sábado, agosto 26, 2017

REFLEXÃO PARA O XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 16,13-20 (ANO A)




Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia nos oferece Mateus 16,13-20 para o Evangelho, texto que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse mesmo texto já fora usado há quase dois meses atrás, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Se trata de um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão mateana apresente certos elementos próprios, o que lhe rendeu uma supervalorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. É importante que esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf. 16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza.

Recordamos o que sucede o nosso texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que o antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo “fermento dos fariseus e saduceus” (cf. 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam.

Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade. É claro que esse cuidado continua válido ainda para os dias atuais, uma vez que são cada mais perigosos os fermentos farisaicos de hoje: retorno ao ritualismo, indiferença às necessidades do próximo, fundamentalismo, espiritualismos vazios e tantos outros. Isso se dá por falta de clareza da identidade de Jesus e carência de experiência verdadeira com Ele.

Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo geográfico de grande importância: Cesaréia de Filipe, cidade que estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica, era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.

Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial.

Podemos dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano. Em outras palavras, é optar por uma sociedade alternativa, como é o Reino de Deus. E, para que a confissão de fé seja autêntica é necessário ter clareza da identidade daquele em quem se crê, Jesus. Ora, Jesus estava prestes a iniciar sua viagem definitiva para Jerusalém, onde sofreria a paixão e morte, isso exigiria cada vez mais clareza de si na mentalidade dos discípulos.

A pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia isso, por isso fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13b).

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual Jesus já gozava entre o povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem mais lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história. Foi esse risco que Mateus quis combater ao recordar esse episódio da vida de Jesus.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que também os demais discípulos, componentes do grupo dos doze, também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade.

A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: o Filho do Deus vivo (em grego o` ui`o.j tou/ qeou/ tou/ zw/ntoj – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.

Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego que Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida e agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas, religiosos e políticos, que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17).  Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as coisas parecem começar a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequeninos. Parece que os discípulos começam, realmente, a pôr os pés no chão!

Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). com essa afirmação, Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.

Não podemos esquecer que muitas controvérsias já foram geradas a partir desse versículo. Por isso, é importante perceber e esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas, mas diferentes, para designar Pedro e pedra: Pe,troj Petros e pe,tra| - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: Petros, transformado no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível usada em construções; petra designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção sólida. Enquanto apóstolo e membro da comunidade, Pedro, juntamente com os demais, é apenas um elemento da ampla edificação proposta por Jesus, e não o fundamento dessa. A rocha ou superfície rochosa é a fé sólida e convicta em Jesus, professada por Pedro em nome de todo o grupo. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Vale lembrar que essa é a primeira ocorrência da palavra Igreja no Evangelho (em grego evkklhsi,a – eclesía), cujo significado é assembleia convocada.

Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de Cesaréia de Filipe, construídos com pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.

No penúltimo versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Não se trata de uma delegação de superpoderes à Igreja como muitos propagam. Mais que conferindo poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar Reino dos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, responsabilidade e não poder: se a comunidade cristã viver profundamente o que Jesus ensinou, não haverá diferença entre o céu e a terra!

Infelizmente, ao longo história, muitos abusos já foram praticados devido as más interpretações aplicadas a esse texto. Jesus não instituiu nenhum poder monárquico. Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que, aquilo que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir para todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13), devido a hipocrisia em que viviam.

O último versículo apresenta uma proibição de Jesus aos discípulos: “Jesus, então, ordenou aos discípulos que eles não dissessem a ninguém que Ele era o Messias” (v. 20). A princípio, parece uma contradição, uma vez que a comunidade tem a missão de anunciar Jesus e sua boa nova. Ora, Jesus conhecia muito bem os seus discípulos e suas fragilidades. Essa confissão de Pedro já foi um grande passo, mas sabia ainda continuavam vulneráveis e aquela fé não se manteria tão sólida com o passar do tempo, como o próprio Evangelho vai mostrar na sua sequência. Espalhar que Jesus era o Messias seria muito arriscado para a continuidade do seu projeto, pois a ideia de Messias que circulava na época era completamente diferente do tipo de messianismo que estava revelando. Certamente, muitos mal entendidos surgiriam.

Essa ordem para que os discípulos não contassem a ninguém que Ele era o Messias reforça na comunidade a necessidade que cada um tem de fazer uma experiência autêntica com Ele, seguindo cada passo da sua vida para, de fato, perceber a especificidade do seu messianismo e da sua vida: servir e amar, até dar a própria vida.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues



sexta-feira, agosto 18, 2017

REFLEXÃO PARA A ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA (LUCAS 1,39-56)




Neste domingo em que celebramos a solenidade da Assunção de Nossa Senhora, a liturgia nos oferece um dos textos mais lidos de todo o Novo Testamento, sobretudo nas tradições católicas: Lucas 1,39-56. Concentraremos nossa reflexão unicamente no Evangelho, embora seja oportuno fazer uma leitura de conjunto com os outros textos que a liturgia oferece para esse dia, bem como uma contextualização histórica do dogma proclamado pelo papa Pio XII em 1950. Porém, mais uma vez reiteramos que nos concentraremos apenas no texto evangélico de Lucas.

O texto apresenta a visitação de Maria à sua parenta Isabel, contemplando o famoso cântico ‘Magnificat’ como ápice e conclusão do encontro das duas mulheres, ambas contempladas de modo especial pelo olhar misericordioso de Deus, o qual olha para a “humildade de seus servos e servas” (v. 48). É importante lembrar que o contexto geral do episódio do encontro entre as duas mulheres é o da dupla anunciação: do nascimento de Jesus a Maria (cf. 1,26-38), e de João a Zacarias (cf. Lc 1,5-25), dentro do chamado ‘Evangelho da Infância’, episódio exclusivo da narrativa de Lucas.

Após a retirada do anjo de perto dela (cf. Lc 1,38), tendo ficado muito alegre e ao mesmo tempo embaraçada com o anúncio (cf. Lc 1,29), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta, certamente com o propósito de conferir a veracidade do anúncio feito pelo anjo: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que a chamavam de estéril” (cf. Lc 1,36). Realmente, a gravidez de uma mulher estéril e anciã seria tão surpreendente quanto a de uma jovem apenas prometida em casamento. As duas tinham muito o que conversar entre si sobre os últimos acontecimentos da vida de cada uma. Por isso, Maria não pensou duas vezes e partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Muito tem se discutido a respeito da finalidade dessa partida tão apressada. As interpretações mais populares e devocionais atribuem essa partida apenas à vontade de Maria de servir, de ajudar à sua parenta. Porém, em momento algum o texto afirma isso, nem mesmo dá indícios.

O anjo afirmou a Maria que Isabel, sua parenta, já estava no sexto mês de gravidez, e logo que o anjo a deixou, imediatamente, Maria partiu com pressa para a casa de Isabel. Ora, diz o texto que Maria permaneceu três meses na casa da parenta e retornou para casa. Logo, Maria esperou até o nono mês da gravidez de Isabel exatamente para comprovar a informação dada pelo anjo. Tendo retornado após três meses, fica claro que seu propósito não era propriamente o serviço, uma vez que é exatamente após o parto que a mulher mais necessita de cuidados e ajuda. E, Maria voltou para casa antes do parto. Se o objetivo da viagem fosse apenas o serviço à parenta, ela teria permanecido com a mesma após o parto.

Portanto, podemos concluir, sem dificuldade, que Maria pôs-se a caminho para a casa de Isabel com o intuito de comprovar a veracidade do anúncio da parte do anjo e esse sendo verdadeiro, compartilhar a alegria de testemunhar o Todo-Poderoso fazendo grandes coisas em favor de pessoas tão humildes quanto ela e a parenta (v. 49). Como uma mulher atenta e perspicaz, sensível aos sinais dos tempos, ela fez bem em conferir esse fato. Isso apenas comprova que era uma mulher prudente, de fé sólida. Além disso, o texto revela, de modo antecipado, muitos aspectos da teologia tratada por Lucas ao longo de toda a sua obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). É típico de Lucas, o movimento. O constante partir de um lugar para outro é um traço característico do Evangelho de Lucas, principalmente da parte de Jesus com os discípulos. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo tendo que enfrentar adversidades e perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O fato de Maria não ter ido à casa de Isabel apenas para servi-la não diminui o seu papel e o seu valor. Antes de tudo, merecem atenção e reverência a sua coragem e determinação de partir sozinha e apressada para uma região distante, percorrendo caminhos difíceis e perigosos. Para uma mulher, isso era praticamente inadmissível, e ela, com muita audácia o fez, rompendo muitas barreiras, antecipando o papel da Igreja, da qual ela é modelo: romper barreiras, colocar-se em estado constante de saída, independente do perigo a ser enfrentado, para anunciar sem medo a alegria do Evangelho.

Um dos fatos narrados pelo texto que atestam a coragem de Maria, além de empreender uma viagem perigosa sozinha, é a sua atitude ao chegar ao destino: “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40). Muito mais que cumprimentar, o verbo saudar seria mais apropriado na tradução do texto, por ser mais compatível com a língua original e o contexto em questão. A expressão hebraica para a saudação é desejar a paz (Shalom). Ao enviar os discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (cf. Lc 10,5). Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser portador (a) da paz! Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher em lugar do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, o primeiro a receber a saudação era o dono da casa. Saudando primeiro a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem. O conjunto da cena em si já é revolucionário: o encontro de duas mulheres dialogando, como protagonistas, e a passividade de um sacerdote mudo, incapaz de falar porque não estava apto para acreditar nem aceitar o novo rumo que a história estava tomando.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso porque Isabel fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais ‘bendita’ entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar ‘bem-aventuranças’ no Evangelho segundo Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha mesmo Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no ‘evento Cristo’. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova ‘Arca da Aliança’. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova aliança, não mais baseada na lei, e sim no amor e na acolhida. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10), enquanto Isabel exclamou de alegria.

E, mais uma vez, Maria é reconhecida como bem-aventurada: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45). Além de exaltar as qualidades de Maria, as palavras de Isabel são também uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (cf. Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Isabel combate a incredulidade do marido, por sinal um sacerdote, e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: “Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo sacerdote, Isabel proclama a decadência antiga religião oficial, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da lei está completamente falida.

Provavelmente tímida com tantos elogios da parte da sua parenta, Maria a interrompe e, exultando de alegria, expressa seu louvor a Deus com o hino conhecido como Magnificat (vv. 46-54). É o primeiro dos hinos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada do cântico de Ana (cf. 1Sm 2,1-10), o que se explica pela analogia das duas situações. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-lhe a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que está acontecendo é dom de Deus.

Maria personifica todo o Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que “o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas” (v. 49), ao mesmo tempo se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). É o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e a comunidade dos discípulos, da qual Maria é modelo. A versão das bem-aventuranças e maldições é também aqui antecipada: “Encheu de bens os famintos” (v. 53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (cf. Lc 6,20-21); “Despediu os ricos de mãos vazias” (v. 53b) antecipa as repreensões dirigidas aos ricos (cf. Lc 6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista. Na arca da nova aliança não há tábuas da lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com a humanidade.



Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, agosto 12, 2017

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 14,22-33 (ANO A)



Neste décimo nono domingo do tempo comum, a liturgia nos propõe o texto evangélico de Mateus 14,22-33. É um texto bastante conhecido e importante para a vida da comunidade cristã em todos os tempos. Esse texto relata Jesus andando sobre as águas em direção aos discípulos em perigo no alto mar. De modo antecipado, já podemos concluir que, mais que o relato de um fato, esse texto pretende ser uma imagem da comunidade cristã, a qual deve colocar-se sempre em situações arriscadas para que o Evangelho seja anunciado e, assim, o Reino dos céus seja edificado ainda aqui na terra.

O contexto do nosso texto é de crise na comunidade dos discípulos e no próprio Jesus. O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, decapitado a mando do rei Herodes (cf. Mt 14,1-12). Embora fossem muito diferentes em mentalidade, sobretudo a respeito do Reino e seus sinais, Jesus e João eram muito próximos afetivamente. Certamente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que Ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial.

Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar; por isso, “foi a um lugar deserto para estar a sós” (cf. Mt 14,13). Porém, não conseguiu logo esse desejado momento de solidão porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança. O drama é total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, sabendo que em breve também Ele seria condenado e morto, encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Seu sentimento não poderia ser outro: “teve compaixão” (cf. Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento, era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude; essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma.

Disso, surgiu um pequeno desentendimento entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, os discípulos, por comodismo, sugeriram que Jesus as despedissem; Jesus, pelo contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (cf. Mt 14,16); os discípulos reclamam que o que eles têm é muito pouco, apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (cf. Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu. Certamente, o clima entre Ele e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão se tornou cada vez mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise nos discípulos.

Terminada a contextualização, olhamos para o nosso texto: “Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões” (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original “Jesus obrigou” (verbo grego avnagkazw – anankazô). Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir “para o outro lado do mar”, ou seja, para a outra margem (em grego: pe,ran – péran = outra margem). Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se ao perigo, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, a qual só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos, mas levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Ser Igreja é estar sempre em saída!

Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, “subiu ao monte para orar a sós” (v. 23). A oração é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, mas indispensável. O monte é, na tradição bíblica, o lugar do encontro com Deus, da intimidade com o Criador. Nesses dois primeiros versículos do Evangelho de hoje, Jesus apresenta duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída. Subir ao monte sem descer depois para enfrentar os mares da vida é inútil, bem como é inevitável o naufrágio quando se arrisca no mar sem ter feito antes a experiência do monte.

Quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela “era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (v. 24). É essa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: a;nemoj – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino: 1) a oposição da sinagoga (judaísmo oficial), 2) as forças do império romano, 3) o medo dos discípulos. Três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem, ou seja, chegar no mundo inteiro. Desses, o principal era o medo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou mesmo da desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas.

Quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro “andando sobre o mar” (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo de caótico, algo que o ser humano não tem força para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (cf. Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele.

Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: “Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo” (v. 27). O medo (em grego: fo,boj – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar ‘inimigos’ para si ao longo da história. É o vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, é! De fato, com a afirmação “Sou eu” (em grego evgw, eivmi – egô eimí), Jesus recorda e atualiza ação do Deus libertador do Êxodo (cf. Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado.

Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). O protagonismo de Pedro aqui é completamente negativo. Sua proposta é a mesma do diabo no episódio das tentações (cf. Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (cf. Mt 27,40). Assim, como o demônio e os zombadores, Pedro quer pôr Jesus à prova com a expressão típica das tentações: “se tu és...” (em grego: eiv su. ei=  – ei si ei); ao pedir um sinal, “manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água”, ele se comporta como os escribas e fariseus, classificados por Jesus como geração perversa e malvada (cf. Mt 12,38ss). Mais tarde, no episódio de Cesaréia de Filipe, Jesus irá desmascarar Pedro chamando-o diretamente de satanás (cf. 16,23). Essa atitude de Pedro é mais um alerta de Mateus à sua comunidade: o medo por um lado, e o desejo de poder e triunfalismo do outro, são os maiores perigos que a Igreja enfrenta.

A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: “Vem!” (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua falta de fé e convicção. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: “Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!” (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Eis o paradoxo no qual ele se encontra: de chamado a ser pescador de homens (cf. Mt 4,18-19), a homem pescado por Jesus!

Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, “Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?” (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, como homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: ovligo,pistoj – oligopistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer.  A dúvida de Pedro não o fez afundar, o fez tentar Jesus como satanás. Jesus repreende a Igreja e seus membros quando não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, revelando seu lado satânico.

Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que “O vento se acalmou” (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. “Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”  (v. 33). É uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções.

As situações de perigo e provação devem levar à Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (cf. 16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: “Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem? (cf. 8,27). A resposta foi dada seis capítulos depois: é o Filho de Deus!

 O Evangelho interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhece-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso!


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, agosto 04, 2017

REFLEXÃO PARA A FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR (MATEUS 17,1-9)



Neste domingo, seis de agosto, celebramos a Festa da Transfiguração do Senhor. O texto oferecido pela liturgia para essa festa, nesse ano, é Mateus 17,1-9, o relato da transfiguração propriamente dita, em sua versão mateana. A transfiguração é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-13; Lc 9,28-36) e, portanto, de grande relevância para a vida das comunidades cristãs de todos os tempos.

Para uma boa compreensão do nosso texto é indispensável contextualizarmos o mesmo, embora brevemente. Trata-se do episódio que sucede imediatamente à profissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Felipe (cf. Mt 16,13ss) e, consequentemente, ao primeiro anúncio da Paixão (cf. Mt 16,21-28). Daí, podemos concluir que se trata de uma resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos em relação ao seu caminho de doação da vida por fidelidade aos propósitos do Pai.

Mais uma vez, a versão litúrgica do texto nos priva de uma expressão muito importante para uma compreensão mais adequada: o indicativo cronológico “Seis dias depois” (em grego meqV h`me,raj e]x – meth heméra ex), presente no texto original, substituído no texto litúrgico pela genérica e desnecessária expressão “Naquele tempo”.

Diz o texto que “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão” (v. 1a). Esse indicativo cronológico faz referência ao ocorrido em Cesaréia de Filipe, quando Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, levando Jesus a repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude. Assim como o homem e a mulher foram criados no sexto dia (cf. Gn 1,26-31), na transfiguração Jesus manifesta Jesus o ser humano recriado, ou seja, em sua máxima dignidade e realização.

Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. À primeira vista, parece tratar-se de um privilégio: Jesus escolhe os mais próximos e íntimos, hierarquizando o grupo dos Doze. Porém, se fizermos uma leitura mais atenta, concluímos exatamente o contrário: esses três são os discípulos que mais tem dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus, são os mais trabalhosos e, portanto, os mais necessitados de catequese. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento, a ponto de ser o único dos Doze a quem Jesus chamou diretamente de satanás, por colocar-se como pedra de tropeço em seu caminho (cf. Mt 16,23); Tiago e João, além de ambiciosos (cf. Mc 10,35-40), tinham temperamento bastante explosivo, a ponto de serem chamados de “filhos do trovão” (cf. Mc 2,17). Portanto, são os discípulos que tinham mais dificuldade em aceitar a mensagem libertadora e desafiadora de um messias sofredor.

O indicativo espacial também é de grande importância: uma alta montanha. Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro com Deus. No alto da montanha, diz o texto que “Jesus foi transfigurado diante dos discípulos” (v. 2a). O verbo grego usado aqui é “metamorfo,omai metamorfóomai”, cujo significado é ser transformado ou mudado. Assim, o evangelista está dizendo que Jesus transformou-se, sua forma mudou diante dos discípulos. Ora, diante da incredulidade e resistência em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus n’Ele. “Seu rosto brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (v. 2b): as mesmas imagens da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: Moisés e Elias (v. 3). Obviamente, estes personagens representam a Lei e os profetas, respectivamente. É mais uma iniciativa divina para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento.

Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento. Em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã; essa deve escutar somente a Jesus (v. 5).

Pedro, teimoso como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas desprezíveis: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (v. 4). Duas coisas são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, interrompendo-lhe.

A segunda coisa a reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias” (v. 4b); infelizmente, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da sua vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.

As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus, o Pai, lhe interrompe: “Pedro ainda estava falando quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (v. 5). O Pai não espera Pedro concluir seu equivocado discurso e o interrompe, chamando a sua atenção. Mais uma vez a imagem da luz e da nuvem são evidenciadas como sinais da presença e manifestação de Deus, sendo que o mais importante aqui são as palavras que saem da nuvem: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado. Escutai-o”; é praticamente a mesma frase proferida por Deus no momento do Batismo (cf. Mt 3,17), sendo que ali somente Jesus ouviu, enquanto aqui na transfiguração também os discípulos ouviram e ainda foram exortados a escutá-lo. O imperativo “escutai-o” (em grego avkou,ete auvtou/ - akúete autú), é dirigido a toda a comunidade, mas principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés que a Jesus.

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas já disseram o que tinham a dizer. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro tentava constantemente evitar, por medo da cruz. A situação tornou-se tão séria, a ponto de ser necessário o Pai intervir: sem escutar Jesus, não é possível prosseguir no seu seguimento.

Eis as consequências das palavras de Deus: “Os discípulos, assustados, caíram com o rosto por terra” (v. 6). Essa cena apresenta um pequeno retrato da comunidade cristã no seu dia-a-dia que, sentindo-se desafiada, cai constantemente. É um sinal de falência e um reconhecimento de que falharam ao longo do seguimento. A comunidade cai por terra quando não escuta seriamente o que Jesus diz. Porém, mesmo caída, a comunidade jamais será abandonada, porque Jesus está sempre próximo, tocando e estimulando: “Levantai-vos e não tenhais medo” (v. 7). Apesar das infidelidades e fracassos dos discípulos, Jesus não desiste, continua acreditando no ser humano e encorajando-o.

Após a belíssima experiência, a vida volta à sua normalidade: “ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus da nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também o Pai!

É o momento de descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro.

Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele apenas em busca de sinais e milagres. Da comunidade cristã, o que o Pai espera é que esteja atenta para ouvir somente o que Jesus diz é: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (cf. Jo 13,35).

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...