sábado, janeiro 27, 2018

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,21-28 (ANO B)



O evangelho deste quarto domingo do tempo comum, Marcos 1,21-28, está em perfeita continuidade com o do domingo anterior (cf. Mc 1,14-20). Após ter iniciado a composição da comunidade de discípulos, chamando os quatro primeiros seguidores, e anunciado a iminência do Reino de Deus, eis que Jesus inaugura definitivamente o seu ministério na Galiléia. Embora o evangelista já tivesse feito referência a esse ministério de Jesus na Galiléia, essa é a primeira vez que ele faz uma descrição da sua atuação.

Logo de início, é importante recordar que, sendo essa a primeira narrativa descritiva da atuação de Jesus, ela se torna paradigmática. Como elementos mais importantes do texto a serem observados, destacamos: as dimensões de tempo e espaço (sinagoga/sábado), ensinamento e cura (palavra/ação), admiração e confronto. Esses elementos são muito representativos para a imagem de Jesus que Marcos pretende apresentar com o seu evangelho.

Eis o texto: “Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v. 21). É muito significativo esse primeiro versículo. A cidade de Cafarnaum, cujo nome significa “aldeia de Naum”, se torna o centro das atividades iniciais de Jesus na Galiléia. Era uma cidade estratégica devido a sua localização às margens do mar (lago) da Galiléia, sua economia e população bastante diversificada. Era a cidade ideal para a “pesca de homens”, atividade atribuída aos seus discípulos. Por isso, Jesus monta nela o núcleo central do seu discipulado e das suas atividades. É importante recordar que a ordem para os discípulos se tornarem “pescadores de homens” possui um significado muito forte: longe de ser um convite ao proselitismo, era um convite à promoção do ser humano em sua dignidade plena; significa a missão do discípulo de promover a libertação do ser humano de toda e qualquer situação de perigo, aprisionamento e morte.

A ação de Jesus que o evangelho de hoje descreve mostra a sua principal urgência: libertar o ser humano da religião alienante e corrupta. Das tantas situações de perigo nas quais a humanidade estava imersa, a pior de todas era a alienação religiosa. Por isso, o primeiro espaço visitado por Jesus com sua mensagem e ação libertadoras foi a sinagoga.

O evangelista se aproveita da vida litúrgica de Israel, sinagoga e sábado, para apresentar a missão libertadora de Jesus. O sábado era o dia sagrado por excelência para o povo judeu; dia do repouso e do culto, da escuta atenta da Lei e dos Profetas. A sinagoga era o lugar sagrado do culto, da reunião da comunidade, da catequese; o espaço privilegiado da pregação no judaísmo e, consequentemente, do ensino da preservação das tradições e do cumprimento dos preceitos da Lei.

Jesus, ao contrário dos mestres da lei, não frequentava a sinagoga para ensinar a preservar as tradições, nem para repetir fórmulas e nem para cumprir os preceitos, mas a transgredi-los, uma vez que esses faziam parte do aparato de dominação e opressão ao qual o povo estava submetido. A diferença entre a pregação inovadora de Jesus e a tradicional dos mestres da Lei e rabinos da época logo foi percebida pelo povo: “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v. 22). A autoridade com a qual Jesus ensinava consistia na sua coerência de vida e fidelidade ao Pai. As pessoas, habituadas a ouvir repetições de fórmulas, logo se admiram com a novidade apresentada por Jesus. Ora, o Reino de Deus, objeto da pregação de Jesus, tinha sido bloqueado pela religião. Os mestres da Lei eram funcionários do sagrado, ao invés de autoridade ensinavam com autoritarismos e força repressiva. Jesus ensina com liberdade e para a liberdade.

À medida em que o anúncio de libertação ecoa, eis que as forças do mal se evidenciam, pois não aceitam a prática libertadora de Jesus, como constata o evangelista: “Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (vv. 23-24). A presença desse homem no reduto sagrado da sinagoga comprova a completa falência daquela religião. Até então, o ensinamento ali oferecido pelos mestres da Lei não tinha ido de encontro ao mal instalado.

A presença de um homem possuído por um espírito mau no espaço sagrado atesta que aquela religião tinha perdido sua capacidade de combater o mal. O que ameaça o mal é a presença do bem, e Jesus é, por excelência, o portador do bem, o homem possuído pelo Espírito Santo. Até então, o mal instalado não tinha se sentido ameaçado, porque não havia quem irradiasse o bem naquele ambiente. O homem possuído pelo espírito mau, com quem a religião convivia tão bem, se sente ameaçado pelo ensinamento libertador de Jesus com sua autoridade.

Quanto mais o Reino de Deus se aproxima, mais o domínio do mal se sente ameaçado. Por isso, o homem pergunta o que Jesus veio fazer. O poder da morte, a anti-vida está com os dias contados. O mal sente-se destruído com a implantação do Reino de Deus. Por isso, será articulado o complô da morte entre a religião e o império romano para fazer calar a voz de Jesus.

Jesus não suporta o mal ao seu redor, por isso “o intimou: Cala-te e sai dele!” (v. 25). A essa ordem, segue-se o seu efeito: “Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v. 26). Quem está dominado por forças hostis como a violência, a corrupção, a mentira e o ódio, não consegue livrar-se com facilidade. Mas, a a palavra de Jesus tem uma eficácia inconfundível e, mesmo sofrendo violência, consegue vencer. Aqui está um dos principais elementos do relato: a coerência entre a palavra e a ação de Jesus. Ensinamento e cura (expulsão do espírito mau) na mesma cena significa que em Jesus não há discordância entre o falar e o agir; Ele é totalmente coerente. Essa é a sua práxis!

Se o ensinamento de Jesus já causava admiração, essa aumenta ainda mais quando os seus ouvintes percebem a novidade também na prática: “E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus e eles obedecem!” (v. 27). Chama a atenção da assembléia o fato de Jesus não permitir o mal diante de si. Para os mestres da Lei, pregadores e intérpretes oficiais, não importavam as situações concretas vivenciadas pelos participantes do culto; eles se preocupavam apenas em transmitir a doutrina. Jesus, pelo contrário, colocava a vida e o bem-estar do ser humano em primeiro plano, por isso incomodava as forças do mal ali instaladas. Essa novidade evidenciava ainda mais a sua autoridade.

A novidade da práxis de Jesus gera admiração, fama e também aceitação da parte do povo, como recorda o evangelista: “E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galiléia” (v. 28). As pessoas estavam saturadas de uma religião indiferente à vida e até conivente com as forças opressoras. Jesus inova no falar e no agir, tirando a doutrina do centro e colocando a vida do ser humano. Obviamente, como vai ser mostrado ao longo do Evangelho, muitos conflitos virão como fruto de suas opções, levando-o à cruz, inclusive.

Portanto, tendo no domingo passado designado os primeiros discípulos como “pescadores de seres humanos”, hoje Jesus nos ensina a natureza dessa pesca: ser agente de libertação para a humanidade, livrando o ser humano das situações de opressão e morte. Como de todas as alienações a pior é aquela religiosa, foi no espaço dito sagrado que Ele iniciou sua missão, pois era ali onde mais se permitia que os seres humanos fossem “afogados”, ou seja, privados de sua liberdade e vida plena. Hoje, seu discipulado é também interpelado a reconhecer quais são as estruturas de domínio do mal. Vale a pena recordar que, muitas vezes, o mal ainda continua disfarçado de doutrinas, ritos e preceitos.




Mossoró-RN, 27/01/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues



domingo, janeiro 21, 2018

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,14-20 (ANO B)



Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo comum, iniciamos propriamente a leitura contínua do Evangelho Segundo Marcos. O texto proposta, Marcos 1,14-20, nos situa no início da vida pública de Jesus, destacando seus primórdios na Galiléia com o anúncio do Reino de Deus e o chamado aos primeiros discípulos para o seu seguimento. Podemos dizer que se trata de um texto paradigmático para a comunidade cristã de todos dos tempos.

Três acontecimentos antecedem o nosso texto: a pregação de João Batista (cf. Mc 1,2-8), o batismo de Jesus (cf. Mc 1,9-11), e as tentações no deserto (cf. Mc 1,12-13). Esses são acontecimentos introdutórios, que fazem parte da preparação para o início da pregação de Jesus e, consequentemente, da execução do seu programa.

Como o texto mesmo deixa claro, é o início de uma nova etapa: “Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galiléia” (v. 14a). Essa primeira afirmação é muito importante. A prisão de João se torna um divisor de águas na vida de Jesus e na história da salvação. O advérbio temporal grego Meta. = metá visa enfatizar que, embora haja continuidade, as missões do Batista e de Jesus não coincidem, fazem parte de etapas diferentes da história. Como a sina dos profetas sempre foi a perseguição, a prisão de João significa que sua missão alcançou seu objetivo. Aqui, o evangelista usa o verbo “entregar”, de modo que a tradução mais compatível com o texto original seria “depois que João foi entregue”; é o mesmo verbo aplicado a Jesus na paixão (cf. Mc 14,10 ). Esse detalhe, aparentemente simples, enfatiza ainda mais a peculiaridade de sua missão. Ora, é entregue aquele que incomoda, quem anuncia a verdade em um mundo marcado pela mentira. Assim foi a missão do Batista.

À medida em que o Batista sai de cena, entra Jesus: “Jesus foi para a Galiléia”. Aqui está o primeiro sinal de ruptura, ou seja, as diferenças entre os dois personagens começam a aparecer. Ora, João tinha desenvolvido sua atividade na Judéia, às margens do rio Jordão, e Jesus tinha participado dessa atividade como discípulo seu, provavelmente, esperando o momento de apresentar-se como autônomo em relação aos homens, e dependente somente do Pai Eterno. Uma vez cumprida a missão do Batista, Jesus inicia a sua com proposta e metodologia completamente novas.

Enquanto realizada na Judéia, a missão do Batista visava purificar judeus, através, do batismo, para reintegrá-los à religião oficial, ou seja, ao templo. Era na Judéia que estava Jerusalém com seu magnífico templo. Jesus, ao contrário, veio para incluir pessoas no Reino de Deus, e não para recrutar devotos para o templo. Por isso inicia a sua atividade longe da sede da instituição religiosa, como diz o texto: “foi para a Galiléia”, ou seja, para onde estavam os marginalizados, um povo semi-pagão. Portanto, mais que uma mudança geográfica, a ida de Jesus para a Galileia representa uma mudança de perspectiva. Os galileus eram considerados perigosos pela religião oficial; um povo rebelde e subversivo. É no meio desse povo rotulado negativamente que Jesus começa a agir.

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus como algo urgente: “o tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. O evangelista se refere ao tempo com o termo grego kairo.j = kairós, que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser desperdiçada.

O Reino de Deus (em grego: h` basilei,a tou/ qeou/ - hé basileia tú Theú), conteúdo da pregação de Jesus, consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época; é claro que essa proposta continua válida ainda hoje, e até com mais urgência.

O Reino de Deus não é uma resposta de esperança em um bem-estar futuro, mas a proposta de Deus para o hoje da história. Essa proposta consiste em uma sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcada pela igualdade e fraternidade. Podemos resumir o Reino de Deus como a realização plena da vontade da sua vontade neste mundo. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Mais que a temporalidade do Reino, a forma verbal “está próximo” exprime a sua materialidade. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. ). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. O convite à conversão, expresso pela forma verbal grega metanoei/te – metanoeite”, não significa intensificar as práticas penitenciais e devocionais, nem melhorar um pouco, nem rezar mais... significa mudar radicalmente o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho. Crer no Evangelho significa aceitar o anúncio de Deus por meio de Jesus Cristo, tomando suas palavras como verdadeiras e portadoras de libertação. É acreditar que um anúncio só pode ser bom e edificante se tiver como base a mensagem libertadora de Jesus de Nazaré.

Conhecedores da atividade e pregação de Jesus (vv. 14-15), o evangelista nos apresenta o início da formação do discipulado: E, passando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e André seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores” (v. 16). O mar é sinônimo de hostilidade e perigo na mentalidade bíblica. Embora esse da Galiléia fosse apenas um lago, o evangelista denomina de mar numa perspectiva teológica. Quer dizer que Jesus não fazia distinção de ambientes, não temia perigos e enfrentava as adversidades com naturalidade. A “beira do mar” é um lugar de circulação de pessoas de diversas proveniências, expressa pluralidade e diversidade, além de perigo.

Ao invés da comodidade dos átrios do templo, por onde circulavam as pessoas “santas”, Jesus prefere circular em meio ao perigo, entre as pessoas sem reputação. Com base no que vê, e não no que diz a doutrina, Ele escolhe seus primeiros seguidores. As pessoas não são escolhidas por Ele enquanto estão rezando ou praticando atos devocionais, mas enquanto estão trabalhando; é para o cotidiano das pessoas que Jesus olha e chama. Ele não faz uma pesquisa de opinião pública, não pede cartas de recomendação, não vai aos lugares sagrados observar quem tem “cara de santo”.

A primeira chamado é direcionada a quatro, duas duplas de irmãos: Simão e André, João e Tiago (vv. 16-20), todos pescadores. Esse número simbólico representa, com muita probabilidade, os quatro pontos cardeais, acenando para a universalidade do Reino e do Evangelho. O convite é direcionado a pessoas de todos os lugares, dos quatro cantos da terra. O mandato é simples: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (v. 17).

Ao impertativo “segui-me” (em grego: ovpi,sw mou – ópisso mú), literalmente “venham atrás de mim”, corresponde a necessidade do discípulo viver como Jesus vive. Segui-lo é configurar-se ao seu modo de vida. É um convite para o desprendimento e para que os discípulos se coloquem em estado constante de aprendizado. Somente andando atrás do mestre o discípulo poderá caminhar na direção certa. Aqui, Ele se distancia completamente do modelo de mestre do seu tempo, estabelecendo uma nova concepção: enquanto os rabinos do seu tempo eram procurados por candidatos ao discipulado, é Jesus mesmo quem busca e escolhe os seus discípulos.

A expressão “pescadores de homens” (v. 17b) é muito passível de interpretações equivocadas que podem distanciar e distorcer o sentido aplicado pelo evangelista, como tem acontecido. Geralmente, se tem usado ela para justificar as mais diversas formas de proselitismos e até abusos, o que nunca esteve nos planos de Jesus. É necessário, portanto, compreender o sentido do mar (grego: qa,lassa – thálassa) para o mundo bíblico: é sinônimo de perigo; evoca morte e domínio do mal. Portanto, ser “pescador de homens” é ser sinal de vida, tirar seres humanos das mais diversas situações de morte causadas pelos pseudo-reinos. Assim é a missão dos seguidores de Jesus: restituir aos homens e mulheres, ou seja, à humanidade, a vida e a dignidade, livrando-a de todas as ameaças à vida em plenitude: a violência, o ódio, a corrupção, a injustiça, a fome, e todos os males nos quais a humanidade possa “afogar-se”.

A resposta positiva dos primeiros discípulos é uma interpelação aos cristãos de todos os tempos: converter-se e acreditar no Evangelho são as condições necessárias para fazer parte do Reino de Deus. A autenticidade dessa conversão depende do seguimento fiel a Jesus. Para isso, é necessário deixar tantas redes que continuam a prender e atrapalhar o seguimento do Mestre. Uma vez que o Reino tornou-se próximo, e essa oportunidade única não pode ser desperdiçada, criemos coragem de deixar imediatamente, como os quatro primeiros, todos os obstáculos ao seguimento.



Mossoró-RN, 19/01/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, janeiro 13, 2018

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 1,35-42 (ANO B)



A liturgia do segundo domingo do tempo comum, independente do ano litúrgico, sempre propõe um texto do Evangelho segundo João. Neste ano B, o texto proposto é Jo 1,35-42. Ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua do ministério de Jesus, desde os seus primórdios na Galiléia até o seu final em Jerusalém. Recorre-se, portanto, ao Evangelho segundo João no segundo domingo, porque é esse o que melhor introduz a vida pública de Jesus, apresentando a chamada “semana inaugural”, aberta com o envio da comitiva pelas autoridades de Jerusalém para fiscalizar a atividade do Batista (cf. 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná (cf. 2,1-12). O episódio narrado hoje acontece no terceiro dia dessa semana inaugural.

Iniciamos a nossa reflexão com uma pequena observação ou correção da versão litúrgica do texto: ao invés da genérica e desnecessária expressão “naquele tempo”, o texto em sua versão original contém uma delimitação temporal específica omitida pela liturgia. Ora, o versículo 35 é introduzido pela expressão “no dia seguinte” (em grego: Th/| evpau,rion – té epaúrion). Pode parecer uma observação pouco significativa, mas na verdade é de grande importância. Se o evangelista usa a expressão “no dia seguinte”, é sinal que o episódio a ser narrado está em continuidade com o anterior.

Assim como tinha sido anunciado no prólogo que “houve um homem enviado por Deus, seu nome era João. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz” (Jo 1,6.8), as primeiras cenas do Quarto Evangelho apresentam exatamente o testemunho de João a respeito de Jesus. O evangelho de hoje se insere nesse contexto. No episódio anterior o evangelista narrara o primeiro encontro de Jesus com João. Ali, o Batista tinha reconhecido Jesus como o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1,29), e dado o seu testemunho a respeito dele.

No episódio narrado pelo evangelho de hoje, ou seja, um dia depois, novamente eles se encontraram: “No dia seguinte, João estava com dois de seus discípulos e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!” (vv. 35-36). É importante recordar que esse é o terceiro dia da narração e, portanto, seu significado é de grande importância. O terceiro dia na Bíblia não é simplesmente a soma de três dias cronológicos seguidos, mas é um sinal de intervenção de Deus. É o dia em que coisas importantes acontecem, como a ressurreição, por exemplo. Portanto, esse episódio tem um valor bastante significativo para o todo Evangelho segundo João, uma vez que é o nascimento da comunidade dos discípulos.

Antes, João Batista tinha apresentado Jesus como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, agora o apresenta apenas como “Cordeiro de Deus”, uma vez que mais importante que a sua função, é pessoa de Jesus. Antes de tudo, João considera o ambiente e a situação em que o povo se encontrava: instituições corrompidas, sistema religioso sem credibilidade e um império repressivo, gerando dor e sofrimento na população mais pobre. Essa situação degradante era consequência de uma sociedade dirigida por lobos. Daí, a necessidade de alguém que assuma o papel de cordeiro, ou seja, como sinal de paz, de luta contra o mal e a violência, um líder que não faça uso de nenhum dos instrumentos usados pelos dirigentes da época: força, violência, repressão, corrupção e exploração. João não pensa no cordeiro pascal do sacrifício, mas no líder-cordeiro, ou seja, pacífico e humilde. É importante que o conhecimento da identidade de Jesus seja revelado para que seus discípulos tenham verdadeiras convicções do seguimento. João apresenta Jesus como cordeiro para os seus próprios discípulos, fazendo assim uma espécie de transição entre a sua missão de precursor e a missão de Jesus como Salvador e luz da humanidade. Ele reconhece que sua missão de testemunha está chegando ao seu cumprimento.

É interessante perceber como o evangelista constrói a cena: João estava com seus discípulos, viu Jesus passar e o testemunhou como cordeiro. Aqui aparece o verbo que vai orientar todo o texto: o verbo ver. Na língua grega há quatro verbos que significam ver: oráo, theaomai, blêpo e emblêpo. O que o evangelista usa aqui é emblêpo, o qual significa “ver por dentro”, expressa a mais alta intensidade e profundidade do olhar. Esse verbo é usado duas vezes no evangelho de hoje: para expressar o olhar de João para Jesus, e o de Jesus para Simão (v. 29). Nas outras ocorrências o evangelista usa os significados menos intensos (vv. 38-39).

A reação dos discípulos demonstra o quanto o testemunho de João era convincente: “Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus” (v. 37). Assim como em toda a tradição bíblica, a escuta tem grande importância na transmissão da fé. Aqui começa a formação do discipulado de Jesus no Quarto Evangelho. Enquanto nos evangelhos sinóticos o chamado acontece praticamente de improviso, com Jesus chamando diretamente, em João o chamamento faz parte de um processo iniciado pela pregação do Batista. A pregação do Batista chega ao seu objetivo, e ao mesmo tempo esgota-se. Assim, o gesto dos dois discípulos seguindo Jesus representa o cumprimento do antiga aliança e o início da nova, a qual será celebrada solenemente na conclusão da semana com as bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12). Seguir Jesus significa a disposição de acolher a sua proposta de vida e viver como Ele; é abandonar todos os caminhos anteriores e andar somente nos seus. Significa também a dinâmica do Reino: enquanto o Batista tinha um ponto fixo para sua pregação, a missão de Jesus é dinâmica e universal.

Os dois discípulos seguiram Jesus porque ouviram João testemunhar a seu respeito. Mas esse é apenas o primeiro passo de um verdadeiro seguimento, é apenas a descoberta inicial. Para tornar-se discípulo, é necessário muito mais. Por isso, “voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: “O que estais procurando?” (v. 38a). Esse trecho é muito importante! Essa pergunta “o que estais procurando?” é a primeira fala de Jesus no Evangelho segundo João; são as suas primeiras palavras. É interessante que o diálogo de Jesus com a humanidade não começa com um discurso ou uma proclamação solene, mas com um questionamento. A pergunta de Jesus é de fundamental importância, por isso continua válida ainda hoje e sempre será. É preciso ter clareza das motivações para o seguimento. É preciso refletir constantemente sobre por quais motivos se segue a Jesus.

A resposta dos discípulos mostra que eles estavam no rumo certo e, portanto, que a catequese de João como precursor tinha sido bem feita: “Eles disseram: “Rabi (que quer dizer mestre) onde moras?” (v. 38b). Com essa expressão os discípulos não pedem o endereço de Jesus, mas algo muito mais profundo. A expressão “onde moras?” (em grego: pou/ me,neijÈ – pú meneis) significa muito mais que o desejo de conhecer uma localidade; significa “qual é o seu estilo de vida?”, “como vives?”, “ensinas-nos a viver como tu!”. Com todo respeito ao antigo mestre, os discípulos de João reconhecem que não é a sua vida que devem imitar, mas a vida de Jesus de agora em diante. João disse que Jesus é o Cordeiro, os discípulos não se contentam com essa informação e querem conhecer, experimentar a vida de cordeiro vivida por Jesus.

O convite de Jesus é decisivo: “vinde e ver” (v. 39a). O anúncio oral, como fez João Batista, é apenas o primeiro passo, é somente uma etapa no caminho para o discipulado. Para tornar-se verdadeiramente discípulo ou discípula é necessário fazer a experiência do encontro, do convívio, do estar com Ele. Aqui Jesus faz uma firme denúncia, embora sutil, à religião do seu tempo baseada na doutrinação. Ele quer dizer que não é explicável com palavras. Nenhuma doutrina é capaz de contê-lo. Jesus não é conteúdo, Ele é pessoa de relação.

Só conhece Jesus quem vive com Ele, quem vai ver e permanece com Ele, como fizeram aqueles dois discípulos: “Foram pois ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde” (v. 39b). Aqui está o primeiro modelo de discípulo e de encontro. Ir ver onde Ele mora e permanecer é acatar a sua proposta de vida. Isso se faz somente em comunidade: foram dois e permaneceram com Ele. Eles não foram conhecer um espaço físico determinado, mas foram viver como Ele. Como o dia terminava às seis horas, essa indicação temporal “quatro da tarde” significa que permaneceram até o fim com Ele e, por isso, quando surgir o novo dia, aqueles discípulos já estarão revestidos de uma vida nova, ou seja, do estilo de vida de Jesus.

Até então, nenhum dos discípulos fora chamado pelo nome. Finalmente, um deles se torna conhecido: “André, irmão de Simão Pedro, era um dos que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus” (v. 40). O evangelista reforça aqui, mais uma vez, a eficácia do anúncio de João: os discípulos seguiram Jesus porque ouviram o precursor. O outro discípulo que não é identificado por nome é, certamente, aquele que permanecerá como enigma em todo o Evangelho: o discípulo amado. O efeito do encontro com Jesus se torna visível na passagem do discípulo a missionário: André “foi encontrar seu irmão Simão e disse: “Encontramos o Messias” (que quer dizer Cristo)” (v. 41). Quem faz a experiência da comunhão de vida com Jesus, quem o vê e permanece com Ele sente a necessidade de dá-lo a conhecer, partilhando essa mesma experiência. Ao encontrar o messias-cordeiro, ele encontrou sentido para a vida, percebeu que os lobos de então (dirigentes políticos e religiosos) não tinham a palavra final, uma nova ordem e um novo tempo estavam surgindo a partir do fracos e pequenos, representados pela imagem do cordeiro.

À medida em que a experiência de viver com Jesus vai sendo partilhada, o discipulado vai se dilatando: “Então André conduziu Simão a Jesus. Jesus olhou bem para ele e disse: “Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas” (que quer dizer: pedra)” (v. 42). É interessante que o evangelista não concede a palavra a Simão. O entusiasmo era todo de André. Subentende-se uma admiração silenciosa e imóvel de Pedro, a ponto de ser necessário um encorajamento de Jesus com o acréscimo do nome Cefas (Pedra=Pedro). Assim, o grupo dos seguidores se ampliava quando a experiência vivida era compartilhada.

Que o anúncio da palavra em nossas comunidades gere inquietações e inconformismos e, assim, possamos buscar o conhecimento de Jesus fazendo a experiência de comunhão de vida com a sua pessoa, indo onde Ele mora e levando-nos a reconhecê-lo no encontro com os irmãos e irmãs. Só Ele comunica vida em plenitude. E essa vida não pode ser experimentada pela mera repetição de fórmulas doutrinais, mas somente no encontro com a sua pessoa.


Mossoró-RN, 13/01/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...