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sábado, agosto 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,60-69 (ANO B)

 


Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia conclui a sequência de cinco domingos de leitura do sexto capítulo do Evangelho de João. Trata-se de um fenômeno exclusivo do “ano litúrgico B”, devido ao fato de o Evangelho de Marcos ser mais abreviado em relação aos outros sinóticos (Mt; Lc). Por isso, nesse ano, recorre-se mais ao Quarto Evangelho, como complemento, uma vez que os textos de Marcos não seriam suficientes para todos os domingos do tempo comum. No entanto, na sequência dos cinco domingos – do décimo sétimo ao vigésimo primeiro –, um deles foi saltado – o vigésimo –, devido à solenidade de Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, celebrada no domingo passado. Após a interrupção, portanto, temos hoje a retomada e a conclusão, ao mesmo tempo. E o texto proposto para este dia é Jo 6,60-69. Nessa passagem, o evangelista mostra a reação final dos discípulos, incluindo os Doze, diante do longo e exigente discurso de Jesus sobre o pão da vida, que é ele mesmo, e a necessidade de alimentar-se dele para obter vida em plenitude. Tudo isso, ainda, como desdobramento do sinal da multiplicação (condivisão) dos pães no início do capítulo (6,1-15).

Como sempre, para compreender melhor o texto é necessário recordar o seu contexto narrativo. E o primeiro aspecto a ser recordado é a reação da multidão que tinha sido saciada com a partilha dos cinco pães e dois peixes: quiseram, de imediato, proclamar Jesus como rei (6,15), como consequência de uma compreensão equivocada do seu messianismo, uma visão totalmente incompatível com a missão de Jesus e o seu estilo de vida. Diante de uma ideia tão absurda, Jesus quis refugiar-se (6,15), por precaução, a fim de não alimentar ideias erradas sobre a sua missão, mas a multidão foi atrás dele e, no dia seguinte, o encontrou novamente, já na sinagoga de Cafarnaum, do outro lado do lago (6,22-25). Jesus percebeu logo o equívoco e, com muita franqueza e transparência, disse porque estavam lhe procurando: queriam, novamente, comer pão gratuito e em abundância (6,26). Diante disso, ao sentir-se incompreendido, Jesus aproveitou a oportunidade para fazer uma ampla catequese, apontando para a importância de se buscar não apenas o pão material, pois, embora necessário e essencial, esse é perecível e seus efeitos duram poucas horas. Por isso, apontou para a necessidade de um alimento que dura por toda a vida, mostrando que esse alimento é a sua própria pessoa (6,27-40), dom por excelência do Pai para a vida do mundo.

Ao apresentar-se como verdadeiro alimento, ou seja, como pão da vida ou pão vivo descido do céu, e convidar os seus ouvintes a comer a sua carne e beber o seu sangue, Jesus causou perplexidade, questionamentos, incredulidade e até ira, em seus interlocutores. Enfim, provocou as mais variadas reações. Inclusive, após a conclusão do discurso (6,59), instaurou-se uma grande crise entre os seus discípulos, pois, até então, ainda não tinham escutado exigências tão fortes para o seguimento. O evangelista João recorda tudo isso para ajudar a sua comunidade a discernir e tomar decisões: o seguimento de Jesus é comprometedor... ser discípulo e discípula dele não é memorizar uma doutrina para depois repeti-la, mas é entrar em comunhão plena com a sua pessoa, assimilando seu jeito de ser; é esse o sentido de comer a sua carne e beber o seu sangue (6,54). Recebê-lo como alimento é tornar-se também alimento para os outros. Uma proposta de vida tão exigente assim não poderia ser assimilada com facilidade. Certamente, entre as diversas formas de reação, houve também quem sentiu-se mais convicto e confiante para continuar no seguimento, como ser verá pela declaração de Pedro. Contudo, a crise foi instaurada no discipulado.

Tendo já mostrado as reações de outros interlocutores, como a própria multidão e “os judeus”, ao discurso de Jesus como verdadeiro alimento e pão para a vida eterna, o evangelista quis mostrar também a reação dos discípulos, pois era essa a que mais interessava à sua comunidade que se encontrava com a fé comprometida, devido as perseguições e o “esfriamento” no fervor de alguns membros, na época da redação do Evangelho. Olhemos então para o texto, começando pelo primeiro versículo, no qual se diz que «Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”» (v. 60). Como se vê, os próprios discípulos contestam o discurso que Jesus tinha acabado de proferir. E essa é a primeira grande novidade do evangelho de hoje. Ora, os evangelhos mostram muitas situações em que Jesus é contestado pelos seus tradicionais adversários (fariseus, saduceus, mestres da lei…), mas raramente pelos discípulos. O máximo que os discípulos ousavam era fazer perguntas e pedir esclarecimentos sobre alguns aspectos da sua vida e do seu ensinamento que não tinham ficado muito claros. Normalmente, eles concordam, ou pelo menos fingem concordar, com tudo o que Jesus diz, exceto quando escutam o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23; Mc 8,27-33).

Quando não concordam com o que Jesus diz, geralmente seus discípulos silenciam. É partindo desse dado que se percebe a profundidade da contestação apresentada no evangelho de hoje. Trata-se de um verdadeiro protesto contra Jesus e sua mensagem: «Esta palavra é dura». Muitos dos seus se sentiram realmente ofendidos, incapazes, incapazes de levar adiante um programa tão comprometedor. O adjetivo grego empregado pelo evangelista, traduzido por dura, é ‘sklerós’ (σκληρός), do qual deriva a palavra esclerosado/a. Além de dura, essa palavra – sklerós –pode ser traduzida também por insuportável, inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam completamente incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio de Jesus parecia inviável para eles. A dureza da palavra de Jesus consiste no comprometimento que dela deriva: diante dela, é preciso tomar posições firmes, como tornar-se alimento para os outros, fazendo as mesmas opções de Jesus e, consequentemente, assumindo as consequências. É uma palavra dura porque não se trata de um discurso para ouvir uma vez por semana, como a liturgia da sinagoga, mas exige uma coerência de vida cotidiana; não é uma palavra para ser simplesmente proferida, mas para ser vivida, acima de tudo.

Além da reclamação de muitos discípulos em alta voz, Jesus percebeu também que outros de «seus discípulos estavam murmurando, e por causa disso mesmo, perguntou: “isto vos escandaliza?”» (v. 61). Ao murmurar, os discípulos de Jesus repetem um dos antigos pecados de Israel. No contexto do êxodo, os israelitas recém-libertados murmuravam constantemente contra Deus e Moisés (Ex 16,2-4). O verbo murmurar, como emprega o evangelista (em grego: γογγύζω – gonguízo) expressa uma verdadeira revolta contra Deus; considerando toda a simbologia do mundo bíblico, é a negação da fé. No contexto dos evangelhos, é o verbo empregado tradicionalmente para descrever a reação dos adversários de Jesus (fariseus, saduceus, sacerdotes, etc.). Portanto, os discípulos, ou pelo menos uma parte deles, estavam agindo como adversários de Jesus, pois se sentiram ofendidos pelo seu discurso tão exigente. Ao perguntar se aquilo – o discurso – os escandalizava, ou seja, se era impedimento para a fé deles, Jesus vai bem mais além, dizendo, em outras palavras, que era como se os discípulos “ainda não tivessem visto nada”, pois realidades mais difíceis de assimilação ainda estavam por vir: «E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?» (v. 62). Ora, uma das passagens mais chocantes do discurso de Jesus foi dizer ser ele “o pão vivo descido do céu”; um absurdo para seus ouvintes que conheciam até mesmo seus pais e sabiam que ele não passava de um filho de carpinteiro (6,41-42) e, por isso, não poderia ter uma origem no alto. Logo, a sua subida seria muito mais chocante para os discípulos, uma vez que compreendia a morte na cruz, que deveria ser o destino reservado também a eles, como consequência. Aqui, portanto, Jesus os previne: coisas piores estão por acontecer, humanamente falando. Ora, se ficaram escandalizados porque Jesus afirmou ter descido do céu, muito mais ficariam vendo a sua subida, sobretudo porque essa pressuponha a cruz, e o destino dos crucificados, conforme a tradição, era a condenação eterna. Portanto, tendo a cruz no horizonte, a tendência é que muitos dos discípulos sentissem as exigências do programa de Jesus ainda mais duras, tornando-se cada vez mais difíceis de ser assimiladas.

Diante da reação negativa, Jesus não procura conformar seu discurso e suas exigências às capacidades e disposições dos discípulos. Pelo contrário, ele reforça o que já havia dito e deixa claro que já previa a resistência e até mesmo a negação completa de seu projeto por alguns discípulos. Ele sabia que somente deixando-se guiar pelo Espírito os discípulos poderiam manter-se firmes no seu seguimento. Por isso, declara: «O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem» (vv. 63-64a). A reação negativa dos discípulos não faz Jesus alterar seu projeto. Ele sabia que muitos ainda não tinham se deixado conduzir pelo Espírito e abraçado a fé, continuavam vendo as coisas apenas no plano material e conforme a Lei, por isso, não tinham assimilado a vida contida em suas palavras. Inclusive, «Jesus sabia desde o início, quem eram os que tinham fé e quem havia de entregá-lo» (v. 64b). A contraposição entre ter fé e entregar – trair – reforça que o contrário da fé não é a incredulidade, mas a covardia. Diante de tudo isso, percebendo a oposição de muitos de seus discípulos, Jesus reforça sua confiança no Pai, ressaltando sua relação intrínseca com ele: «É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai» (v. 65). Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem chama e atrai as pessoas para o seu seguimento. Isso recorda que, na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Os evangelistas fazem questão de ressaltar, e João com mais precisão ainda, que a salvação é um projeto originado no Pai, de quem Jesus é o agente autorizado para torná-la acessível a toda a humanidade.

O evangelista apresenta esse momento como um divisor de águas na vida de Jesus e dos discípulos, pois foi no discurso do pão da vida que Jesus apresentou a sua máxima revelação, até então, na dinâmica do Quarto Evangelho. Foi o momento em que Jesus mais falou de si, deixando-se conhecer completamente. O evangelista sentia que a sua comunidade, vivendo momentos de altos e baixos no discipulado, precisava tomar decisões importantes e, para isso, era necessário tornar Jesus cada vez mais conhecido em toda a sua profundidade, inclusive deixando mais claro o seu programa de vida com as exigências implicadas no seu seguimento. Até mesmo o encontro semanal da fração do pão – a eucaristia – estava perdendo a sua importância na comunidade joanina, passando a ser apenas um conjunto de ritos, deixando de ser verdadeiro encontro de comunhão transformadora. Assim como Jesus mesmo fez, também o evangelista quis mostrar que o discipulado não é uma obrigação, e sim uma opção, por sinal, radical e exigente. Por isso, ele diz que «A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele» (v. 66). Houve desistência entre os discípulos porque nem todos estavam dispostos a aderir aos compromissos do discipulado. Mas não se trata apenas de uma desistência e sim de um rompimento total. Voltar atrás, aqui, é mais do que desistir, significa uma negação completa. Não quer dizer que apenas deixaram de andar com ele, como faz entender a tradução do texto litúrgico. Quer dizer que romperam completamente, deixando de acreditar. As “palavras duras” são realmente difíceis de ser assimiladas e vividas, de modo que um seguimento superficial não tem como se sustentar. Por isso, muitos desistiram de continuar seguindo-o. A “debandada” de discípulos nas comunidades de tradição joanina parece ter sido marcante, pois na Primeira Carta o autor faz referência, embora com outras palavras, ao mesmo fato: «Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco». (1Jo 2,19). Por isso, no discurso de despedida, o verbo mais utilizado por Jesus será o verbo “permanecer” no modo imperativo (Jo 14-17). 

Entre os discípulos e discípulas, estava o seu núcleo primeiro, o chamado grupo dos Doze, a quem Jesus se dirige com muita firmeza: «Vós também vos quereis ir embora?»  (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, as convicções do seu projeto: ele prefere ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar o sistema e, assim, iniciar a construção de um mundo novo, humanizado, repleto de amor, justiça, fraternidade e paz. Jesus quer saber com quem pode contar, embora esteja disposto a seguir com seu projeto mesmo ficando sozinho, se necessário. Essa é a primeira vez que o evangelista João se refere ao grupo dos discípulos como os Doze; e só fará isso mais três vezes (Jo 6,69.71; 20,24). No contexto do sinal da partilha dos pães, essa menção adquire um sentido ainda maior: assim como sobraram doze cestos de pães, após a multidão ficar saciada (Jo 6,13), sobraram doze discípulos para Jesus. É um claro recado do evangelista às suas comunidades e aos seus leitores de todos os tempos: a comunidade de Jesus é feito das sobras, das margens, dos excluídos. Os Doze não foram os melhores, escolhidos a dedo, na verdade foi o que sobrou para Jesus. É com esse resto que ele vai contar na continuação do seu projeto. Prova que foi realmente uma sobra é o fato de que, desse mesmo grupo, ainda vai sair um traidor e outro que o negará. Humanamente falando, esse episódio é um atestado do fracasso da missão de Jesus, por isso, se torna um divisor de águas no plano narrativo do Quarto Evangelho.

Mesmo não sendo totalmente coerente, o grupo dos Doze optou por continuar no seguimento, como mostra o evangelista com a resposta de Pedro: «Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o santo de Deus”» (v. 68-69). Do que sobrou, Jesus encontrou resposta para seu projeto de libertador. Ao mostrar que Pedro respondeu no plural – nós –, o evangelista afirma que Pedro fala em nome dos Doze. É a resposta da comunidade que, embora pequena numericamente, procura perseverar com fidelidade no seguimento, reconhecendo que, apesar de duras, as palavras de Jesus contêm vida, são palavras de vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados, ou seja, os restos descartados pelos sistemas de dominação. A resposta de Pedro indica reflexão. Não há outro a quem ir; não há outro que tenha uma proposta tão inclusiva e humanizante. Num mundo hostil e perverso, explorado pela religião e pelo império romano, a comunidade joanina, mesmo sendo um pequeno resto, não via outra possibilidade de encontrar vida e sentido para a existência senão nas palavras de Jesus. Talvez isso explique o fato de ser o Evangelho que contém mais palavras e discursos de Jesus; é o Evangelho no qual Jesus mais fala. Certamente, o evangelista sentia a necessidade de alimentar sua comunidade com palavras de vida eterna. E somente as palavras que saem da boca de Jesus geram vida eterna. Isso porque ele é a própria Palavra-Verbo que se faz carne. Logo, o que ele fala vivifica.

Além da confiança nas palavras de Jesus, a resposta de Pedro também expressa a fé da comunidade e o quanto essa deve ser sólida: «nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus» (v. 69)Com essa afirmação, o evangelista traz outra informação importante que reflete a situação da sua comunidade: a necessidade de conciliar fé e conhecimento. De fato, não há contraposição entre essas duas realidades. O evangelista emprega dois verbos fundamentais da sua catequese e teologia: crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) e conhecer/saber (em grego: γινώσκω – guinôsko). Na época, havia muitas correntes teológicas equivocadas que tentavam separar a fé do conhecimento. É claro que não basta o conhecimento para um seguimento autêntico; tampouco tem sentido uma fé cega, desprovida de razão. O evangelista mostra a necessidade de conciliar fé e conhecimento a fim de garantir solidez na vivência dos ensinamentos de Jesus. E o objeto da fé e do conhecimento da comunidade deve ser a identidade de Jesus, como Pedro confessa: «tu és o Santo de Deus». Sem dúvidas, temos aqui o equivalente à solene confissão de Pedro dos evangelhos sinóticos, na região de Cesareia de Filipe (Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20). É claro que há diferenças na formulação da confissão, mas possui valor equivalente. Inclusive, também entre os sinóticos há pequenas diferenças na expressão. Mas é inegável a equivalência. Quem o reconhece Jesus como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé. Assim, os Doze conseguem assimilar a outra dimensão da dureza: a firmeza, a coragem e a força, elementos necessários e essenciais para implantar, no mundo, a civilização do amor. A proclamação de Jesus como “O Santo de Deus” é também uma forma de dizer que ele é o único agente de Deus para agir em seu nome com legitimidade. Desse modo, a religião do templo – da sinagoga na época, da redação do evangelho – não tinha mais autoridade para revelar Deus e agir em seu nome. Só Jesus revela Deus. Só se conhece Deus passando por Jesus, e só passa por Jesus quem come sua carne e seu sangue, ou seja, quem assimila seu jeito de viver.

Que saibamos reconhecer que as palavras duras de Jesus são também portadoras de espírito e vida, por isso, indispensáveis para a missão. Que essas mesmas palavras nos ajudem a discernir e escolher a qual projeto e religião seguir: um projeto de vida consistente e comprometedor, que não exige meios termos, mas apenas um engajamento total e transformador ou, simplesmente, uma religião como conjunto de ritos e normas com encontros dominicais fervorosos e semanas vazias de sentido e de amor. O Evangelho de hoje nos coloca numa verdadeira encruzilhada; é preciso tomar decisão: continuar seguindo-o ou abandoná-lo. Ele nada impõe, cada pessoa é livre para segui-lo ou não. Porém, de quem escolhe segui-lo exige-se o compromisso de ser portador de uma palavra dura, embora portadora de vida, esperança, amor e força humanizadora.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, junho 16, 2023

REFLEXÃO PARA 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36–10,8 (ANO A)





Neste décimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia continua a leitura sequencial do Evangelho de Mateus, retomada no domingo passado, após o ciclo pascal e o ciclo de solenidades seguintes. O texto proposto para hoje – Mt 9,36–10,8 – compreende o envio dos doze apóstolos em missão, por Jesus, para sanar a situação de abandono do povo de Israel, devido à negligência e corrupção de seus líderes, os dirigentes políticos e religiosos que fugiram das responsabilidades de pastores. Esse envio é fruto do olhar compassivo de Jesus, que não fica indiferente diante das situações de abandono e opressão pelas quais passam os seres humanos. Jesus sempre toma iniciativas que visam a transformação de todas as situações de ameaça à vida. E essa postura deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

A nível de contexto, podemos observar que se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma das principais características literárias do Evangelho segundo Mateus, conforme já recordamos no domingo passado, ao contextualizar o texto daquele dia. O texto de hoje compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao discurso da montanha (Mt 8,1–9,38) e a introdução de um novo discurso, o chamado “discurso missionário” ou “apostólico” (Mt 10), composto pelo envio missionário e uma série de instruções e advertências sobre a missão. O discurso missionário é o segundo dos cinco discursos atribuídos a Jesus no Evangelho Mateus, o evangelista que mais se preocupou em apresentar Jesus como o mestre que ensina com autoridade. Para compreender melhor o texto, é importante recordar também o que afirma o versículo que o antecede, que sintetiza a missão de Jesus até então: «Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade» (9,35). O que Jesus irá fazer nos versículos seguintes, correspondentes ao evangelho de hoje, é habilitar os seus discípulos como cooperadores da sua missão, para fazer o mesmo que ele fazia. E o que ele fazia era proclamar o Evangelho do Reino, cujo efeito primordial é a humanização do mundo.

Ao longo dos Evangelhos, podemos perceber que são sempre as situações concretas que motivam a ação e a pregação de Jesus. Ele nunca parte de meras abstrações, mas da realidade. O texto de hoje é uma boa demonstração disso. Olhemos, então, para o início, compreendendo os três primeiros versículos: «Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: (v. 36) ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. (v. 37) Pedi, pois, ao dono da messe que que envie trabalhadores para a sua colheita!» (v. 38). A itinerância da atividade de Jesus (Mt 9,35) lhe permitia conhecer com profundidade as situações em que o povo se encontrava. Seu olhar nunca era superficial, mas sempre profundo, e amparado na realidade. Jesus contempla um povo abandonado, oprimido e maltratado; é isso o que significa a expressão “as multidões cansadas e abatidas”; não se trata de um cansaço físico e desânimo, apenas, mas de uma situação deplorável de total abandono e miséria. A comparação com ovelhas que não tem pastor é a prova disso. A ovelha era considerada o animal símbolo de vulnerabilidade e dependência; não possuía nenhum mecanismo de defesa próprio; dependia essencialmente dos cuidados dos pastores. Logo, ovelha sem pastor é imagem de completo abandono. Com essa imagem, portanto, Jesus descreve a situação do povo e, ao mesmo tempo, faz uma dura denúncia às classes dirigentes da época, tanto religiosas quanto políticas, responsáveis pelo abandono do povo.

Ao ver as multidões abandonadas, “Jesus compadeceu-se”, ou seja, sentiu compaixão, misericórdia. Não se trata de um mero sentimento, mas de algo muito mais profundo. O evangelista emprega aqui o verbo que expressa a máxima misericórdia de Deus (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknízomai), que significa literalmente “contorcer-se nas entranhas”. Para a mentalidade hebraica, as entranhas ou vísceras são o núcleo mais íntimo e profundo do ser humano. É uma realidade mais profunda até do que o coração, e é de lá que brota a misericórdia de Deus. E, mais do que sentimento, a misericórdia de Deus é ação libertadora. Portanto, é núcleo mais íntimo de Deus que é desencadeada a missão, inicialmente de Jesus, e compartilhada por ele com toda a comunidade cristã, tendo em vista a libertação do povo abandonado e explorado pelos sistemas dominantes nos âmbitos da economia, da política e da religião. Compadecido com a situação das multidões, Jesus não se desespera e nem se conforma; e é muito importante essa sua postura. Antes de tudo, ele reforça sua confiança no Pai, o dono da messe, outra imagem aplicada às multidões, a exemplo de ovelhas. A messe é a lavoura que está pronta para ser colhida, não pode mais esperar, pois pode perder-se, caso a colheita não aconteça logo. Aplicada às multidões abandonadas, significa que aquela situação exigia uma atitude urgente. Sem uma intervenção libertadora urgente, o povo perece. É importante que os discípulos e discípulas de todos os tempos tenham a sensibilidade de perceber as situações que necessitam de intervenção urgente, como a fome, as doenças, as manipulações ideológicas e tantos outros males. Diante disso, Jesus concilia a confiança no Pai com atitudes concretas: a designação de operários para a colheita, o que faz com o envio dos discípulos, transformados em apóstolos.

A messe é de Deus, quer dizer, é a Deus que o povo pertence, mas para que não se perca é necessária a colaboração humana. Por isso, «Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar todo tipo de doença e enfermidade» (10,1). A iniciativa de chamar os discípulos é uma advertência: o discipulado não é puro voluntarismo e nem hereditário, como era o sacerdócio do templo de Jerusalém; a iniciativa é sempre de Deus. Jesus está pondo em prática os efeitos da oração exigida antes: que os discípulos pedissem ao dono da messe que enviasse operários para a colheita. Como o enviado de Deus por excelência e intérprete autêntico da sua vontade, Jesus mesmo envia, compartilhando com seus discípulos a mesma autoridade recebida de Deus. «Expulsar espíritos maus e curar todo tipo de enfermidade» é uma imagem que significa o compromisso dos discípulos e discípulos de Jesus, em todos os tempos, de lutar contra todo o tipo de mal que ameaça a vida humana em sua integridade. Funciona como síntese da missão libertadora que deve caracterizar a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. Dessa missão depende a humanização do mundo. Por isso, não deve ser confundida com propaganda religiosa nem proselitismo. É o esforço da comunidade cristã para abolir as forças do mal presentes no mundo. Aqui, pela primeira e única vez, Mateus chama os doze primeiros discípulos de apóstolos (10,2), termo que significa “enviados”. Literalmente, apóstolo é uma pessoa enviada para representar fisicamente aquele que lhe enviou, inclusive em processos judiciais. Mas antes de ser apóstolos eles são discípulos. Também é a primeira e única vez em que ele elenca os nomes dos doze, começando por Simão, chamado Pedro, e terminando com Judas, o qual se desintegrará do grupo após a traição, durante o processo (10,2-4). Não se trata de uma lista hierárquica, bem como a designação de discípulos em apóstolos não é uma promoção, mas um compromisso: é a responsabilidade de todos os cristãos e cristãs de estar com Jesus e, ao mesmo tempo, ser a sua presença no mundo, especialmente restituindo vida e dignidade a quem se encontra em estado de abandono.

Após o elenco dos nomes, o evangelista passa às atribuições dos doze, enquanto enviados, iniciando a sequência de instruções que se estenderá por todo o décimo capítulo, e hoje temos a oportunidade de ler as primeiras: «Jesus enviou estes doze com as seguintes recomendações: ‘Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! (10,5) Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!’» (10,6). As primeiras recomendações dizem respeito à circunscrição da primeira missão: os discípulos devem ir exclusivamente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ora, a designação de Israel como primeiro destinatário da missão apostólica não significa um privilégio histórico, tampouco uma tentativa de reconstrução do povo da aliança, como algumas interpretações apontam, mas uma necessidade, uma urgência. Mais do que qualquer outro povo, eram os israelitas que estavam abandonados, o que significa que, de todos os dirigentes do mundo, eram os líderes de Israel os mais pervertidos. Por isso, era Israel o povo mais abandonado e, consequentemente, o mais necessitado de libertação e humanização. Seus líderes tinham fugido das responsabilidades de cuidar do povo, o que já era motivo de denúncias há muitos séculos, desde os profetas, como o exemplo de Ezequiel, que denunciou os pastores que cuidaram de si mesmos, ao invés de cuidar do rebanho (Ez 34). Ora, de todas as formas de dominação, a pior é a dominação religiosa, e Jesus tinha consciência disso. Por isso, sua primeira iniciativa foi promover a libertação de quem estava sendo explorado em nome de Deus.

Na sequência, o evangelista descreve o conteúdo e o agir dos apóstolos, deixando claro que não se trata de uma teoria ou doutrina, mas de um anúncio acompanhado de consequências práticas: «Em vosso caminho, anunciai: ‘O Reino dos Céus está próximo (10,7) Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios» (10,8a). A mensagem que os discípulos devem anunciar é a mesma de Jesus, desde o início do seu ministério (Mt 4,17): a chegada do Reino dos Céus; o “estar próximo”, aqui, não significa a temporalidade, mas a materialidade: na pessoa de Jesus, o Reino se instaura e, enquanto apóstolos, os discípulos são uma extensão da sua pessoa, logo, neles também o Reino começa a se realizar. Esse Reino é dos Céus porque sua origem é o amor misericordioso de Deus, mas começa já aqui, onde há pessoas abandonadas e exploradas, para quem a libertação não pode mais ser adiada. Como a missão compreende palavras e ações, também os gestos que os apóstolos devem cumprir são os mesmos que Jesus já estava cumprindo (Mt 4,23; 8,16; 9,35), e que já tinha sido antecipado no início deste segundo discurso (Mt 10,1): curas, ressurreição, purificação e expulsão de demônios, ações que evidenciam um mundo sem males, um mundo onde a vida prevalece, ou seja, um mundo humanizado.

Os discípulos-apóstolos ou missionários são responsáveis pela transformação do mundo, sanando as multidões abandonadas e exploradas, restituindo vida e dignidade. Isso só é possível colocando em prática o programa de Jesus. Por isso, o evangelista não se cansa de dizer que Jesus envia os seus discípulos para anunciar e realizar o mesmo que ele fez e pregou, sem distorções, mas também sem esquecer dos sinais dos tempos. A última recomendação do evangelho de hoje diz respeito à gratuidade do Reino: «De graça recebestes, de graça deveis dar!» (8b). Os discípulos e discípulas de Jesus não são mercadores do sagrado, como tinham se transformado as antigas lideranças de Jerusalém, e continua acontecendo hoje. Tudo o que a comunidade cristã tem a oferecer ao mundo é o que recebeu gratuitamente de Jesus. E tudo o que Jesus recebeu do Pai, como dom, compartilhou com os seus seguidores e seguidoras que, por sua vez, também devem compartilhar gratuitamente com o mundo para sanar as situações de degradação e negação da vida, muitas vezes provocadas por ações e omissões de falsos pastores. É necessário, portanto, olhar o mundo com o mesmo olhar de Jesus, sentir compaixão e buscar a transformação, na gratuidade do amor misericordioso de Deus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

  Neste ano, a liturgia do vigésimo quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa Cruz, cujo evangelho é Jo...