

A continuação do versículo mostra o que deve ser o objetivo do discípulo: possuir “um tesouro no céu” (v. 33b), ou seja, buscar coisas que não se acabam, mas que permanecem para toda a vida. Os discípulos ainda não tinham assimilado o ensinamento da parábola do rico insensato (cf. 12,13-21), ou seja, não tinham compreendido a necessidade de que é necessário perder aos olhos do mundo, para ganhar aos olhos de Deus. Jesus pede para que os discípulos busquem o que é eterno, o que realmente tem valor no Reino que o Pai lhes confiou. E esse é um tema muito caro para Lucas (cf. Lc 11,41; 16,9; 19,8).

A conclusão da primeira parte é feita com um provérbio: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (v. 34). Vale a pena recordar a importância do uso da imagem do “tesouro” na Bíblia. O primeiro sentido é a reunião de coisas preciosas acumuladas para serem conservadas como sinal de segurança, por isso, deveria ficar escondido, pois, se revelado, logo seria alvo de cobiça e estaria sujeito a assaltos. Como significa algo muito precioso, o termo passou a ser usado como imagem de realidades espirituais, em contraposição a bens materiais, principalmente na literatura sapiencial (cf. Pr 2,4; Sb 7,14; Eclo 1,25). Todo judeu possuía um tesouro, independentemente do valor, porque tinha algo central em sua vida. O que o ser humano considerava mais importante na sua vida era o seu tesouro. Jesus se apropria desse uso para ilustrar a sua descrição do Reino de Deus em diversas ocasiões, como no texto de hoje. Como o coração para a mentalidade hebraica significava a sede do pensamento e a consciência do homem, ou seja, o centro da vida, Jesus quer dizer que é para o tesouro que a vida do homem se volta.

Na continuidade da catequese, Jesus apresenta três pequenas parábolas com o intuito de reforçar o ensinamento proposto. Ora, se durante a sua presença física, Ele já via sinais de desânimo entre os discípulos, muito mais seria quando já não estivesse mais fisicamente entre eles. Por isso, as parábolas insistem no tema da vigilância e da responsabilidade, preparando a comunidade para a continuidade da missão após a sua morte. Estas parábolas são, ao mesmo tempo uma chamada de atenção aos discípulos e uma crítica à hierarquia religiosa judaica.

A primeira parábola apresenta a imagem de um senhor que viaja para uma festa e deixa tudo aos cuidados dos seus servos (vv. 35-38). É introduzida com um imperativo: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (v. 35). Parece uma imagem sem sentido para os dias atuais, mas muito significativa no seu contexto. É a imagem de quem está em atitude de serviço. A vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento. A expressão “os rins cingidos”, significa a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que ficavam enquanto trabalhavam ou viajavam. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas acesas”; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (cf. Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a primeira páscoa assim: “E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés” (cf. Ex 12,11a). Há uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se constantemente em clima pascal. Isso se confirma pela continuação da parábola, na qual se diz que quando o senhor voltar da festa fará os servos sentarem-se à mesa, e os servirá (v. 37). Uma atitude surpreendente para quem é senhor. Essa é uma das mais belas imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário que, ao invés de exigir serviço dos seus servos, abaixa-se para servi-los. Somente Jesus, sendo senhor, fez-se servo (cf. Lc 22,27).

A segunda parábola (vv. 39 e 40) apenas reforça a necessidade da vigilância, através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura exatamente surpreender o dono da casa. É necessário que a comunidade não seja surpreendida. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado com essa mesma imagem (1Ts 5,2; 1Pd 3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor é motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.

A terceira parábola (vv. 42-48) é uma resposta direta à pergunta de Pedro: “Senhor, tu contas essa parábola para nós ou para todos?” (v. 41). Está claro que os discípulos não eram os únicos ouvintes de Jesus no momento. Essa pergunta reflete o medo da responsabilidade que afligia os discípulos. De fato, para um rebanho tão pequeno, era muita responsabilidade herdar o Reino e assumir as suas consequências. Jesus não responde diretamente, mas com a parábola (vv. 42-48). Nessa Ele faz uma crítica explícita à hierarquia religiosa judaica, acusada de relaxamento e mau exemplo desde os tempos do profeta Ezequiel, através da imagem dos “maus pastores” (cf. Ez 34,1-10), e ao mesmo tempo alerta a comunidade dos discípulos a perseverar como guardiã do Reino.

Provocado pela pergunta de Pedro, e percebendo a sua insegurança, Jesus direciona o ensinamento para os discípulos. É deles que serão feitas exigências maiores, exatamente porque a eles foi confiado o Reino. E essas exigências se estendem aos discípulos e discípulas de todos os tempos. Por isso, Ele ilustra com a contraposição de comportamentos de dois servos. O primeiro age com prudência, fidelidade e comportamento exemplar, e tem como recompensa um crescimento na confiança do seu senhor (vv. 42-44). O segundo, pelo contrário, relaxa nas comodidades da vida e no abuso do poder (vv. 4-46).

Comer e beber em demasia, até embriagar-se, era sinal de felicidade, numa sociedade e religião que pregavam a prosperidade como bênção de Deus, assim como maltratar os criados e criadas não passava de uma demonstração de autoridade. Jesus reprova tais atitudes, pois ferem a dignidade humana (os maltratos) e distraem o ser humano do essencial que é cultivar tesouros no céu e não se deixar dominar pelas coisas passageiras (comida e bebida). A punição anunciada – “partir ao meio” – era a máxima execução aplicada na Pérsia, mais cruel até que a crucifixão no império romano. Não é um anúncio de castigo, mas um alerta à perda de sentido da vida. Partido ao meio, o ser humano estava impedido de participar da ressurreição no último dia, como acreditavam os judeus. Portanto, estavam destinados ao sofrimento eterno. Essa é a imagem de uma vida sem sentido. Os versículos conclusivos (vv. 47-48) refletem uma particularidade do direito judaico:  a responsabilidade e a culpa têm uma proporção gradual segundo o nível do conhecimento. As penas eram aplicadas de acordo com o nível de conhecimento da lei. Quem conhece a vontade de Deus, expressa sobretudo nas Sagradas Escrituras, tem o dever de pô-la em prática.

Percebemos, então, com o longo texto evangélico de hoje, o convite de Jesus à comunidade-Igreja para abraçar com humildade (pequeno rebanho, v. 32) a responsabilidade de herdeira do Reino, tendo a missão de fazer esse Reino crescer. Toda a comunidade é convidada a empenhar-se nesse projeto, pois ela toda é herdeira. Porém, há uma exigência maior para aqueles que assumem responsabilidades maiores. Para isso, é necessária a vigilância constante. E para Jesus, a verdadeira vigilância consiste no serviço ao próximo.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, agosto 02, 2019

REFLEXÃO PARA O XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 12,13-21 (ANO C)





O evangelho proposto para este décimo oitavo domingo do tempo comum é Lc 12,13-21, um texto que faz parte do contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde viverá a consumação da sua missão, com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Como temos enfatizado há alguns domingos, esse caminho constitui a seção narrativa mais longa de todo o Evangelho segundo Lucas, totalizando dez capítulos (cc. 9 – 19); inclusive, do décimo terceiro ao trigésimo primeiro domingo do tempo comum, neste ano C, o evangelho é tirado dessa seção. É importante recordar também que, mais do que um percurso físico/geográfico, esse caminho é, acima de tudo, um itinerário formativo, teológico e catequético, através do qual Jesus apresenta os principais elementos do seu ensinamento aos discípulos/a. Podemos dizer que Lucas juntou os principais ensinamentos de toda a vida de Jesus e distribui-os na seção do caminho, mesclando textos exclusivos seus com outros comuns aos demais evangelhos sinóticos (Mateus e Marcos). Mesmo que entrem em cena outros personagens durante o caminho, como no episódio de hoje, os destinatários principais da mensagem são sempre os discípulos. Assim, neste itinerário são abordados os temas fundamentais para a formação do discipulado: a partilha, a importância da oração, o universalismo da salvação e da missão, a misericórdia para com os pecadores, a necessidade de fazer renúncias e o perigo do apego aos bens materiais, tema do evangelho de hoje.

Uma vez contextualizados, olhemos para o evangelho de hoje, um texto exclusivo de Lucas, que compreende um pedido de intervenção de Jesus por um homem desconhecido (v. 13), cuja resposta (vv. 14-15) é seguida de uma parábola que denuncia o perigo do apego aos bens e a confiança nas riquezas (vv. 16-21). Eis o texto: “Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo” (v. 13). Esse pedido reflete um costume da época. Provavelmente, Jesus estava passando por um povoado, onde as opiniões dos rabinos – como Jesus era considerado – eram bastante requisitadas, sobretudo para ajudar a resolver questões que envolvessem a interpretação da Lei, como casos de herança, por exemplo. Inclusive, os rabinos eram muito interessados por questões desse tipo e se sentiam honrados quando solicitados, pois, além de ser uma oportunidade para exibir conhecimento, ainda recebiam uma recompensa financeira quando conseguiam promover o acordo. Provavelmente, o homem que pede a intervenção de Jesus era um filho mais novo, já que era o mais velho quem tinha controle sobre toda a herança da família, de acordo com a Lei. Enquanto o primogênito tinha direito a dois terços da herança, o outro terço era distribuído com os demais filhos (cf. Dt 21,16-17). Em compensação, o primogênito tinha também o dever de cuidar da viúva e das irmãs solteiras.

Geralmente, quando um filho mais novo pedia a divisão dos bens havia conflitos, sendo necessária a intervenção de rabinos, os quais exerciam papel de advogado e juiz, sobretudo, nos pequenos povoados, onde quase ninguém conhecia a Lei em profundidade. Por isso, na passagem de um rabino por um povoado, era comum aparecer questões desse tipo. Ao pedido de intervenção, “Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?” (v. 14). Antes de tudo, Jesus se nega a agir como os rabinos do seu tempo. A princípio, parece estranha a recusa, uma vez que, segundo a Lei, alguém estava sendo injustiçado naquele caso. Como promotor da fraternidade, é claro que Ele tinha interesse na resolução de conflitos entre irmãos; portanto, Ele não está lavando as mãos, como aparenta. Seria lógico que Jesus intervisse e ajudasse na resolução do problema, deixando cada um com o percentual justo da herança, conforme a Lei.

Com sua aparente omissão, Jesus estaria ajudando a prolongar a discórdia entre os irmãos. Porém, Jesus conhecia as intenções daquele homem e a mentalidade vigente; sabia que sua reclamação não era motivada apenas por sentir-se injustiçado, mas pela ganância, ou seja, por ter depositado toda a confiança naquela herança. E, ajudando a resolver o problema, estaria ao mesmo tempo alimentando a ganância e o desejo de acúmulo, enquanto o problema era muito mais profundo. Resolvendo um caso a mais, não mudaria uma mentalidade tão impregnada naquela cultura. Assim, Ele vai à raiz do problema. Ora, aquela herança um dia passaria por nova divisão, quando aquele homem morresse e a deixasse para seus filhos. Poderia ser causa de discórdia novamente. Jesus quer mostrar que no seu Reino as heranças não devem ser divididas, pois não devem existir, uma vez que tudo deve ser partilhado. Isso Ele deixará claro com a parábola que segue. Ao invés de legalmente divididos, os bens devem ser partilhados conforme a necessidade de cada pessoa, e não de acordo com normas legais.

A parábola vai sendo preparada aos poucos. Do caso específico do homem que lhe pede intervenção, Jesus aproveita para chamar a atenção dos discípulos: “E disse-lhes: Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida do homem não consiste na abundância de bens” (v. 15). A expressão “disse-lhes” sinaliza que não é mais a um indivíduo, mas ao grupo dos discípulos que Ele está direcionando o ensinamento. É uma dura advertência. Certamente, Ele sentia muita resistência nos seus seguidores no processo de assimilação de seus ensinamentos. Assim, Ele vai de encontro à mentalidade hebraica que via no acúmulo de bens, ou seja, na riqueza, um sinal da bênção de Deus. Jesus contraria esse princípio. O acúmulo de bens é, na verdade, a prova maior da falta de sentido para a vida e, inclusive, causa de discórdias. Portanto, é urgente para seus seguidores e seguidoras libertarem-se dos bens que aprisionam e escravizam. Provavelmente, os discípulos ainda não tinham aprendido a rezar como Ele e estavam pedindo, ainda, mais que o pão necessário para cada dia (cf. Lc 11,2-4).

Finalmente, chegamos na parábola. Recordamos que, em Lucas, especialmente, as parábolas não surgem do nada, mas são aprofundamento ou ilustração de um ensinamento já começado e visam responder a questão concretas da existência, como acontece neste episódio: “E contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem rico deu uma grande colheita” (v. 16). A expressão “contou-lhes” evidencia, mais uma vez, que o destinatário já não é mais o homem anônimo, mas os discípulos. A parábola apresenta a figura de um homem rico, grande latifundiário, o qual fora surpreendido com uma grande colheita. A atitude e o pensamento do personagem da parábola com a colheita abundante são descritos a partir de um monólogo interior, através do qual é revelado, sobretudo, o seu caráter: “Ele pensava consigo mesmo: ‘O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!’ (vv. 17-19). Convém mencionar que, como escritor refinado que é, Lucas é o único autor do Novo Testamento a empregar o recurso do monólogo interior. 

Como se vê, o personagem da parábola é um homem voltado somente para si mesmo. Quase todas as suas falas são em primeira pessoa singular (vou fazer; vou derrubar; vou guardar; poderei), além de um uso excessivo de pronomes possessivos (minha; meus), o que revela um egoísmo profundo. Toda a sua confiança é depositada na abundância dos bens. Em seu pensamento não há espaço para Deus e nem para o próximo; ele pensa somente em si e nos bens que possui, e esse é o seu grande pecado. Esse homem representa o “anti-discípulo”: apegado aos bens, ganancioso, egocêntrico, autossuficiente e insensato. Tudo o que os discípulo e discípulas de Jesus não podem ser, esse homem era.

A vida de uma pessoa perde o sentido quando não contempla Deus e o próximo. Por isso, a intervenção divina: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?’” (v. 20). Aqui, não se trata de um ato vingativo de Deus, mas de um alerta, um convite à reflexão que é feita a cada pessoa, independente da quantidade dos bens acumulados. Quer dizer que é Deus a fonte da vida. É o sinal de contraposição à falsa segurança depositada, na riqueza, pelo homem (cf. v. 19). Enquanto ele julgava ter vida longa pelo que havia acumulado, Deus entra na história para mostrar o que, de fato, tem valor. A pergunta final: “E para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20b) é apenas uma ponte com o que gerou toda a discussão e a parábola: o pedido de intervenção daquele homem anônimo na divisão da herança. Além de não garantir vida verdadeira, os bens acumulados ainda são causa de discórdia, tirando a harmonia e a paz das pessoas.

Com a frase final, Jesus completa o sentido da parábola e reforça a chamada de atenção nos discípulos: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (v. 21). O acúmulo para si, como do personagem da parábola, leva o ser humano a deixar de refletir sobre a vida e o seu sentido, tirando Deus e o próximo do seu horizonte. Isso é, consequentemente, empobrecer-se diante de Deus. Ser rico diante de Deus é, por outro lado, estar à disposição do seu projeto, cuja manifestação mais clara é a partilha e o serviço ao próximo. É isso que dá sentido à vida e torna a pessoa rica diante de Deus. Sendo a vida dom de Deus, essa só tem sentido quando o ser humano também se faz dom para o próximo. Jesus ensina, assim, a partir do pedido que o homem desconhecido lhe fez, aos seus discípulos a conscientizarem-se da incompatibilidade entre o seu seguimento e as riquezas deste mundo. Para isso, rompe, inclusive, com um princípio sagrado para o povo judeu, a herança. Se alguém deixou herança, foi porque acumulou. Se acumulou, foi porque não partilhou e, quem não partilha, não está apto a fazer parte do seu Reino.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...