sábado, novembro 25, 2017

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – MATEUS 25,31-46 (ANO A)



Chegamos ao trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, o qual vem intitulado como Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Se trata de um título, a princípio, perigoso, uma vez que a tendência é, de imediato, imaginá-lo como um rei semelhante aos reis deste mundo e atribuir-lhe trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado em diversas imagens, escondendo a sua principal característica: o amor serviçal.
Se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem forte, potente, sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando, julgando e ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e subjugando inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do seu tempo e estamos rejeitando Jesus de Nazaré, o servo de todos, aquele que veio para servir e não para ser servido. Infelizmente, boa parte do cristianismo acabou caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe traços de rei que não lhe são próprios.
Focaremos a nossa reflexão no texto evangélico que a liturgia propõe para a solenidade neste ano: Mt 25,31-46 e não no título litúrgico da festa. Trata-se da conclusão do último discurso de Jesus, o chamado discurso escatológico, um trecho normalmente conhecido como o “julgamento final”. É um texto exclusivo do Evangelho segundo Mateus, com fortes traços apocalípticos, o que pode dificultar a sua compreensão.
O evangelho apresenta uma cena de juízo conduzida pelo “Filho do Homem” em forma de parábola. É importante recordar que o tema principal do discurso escatológico é a vigilância, ou seja, a espera atenta pelo desfecho final da história; por isso, o texto inicia com essa expressão: “Quando vier o Filho do Homem em sua glória” (v. 31a). O importante não é a forma como virá esse Filho do Homem, mas a sua atitude: “reunirá diante dele todos os povos da terra e separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v. 32). Aqui está a universalidade do juízo e do alcance da mensagem de Jesus: todos os povos são contemplados, inclusive Israel, eliminando qualquer privilégio étnico e racial.
A imagem do pastor é usada mais uma vez, pois era muito acessível aos interlocutores de Jesus e à comunidade de Mateus. De fato, era frequente que o mesmo pastor cuidasse de rebanhos de ovinos e caprinos juntos, e no início da noite sempre era necessário separá-los, devido a questões climáticas e também para facilitar o acasalamento, tendo em vista a reprodução. Certamente, os primeiros ouvintes e leitores da comunidade de Mateus compreendiam muito bem isso.
Ao reunir “todos os povos” (em grego: pánta tá étne), ou seja, toda a humanidade, o Filho do Homem irá fazer a separação. O critério da separação é o mais surpreendente: ao invés de considerar distintivos religiosos, como bom e mau, puro e impuro, digno e indigno, santo e pecador, cumpridor das prescrições e não cumpridor, o critério utilizado por Jesus é o que alguém fez ou deixou de fazer aos “pequeninos” ou “menores” dos irmãos. Não é difícil compreender a quem Jesus se refere como os “menores dos irmãos”, embora algumas correntes de estudos tentem distorcer a mensagem, afirmando que esses menores são apenas os discípulos, os quais foram enviados a todas as nações (cf. Mt 28,16-20). Essa interpretação não se sustenta se considerarmos o Evangelho em seu conjunto.
A atenção aos “menores dos irmãos” é o critério de participação na vida definitiva, ou seja, o “reino que o Pai preparou desde a criação do mundo” (v. 34). Em Mateus, a mensagem de Jesus foi condensada nos cinco discursos, e é importante perceber o nexo que une esses discursos: o primeiro, o da montanha, foi iniciado com as bem-aventuranças, nas quais Jesus introduzia a sua opção preferencial pelos marginalizados e sofredores (pobres, aflitos, mansos, perseguidos... cf. Mt 5,1-12); no último discurso, o texto de hoje, essa opção é reforçada e confirmada. Podemos dizer que, do começo ao fim, a mensagem de Jesus tem a atenção aos “menores dos irmãos”, ou seja, toda a sua vida foi marcada por uma clara opção por aqueles que são desprezados pela sociedade; em linguagem eclesial já afirmada entre nós, podemos dizer que a opção de Jesus é opção preferencial pelos pobres.
A partir de seis situações (ações) concretas, o evangelho de hoje mostra como alguém pode demonstrar ser cristão ou não: dar comida aos famintos, dar água aos sedentos, acolher os estrangeiros, vestir os nus, cuidar dos enfermos e visitar os presos. Não é à toa que Mateus elenca seis atitudes. O número seis diz da incompletude, da fragilidade da vida, da imperfeição. Elencar seis atitudes em resposta a seis tipos de necessidades significa que sempre haverá o que fazer. O número sete, perfeição, não foi atingido pois não há completude nem perfeição na história, mas falta e necessidade, que só se supre com o amor e a acolhida do outro. Assim, Mateus abre o leque dos necessitados, reconhecendo que todo ser humano é necessitado. O ser humano é um ser carente, não só de afetos, mas de casa, comida, educação, presença, diálogo, lazer etc. As seis atitudes de acolhida citadas por Mateus foram chamadas de “obras de misericórdia” pelo cristianismo, como de fato são. Mas a fé católica colocou-as como conselhos a serem acatados enquanto elas são, na verdade, o único critério de pertença à comunidade do Reino, como ensina o evangelho. Para saber se uma pessoa entrou na dinâmica do Reino ou não, basta saber se ela entendeu que os outros são necessitados de seu amor, especialmente os mais fragilizados, aqueles cuja falta dos bens básicos é notadamente visível. Por isso, é importante reforçar aqui: estas práticas não são alguns critérios, mas são os únicos critérios válidos para credenciar a pertença ou não de alguém à comunidade do Reino.
Notemos que o senhor não faz cobranças acerca da ortodoxia da fé, não acusa ninguém de não professar a fé conforme a reta doutrina, de não frequentar a reunião comunitária. O critério de julgamento é a ortopraxis, ou seja, a vivência do amor, a acolhida do outro. A religião cristã é a religião do amor, pois o Deus de Jesus Cristo é amor. Logo, amar é exigência se tornar de fato seguidor desse rei-pastor: amar e dar a vida pelas ovelhas como ele mesmo fez. Esses são os benditos do Pai que recebem o convite para a comunhão com ele. O Filho do Homem, enquanto senhor da história, conduzirá o julgamento com um diálogo bastante franco e sincero, iniciado com um convite: “Vinde benditos de meu Pai!” (v. 34a). Em seguida, são dadas as razões pelas quais são chamados de benditos do Pai: “Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 35-36). Chama a atenção a surpresa dos que são tratados como benditos: eles perguntam quando viram o senhor naquelas situações e o serviram. Essa surpresa é registrada pelo narrador para reforçar o caráter desinteressado e gratuito do amor transformado em serviço: fazer o bem, sem olhar a quem! A surpresa aumenta ainda mais quando o senhor diz: “todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v. 40). Famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e presos sintetizam todas as categorias de marginalizados. Jesus se identifica a tal ponto com tais categorias, chamando-os de irmãos, de seus iguais.
O diálogo com o segundo grupo se desenvolve a partir da mesma dinâmica, embora com desfecho contrário, a começar pelo convite inicial: “Afastai-vos de mim, malditos” (v. 41). Da mesma forma, o rei dá as razões pelas quais esses são chamados de malditos: não ter feito aquilo que fizeram os primeiros. Também esses recebem a sentença do rei com surpresa: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” (v. 44). A resposta do rei só faz aumentar a surpresa: “Todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” (v. 44). Assim como o terceiro empregado da parábola dos talentos, a sentença de condenação não é consequência de maldades cometidas, mas de omissões. O que há de mais sério na vida do ser humano, e que pode levá-lo à privação da vida em plenitude, é a omissão, a indiferença ao sofrimento do próximo, a carência de ações praticadas em favor dos menos favorecidos.
Como conclusão do discurso escatológico, o texto de hoje reforça a vigilância e dá um novo sentido a ela: não se deve ficar esperando pelo encontro com o Senhor na consumação dos tempos, em um tempo remoto; é preciso ter capacidade, maturidade e amor para encontrar-se com Ele todos os dias, fazendo o bem àqueles nos quais o Senhor está presente, já elencados repetidas vezes aqui (faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente e preso). A parábola é um alerta para a comunidade de Mateus, tão ansiosa pelo retorno do Senhor, mas incapaz de ver o Senhor já presente nos mais necessitados. Certamente, esse alerta continua válido também para os cristãos de hoje.
O cristão verdadeiro encontra-se com o Senhor todos os dias, não tem medo nem anseia por um encontro final e decisivo, mas sabe que Ele já está aqui conosco. A presença de Jesus, por sinal, é o fio condutor do Evangelho segundo Mateus: do anúncio a José (Mt 1,23) ao envio dos discípulos após a ressurreição: “Eis que eu estou convosco todos os dias” (28,20). Portanto, não há razões para a comunidade perguntar quando virá o Senhor; o importante é perceber a sua presença no cotidiano, nas situações concretas da vida.
Todos foram pegos de surpresa: tanto os considerados benditos quanto os ditos “malditos”, pois ou fizeram ou deixaram de fazer o bem. O bem a ser praticado deve ser completamente desinteressado. O Senhor não marca nem rotula nenhum daqueles nos quais Ele deve ser reconhecido. Basta reconhecer o outro como ser humano, imagem e semelhança do criador; essa é a única marca e não é impressa por nenhuma religião, mas pelo criador de todas as coisas. Ao Senhor, interessa o bem praticado, o serviço doado, o amor praticado! Reconhecer a realeza de Jesus sobre o universo é reconhecê-lo em cada irmão e irmã, sobretudo nos mais necessitados.


Mossoró-RN, 25/11/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 18, 2017

REFLEXÃO PARA O XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 25,14-30 (ANO A)



Neste trigésimo terceiro domingo do tempo comum, o penúltimo do ano litúrgico, continuamos a leitura do discurso escatológico de Jesus no Evangelho segundo Mateus. O texto de hoje compreende a chamada “parábola dos talentos”, Mt 25,14-30. Essa é uma das parábolas mais difíceis e complexas de Mateus, por isso, muito passível de distorção em sua interpretação. Nela, continua em evidência o tema  da vigilância, embora de maneira menos explícita que na parábola das dez virgens (cf. Mt 25,1-13), refletida no domingo passado.

Localizada entre a parábola das dez virgens e a cena do julgamento final, a parábola dos talentos tem um significado relevante em todo o Evangelho segundo Mateus e, portanto, seu ensinamento é de fundamental importância para o bem da comunidade cristã em todos os tempos. Certamente, a comunidade de Mateus vivia um momento de relaxamento e desânimo na vivência das bem-aventuranças, núcleo central da mensagem cristã. Ora, os cristãos esperavam um retorno imediato do Senhor e, como isso não acontecia, começavam a desanimar, abandonando a fé ou vivendo-a de modo superficial.

Com essa parábola, o evangelista quis animar aqueles cristãos, mostrando que o tempo de espera não é perdido; pelo contrário, é o tempo oportuno para a comunidade fazer crescer e multiplicar os dons que o Senhor lhe confiou. Assim, essa parábola assume um papel importante para os processos de discernimento dos cristãos a respeito da espera pelo Senhor, ensinando que a melhor maneira de esperá-lo é trabalhando para que o seu Reino se realize no cotidiano, fazendo render o amor, o talento por excelência, que foi confiado a cada um e cada uma na comunidade.

Olhemos, então, para a parábola: “Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu dois, e ao terceiro, um; a cada um de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou” (vv. 14-15). Antes de tudo, recordemos que parábola é um gênero literário que apresenta uma mensagem por meio de comparação. É, portanto, com essa imagem apresentada que o evangelista compara a situação da sua comunidade em espera pelo retorno do Senhor. Embora o texto litúrgico empregue a palavra empregados, o correto seria servos, por corresponder com mais fidelidade ao termo grego “dúlos” usado pelo evangelista. O homem viaja, mas não se ausenta, pois continua presente, de modo implícito, nos bens confiados aos servos. Também o Senhor ressuscitado não se ausentou da comunidade; continua presente à medida em que seus seguidores são capazes de fazer o seu projeto se desenvolver, cultivando os dons que lhes foram confiados.

Embora distribuídos em quantidades diferenciadas, ninguém ficou desprovido de bens; cada um recebeu de acordo com a sua capacidade. Esse detalhe é importante para o evangelista. Se todos recebem, todos tem algo a partilhar, a plantar e fazer frutificar. A quantidade diferenciada de bens recebidos por cada um pode ser uma alusão à diversidade de dons e carismas existentes na comunidade. Os talentos não são emprestados, são entregues, verdadeiramente doados. Talento (em grego: ta,lanton – talanton)  era uma medida de peso usada para pesar metais preciosos como ouro e prata; um talento equivalia a aproximadamente trinta quilos de ouro, o que correspondia a seis mil denários; um denário era o salário de um dia de trabalho braçal (cf. Mt 20,2). Assim, até mesmo aquele recebeu apenas um talento, ainda recebeu uma grande fortuna. Isso significa a benevolência e liberalidade do Senhor, bem como a perenidade dos bens que ele doa à comunidade.

Ao receber os talentos ou dons, cada um é livre para usá-los como quiser. A viagem do dono evoca a liberdade dada àqueles que receberam os talentos para usá-los. Como o dono não estava presente para vigiar os servos, eles poderiam multiplicar, extraviar ou apenas conservar os talentos recebidos. A parábola diz qual foi a atitude de cada um: “o que havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros cinco. Do mesmo modo o que recebeu dois lucrou outros dois. Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão” (vv. 16-18). Os dois primeiros servos trabalharam até duplicarem o que haviam recebido. Embora o texto não indique como eles fizeram isso, o certo é que não ficaram parados, nem tiveram medo. Foram ousados e criativos. O terceiro, simplesmente pensou na conservação; escondendo o talento, o conservou de modo íntegro e fiel.

A aparente ausência do Senhor  pode levar os membros da comunidade a diferentes posturas: para uns, é oportunidade de crescimento, para outros é motivo de medo e insegurança. A comunidade de Mateus vivia esse drama: o que fazer enquanto o Senhor não retorna? O evangelista aconselha que cada um desenvolva os dons recebidos, procurem multiplicar, transformando as realidades com amor e justiça. O Senhor nunca se ausentou; deixou seus dons como forma de continuar presente e operante. Desse modo, o convite à vigilância não visa um momento final específico, mas uma vida toda vigilante, praticando o amor e a justiça, ou seja, vivendo segundo a dinâmica das bem-aventuranças.

A liberdade de cada um no uso dos talentos não os isenta da responsabilidade, pelo contrário. Por isso, diz o texto que “depois de muito tempo, o patrão voltou e foi acertar as contas com  os empregados (v. 19). Ora, se os talentos entregues aos servos equivalem aos dons confiados aos membros da comunidade para a sua edificação, é justo que o Senhor se interesse pelo uso que cada um fez deles. Na comunidade não pode haver individualismo, indiferença nem omissão. Quem recebeu dons e não os fez frutificar, colocando-os a serviço dos demais, obviamente, não está apto a integrar a comunidade. É esse o sentido do acerto de contas mencionado na parábola. O Senhor quer saber o que fazemos com o seu evangelho a nós confiado. Quem multiplicou os talentos, gerou vida, edificou o Reino. Quem o manteve intacto como recebeu, foi omisso, cruzou os braços; na comunidade cristã, responsável pela edificação do Reino, não há espaço para pessoas assim.

Os servos que souberam colocar os dons a serviço da comunidade, multiplicando-os, ou seja, fazendo-os frutificar, são tratados, em tom de elogio, como “servo bom e fiel” (vv. 21-23), (em grego: dou/le avgaqe. kai. piste, – dúle agathé kai pisté). Embora o texto não descreva o que estes servos fizeram precisamente, o certo é que agiram, não ficaram acomodados. O Senhor quer que os dons confiados sejam usados em prol da justiça e do amor, tornando o mundo mais humanizado e parecido com o Reino. Não se trata de um convite ao acúmulo, o que seria contrário à lógica do Reino. É uma mensagem de esperança e perseverança, um convite a perder o medo e arriscar tudo, inclusive a vida, para que as sementes do Reino se multipliquem.

Ao contrário dos dois primeiros servos, o terceiro foi repreendido como “servo mau e preguiçoso” (v. 26), (em grego: ponhre. dou/le kai. ovknhre, – poneré dule kai okneré). É interessante que o texto não menciona nenhuma ação malvada desse servo; pelo contrário, menciona sua precaução em não estragar o talento recebido, o que poderia render-lhe um reconhecimento de prudente. Ora, na lógica do Reino, lógica que a comunidade cristã deve assumir, não basta cometer delitos para ser tratado como mau: basta ser omisso, indiferente e medroso. Não basta não fazer o que é mal, basta deixar de fazer o bem para ficar fora da comunidade e, consequentemente, do Reino. O medo paralisa a comunidade e impede a instauração do Reino. De todos os medos, o mais perigoso é o medo de mudança. É esse medo que leva muitos grupos e movimentos a simplesmente conservarem rigidamente certas tradições, ignorando a ação criativa e constante do Espírito Santo.

Podemos, finalmente, identificar o sentido da vigilância nessa parábola: a autêntica vigilância não é espera passiva, mas é atitude, é serviço em prol do Reino, através da multiplicação dos dons confiados pelo Senhor à comunidade. Quem pensa apenas em conservar a doutrina, os costumes e tradições, trai a confiança depositada pelo Senhor. O Reino exige decisão, ousadia, criatividade e liberdade para o uso dos dons recebidos. Ser vigilante é, portanto, não ter medo de arriscar, é colocar-se a serviço da comunidade, expondo os dons recebidos, mesmo correndo riscos.

Uma vez que os talentos não foram confiados para serem conservados, mas para frutificarem, a atitude do dono é completamente compreensível: “tirar do que tem pouco para dar ao que tem muito” (v. 28). Ora, o que já tinha dez talentos, passando a onze, poderia fazer multiplicar cada vez mais, e quem mais ganharia com isso seria a comunidade, ou seja, o Reino. Com essa afirmação “a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas aquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado” (v. 29), o evangelho não propõe a perpetuação das desigualdades, mas acentuando a natureza da comunidade cristã: só pode participar dela quem produz e multiplica o que lhe foi confiado. Quem recebe o dom e o retém somente para si, não pode entrar em um projeto de vida comunitário como o Reino de Deus.

O destino final de quem se auto-excluiu da comunidade enfatiza a privação total de vida e amor: “choro e ranger de dentes” (v. 30). Essa expressão significa o grau máximo de despero para um ser humano, equivalente a uma vida privada de sentido. Isso não é castigo, mas consequência. De fato, é sem sentido a vida de quem não vive a lógica das bem-aventuranças. Viver para si é um mal. No Reino, só vive quem sabe viver a serviço do bem de todos; só se vive asssim com coragem e amor!


Mossoró-RN, 18/11/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 11, 2017

REFLEXÃO PARA O XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - MATEUS 25,1-13 (ANO A)



Com a proximidade do final do ano litúrgico, o tema da vigilância passa a ocupar o centro da liturgia. Por isso, por três domingos consecutivos, os últimos do ano litúrgico corrente, o Evangelho é retirado do último dos cinco grandes discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, o chamado “Discurso Escatológico”. É importante, de antemão, ressaltar que a ênfase dada à vigilância não visa provocar medo, e sim reavivar e aumentar nos cristãos a esperança na realização plena do Reino de Deus ou dos céus, como prefere Mateus.

No discurso escatológico prevalece o gênero literário apocalíptico, o que o torna tão enigmático e provocativo. Por isso, é necessário compreendê-lo bem, para que sua mensagem de encorajamento e esperança não seja transformada em medo e terror. Esse discurso é composto pelos capítulos 24 e 25 de Mateus, mas a liturgia dominical faz uso apenas do capítulo 25, composto de três parábolas, das quais a primeira compreende o Evangelho de hoje: a parábola das dez virgens (25,1-13). As outras duas serão lidas nos dois próximos domingos.

Quase cinquenta anos separam a ressurreição de Jesus da redação do Evangelho segundo Mateus. Muitas coisas aconteceram nesse intervalo de tempo, como um esfriamento ou relaxamento na vida de fé dos cristãos. A comunidade mateana vivia uma situação de crise, tanto por causas externas quanto internas. As causas externas eram as perseguições da parte do judaísmo ortodoxo e do império romano; as causas internas eram o conflito entre os cristãos de origem judaica e aqueles de origem pagã e, principalmente, a queda do fervor nos cristãos que começavam a desanimar. O Evangelho segundo Mateus é, portanto, um conjunto de respostas a tudo isso.

No caso específico da parábola que hoje lemos na liturgia, essa é a resposta à crise de fé e de  identidade pela qual passava a comunidade, devido a diminuição no fervor de seus membros. Ora, tendo se passado já quase cinquenta anos da ressurreição, os cristãos não viam suas vidas melhorarem, pelo contrário, até pioravam devido às perseguições. O resultado disso era uma fé cada vez menos viva e sem esperança. Era preciso, portanto, reanimar, encorajar e despertar na comunidade a esperança e o ardor da fé inicial. Ao desânimo, o evangelista pede uma atitude de vigilância. A comunidade deve estar sempre pronta para encontrar-se com o Senhor a qualquer momento. Na verdade, segundo o evangelista, o melhor seria viver na certeza de que o Senhor nunca se ausentou, mas está sempre presente na comunidade. Isso exige solicitude, e é exatamente o que a parábola das dez virgens quer suscitar.

Por se tratar de uma parábola, não comentaremos versículo por versículo, mas apenas a sua mensagem central, embora seja necessário, mesmo assim, observar cuidadosamente algumas expressões particulares. Assim diz o texto em seu início: “O Reino dos Céus é como a história das dez virgens que pegaram suas lâmpadas e foram ao encontro do noivo” (v. 1). Essa é a última parábola do Evangelho em que o Reino dos Céus é comparado a uma realidade concreta conhecida do auditório de Jesus e da comunidade de Mateus. É uma parábola de alcance e interesse universais. A expressão “dez virgens” (em grego:  de,ka parqe,noij – déka parténois) evoca o universalismo da comunidade. Dez é um número que expressa totalidade, por ser a soma de dois números perfeitos: 7+3=10. Com esse pequeno detalhe, Jesus dá um salto de qualidade considerável em sua mensagem: o Reino dos Céus já extrapolou os limites de Israel, o qual seria representado pelo número doze.

A imagem do casamento não era novidade na linguagem de Jesus e nem no judaísmo. Desde o profeta Oséias, a relação entre Deus e seu povo é apresentada em linguagem matrimonial. O que Jesus faz é ampliar o alcance da imagem, cuja noiva-esposa deixa de ser Israel e passa a ser a humanidade inteiro. Por sinal, a parábola não fala da noiva; por ela, subentende-se toda a humanidade, uma vez que é o próprio Jesus o noivo-esposo.

Sem saber como se desenrolava uma festa de casamento no tempo de Jesus, corremos o risco de não compreender a parábola, imaginando que as dez virgens estavam disputando um único noivo. Por isso, tentemos compreender. Após um ano da primeira fase do casamento, a fase da promessa, o casamento era festejado e consumado. No dia marcado, o noivo ia com seus amigos até a casa da noiva. Em sua casa, a noiva reunia suas melhores amigas para esperar o noivo. Após a chegada do noivo, a noiva se despedia dos seus pais, deixava sua casa e ia para a casa do noivo, ao seu lado, onde acontecia a festa. Formava-se assim, o cortejo nupcial da casa da noiva para a casa do noivo. Isso deveria acontecer no início da noite, de modo que o cortejo era iluminado pelas lâmpadas que as moças amigas da noiva levavam.

Seria grande imprudência as moças deixarem faltar óleo para suas lâmpadas no cortejo, uma vez que uma festa de casamento começava a ser preparada com muita antecedência, cerca de um ano. Daí, Jesus faz a sua denúncia e alerta com a parábola, a partir dos distintos comportamentos das virgens: cinco eram imprevidentes e outras cinco eram previdentes. Essa distinção é típica da literatura sapiencial, bastante difusa no tempo de Jesus. O texto litúrgico não emprega os termos mais adequados para essa distinção: sensatas (em grego: mwrai. – morai) e insensatas (em grego: fro,nimoi– fronímoi). A insensatez das primeiras consiste em ter deixado o óleo acabar. A sensatez das segundas consiste em ter óleo suficiente.

A parábola se torna até surpreendente e difícil de ser interpretada, considerando a natureza dos personagens envolvidos. Na verdade, todos os personagens são passíveis de observações negativas, inclusive o noivo e as virgens ditas prudentes: o atraso do noivo poderia pôr em cheque a sua reputação perante a noiva e sua família (v. 5); a falta de solidariedade das virgens prudentes ao não compartilharem o óleo com as imprudentes (v. 9); a falta de perseverança das dez virgens, prudentes e imprudentes, pois todas elas acabaram cochilando (v. 5). Como se vê, não há méritos morais em nenhum dos personagens. Poderíamos até dizer que todos se nivelam por baixo.

Como o objetivo da parábola não é apresentar um padrão de comportamento moral adequado, identificamos pois o centro da sua mensagem: ter ou não ter óleo suficiente. A denúncia e alerta de Jesus consiste exatamente nesse detalhe. Muito tem se discutido nos estudos bíblicos a respeito do significado do óleo (em grego: e;laion – elaion) nessa parábola. É inegável que se trata de algo essencial, pois quem não tem ele fica fora do banquete e, portanto, do Reino (v. 11), e ao mesmo tempo intransferível, ou seja, pessoal (v. 9). Alguns já definiram o óleo como as boas obras, os carismas pessoais, os dons do Espírito Santo, interpretações que não são totalmente satisfatórias.

Acreditamos que a imagem do óleo se refere às bem-aventuranças, inclusive como chave de leitura de todo o Evangelho segundo Mateus, compreendendo-as como a responsabilidade pessoal de cada um na construção do Reino. Essa construção do Reino é um compromisso comunitário, por isso ninguém pode isentar-se da sua responsabilidade pessoal. Essa responsabilidade consiste em viver com seriedade o projeto de Jesus expresso nas bem-aventuranças. Viver as bem-aventuranças é, acima de tudo, fazer a vontade de Deus. A conclusão da parábola nos leva exatamente para o discurso da montanha, pouco após Jesus ter proclamado as bem-aventuranças: “Não é aquele que diz ‘Senhor, Senhor!’ que entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do Pai que está nos céus” (Mt 7,21). E a vontade do Pai não se faz em um momento apenas, mas em toda a vida. 

As cinco moças imprudentes que não alimentaram suficientemente suas lâmpadas com óleo representam aquelas pessoas que ao longo da vida não vivem as bem-aventuranças, imaginando que basta, de última hora, dizer “Senhor, Senhor!” para entrar no Reino. Tudo indica que na comunidade de Mateus havia muitas pessoas assim. Por isso, ele relembrou com muito cuidado as palavras de Jesus que pediam paciência, vigilância e perseverança: “Portanto, ficai vigiando, pois não sabeis qual será o dia nem a hora” (v. 13). Essa vigilância não significa longas vigílias de oração, mas uma vida cristã sadia, responsável e comprometida com o Reino. Enfim, é a vida segundo as bem-aventuranças que caracteriza a pessoa vigilante e prudente.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues, Mossoró-RN, 11/11/2017.





sábado, novembro 04, 2017

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a




O texto evangélico que a liturgia propõe para a solenidade de todos os santos é Mateus 5,1-12a. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido a repetição constante do termo grego maka,rioi – makárioi, cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados.
As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.
O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo ingênuo que tanto tem se difundido na Igreja Católica nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.
De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Na verdade, quem quer fazer da religião cristã o “ópio do povo”, começa pelas bem-aventuranças. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação.
Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido a ocorrência do termo grego maka,rioi – makárioi por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.
Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é maka,rioi – makárioi, o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em gregos, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo corresponde ao grego maka,rioi – makárioi em hebraico é  yrEÛv.a; – asherei, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças não passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.
Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem aventurança: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido a pior interpretação ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (ptwcoj – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.
O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego pneuma pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.
A segunda bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar.
Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se Ele dissesse: “não parem, continuem caminhando e lutando”. Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.
Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme Ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por Jesus entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.
Na quinta bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.
Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.
A sétima bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra ~Al±v' – shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.
A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!
Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro e na sobreposição de uns sobre os demais. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Não consideramos essa afirmação como uma nova bem-aventurança, mas como um reforço e síntese das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como Ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como Ele.
Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho; não para fugir da realidade, mas para transformá-la.
Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.



Mossoró-RN, 04/11/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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