Chegamos
ao trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, o qual
vem intitulado como Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.
Se trata de um título, a princípio, perigoso, uma vez que a tendência é, de
imediato, imaginá-lo como um rei semelhante aos reis deste mundo e atribuir-lhe
trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado em diversas
imagens, escondendo a sua principal característica: o amor serviçal.
Se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem
forte, potente, sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando,
julgando e ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e
subjugando inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do
seu tempo e estamos rejeitando Jesus de Nazaré, o servo de todos, aquele que
veio para servir e não para ser servido. Infelizmente, boa parte do
cristianismo acabou caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe traços de
rei que não lhe são próprios.
Focaremos a nossa reflexão no texto evangélico que a
liturgia propõe para a solenidade neste ano: Mt 25,31-46 e não no título
litúrgico da festa. Trata-se da conclusão do último discurso de Jesus, o
chamado discurso escatológico, um trecho normalmente conhecido como o
“julgamento final”. É um texto exclusivo do Evangelho segundo Mateus, com
fortes traços apocalípticos, o que pode dificultar a sua compreensão.
O evangelho apresenta uma cena de juízo conduzida pelo
“Filho do Homem” em forma de parábola. É importante recordar que o tema
principal do discurso escatológico é a vigilância, ou seja, a espera atenta
pelo desfecho final da história; por isso, o texto inicia com essa expressão: “Quando
vier o Filho do Homem em sua glória” (v. 31a). O importante não é a forma
como virá esse Filho do Homem, mas a sua atitude: “reunirá diante dele todos
os povos da terra e separará uns dos outros, assim como o pastor separa as
ovelhas dos cabritos” (v. 32). Aqui está a universalidade do juízo e do
alcance da mensagem de Jesus: todos os povos são contemplados, inclusive
Israel, eliminando qualquer privilégio étnico e racial.
A imagem do pastor é usada mais uma vez, pois era muito
acessível aos interlocutores de Jesus e à comunidade de Mateus. De fato, era
frequente que o mesmo pastor cuidasse de rebanhos de ovinos e caprinos juntos,
e no início da noite sempre era necessário separá-los, devido a questões
climáticas e também para facilitar o acasalamento, tendo em vista a reprodução.
Certamente, os primeiros ouvintes e leitores da comunidade de Mateus
compreendiam muito bem isso.
Ao reunir “todos os povos” (em grego: pánta tá
étne), ou seja, toda a humanidade, o Filho do Homem irá fazer a separação. O
critério da separação é o mais surpreendente: ao invés de considerar
distintivos religiosos, como bom e mau, puro e impuro, digno e indigno, santo e
pecador, cumpridor das prescrições e não cumpridor, o critério utilizado por
Jesus é o que alguém fez ou deixou de fazer aos “pequeninos” ou “menores” dos
irmãos. Não é difícil compreender a quem Jesus se refere como os “menores dos
irmãos”, embora algumas correntes de estudos tentem distorcer a mensagem, afirmando
que esses menores são apenas os discípulos, os quais foram enviados a todas as
nações (cf. Mt 28,16-20). Essa interpretação não se sustenta se considerarmos o
Evangelho em seu conjunto.
A atenção aos “menores dos irmãos” é o critério de participação na vida
definitiva, ou seja, o “reino que o Pai preparou desde a criação do mundo”
(v. 34). Em Mateus, a mensagem de Jesus foi condensada nos cinco discursos, e é
importante perceber o nexo que une esses discursos: o primeiro, o da montanha,
foi iniciado com as bem-aventuranças, nas quais Jesus introduzia a sua opção
preferencial pelos marginalizados e sofredores (pobres, aflitos, mansos,
perseguidos... cf. Mt 5,1-12); no último discurso, o texto de hoje, essa opção
é reforçada e confirmada. Podemos dizer que, do começo ao fim, a mensagem de
Jesus tem a atenção aos “menores dos irmãos”, ou seja, toda a sua vida foi
marcada por uma clara opção por aqueles que são desprezados pela sociedade; em
linguagem eclesial já afirmada entre nós, podemos dizer que a opção de Jesus é opção preferencial pelos pobres.
A partir de seis situações (ações) concretas, o evangelho de hoje
mostra como alguém pode demonstrar ser cristão ou não: dar comida aos
famintos, dar água aos sedentos, acolher os estrangeiros, vestir os nus, cuidar
dos enfermos e visitar os presos. Não é à toa que Mateus elenca seis
atitudes. O número seis diz da incompletude, da fragilidade da vida, da
imperfeição. Elencar seis atitudes em resposta a seis tipos de necessidades
significa que sempre haverá o que fazer. O número sete, perfeição, não foi
atingido pois não há completude nem perfeição na história, mas falta e
necessidade, que só se supre com o amor e a acolhida do outro. Assim, Mateus
abre o leque dos necessitados, reconhecendo que todo ser humano é necessitado.
O ser humano é um ser carente, não só de afetos, mas de casa, comida, educação,
presença, diálogo, lazer etc. As seis atitudes de acolhida citadas por Mateus
foram chamadas de “obras de misericórdia” pelo cristianismo, como de fato são.
Mas a fé católica colocou-as como conselhos a serem acatados enquanto elas são,
na verdade, o único critério de pertença à comunidade do Reino, como ensina o
evangelho. Para saber se uma pessoa entrou na dinâmica do Reino ou não, basta
saber se ela entendeu que os outros são necessitados de seu amor, especialmente
os mais fragilizados, aqueles cuja falta dos bens básicos é notadamente visível.
Por isso, é importante reforçar aqui: estas práticas não são alguns critérios,
mas são os únicos critérios válidos para credenciar a pertença ou não de alguém
à comunidade do Reino.
Notemos que o senhor não faz cobranças acerca da ortodoxia da fé, não acusa ninguém de não professar a fé conforme a
reta doutrina, de não frequentar a reunião comunitária. O critério de julgamento
é a ortopraxis, ou seja, a vivência
do amor, a acolhida do outro. A religião cristã é a religião do amor, pois o
Deus de Jesus Cristo é amor. Logo, amar é exigência se tornar de fato seguidor
desse rei-pastor: amar e dar a vida pelas ovelhas como ele mesmo fez. Esses são
os benditos do Pai que recebem o convite para a comunhão com ele. O Filho do
Homem, enquanto senhor da história, conduzirá o julgamento com um diálogo
bastante franco e sincero, iniciado com um convite: “Vinde benditos de meu
Pai!” (v. 34a). Em seguida, são dadas as razões pelas quais são chamados de
benditos do Pai: “Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava
com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu
estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na
prisão e fostes me visitar” (vv. 35-36). Chama a atenção a surpresa dos que
são tratados como benditos: eles perguntam quando viram o senhor naquelas
situações e o serviram. Essa surpresa é registrada pelo narrador para reforçar
o caráter desinteressado e gratuito do amor transformado em serviço: fazer o
bem, sem olhar a quem! A surpresa aumenta ainda mais quando o senhor diz: “todas
as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o
fizestes!” (v. 40). Famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e presos
sintetizam todas as categorias de marginalizados. Jesus se identifica a tal
ponto com tais categorias, chamando-os de irmãos, de seus iguais.
O diálogo com o segundo grupo se desenvolve a partir da mesma dinâmica,
embora com desfecho contrário, a começar pelo convite inicial: “Afastai-vos
de mim, malditos” (v. 41). Da mesma forma, o rei dá as razões pelas quais
esses são chamados de malditos: não ter feito aquilo que fizeram os primeiros.
Também esses recebem a sentença do rei com surpresa: “Senhor, quando foi que
te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não
te servimos?” (v. 44). A resposta do rei só faz aumentar a surpresa: “Todas
as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o
fizestes!” (v. 44). Assim como o terceiro empregado da parábola dos
talentos, a sentença de condenação não é consequência de maldades cometidas,
mas de omissões. O que há de mais sério na vida do ser humano, e que pode levá-lo
à privação da vida em plenitude, é a omissão, a indiferença ao sofrimento do
próximo, a carência de ações praticadas em favor dos menos favorecidos.
Como conclusão do discurso escatológico, o texto de hoje reforça a
vigilância e dá um novo sentido a ela: não se deve ficar esperando pelo
encontro com o Senhor na consumação dos tempos, em um tempo remoto; é preciso
ter capacidade, maturidade e amor para encontrar-se com Ele todos os dias,
fazendo o bem àqueles nos quais o Senhor está presente, já elencados repetidas
vezes aqui (faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente e preso). A parábola é um
alerta para a comunidade de Mateus, tão ansiosa pelo retorno do Senhor, mas
incapaz de ver o Senhor já presente nos mais necessitados. Certamente, esse
alerta continua válido também para os cristãos de hoje.
O cristão verdadeiro encontra-se com o Senhor todos os dias, não tem
medo nem anseia por um encontro final e decisivo, mas sabe que Ele já está aqui
conosco. A presença de Jesus, por sinal, é o fio condutor do Evangelho segundo
Mateus: do anúncio a José (Mt 1,23) ao envio dos discípulos após a
ressurreição: “Eis que eu estou convosco todos os dias” (28,20).
Portanto, não há razões para a comunidade perguntar quando virá o Senhor; o
importante é perceber a sua presença no cotidiano, nas situações concretas da
vida.
Todos foram pegos de surpresa: tanto os considerados benditos quanto os
ditos “malditos”, pois ou fizeram ou deixaram de fazer o bem. O bem a ser
praticado deve ser completamente desinteressado. O Senhor não marca nem rotula
nenhum daqueles nos quais Ele deve ser reconhecido. Basta reconhecer o outro
como ser humano, imagem e semelhança do criador; essa é a única marca e não é
impressa por nenhuma religião, mas pelo criador de todas as coisas. Ao Senhor,
interessa o bem praticado, o serviço doado, o amor praticado! Reconhecer a
realeza de Jesus sobre o universo é reconhecê-lo em cada irmão e irmã,
sobretudo nos mais necessitados.
Mossoró-RN, 25/11/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues