sábado, agosto 29, 2020

REFLEXÃO PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 16,21-27 (ANO A)

 


O evangelho deste vigésimo segundo domingo do tempo comum – Mt 16,21-27 – é a continuação imediata daquele do domingo passado (Mt 16,13-20), marcado pela solene confissão de fé de Pedro, ao reconhecer Jesus como o “Messias, o Filho do Deus vivo”. Ora, conhecendo bem a mentalidade dos seus discípulos e o tipo de messias que eles esperavam, Jesus tratou de esclarecê-los sobre a real natureza da sua messianidade, anunciando o que lhe aguardava em Jerusalém e reforçando as exigências indispensáveis para o seu discipulado, como mostra o texto de hoje: o primeiro anúncio da paixão (v. 21) e as condições para alguém tornar-se seu discípulo ou discípula (vv. 24-26), intercalados por um diálogo conflituoso com Pedro (vv. 22-23), e uma conclusão de caráter escatológico (v. 27).

Apesar de correta do ponto de vista formal, a resposta de Pedro sobre a identidade messiânica de Jesus não estava isenta de equívocos; tanto é que o próprio Jesus ordenou que os discípulos não contassem a ninguém que ele era o messias (Mt 16,20). Isso porque os discípulos concebiam um messias conforme as expectativas e tradições de Israel: um justiceiro, valente e vencedor, que fosse a Jerusalém para assumir o poder por meio da força e, assim, restaurar o reino davídico-salomônico. Jesus vai mostrar que é um messias “às avessas”: ao invés de impor-se pela força e violência, ele será vítima do poder, sofrerá violentamente até morrer, assassinado como bandido da pior espécie. Isso era inadmissível, especialmente para quem via no seu seguimento uma oportunidade para conquistar prestígio, poder e sucesso, como boa parte dos seus discípulos esperavam.

Podemos dizer que o episódio de Cesaréia de Filipe foi um divisor de águas na vida de Jesus, incluindo a sua maneira de relacionar-se com os discípulos. Daquele momento em diante, ele começou a falar com mais clareza sobre o seu real destino e a natureza da sua messianidade, uma vez que os discípulos continuavam apegados às concepções tradicionais de poder. É isso o que indica o texto de hoje, logo no primeiro versículo: Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia” (v. 21). O versículo começa com uma indicação temporal importante – “daquele momento em diante” – que a versão litúrgica omitiu para substituí-la pela genérica expressão “naquele tempo”. Fica claro, portanto, que esse texto abre uma nova fase no ministério de Jesus e na dinâmica narrativa do Evangelho de Mateus.

Ora, como Ele já havia anunciado bastante sobre o Reino dos céus, mostrando suas características e sua dinâmica, é chegado o momento de mostrar quais são as consequências na vida de quem “busca em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), como ele. A busca pelo Reino exige que se façam opções radicais, que geram consequências. Assim, o que Ele começou a mostrar aos discípulos, do episódio de Cesaréia em diante, foi exatamente essas consequências. Fazer opção pelo Reino é, antes de tudo, sentir indignação, inconformismo e resistência às forças que impedem a concretização desse Reino. E o principal entrave para a instauração desse Reino era o aparato religioso de Israel, na época. Como era em Jerusalém que a estrutura religiosa de Israel estava enraizada, institucionalmente, era para lá que Jesus devia ir. Sua ida era inevitável, e ele preparou seus discípulos para isso; inclusive os evangelhos sinóticos mostram três anúncios da paixão, dos quais lemos hoje o primeiro. Jesus sabia antecipadamente o que aconteceria e quem seriam seus algozes principais: “os anciãos, os sumos sacerdotes e os mestres da lei”a elite religiosa de Jerusalém, que exercia também grande influência política. Não sabia disso por possuir conhecimento de coisas misteriosas e futuras, nem por predestinação, mas pela consciência de que seu projeto colidia com os interesses dessa elite.

Jesus Sabia que sua morte seria o desfecho de um confronto entre dois projetos bem distintos: o Reino de Deus com sua justiça, acolhida, misericórdia e amor, de um lado e, do outro, a instituição político-religiosa com seus dogmas, sua lei, seus preceitos excludentes e suas práticas segregadoras. O confronto era inevitável. Como centro de poder e, portanto, de exploração, Jerusalém e sua elite eram conhecidas por “matar profetas” (Mt 23,37; Lc 13,34). No entanto, as elites se enganam ao imaginar que matando Jesus poriam fim ao projeto do Reino. A confiança de Jesus no Pai ultrapassa todos os limites da existência humana. Vai morrer sim, mas irá ressuscitar ao terceiro dia. A certeza da ressurreição era fruto de uma íntima e profunda confiança no Pai, confiança essa ainda não experimentada pelos discípulos, como a sequência do texto mostrará. A ressurreição é certeza somente para quem confia verdadeiramente no Pai. A expressão “no terceiro dia” não é um dado cronológico, mas teológico; indica o agir de Deus; significa uma intervenção de Deus na história. Na ressurreição, Deus agirá de modo admirável e novo.

Mais uma vez, a reação dos discípulos às palavras de Jesus é encabeçada por Pedro: “Então Pedro, tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não te permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” (v. 22). A atitude de Pedro é de reprovação total ao que Jesus tinha acabado de dizer. Com essa atitude, Pedro e todo o grupo, pois é em nome do grupo que ele age e fala, jogam por terra toda uma caminhada de discipulado. É como se ele revogasse a belíssima confissão proferida pouco tempo antes (Mt 16,23-20). O verbo repreender (em grego: επιτιμαω – epítimao) significa condenar por um erro, reprovar bruscamente; fazendo isso, Pedro nega a sua condição de discípulo. É uma atitude arrogante e arbitrária, totalmente incompatível com o que Jesus tinha ensinado até então. Pedro sabia que, inevitavelmente, o caminho do discípulo é o mesmo do mestre. Assim, se Jesus morresse pelo Reino, ele e os demais discípulos também poderiam morrer. Por isso, tenta tirar essa ideia de Jesus. Essa tem sido uma das grandes tentações da Igreja ao longo da história: desconsiderar a força das palavras de Jesus e seus impactos na vida de cada um e na sociedade. Convicto de seguir o messias glorioso, Pedro não aceita de modo algum a ideia de um messias sofredor.

Jesus logo percebe a ideia infeliz de Pedro e, com muita sinceridade, chama-lhe a atenção: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensa as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens” (v. 23). Aqui, o texto litúrgico apresenta um grande equívoco: Jesus não manda Pedro ir para longe, mas para atrás de si, ou seja, voltar ao lugar de discípulo. O evangelista usa aqui a mesma expressão empregada no momento do chamado primeiro: “vinde atrás de mim” (cf. Mt 4,19), ou seja, “segui-me” (em grego: πσω μου – opíssô um); inclusive, é a mesma expressão que vai empregar no versículo seguinte, ao expor as condições para o discipulado (v. 24). Jesus não afasta Pedro, mas o convida a colocar-se em seu devido lugar: no seguimento, deve continuar aprendendo, afinal, tinha demonstrado não ter aprendido praticamente nada, ainda. Pedro é chamado de Satanás porque, na verdade, satanás não é uma pessoa ou um ser específico, mas é uma atitude ou postura. Impedir a realização do Reino é o papel e a atitude de satanás. Essa atitude é, na maioria das vezes, assumida pelos de dentro, ou seja, por quem se apresenta como seguidor, mas não se abre aos desígnios do Pai.

Pouco tempo antes, após ter confessado a sua fé, Pedro tinha sido proclamado bem-aventurado pela sua sintonia com o Pai (Mt 16,17); agora, ele é duramente repreendido por trocar os pensamentos do Pai pelas coisas dos homens, e gerenciar sua vida a partir dessas coisas. As coisas do Pai, às quais Jesus se refere, são: a doação, o serviço, a justiça e o amor; as coisas dos homens são o medo, o egoísmo, a ambição e a sede de poder e dominação. Esse paradoxo não poderia passar despercebido por Jesus. Por isso, de pedra da construção, Pedro passa a ser pedra de tropeço (em grego: σκνδαλον – escândalon), ou seja, escândalo para a comunidade. É importante estarmos atentos a essa situação: a edificação do Reino é confiada à comunidade cristã, a Igreja. Essa, tanto pode construí-lo, quanto fazê-lo sucumbir. A construção depende da fidelidade e da capacidade de doação da vida, o que requer renúncias e perdas. É importante notar que, para Jesus e a lógica do Evangelho, escândalo não é a transgressão de regras morais, mas sim a omissão, a falta de convicção e de capacidade de doar a própria vida em prol do Reino de Deus. Em outras palavras, escândalo é a falta de amor e justiça.

Ao perceber o recuo de Pedro, Jesus sente a necessidade de reforçar a sua catequese aos discípulos e de falar com cada vez mais clareza. Ninguém tem obrigação de segui-lo, pois o seguimento é livre e opcional. No entanto, a quem opta pelo seguimento, são feitas exigências bastante radicais, e isso Jesus deixa muito claro: “Se alguém que me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (v. 24). Com essa afirmação, Ele chama a atenção dos discípulos para a seriedade do seguimento. A primeira exigência não é um convite à negação de si nem à resignação, mas a rejeição todo e qualquer projeto egoísta e individualista de realização. Renunciar a si mesmo é assumir um projeto coletivo, cujo centro de interesse será sempre o bem do próximo. É ter consciência dos desafios inerentes ao seguimento de Jesus e, mesmo assim, abraçá-los. É o que estava faltando a Pedro naquele momento, ao trocar os pensamentos de Deus pelas coisas dos homens.

O convite a carregar a cruz é a certeza de que o projeto de Jesus é incompatível com a ordem vigente. É importante ressaltar que não é Jesus quem oferece a cruz. A cruz é consequência do seu seguimento fiel. Jesus convida o discípulo a assumir corajosamente uma atitude de repulsa ao domínio religioso e imperial vigentes. A cruz é, portanto, sinal e prova de que tal atitude foi assumida com seriedade. Tudo isso, claro, considerando que a cruz não era um adorno sacro, como foi adotado posteriormente, mas um sinal de morte, de rebeldia, de inconformismo e humilhação, já que era a pena reservada ao que havia de pior na sociedade, ou seja, aos rebeldes que ameaçavam a ordem vigente e, por isso, “mereciam” uma pena humilhante e exemplar. Logo, é completamente equivocado transformar a cruz em sinal de resignação passiva. A exigência de carregar a cruz é sempre um convite à coragem, à subversão, e não à aceitação das injustiças oficialmente cometidas pelas classes detentoras de poder. Sem essas disposições, se vive uma religião de fachada, se faz teatro, mas não há seguimento de Jesus.

O autêntico seguimento de Jesus é desafiador porque exige uma lógica completamente nova no modo de conceber a vida, a religião e o próprio Deus. Por isso, seus discípulos ainda não tinham compreendido. Eles estavam seguindo-o como Messias, mas segundo o messianismo tradicional, ou seja, esperavam que Jesus fosse um messias glorioso, potente e guerreiro que, eliminando o poder romano, imporia o seu poder, restaurando o reino davídico-salomônico para impor-se sobre outros povos. Jesus, pelo contrário, proponha o Reino do seu Pai, um reino sem dominador nem dominados, mas um reino de servidores, iguais em dignidade e amor. Abraçar esse projeto ousado de Jesus é ver o mundo com outros olhos. O jogo de palavras perda/ganho empregado por Jesus significa a passagem de uma mentalidade individualista para uma concepção comunitária de sociedade e de mundo (vv. 25-26). Mais que salvar sua vida, o cristão autêntico pensa no advento do Reino. Somente no Reino de Deus a vida pode ser vivida em sua plenitude e dignidade e, portanto, tentar vivê-la fora desse projeto é perdê-la, simplesmente. Vale lembrar que o Reino de Deus não é uma vida no além, mas a vida presente com sentido e dignidade plenos.

O versículo conclusivo, de traços escatológicos, é um alerta sobre o próprio seguimento; a lógica retributiva proposta (v. 27) tem como critério a opção pelos pequeninos e marginalizados, conforme demonstrará o próprio Evangelho de Mateus, no final (Mt 25,31-46). “A conduta” esperada em cada pessoa é a disposição para o autêntico seguimento de Jesus com todas as consequências que esse implica, incluindo a capacidade de carregar a cruz, não como mero simbolismo, mas como disposição para lutar por um mundo novo, com inclusão, tolerância, respeito, fraternidade e opção clara por aqueles e aquelas por quem Jesus mesmo fez opção.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, agosto 22, 2020

REFLEXÃO PARA O 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 16,13-20 (ANO A)

 

O evangelho deste vigésimo primeiro domingo do tempo comum é Mt 16,13-20, texto que contém a expressiva confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse mesmo texto já fora usado há cerca de dois meses atrás, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Se trata de um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos (Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), sendo que a versão de Mateus tem mais elementos próprios, o que lhe rendeu uma supervalorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (Mt 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (Mt 16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.

Recordamos o que sucede ao nosso texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que lhe antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (Mt 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que a liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo espacial: Cesaréia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.

Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial.  Sem dúvidas, o evangelista quer dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos tradicionais e, ao mesmo tempo, desafiar e denunciar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano.

A pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia tudo isso e, por causa disso, fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13). A expressão “o Filho do Homem” (em grego: υἱὸς το νθρπου – hó hiós tú anthrópu), que tem suas origens na literatura apocalíptica (Dn 7), expressa a condição divina de Jesus, especialmente seu aspecto transcendente e glorioso, sem negar a condição humana. É muito utilizada nos evangelhos, especialmente quando os autores apresentam Jesus falando de si mesmo; aparece trinta vezes em Mateus, vinte e cinco em Lucas, quatorze em Marcos e treze vezes em João.

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade, de quem Pedro se faz porta voz.

A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho e do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: “o Filho do Deus vivo”. Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade. Jesus é Filho do Deus da vida, criador e libertador.

Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego do que Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17).  Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (Mt 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa.

Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção, sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas diferentes, embora muito parecidas, e de significados diferentes para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra usada em construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada. Vale lembrar que essa é a primeira ocorrência da palavra Igreja no evangelho (em grego evkklhsi,a – eclesía), cujo significado é assembleia convocada, e o único evangelho que a emprega é o de Mateus.

Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que havia na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.

O texto oferece mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Quem professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida tem a chave de acesso ao Reino. Mais do que do que poder, “Ligar e desligar” significa responsabilidade.  Assim, Jesus convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que tudo aquilo que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir a todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (Mt 23,13). Todo cristão e cristã possui as chaves do Reino, porque o seu testemunho pode abrir ou fechar o Reino para alguém.

O último versículo apresenta uma proibição de Jesus aos discípulos: “Jesus, então, ordenou aos discípulos que eles não dissessem a ninguém que Ele era o Messias” (v. 20). A princípio, parece uma contradição, uma vez que a comunidade tem a missão de anunciar Jesus e sua boa nova. Ora, Jesus conhecia muito bem os seus discípulos e suas fragilidades. Essa confissão de Pedro já foi um grande passo, mas sabia ainda continuavam vulneráveis e aquela fé não se manteria tão sólida com o passar do tempo, como o próprio Evangelho vai mostrar na sua sequência. Espalhar que Jesus era o Messias seria muito arriscado para a continuidade do seu projeto, pois a ideia de Messias que circulava na época era completamente diferente do tipo de messianismo que estava revelando. Certamente, muitos mal entendidos surgiriam.

Essa ordem para que os discípulos não contassem a ninguém que ele era o Messias reforça na comunidade a necessidade que cada um tem de fazer uma experiência autêntica com Ele, seguindo cada passo da sua vida para, de fato, perceber a especificidade do seu messianismo e da sua vida: servir e amar, até dar a própria vida.

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 15, 2020

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – LUCAS 1,39-56

 

Todos os anos, na solenidade da assunção de Maria, a liturgia propõe para o evangelho o texto de Lucas 1,39-56, trecho que compreende o episódio da visitação de Maria à sua parenta Isabel, e o cântico do Magnificat. Nesse cântico, que Lucas põe nos lábios de Maria, está a síntese da história da salvação, cujo ápice acontece exatamente na pessoa de Maria. Por isso, ela mesma proclama, em louvação, as maravilhas realizadas por Deus ao longo da história, desde as promessas a Abraão até a realização em seu ventre. É uma história longa, cujo fio condutor é a fidelidade de Deus às suas promessas e sua clara opção pelos pobres, pequenos e desvalidos. Concentraremos a nossa reflexão somente no texto evangélico proposto, sem colocar em discussão as outras leituras propostas pela liturgia, nem as afirmações do dogma da Assunção, proclamado em 1950 pelo papa Pio XII.

Este é um dos trechos mais apreciados do Evangelho segundo Lucas, sobretudo, nas tradições católicas, devido a relevância dada à figura de Maria. É uma das raras cenas do Novo Testamento que tem somente mulheres como protagonistas, o que indica sua importância e peculiaridade. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à humanidade, começa a cumprir-se e realizar-se definitivamente a partir do sim de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (v. 48).

Localizado no chamado “Evangelho da Infância” de Lucas (Lc 1–2), o próprio texto de hoje, no primeiro versículo, fornece o seu contexto, através da expressão temporal “naqueles dias”. Essa expressão faz referência aos eventos anteriormente narrados: a dupla anunciação: do nascimento de João a Zacarias, esposo de Isabel (Lc 1,5-25), e do nascimento de Jesus a Maria (Lc 1,26-38), ambos feitos pelo mesmo anjo do Senhor, Gabriel. Ambos os anúncios mexeram com seus destinatários, deixando-os perplexos, inicialmente. Maria, ao contrário de Zacarias, mesmo tendo questionado o anjo, respondeu convictamente com um sim (Lc 1,38), o que não significa que não lhe tenham ficado dúvidas e até medo.

Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e com Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta: “Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Embora a maioria das interpretações apontem o desejo de servir a Isabel como o motivo da partida apressada de Maria, o texto não fornece nenhum indício. Sem dúvidas, o serviço ao próximo sempre fez parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após o seu sim a Deus. Mas aqui podemos ver algo além disso. Ora, quando Maria questionou o anjo no momento do anúncio, sobre como poderia engravidar se não tinha relação homem algum (Lc 1,34), o anjo disse que tudo seria obra do Espírito Santo, e ainda deu um exemplo concreto e próximo de que nada é impossível para Deus: Isabel, uma anciã estéril estava grávida (Lc 1,36). A gravidez de uma anciã estéril seria tão surpreendente quanto a de uma jovem virgem. É normal e compreensível que Maria tenha procurado Isabel para confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade. Também é normal que tenha procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava acontecendo com ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de quem as duas são imagens.

Ao conceder tanto espaço a Maria no início do seu Evangelho, Lucas está criando o modelo de discípulo/discípula ideal para Jesus. Por isso, é importante apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos lugares mais distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está construindo uma nova história. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na Galileia, para a Judeia antecipa os desafios e a necessidade dos discípulos de todos os tempos estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não fosse tão grande, as circunstâncias eram muito adversas para uma mulher jovem e grávida. É típico da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

Ao chegar ao destino, Maria “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40). Muito mais que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto. A expressão hebraica para a saudação é o desejo de paz (em hebraico: shalom). Ao enviar os discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5). Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser portador(a) da paz! Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher ao invés do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso porque Isabel fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo, o irradia por onde passa e onde chega. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho segundo Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no “evento Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova da aliança, não mais portadora da Lei, mas portadora do amor e da misericórdia de Deus. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10), enquanto Isabel exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza e o amor liberta.

E, mais uma vez, Maria é reconhecida como bem-aventurada: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45). Além de exaltar as qualidades de Maria, as palavras de Isabel são também uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: “Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial do templo, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei está completamente falida.

Provavelmente constrangida com tantos elogios da parte da sua parenta, Maria a interrompe e, exultando de alegria, expressa seu louvor a Deus com o seu cântico, conhecido como Magnificat (vv. 46-54). Isso reflete também a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja; o centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-a a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus.

Maria personifica todo o Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que “o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas” (v. 49), ao mesmo tempo se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). É o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e a comunidade dos discípulos, da qual Maria é modelo. A versão lucana das bem-aventuranças e maldições é também aqui antecipada: a expressão “Encheu de bens os famintos” (v. 53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (Lc 6,20-21); já a expressão “Despediu os ricos de mãos vazias” (v. 53b) antecipa as repreensões – ai de vós –  dirigidas aos ricos (Lc 6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista. Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história.

  Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 08, 2020

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 14,22-33 (ANO A)

 

O evangelho deste décimo nono domingo do tempo comum – Mt 14,22-33 – é a continuação direta daquele que fora lido na liturgia do domingo passado. Por isso, o contexto é o mesmo. É sempre importante recordar que os evangelhos enquanto livros escritos não são relatos cronísticos da vida de Jesus, mas narrativas catequéticas para a formação do discipulado e a edificação das comunidades cristãs de todos os tempos, começando por aquelas onde atuavam os respectivos evangelistas (autores). No caso específico do Evangelho de Mateus, escrito há cerca de cinquenta anos após os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ele visa responder a uma comunidade profundamente marcada por crises, causadas tanto por aspectos externos quanto internos. E o evangelista responde às crises da sua comunidade recordando momentos de crise vividos pelo próprio Jesus junto com seus primeiros discípulos, e ilustrando conforme a sua própria criatividade e o uso de tradições recebidas de outros. O evangelho de hoje é uma boa demonstração desse processo.

O capítulo quatorze de Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, que fora decapitado a mando de Herodes (Mt 14,1-12). Apesar das divergências de mentalidade, Jesus e João eram muito próximos afetivamente, e eram conscientes da continuidade entre os dois. Jesus não correspondeu às expectativas de João, que esperava um messias guerreiro, justiceiro e violento (Mt 3,1-12). Apesar disso, os dois eram próximos. Por isso, inevitavelmente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de que Ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial.

Diante disso, Jesus sentiu a necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar; por isso, “foi a um lugar deserto para estar a sós” (Mt 14,13). Porém, não conseguiu logo esse desejado momento de solidão porque as multidões o seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e esperança. O drama é total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista, sabendo que em breve também Ele seria condenado e morto, encontra-se no deserto diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo. Seu sentimento não poderia ser outro: “teve compaixão” (Mt 14,13). A compaixão em Jesus não era um mero sentimento; era motivação para uma ação concreta que restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude; essa vida em plenitude pressupõe a saúde do corpo e da alma.

Disso, surgiu um pequeno desentendimento entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, os discípulos, por comodismo, sugeriram que Jesus as despedissem; Jesus, pelo contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16); os discípulos reclamam que o que eles têm é muito pouco, apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (Mt 14,21). Quando o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu. Certamente, o clima entre Ele e os discípulos ficou pesado e o momento de solidão se tornou cada vez mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e, sobretudo, crise nos discípulos.

Terminada a contextualização, olhamos para o nosso texto: “Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões” (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao texto original “Jesus obrigou”. Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma condição para a comunidade: ir “para o outro lado do mar”, ou seja, para a outra margem. Ora, ir para a outra margem significa abandonar o comodismo e expor-se ao perigo, aos riscos. A outra margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, a qual só tem razão de existir se estiver em estado de travessia, enfrentando perigos, mas levando a mensagem de Jesus a todos os lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde com novos desafios, não suavizando nem enganando. Ser Igreja é estar sempre em saída!

Jesus não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as multidões e os discípulos, “subiu ao monte para orar a sós” (v. 23). A oração pessoal de Jesus é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, mas indispensável. Na verdade, em Mateus Jesus só se retira para rezar duas vezes: aqui e já no contexto da paixão, quando reza no Monte das Oliveiras (Mt 26,36). O monte é, na tradição bíblica, o lugar do encontro com Deus, da intimidade com o Criador. Nesses dois primeiros versículos do Evangelho de hoje, Jesus apresenta duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã: o cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída. Subir ao monte sem descer depois para enfrentar os mares da vida é inútil, bem como é inevitável o naufrágio quando se arrisca no mar sem ter feito antes a experiência do monte.

Quando a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela “era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (v. 24). É essa a situação da Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: άνεμος – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino: 1) a oposição das lideranças da sinagoga (judaísmo oficial), 2) as forças do império romano, 3) o medo/comodismo dos discípulos. Três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a outra margem, ou seja, chegar no mundo inteiro. Desses, o principal era o medo/comodismo dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou até mesmo a desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas.

Quando a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu encontro “andando sobre o mar” (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica, evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo de caótico, algo que o ser humano não tem forças para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 14,24ss; Sl 77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las. Só vence o mar quem se arrisca nele.

Com a falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade, como aconteceu com os discípulos: “Quando avistaram Jesus andando sobre o mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo” (v. 26). O medo (em grego: φόβος – fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez a Igreja criar ‘inimigos’ para si ao longo da história. É o vento que mais impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente, É! De fato, com a afirmação “Sou eu” (em grego: έγώ είμι – egô eimí), Jesus recorda e atualiza ação do Deus libertador do Êxodo (Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar, conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada quando o medo for superado.

Pedro assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). É exatamente nessa passagem que Pedro assume o protagonismo entre os discípulos, especialmente no Evangelho de Mateus. Porém, não se trata de um protagonismo sempre positivo; na verdade, é cheio de contradições, cuja demonstração maior serão as negações. De agora em diante, ele será sempre o primeiro a agir, a responder e a propor, e quase sempre será repreendido por Jesus. Mas é exatamente por isso que se torna modelo de discípulo válido para todos os tempos, pois as suas atitudes mostram que Jesus não busca pessoas perfeitas para o seu seguimento, mas homens e mulheres normais, com qualidades e defeitos. Inclusive aqui, nessa primeira intervenção como como porta-voz dos discípulos Pedro já começa de maneira bastante negativa, pondo Jesus à prova. A proposta de Pedro aqui é a mesma do diabo no episódio das tentações (Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (Mt 27,40): “se tu és...”. Pedir sinais a Jesus é sempre uma tentação, além de ser também uma demonstração de falta de convicção e de fé sólida. Por isso o próprio Pedro se sentirá afundando, como dirá a sequência do texto.

A resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: “Vem!” (v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua falta de fé e convicção. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas para mostrar o quanto aquele discípulo estava equivocado. Caminhar sobre as águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos, uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: “Quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me’!” (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os ventos contrários. Por isso, queria vencê-los milagrosamente.

Os momentos de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao ver Pedro afundar em sua falta de fé, “Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?” (v. 31). A repreensão de Jesus a Pedro, chamando-o de homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em grego: όλιγόπιστος – oligópistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer. Jesus repreende a Igreja e seus membros quando buscam não se esforçam para contornar situações adversas, ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo, apoiando-se em falsos triunfalismos. Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como Pedro, desempenhando a função de tentadora de Jesus, ao invés de edificadora do Reino.

Ao subirem no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que “O vento se acalmou” (v. 32). É a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e conseguir chegar à outra margem. Assim, “Os que estavam no barco prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”  (v. 33). É uma atitude importante que mostra a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada pela renovação das convicções. A prostração, especialmente no Evangelho de Mateus, é a atitude de adoração, de reconhecimento da divindade de Jesus. Inclusive, os primeiros a fazer isso foram os magos estrangeiros (Mt 2,11), os quais também têm a oferecer e a ensinar. No encontro com o Ressuscitado, no final do Evangelho, os discípulos repetirão o gesto e, também ali, dirá o evangelista que alguns ainda duvidaram (Mt 28,17). Logo, a dúvida sempre estará presente na vida da comunidade; porém, não podem levar os discípulos a trocarem o compromisso de superar as adversidades com responsabilidades por sinais extraordinários e fantasiosos.

As situações de perigo e provação devem levar à Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de Cesaréia de Filipe (16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: “Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem? (8,27). A resposta foi dada seis capítulos depois: é o Filho de Deus!

 O Evangelho interpela a Igreja a tomar atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhece-lo, muitas vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos, buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, agosto 01, 2020

REFLEXÃO PARA O 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 14,13-21 (ANO A)


O evangelho que a liturgia propõe neste domingo, o décimo oitavo do tempo comum, corresponde ao primeiro relato do episódio conhecido popularmente como “multiplicação dos pães” no Evangelho segundo Mateus – Mt 14,13-21. De todos os gestos de Jesus considerados milagres, esse é o único relatado nos quatro evangelhos, com seis versões ao todo, já que em Mateus e Marcos aparece duas vezes (Mt 14,13-21; 15,32-38; Mc 6,30-44; 8,1-9). Esses dados indicam a importância que o episódio teve para as primeiras comunidades cristãs e, provavelmente, o cuidado para que não fosse distorcido e nem fantasiado; por isso, preferiram narrá-lo integralmente várias vezes, embora cada uma das versões apresente certas particularidades.

Hoje, lemos a primeira versão de Mateus e, como sempre, iniciamos considerando o seu contexto. O texto localiza-se praticamente na metade do evangelho; mais do que importância, esse dado indica que Jesus já realizou muita coisa, o seu ministério já estava bem avançado, basta olhar um pouco para trás e perceber isso: três dos cinco discursos já foram proferidos (Mt 5–7; 10; 13), os discípulos já foram enviados em missão, muitas curas já foram realizadas. Portanto, mesmo que não compreendessem totalmente e nem aceitassem completamente o que Jesus proponha, a sua mensagem se popularizava cada vez mais, e as multidões que o seguiam atestam isso. Logo, tornava-se cada vez mais necessário que Jesus deixasse clara a natureza do seu messianismo, que não correspondia aos anseios nacionalistas e triunfalistas da época. Por isso, Jesus procurava cada vez mais evitar atitudes que pudessem insinuar triunfalismos em seu ministério. Tudo isso aponta para o cuidado com que esse episódio chamado de “multiplicação dos pães” deve ser interpretado.

O contexto imediato é fornecido pelo próprio texto, na versão litúrgica, que recorda o evento anteriormente narrado, a morte de João, o Batista, por ordem de Herodes: “Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado” (v. 13a). Apesar das diferenças, era inegável a proximidade entre Jesus e João Batista. Jesus nutria grande afeto por ele, mesmo não correspondendo ao ideal de messias violento e justiceiro que João tinha anunciado (Mt 3,1-12). Inclusive, o reconheceu como o maior entre os nascidos de mulher e como profeta (Mt 11,7-14). Jesus reconhecia a continuidade entre a sua missão e a de João, o seu mentor, não obstante as divergências. Por isso, inevitavelmente, a morte de João mexeu com Jesus, ainda mais pela forma cruel como aconteceu. Daí, a necessidade de retirar-se, não por medo, mas por comoção. Seu estado interior pedia um momento de recolhimento.

O lugar deserto e afastado seria ideal para esse recolhimento que, certamente, seria marcado pela oração profunda, pela reflexão e, talvez, até pelo choro. Porém, não conseguiu ficar sozinho com seus discípulos porque “quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé” (v. 13b). O movimento das multidões em busca de Jesus demonstra o quanto ele já estava conhecido e o bem que ele fazia. As multidões o seguem porque ele tinha respostas para as suas necessidades. Abandonadas e exploradas pelas lideranças religiosas e políticas, as multidões recebiam atenção e cuidado de Jesus (Mt 9,36–10). O seu olhar era diferente, marcado pela compaixão: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (v. 14). As multidões até se anteciparam, chegando primeiro ao lugar deserto. Ao vê-las, Jesus não foge e nem as expulsa, mas se enche de compaixão. Numa ocasião anterior, o evangelista disse que ele sentiu compaixão, aos ver as multidões; agora, ele diz que Jesus encheu-se de compaixão. Quer dizer que a compaixão ocupa todo o ser de Jesus, faz parte da sua essência.

Compaixão significa um amor visceral; é um comover-se no mais profundo do ser – as vísceras ou entranhas – que resulta em ação concreta de libertação. Não se trata de um mero sentimento, mas de ação libertadora; é nisso que consiste a misericórdia de Deus, cuja expressão mais concreta é a própria pessoa de Jesus. Por isso, ele “curou os que estavam doentes”. Por doentes, o evangelista emprega um termo (em grego: arostos – άρρωστος) que compreende todas as pessoas frágeis, e não apenas os doentes fisicamente. São todas as pessoas destinatárias privilegiadas da misericórdia de Deus: doentes, aflitas, pobres, abandonadas, exploradas. Como o Evangelho de Jesus é um programa de vida completo, que contempla a vida em todas as suas dimensões, todas essas classes de pessoas são as primeiras contempladas. Por isso, a reação de Jesus ao ver essas pessoas foi encher-se de compaixão.

Diferente de Jesus foi o que os discípulos sentiram: “Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: ‘Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (v. 15). Pela referência ao entardecer, supõe-se muita coisa já realizada. Certamente, muito contato físico de Jesus com o povo, muito toque, muita escuta e muitas palavras proferidas; tudo ao contrário de quem estava procurando ficar sozinho. A reação dos discípulos parece ser de preocupação e cuidado com Jesus, mas na verdade é de indiferença e pouco compromisso com as multidões. A tendência deles é lavar as mãos diante das necessidades dos outros. Aconselham Jesus a mandar as multidões embora e que cada um “se virasse” para conseguir o alimento necessário.

Apesar do tempo de convivência e aprendizado, os discípulos ainda não tinham absorvido a mentalidade de Jesus; ainda não tinham assimilado a lógica da partilha e da solidariedade. Diante disso, a resposta de Jesus é praticamente uma repreensão: “Jesus, porém, lhes disse: ‘Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer” (v. 16). Como se vê, Jesus compromete os discípulos. Ao invés de lavar as mãos diante das necessidades dos outros, os seus discípulos devem sentir-se responsáveis. A comunidade cristã não pode assistir indiferente ou passivamente à fome no mundo. Biblicamente, a fome é também uma doença que deve ser curada, conforme ensinou Jesus, ao ordenar aos discípulos que dessem de comer às multidões. A mensagem de Jesus é um programa de vida que contempla também a dimensão material, inegavelmente. Portanto, saúde e pão devem ser prioridades na comunidade cristã.

Talvez indignados ou envergonhados com a advertência de Jesus, “Os discípulos responderam: ‘Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v. 17). Certamente, foram realistas. Tinham pouca coisa, provavelmente o suficiente para eles, mas quase nada para as multidões. A quantidade era pequena, mas total, era tudo o que tinham. O número sete, como resultado de cinco mais dois (5+2=7), significa totalidade. Logo, não se trata de números reais, mas de simbologia. Independentemente da quantidade, é como se os discípulos dissessem a Jesus que tudo o que tinham era insuficiente para o grande número de pessoas que estavam ali. Porém, Jesus não se importa com a quantidade; pede que os discípulos lhe levem tudo o que tem: “Jesus disse: ‘Trazei-os aqui” (v. 18). O problema começa a ser solucionado aqui, quando Jesus pede que os discípulos coloquem a disposição tudo o que têm, apesar de pouco. É isso o que Jesus espera das comunidades de todos os tempos. O pouco que cada um possui deve ser colocado a serviço de todos e, assim, o que é pouco se torna muito. Quando cada um apresenta o seu pouco, é premissa de fartura.

É interessante perceber que os discípulos recebem a responsabilidade de curar a fome, o que se faz pela partilha, mas tudo deve passar por Jesus. Primeiro, devem a apresentar a ele o que têm; nesse gesto está o reconhecimento de que tudo é dom de Deus e, por isso, deve ser destinado à partilha. Na continuação, diz o evangelista que “Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões” (v. 19). Como se vê, Jesus toma a iniciativa, e age como verdadeiro pastor, ao contrário dos líderes religiosos e políticos que tinham explorado e abandonado as multidões (Mt 9,36). Inclusive, todo este relato tem como pano de fundo o Sl 22(23), no qual o salmista reconhece Deus como o pastor que alimenta o povo e o faz descansar num prado verdejante (grama), como aqui. Os gestos de Jesus com os pães e os peixes antecipam a eucaristia, mas vão muito além de um rito: olhar para o céu – abençoar – (re)partir – dar/distribuir. São os passos que a comunidade cristã não pode parar de dar, não apenas como rito semanal, mas como vivência cotidiana, sobretudo onde e quando há multidões famintas de pão.

Como resultado da partilha, aliás, de todo um processo, o resultado foi este: “Todos comeram e ficaram satisfeitos e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios” (v. 20). Recordemos que houve todo um processo, o que não seria necessário caso se tratasse de um puro gesto sobrenatural de Jesus. De seu olhar compassivo, Jesus conferiu responsabilidade aos discípulos, provocou neles a disposição de colocar em comum tudo o que tinham, um gesto que inevitavelmente motivaria também outras pessoas, fazendo de tudo uma ação de graças a Deus, até a partilha que deixou todos satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade. A abundância é gerada quando ninguém considera somente seu o que possui, mas oferece, como dom, às necessidades do próximo. E a primeira necessidade do ser humano é o alimento, o pão de cada dia. No final, ainda sobrou, o que foi tudo recolhido. O alimento é sempre um dom de Deus, e o que é dom de Deus não pode ser desperdiçado. O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.

No final, a referência ao número dos que se alimentaram, o que também é um número simbólica que significa uma grande quantidade: “E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” (v. 21). Entre o número inicial de dons disponíveis para a partilha e a multidão alimentada há uma enorme diferença. Com isso, o evangelista quer ensinar que os resultados são sempre surpreendentes quando se põe em prática o que Jesus ensinou, e reforça o convite para a comunidade não ter medo de partilhar o que tem. O último dado considerado é a menção do evangelista às mulheres e crianças, o que reforça ainda mais a importância da partilha, pois significa que havia uma multidão incontável, e que a partilha gera sempre abundância. Somente Mateus faz essa observação. Apesar de sutil, é um aceno à inclusão. Mulheres e crianças eram consideradas categorias insignificantes, na época. O evangelista acena, com isso, que a comunidade cristã é aberta a todos e todas.

O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, como encontrar solução para o problema da fome, por exemplo. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do Reino, mas é ela mesma que tem que criar tais condições, encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, mas, no texto específico de hoje, a ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)

O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de Joã...