sábado, janeiro 26, 2019

REFLEXÃO PARA O TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 1,1-4; 4,14-21 (ANO C)




Neste terceiro domingo do tempo comum, começamos, de fato, a leitura sequenciada do Evangelho segundo Lucas na liturgia dominical. O texto proposto – Lucas 1,1-4; 4,14-21 – contém duas partes: o prólogo do Evangelho (1,1-4) e o primeiro trecho do discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), inaugurando a sua vida pública e pregação. Embora separadas por três capítulos, é inegável a unidade entre as duas partes do evangelho de hoje, no contexto da liturgia, principalmente. Como o “Evangelho da Infância” (cf. Lc 1,5 – 2,52) e os relatos da missão de João Batista e do batismo de Jesus (cf. Lc 3) já foram lidos durante os tempos do advento e do natal, e o episódio das tentações será lido na quaresma (cf. Lc 4,1-13), é justo que o evangelho de hoje tenha essa composição (1,1-4; 14-21).

Lucas é o único evangelista que abre a sua obra com um prólogo literário; vale lembrar que o prólogo de João (cf. Jo 1,1-18), é exclusivamente teológico. Um prólogo é o conjunto de considerações iniciais que antecedem o texto propriamente. Literalmente, significa “antes das palavras” (em grego προλογος = prólogos) ou seja, é o que antecede o escrito, e visa anunciar o plano da obra: tema, método, destinatário e objetivos, de forma breve e objetiva. Era um elemento fundamental na literatura greco-romana da antiguidade. Lucas escreve seu evangelho cerca de cinquenta anos após a ressurreição de Jesus, quando já não havia mais nenhum apóstolo vivo, as testemunhas autênticas dos acontecimentos narrados. Ele reconhece não ser o primeiro a escrever sobre Jesus: “Muitas pessoas já tentarem escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra” (1,1-2). Além das tradições orais que circulavam nas comunidades, nessa época já haviam sido escritos o Evangelho segundo Marcos, mais concentrado nas ações de Jesus, e um outro, de origem desconhecida, mais focado nas palavras de Jesus, ambos utilizados por Mateus e por Lucas.  

Lucas não se dá por satisfeito com o material existente escrito por outros, e resolve também escrever o seu: “Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo” (1,3). Como bom conhecedor das necessidades do seu tempo e dos seus leitores futuros, ele reconhece a necessidade de apresentar um escrito mais consistente, organizado e ordenado, não para contrapor, mas para reforçar o que já era utilizado na catequese da suas comunidades, personificadas pelo desconhecido destinatário, Teófilo. Certamente, novas dúvidas surgiam a respeito de Jesus. O que era anunciado nas comunidades, embora sólido, pois fora transmitido pelos apóstolos, as “testemunhas oculares”, já não era mais suficiente. Era necessário, por isso, uma mensagem mais consistente para Teófilo “verificar a solidez dos ensinamentos que havia recebido” (1,4). É isso o que motiva Lucas a escrever a sua obra; a maior prova da sua consistência é a continuidade em Atos dos Apóstolos: não basta dizer como Jesus viveu e o que ele fez, mas também mostrar como as primeiras comunidades viveram a sua mensagem após a ressurreição e ascensão.

A propósito de Teófilo, muito tem se discutido a seu respeito; devido ao uso da forma de tratamento “excelentíssimo ou ilustre (em grego: κρατιστος = kratistós), cogitou-se que Teófilo fosse um alto funcionário do império romano, convertido ao cristianismo. Considerando o nome “Teófilo” (em grego: Θεοφιλος = Theófilos), cujo significado é “amigo de Deus” em grego, é mais provável que seja um personagem fictício, no qual o evangelista projeta o leitor ideal da sua obra, ao mesmo tempo em que faz uma crítica velada à filosofia, tão difusa no mundo greco-romano. Ora, filosofia significa “amor ou amizade à sabedoria, ao saber”, e filósofo (em grego: φιλοσοφος = filósofo) significa “amigo da sabedoria”. A verdadeira e necessária amizade para Lucas, portanto, não é com a sabedora grega, tão difusa na época, mas com o Deus revelado em Jesus. Por isso, o objetivo principal de sua obra é que cada leitor e leitora se tornem autênticos(a) “Teófilos”, ou seja, amigos(a) de Deus.

Na segunda parte do evangelho de hoje, nós temos a inauguração solene do ministério de Jesus na sinagoga de Nazaré, em dia de sábado. Mas, antes disso, o evangelho nos oferece outras informações importantes: “Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito” (4,14a). Ora, no batismo, Jesus fora confirmado como portador do Espírito Santo (cf. 3,21-22); o mesmo Espírito pelo qual fora concebido no ventre de Maria (cf. 1,35); após o batismo, fora conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde fora tentado pelo diabo (cf. 4,1-13). Foi, portanto, do deserto, após as tentações, que Jesus voltou para a Galileia, a região mais pobre e explorada de Israel, onde tinha se criado, e onde inicia sua vida pública. O mais importante aqui, para o evangelista, é mostrar que tudo o que Jesus faz e para onde vai, é motivado pelo Espírito Santo. Embora o episódio da sinagoga de Nazaré seja o primeiro descrito após o batismo e as tentações, não foi a primeira pregação da vida de Jesus, pois diz o evangelista que sua fama já tinha se espalhado: “e sua fama espalhou-se por toda a redondeza” (cf. 4,14b), pois “Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam” (4,15). Certamente, havia grande expectativa para a pregação de Jesus em Nazaré, onde vivia sua família.

Assim, diz o texto que “Ele veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura” (4,16). O sábado era o dia de culto por excelência para o povo judeu. O culto na sinagoga acontecia logo pela manhã, pois era grande a ânsia do judeu para escutar a Lei, os Profetas e receber as bênçãos de Deus. Porém, o dia santo para o seu povo, será o dia preferido de Jesus para criar polêmicas com o seus conterrâneos e irmãos de religião, como mostram os evangelhos e, em especial, esse, como veremos na liturgia do próximo domingo (cf. 4,21-30). Jesus inicia sua pregação “na sinagoga em dia de sábado”, como também farão os seus discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos (cf. At 13,14; 17,1-2; etc). Porém, é na sinagoga, o lugar de culto, onde a sua mensagem será mais rejeitada, conforme acontecerá também com os discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos. Assim, o evangelista confirma Israel como destinatário primeiro da salvação, ao mesmo tempo em que justifica a abertura aos pagãos: Israel, ou seja, os judeus, majoritariamente, rejeitam, se fecham à Boa Nova de Jesus.

O culto da sinagoga iniciava com a proclamação do “Shemá” (“Escuta, ó Israel: Iahweh nosso Deus...” cf. Dt 6,4), a oração de Israel, por excelência, e depois era feita a leitura de um texto da Lei, o ponto alto da liturgia e, em seguida, lia-se um texto dos profetas e se fazia uma pequena homilia. Embora a estrutura fosse fixa, o seu desenvolvimento era bastante flexível: para a leitura dos textos proféticos e a homilia, priorizava-se pessoas de fora ou filhos da terra que moravam longe, mas se encontravam no povoado de passagem; isso se dava, sobretudo, nos pequenos povoados, onde a população era mais rude e carente de novidades, como Nazaré, por exemplo; após o homilia, o pregador podia até perguntar se alguém na assembleia teria algo a acrescentar (cf. At 13,15). Até então, Jesus era um filho ilustre: sua fama tinha se espalhado (cf. 4,14), mas os seus conterrâneos nazarenos ainda não conheciam sua pregação.

Como havia muita expectativa entre os conterrâneos e parentes de Jesus para ouvi-lo, deram-lhe a oportunidade de fazer a leitura e a pregação naquele sábado: “Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor” (4,17-19). O texto citado por Lucas como lido por Jesus é Isaías 61,1-2, um anúncio de salvação e consolo ao povo recém-libertado do cativeiro da Babilônia. O primeiro objetivo do evangelista, aqui, é apresentar Jesus como cumprimento e intérprete autêntico das Escrituras. À luz das Sagradas Escrituras, Jesus confirma sua vocação e missão de ungido, o messias de Deus para libertar definitivamente o seu povo.

A Boa Nova de Jesus está em continuidade com o anúncio da salvação feito pelos antigos profetas de Israel. O segundo objetivo é apresentar, de modo sintético, o programa de Jesus: o que ele veio anunciar e quais são os seus destinatários primeiros. O evangelista alerta sua comunidade a não perder de vista esse aspecto: os primeiros destinatários da mensagem de Jesus são: os pobres, os prisioneiros, os cegos e os oprimidos; essa lista representa os marginalizados e necessitados de um modo geral; é a essas pessoas que a comunidade cristã deve olhar e dar atenção, em primeiro lugar. A atenção a essas pessoas é o critério de verificação se uma comunidade eclesial é fiel ou não ao programa de Jesus. Ora, a mensagem de Jesus comporta mudanças radicais, enfatizadas no texto pelas imagens da “libertação dos cativos e recuperação da vista aos cegos”; por isso, não é uma doutrina, nem um conjunto de fórmulas, ritos e normas, mas um programa de vida que comporta ações transformadoras.

O evangelista Lucas valoriza muito os pequenos os detalhes e gestos de seus personagens, sobretudo de Jesus, através dos quais enriquece a sua teologia. Por isso, observa que, “Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele” (4,20). Sentar-se, nesse contexto, é o gesto de quem tem autoridade para ensinar. O gesto de fechar o livro é explicado pelo versículo seguinte, quando começa a pregação: “Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (4,21); significa que a Escritura se cumpriu, o Antigo Testamento se concluiu e, de agora em diante, a comunidade cristã tem um único horizonte: Jesus e o seu Evangelho.

É para Jesus que a comunidade deve olhar, ou seja, deve orientar-se somente pela sua mensagem. O “hoje”, termo tão caro para Lucas, significa a urgência do Reino de Deus e da salvação que esse comporta. “Os pobres, cativos, cegos e oprimidos” não podem mais esperar. É necessário, portanto, “fixar os olhos” atentamente em Jesus, ou seja, tê-lo como única fonte de vida, configurar-se a ele e ser também sinal e instrumento de “libertação” e “recuperação de vista” para os “pobres, cativos, cegos e oprimidos” de hoje e de sempre.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, janeiro 19, 2019

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 2,1-11 (ANO C)





A liturgia do segundo domingo do tempo comum, independente do ano, sempre propõe um texto do Evangelho segundo João (Ano A: Jo 1,29-34; Ano B: Jo 1,35-42). Neste ano C, o texto proposto é Jo 2,1-11, a narrativa do episódio conhecido como as “Bodas de Caná”. Ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua da vida pública de Jesus, desde os seus primeiros passos na Galileia até o seu final em Jerusalém. Recorre-se, portanto, ao Evangelho segundo João no segundo domingo, como estratégia didático-catequética, porque é esse o evangelho que melhor introduz a vida pública de Jesus, através da chamada “semana inaugural”, iniciada com o envio de uma comitiva pelas autoridades de Jerusalém para fiscalizar a atividade do Batista (cf. Jo 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná, evangelho de hoje.

Embora simples do ponto de vista narrativo (uma história com trama, cenário e personagens bem definidos), o texto apresenta uma grande complexidade teológica. Por isso, preferiu-se, ao longo dos séculos, uma interpretação quase literal, limitada a fundamentar a intercessão de Maria e, assim, fomentar a devoção. Tem sido grande o esforço da exegese atual para restituir ao texto o seu valor cristológico, praticamente ofuscado pela leitura devocionista aplicada ao longo do tempo. O primeiro passo para isso é situar o texto no seu devido contexto. Como acenamos acima, João introduz a vida pública de Jesus com episódios distribuídos ao longo de uma chamada “semana inaugural”; o ponto alto dessa semana é o episódio das bodas de Caná, o qual funciona como introdução e porta de entrada para todo o Evangelho. Tudo o que será desenvolvido ao longo do Evangelho, portanto, serão desdobramentos desse episódio.

O texto inicia com um dado importante, omitido pela liturgia: “No terceiro dia”, substituído pela genérica e desnecessária expressão “Naquele tempo”. Embora seja já o dia conclusivo da semana, o sexto dia, o evangelista omite alguns dias de propósito, para que este episódio se realize no “terceiro dia”. Ora, o último episódio narrado tinha sido o encontro de Jesus com Filipe e Natanael (cf. Jo 1,43-51); as bodas de Caná, portanto, acontecem no “terceiro dia” após esse episódio. Mais que um dado cronológico, a expressão “terceiro dia” é um indicativo teológico: significa uma manifestação especial de Deus; de imediato, pensamos na ressurreição de Jesus, o maior dos acontecimentos ao “terceiro dia”, mas há outros episódios importantes na Bíblia que também aconteceram no “terceiro dia”: foi no “terceiro dia” que Abraão subiu à montanha para sacrificar Isaac, provando a sua fé (cf. Gn 22,4), e foi no “terceiro dia” que Deus manifestou a sua glória no Sinai e entregou a Lei a Moisés (cf. Ex 19,16ss). Ao apresentar o primeiro sinal de Jesus ao “terceiro dia”, João sinaliza que toda a sua vida será manifestação e intervenção de Deus na história, cujo ápice será a ressurreição, também no “terceiro dia”. Portanto, “terceiro dia” é uma expressão teológica que indica o agir de Deus.

Eis, então, o que houve no “terceiro dia”: “um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava presente” (v. 1). As festas de casamento, na cultura semita, eram esperadas com muita ansiedade; normalmente, duravam uma semana, mas a depender das condições dos noivos, poderia se estender até por duas semanas. Além do seu sentido social, o matrimônio servia como símbolo da relação entre Deus e o seu povo, Israel, desde o profeta Oséias (século VIII a.C.). Com essa festa, portanto, o evangelista quer mostrar a situação da aliança, como o povo de Israel estava se relacionando com Deus, e a necessidade urgente de uma intervenção. A mãe de Jesus não é mencionada pelo seu nome próprio nesse episódio, porque ela é uma personagem corporativa, ou seja, representa uma comunidade, e não apenas a síngula pessoa de Maria. Quando os profetas denunciavam as injustiças e a corrupção reinantes em Israel, mencionavam também um “resto” fiel que veria a realização das promessas de Deus. A mãe de Jesus é, nesse relato, a imagem do resto fiel de Israel que nunca se distanciou de Deus. Por isso, ela já “estava presente” no casamento, porque fazia parte daquela comunidade.

Ao contrário da mãe que já “estava presente”, o evangelista diz que “Jesus e os discípulos foram convidados para o casamento” (v. 2); embora sutilmente, o evangelista faz uma distinção: Jesus e os discípulos foram à festa, mas não faziam parte. Ao longo de todo o Evangelho, João mostrará como Israel não aceitou Jesus, tratando-o como um estranho, inclusive no prólogo já tinha antecipado: “Veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Porém, para conhecer as reais necessidades e problemas é necessário estar inserido e fazer parte da realidade; tampouco basta conhecer as necessidades e os problemas; é preciso tomar iniciativa e buscar soluções, como fez a mãe: “Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho” (v. 3). A mãe de Jesus, como imagem do Israel fiel, é a mais legítima conhecedora das carências e falhas na relação de seu povo com Deus; ela não faz um pedido a Jesus, como insinuam as interpretações devocionistas. Ela constata uma situação e faz uma denúncia: a falta de vinho nessa festa de casamento é, na verdade, a falta de amor e de alegria na antiga aliança. A mãe constata que Israel falhou em sua relação com Deus e, portanto, a aliança fracassou. O vinho era essencial numa festa e, na Bíblia, é sinal de alegria, amor e felicidade.

A mãe de Jesus é a primeira a perceber a esterilidade da relação de Israel com Deus. Ora, o povo de Israel imaginava que entrava em comunhão com Deus através de sacrifícios, purificações e ritos, independente da prática da justiça e da conduta ética, sobretudo na relação com o próximo; praticava-se a religião do mérito com muitas ofertas e sacrifícios. Foi isso que a mãe de Jesus constatou ao lhe dizer que não havia mais vinho na festa. Não havia mais amor e alegria na maneira do povo relacionar-se com Deus. Ela percebeu também que somente Jesus poderia contornar aquela situação. A proposta de vida de Jesus, fundamentada no amor, era a única saída para Israel reencontrar-se consigo mesmo e com Deus, e continua sendo, para toda a humanidade. Como a mãe, nesse episódio, representa toda a comunidade do resto fiel de Israel, a sua relação com Jesus carrega uma certa formalidade: “Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou” (v. 4). Jesus não a chama de mãe, apenas de mulher, e esclarece que não depende somente dele, ao dizer que a sua hora ainda não chegou; depende do Pai, sobretudo.

Mesmo sem receber uma resposta positiva, a mãe confia na providência, como modelo de crente. Como conhecedora da situação, ela vê como urgente a intervenção de Deus, através de Jesus; por isso, ordenou aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser” (v. 5). Ora, a antiga aliança foi concluída com a resposta solene do povo a Moisés: “Sim, nós faremos tudo o que Iahweh disse!” (Ex 24,7). A história mostra que Israel falhou e não fez a vontade de Deus. A antiga aliança fracassou exatamente porque o povo não cumpriu essa promessa, e a mãe de Jesus sabia disso; por isso a recomendação para fazer o que ele disser, de agora em diante. O evangelista prossegue denunciando ainda mais a esterilidade da religião de Israel: “Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros” (v. 6). Essas talhas (jarros) de pedra simbolizam a lei; estavam vazias; através delas, os judeus faziam ritos de purificação, mas não se encontravam verdadeiramente com Deus.

Jesus se solidariza com seu povo: nem tudo está perdido. Na figura da mãe, ele vê um sinal de esperança no seu povo; por isso, toma a iniciativa: “Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca” (v. 7). “Os que estavam servindo” (em grego: διακονος = diáconos) prefiguram a comunidade ideal de discípulos e discípulas que devem agir conforme “tudo o que Jesus disser”; são esses que devem preencher o vazio de amor em Israel e, posteriormente, em toda a humanidade, enchendo as talhas até a boca, quer dizer, servindo e amando sem medidas. Jesus dá mais uma ordem: “Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram” (v. 8). O mestre-sala era o responsável pela organização e coordenação da festa; era ele quem deveria vigiar e ficar atento se estava faltando alguma coisa. Porém, negligenciou completamente o seu papel, não percebeu que o vinho tinha acabado. Nesse episódio, ele representa os anciãos e sacerdotes (a classe dirigente de Israel) que tinha se distanciado de suas responsabilidades, não conheciam mais as necessidades do povo, estavam alheios à vida cotidiana das pessoas.

 Distante da realidade, o mestre-sala não sabia sequer que o vinho tinha acabado, menos ainda de onde tinha surgido o vinho novo: “O mestre-sala experimentou a água que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois era eles que tinham tirado a água” (v. 9); porém, ficou surpreso com o seu sabor:  “O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v. 10). Aqui, o evangelista ironiza e denuncia o distanciamento dos chefes de Israel em relação ao cotidiano das pessoas. Mesmo sem conhecer a origem, o mestre-sala reconhece a qualidade do vinho. Pela primeira vez no relato, o evangelista faz referência ao noivo, quem deveria ser o verdadeiro protagonista da festa. Esse noivo é o próprio Deus; a missão de Jesus, fornecendo amor em abundância, representado pelo vinho, é reatar os laços entre o Deus, o noivo-esposo, e a humanidade inteira, a noiva-esposa.

Como esse episódio é a verdadeira porta de entrada de todo o Evangelho segundo João, esse “este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele” (v. 11). Um sinal, como sabemos, não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade muito mais profunda. O sinal da mudança da água em vinho preconiza muitas transformações que Jesus irá fazer e propor ao longo de todo o evangelho. A principal transformação, a primeira e mais necessária, diz respeito à maneira de relacionar-se com Deus. De uma relação servil e ritualista, ele nos convida a uma relação de amor, cuja imagem mais visível e clara é a do matrimônio, pois pressupõe um amor recíproco, com liberdade e confiança. O vinho novo, de qualidade superior, representa essa nova relação. É nisso que a sua glória se manifesta, e o que fortalece a fé.

Para ser autenticamente discípulo e discípula é necessário ser como a mãe e os servidores, ao mesmo tempo: perceber as reais necessidades do próximo, tomar iniciativas concretas e fazer tudo o que Jesus disser. A abundância do vinho, imagem do amor, depende unicamente da disposição de fazer o que Jesus disse.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, janeiro 12, 2019

REFLEXÃO PARA A FESTA BATISMO DO SENHOR – LUCAS 3,15-16.21-22 (ANO C)




Celebramos, neste domingo, a festa do Batismo do Senhor, concluindo o tempo do natal. O evangelho proposto é Lc 3,15-16.21-22.  O batismo, conforme relatam os evangelhos, é um dos episódios da vida de Jesus que os estudiosos mais consideram como um fato histórico, um evento real. Contribui para isso o fato de ser um dos poucos acontecimentos presente nos quatro evangelhos (explicitamente em Mateus: 3,13-17, Marcos: 1,9-11, e Lucas: 3,21-22; e implicitamente em João: 1,19-34). Além da pluralidade literária, o que mais se tem levado em conta ao aceitar o batismo de Jesus como um fato histórico são os problemas de interpretação desse evento desde a Igreja primitiva. Se não se tratasse de um evento concreto e importante da vida de Jesus, certamente os evangelistas teriam evitado tratá-lo em seus respectivos escritos. Quais são esses problemas? Ora, o batismo poderia levar as pessoas, inclusive muitos teólogos, a imaginar que Jesus fosse também necessitado de conversão, como os pecadores, e um homem inferior a João; essas interpretações aconteceram, de fato, desde os primórdios, inclusive na comunidade do evangelista Lucas, a primeira destinatária do evangelho de hoje.

O fato de estar presente nos quatro evangelhos – de modo explícito nos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e implícito em João – não significa que os evangelistas narraram o batismo de modo igual; cada um narrou à sua maneira, conforme as informações recebidas de suas fontes e as necessidades de suas respectivas comunidades. A pregação de João estava gozando de um grande êxito (cf. Lc 3,1-14); ele pregava um batismo de conversão (cf. v. 3) e proponha um jeito novo de viver, incentivando o povo a produzir frutos (cf. v. 8), já que a religião judaica se encontrava em plena esterilidade, com a decadência ética, moral e espiritual dos dirigentes do templo de Jerusalém. A mensagem de João foi além do esperado: até mesmo cobradores de impostos e soldados, pessoas abomináveis para o judaísmo da época, se interessaram pela sua mensagem (cf. vv. 12-14). A pregação de João, portanto, sinalizava que um novo tempo estava surgindo.

O povo vivia sufocado pela dupla exploração: do império romano e do templo de Jerusalém; Roma cobrava impostos em excesso e o templo exigia ofertas e dízimos também em excesso, em nome de Deus. Por isso, a expectativa pela vinda do messias libertador aumentava cada vez mais. Dessa expectativa do povo, muitos se aproveitavam, se passando pelo messias, para roubar e explorar ainda mais. Por isso, as dúvidas em relação a João. O povo já estava certo de que ele era, realmente, um enviado de Deus, imaginando até que já fosse o messias, como inicia o evangelho de hoje: “O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias” (v. 15). Porém, João tinha plena consciência do seu papel e da sua missão. De acordo com o evangelista, ele mesmo tratou de esclarecer que não era o messias: “Por isso, João declarou a todos: Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Eles vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (v. 16). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós; o próprio Lucas registra, em seu outro livro (os Atos dos Apóstolos) que, mesmo quando João não era mais confundido com o messias, o seu batismo continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (cf. At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção, usando algumas imagens.

Na distinção entre o seu batismo e o que Jesus iria inaugurar depois, João esclarece a natureza do seu: batiza com água, como um sinal externo de purificação e penitência; a água não penetra no íntimo da pessoa; embora importante, permanece na exterioridade. Por isso, é necessário que venha “aquele que é mais forte” para batizar “no Espírito Santo e no fogo”; assim, o batismo de Jesus, praticado pelos comunidades cristãs, inclusive a do evangelista, terá uma outra dimensão. “No Espírito Santo” significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa e realmente transforma, como o efeito do fogo. Embora o fogo seja também um elemento externo, usado nos ritos cristãos posteriores (junto com a água), possui uma força transformadora mais forte que a água. Se ambos os batismos permanecessem no plano simbólico, o de Jesus ainda seria superior, considerando o efeito visível do fogo. A verdadeira distinção entre os dois batismos, no entanto, está no conferimento do Espírito Santo, e esse só pode ser conferido por Aquele no qual o Espírito Santo realmente desceu, como mostra a sequência do texto de hoje.

Com a expressão Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias”, João está fazendo alusão a Israel (e a humanidade inteira) como a esposa e Jesus como o noivo que vem ao seu encontro; por isso, além de um gesto de humildade, por reconhecer o seu papel, a expressão também contém um alto teor teológico. Aqui, ele cita a lei judaica do levirato: o gesto de tirar a sandália era um rito que significava apropriar-se do direito de tomar a mulher viúva como esposa, para lhe dar descendência (cf. Dt 25,5-10; Rt 3,5-11). Ora, quando uma mulher ficava viúva sem filhos, um de seus cunhados ou outra pessoa do clã, conforme a ordem de idade, tinha o dever e o direito de tomá-la como esposa, para gerar descendência com ela; em caso de recusa ou de negociação, a passagem desse direito para um outro cunhado ou pessoa próxima, era feita com o rito do “descalçamento”: o novo pretendente desamarrava as sandálias do titular, assumindo o direito de casar-se com aquela mulher. Assim, João deixa claro que não é ele o esposo, porque essa missão não lhe compete. O direito de fecundar Israel é exclusivo de Jesus, para tornar novamente fértil aquela esposa explorada e tornada estéril, como uma viúva, pela elite sacerdotal de Jerusalém e pelo poder romano.

Infelizmente, a liturgia de hoje salta alguns versículos (vv. 17-20), privando-nos de uma informação importante para compreender o batismo de Jesus no contexto da catequese de Lucas: a prisão de João Batista (cf. vv. 19-20). Para combater equívocos e confusões a respeito dos papéis de João e Jesus, e os efeitos de seus respectivos batismos, Lucas faz questão de tirar João de cena para poder colocar Jesus em evidência; por isso, antes de apresentar Jesus indo ao batismo, ele diz que João foi preso; os discípulos de João continuaram batizando, mesmo após a sua prisão. A obra toda de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) tem as características de uma peça de teatro com as cenas e os personagens bem delimitados. Nessa engrenagem, ele nunca coloca Jesus e João na mesma cena, exceto na visitação, quando ambos ainda estavam nos ventres de suas respectivas mães, Maria e Isabel (cf. Lc 1,39-56); tudo isso para deixar claro à sua comunidade que, embora contemporâneos, eles fazem parte de tempos diferentes no conjunto da história da salvação, como afirmará mais na frente: “A lei e os profetas até João! Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus” (Lc 16,16). Tudo isso reflete o cuidado do evangelista com a catequese da sua comunidade, para não confundir João com Jesus. João é um personagem da antiga aliança, embora faça parte do processo de transição para a nova aliança. Em outras palavras, para Lucas, ele ainda faz parte do Antigo Testamento, como o último representante da lei e dos profetas.

Na continuação do texto temos a confirmação do batismo de Jesus: “Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo. E, enquanto rezava, o céu se abriu” (v. 21). É importante a forma como passa essa informação: Jesus está junto com o povo, não se separa. O povo estava lá por necessidade de conversão e de sentido para a vida; Jesus não tinha necessidade disso. No entanto, por solidariedade, ele se junta a esse povo; com isso, o evangelista antecipa a dinâmica da atuação de Jesus: ele não pregará de púlpitos ou tronos, mas no meio do povo, olhando no rosto das pessoas, tocando nas suas chagas, abraçando, dando a mão aos necessitados; seu ministério será acessível a todos e todas. Um dos traços característicos de Jesus apresentado por Lucas é a sua assiduidade na oração, desde o batismo até a cruz (cf. Lc 22,46). Nesse intervalo, entre o batismo e a cruz, são frequentes e significativos os momentos em que Lucas apresenta Jesus em oração: enquanto cura (cf. 5,16), antes de escolher os doze apóstolos (cf. 6,12), antes de fazer o primeiro anúncio da paixão aos discípulos (cf. 9,18), antes e durante a transfiguração (cf. 9,28-29), e ainda ensina seus discípulos a orar (cf. 11,1-2); na paixão, a oração será ainda mais intensa (cf. 22,32; 22,39-46; 23,34.46). Com isso, Lucas revela a intimidade de Jesus com o Pai e apresenta um modelo para a sua comunidade viver em constante oração, como é demonstrado em diversas passagens do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. At 1,14; 1,24; 6,6; etc).  

Através da oração se cria intimidade com o Pai e abre caminho para o Espírito Santo se manifestar: “E o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (v. 22). A imagem do Espírito Santo assumindo a “forma corpórea” é uma novidade na linguagem bíblica; embora a tradução litúrgica traduza por “visível”, o mais correto é “forma corpórea”, de acordo com o termo grego usado pelo evangelista (σωματικω = somatikô); embora alguns estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem com o “pairar” do Espírito de Deus sobre as águas no princípio da criação (cf. Gn 1,2), ou com a pomba que Noé soltou da arca durante o dilúvio (cf. Gn 8,8), essas interpretações já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador em tudo, até mesmo na simbologia. Ora, as imagens mais usadas para o Espírito de Deus na Bíblia são o fogo e o vento, inclusive, o próprio Lucas os aplica no episódio de Pentecostes (cf. At 2,1-13). Porém, tanto o fogo quanto o vento, simbolizam o Espírito Santo pela força e capacidade de criação e transformação; em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o Espírito não desceu sobre ele para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo como o Filho amado do Pai, e para tornar pública essa confirmação. O Espírito preenche e transforma quem é carente dele; em quem já o possui em plenitude, como Jesus, apenas confirma. Desde a sua geração na eternidade e encarnação no ventre de Maria, Jesus já possuía o Espírito Santo em plenitude. A pomba evoca serenidade, tranquilidade, paz e consolo; não causa assombro algum; é esse o sentido da manifestação do Espírito com essa forma no batismo de Jesus: ele não foi transformado pelo Espírito naquele momento, porque já era fruto desse mesmo Espírito.

Mais importante que a forma corpórea da pomba, assumida pelo Espírito, é a comunicação restabelecida entre a humanidade e Deus, não passando mais pela mediação das lideranças religiosas de Jerusalém, mas somente pela pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e afirma que o “seu bem-querer”, ou seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros sacrifícios oferecidos no templo de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo com ecos antico-testamentários (cf. Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui é completamente nova de significado, superando todas as expectativas e promessas: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”. O messias que povo esperava era apenas um servo de Deus e filho de Davi, o que seria um mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho como único mediador. A voz que sai do céu significa Deus falando diretamente com a humanidade. Isso é realmente a inauguração de um novo tempo.

Que a recordação do batismo de Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvido a sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas diversas situações cotidianas. Que sejamos confirmados como filhos e filhas de Deus, em seu amor, para viver como irmãos e irmãs.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...