sexta-feira, março 15, 2024

REFLEXÃO PARA O 5º DOMNINGO DA QUARESMA – JOÃO 12,20-33 (ANO B)

 

A liturgia deste quinto domingo da Quaresma propõe novamente a leitura de um texto do Quarto Evangelho, concluindo a sequência iniciada no terceiro domingo. O texto lido hoje – Jo12,20-33 – ocupa uma posição privilegiada no conjunto da obra joanina. O episódio narrado funciona como transição entre o final da vida pública de Jesus e o início da narrativa da sua paixão, ou seja, serve de ponte entre o “Livro dos Sinais” (Jo 1–12) e o “Livro da Glória” (Jo 13–21), conforme a divisão clássica do Evangelho de João em duas partes. Junto com seus discípulos, Jesus já se encontra em Jerusalém para participar de mais uma “páscoa dos judeus” (11,55), sendo essa a última. Ao contrário dos sinóticos que mostram Jesus participando de uma única festa de Páscoa em Jerusalém, o Evangelho de João mostra ele participando pelo menos três vezes (Jo 2,23; 6,4; 11,55). Como sabemos, com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista denuncia que aquela festa já não pertencia mais a Deus, uma vez que, ao invés de ser celebração de libertação, transformou-se em instrumento de exploração, devido, sobretudo, à transformação do templo em “casa de comércio” (Jo 2,13-22). Por isso, para compreender melhor o evangelho de hoje é necessário ter em mente o episódio da denúncia dos vendedores no templo, lido e refletido no terceiro domingo. Ao denunciar a mercantilização de Deus, Jesus propôs a destruição do templo-edifício de pedras e se auto apresentou como o novo, verdadeiro e definitivo templo, decretando a completa falência daquela instituição religiosa.

Do primeiro versículo do evangelho de hoje, percebemos o início da realização daquela profecia: «Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém para adorar durante a festa» (v. 20). Com a expressão “alguns gregos” o evangelista se refere, em primeiro lugar, aos estrangeiros simpatizantes do judaísmo; eram pessoas que observavam a lei e sentiam-se adoradores do Deus de Israel, mesmo sem o reconhecimento dos chefes. Por isso iam a Jerusalém para adorá-lo, mesmo não sendo admitidos oficialmente na religião judaica. É também uma declaração do universalismo da mensagem de Jesus. Nesse sentido, estes gregos representam os pagãos e todos os povos da terra que, um dia, serão atraídos a Jesus, não por imposição de uma doutrina, mas movidos por um desejo de “ver”, ou seja, conhecer e viver uma experiência de amor com ele. Ora, com o templo transformado em casa de comércio, já não era mais possível adorar verdadeiramente a Deus naquela estrutura. Por isso, os gregos «Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: ‘Senhor, gostaríamos de ver Jesus’» (v. 21). O desejo dos gregos de ver Jesus significa que sua fama tinha se espalhado e, ao mesmo tempo, que a religião do templo já não favorecia mais o encontro das pessoas com Deus. “Ver”, aqui, significa conhecer, contemplar, ver em profundidade; é esse o significado do verbo grego empregado pelo evangelista (όράω– oráo). Na verdade, o “ver” ao longo de todo o Quarto Evangelho vai muito além da visão física; significa fazer experiência, entrar em relação; é o primeiro passo para a fé e o consequente testemunho.

Os gregos não queriam conhecer os traços físicos de Jesus, mas fazer uma experiência de vida com ele, provavelmente porque sentiam que o templo de Jerusalém já não proporcionava uma experiência autêntica com Deus, era uma instituição espiritualmente falida, apesar de economicamente próspera. Inclusive, se quisessem ver Jesus apenas fisicamente não seria necessária a mediação dos discípulos, pois Jesus já se encontrava em Jerusalém e frequentava o templo diariamente. E os estrangeiros/pagãos são os primeiros a reconhecer Jesus como o templo verdadeiro, antes mesmo da destruição do edifício (Jo 2,19-22); esse é um dado de grande importância. Além da falência da instituição religiosa, o evangelista apresenta, ao mesmo tempo, o alcance universal da mensagem de Jesus: não estando preso a uma estrutura fixa e rígida, ele se torna acessível as pessoas de todos os povos e culturas.

Os gregos que queriam ver Jesus procuraram um discípulo, Filipe, e esse, por sua vez, procurou um companheiro de grupo, ou seja, outro discípulo: «Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus» (v. 22). Com isso, o evangelista não está “burocratizando” Jesus, mas enfatizando o papel essencial da comunidade cristã para favorecer o encontro com ele. Jesus é acessível a todas as pessoas; mas é na comunidade que se conhece e se faz verdadeiramente encontro e experiência com a sua pessoa. Na comunidade, todos devem ser acolhidos, independentemente da origem, das características ou da identidade; a comunidade cristã não pode negar a ninguém o direito de ver Jesus, ou seja, de encontrar-se com ele e experimentar sua proposta de amor. E quem já o conhece, obviamente, não mede esforços para que outras pessoas também o conheçam. Por isso, Filipe combina com André para juntos realizarem o pleito dos gregos. É importante recordar que, dentre os discípulos de então, somente Filipe e André tinham nomes gregos (Φιλίππος –Filippos; Άνδρέα – Andréa). Isso quer dizer que eles eram o caminho mais fácil encontrado para os gregos chegarem a Jesus, e é uma recordação para a comunidade cristã de todos os tempos valorizar os elementos que podem favorecer o diálogo e a fraternidade. Por isso, é essencial partir do que há em comum, daquilo que pode unir, antes de evidenciar as particularidades. 

A princípio, a resposta de Jesus aos discípulos que lhe levaram o pleito dos gregos parece não atender às expectativas: «Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”» (v. 23). No entanto, não só atende, como vai além: a glorificação de Jesus é o alcance universal da sua mensagem, até então muito concentrada e destinada a um pequeno grupo. A “chegada da hora” é um tema central do Evangelho de João; tudo o que Jesus vivenciou até então foi preparação para a sua “hora”, desde o primeiro sinal realizado, nas bodas de Caná (Jo 2,4). Essa hora é síntese de todo o mistério pascal na perspectiva do Quarto Evangelho. É a hora de entregar-se definitivamente, mas sobretudo, hora de demonstrar que os sistemas vigentes, político e religioso, não toleram que alguém viva somente para o amor! Foi por causa do seu excesso de amor que lhe levaram ao tribunal e, em seguida, para a cruz. Essa glorificação não significa uma entronização ou coroamento; é uma verdadeira explosão do amor que se torna acessível a todos, sendo capaz de contagiar o mundo inteiro. Esse amor não pode mais ser contido; por isso, será revelado plenamente, e todos poderão acolhê-lo: gregos e judeus, bons e maus, justos e pecadores. Portanto, a hora da glorificação do Filho do Homem é, ao mesmo tempo, a hora de desmascaramento de todos os sistemas injustos e de todas as formas de vida que não tenham o amor como princípio.

Como uma declaração solene, e fazendo uso da imagem do grão de trigo, Jesus anuncia sua morte e, ao mesmo tempo, o seu efeito salvífico: «Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto» (v. 24). “Em verdade, em verdade” (em grego: άμήν, άμήν – amén, amén) é uma expressão solene que sempre introduz um ensinamento importante e irrevogável de Jesus e que não pode ser desconsiderado pela comunidade dos seus seguidores e seguidoras ao longo da história. A entrega, a capacidade de morrer por amor é um imperativo irrevogável para a comunidade cristã. Porém, não se trata de uma simples entrega passiva; não é sinal de resignação, mas é a coragem de lutar pela vida até as últimas consequências; essa luta não pode ser feita de outra maneira que seja através do amor. Uma morte assim será sempre sinal de vida e de frutos abundantes, à semelhança do grão de trigo enterrado no chão. Como o Evangelho de João é muito econômico nas parábolas, apesar de possuir a linguagem mais simbólica entre os quatro, essa imagem do grão de trigo como símbolo da própria paixão, morte e ressurreição de Jesus é muito significativa. O viver por amor implica em também morrer por amor, e uma morte assim nunca será o fim, mas sempre o início de nova vida, através dos frutos gerados. Por isso, a imagem de um grão de trigo expressa tão bem a missão de Jesus, incluindo sua glorificação por meio da cruz e ressurreição.

Recordando que todo esse discurso faz parte de uma resposta ou apresentação de Jesus aos gregos que queriam vê-lo, podemos perceber a preocupação do evangelista com a sua comunidade e com as comunidades de todos os tempos: ver ou conhecer Jesus é envolver-se com o seu projeto de vida. E esse projeto exige renúncias, decisões e tomadas de posição. A primeira e decisiva posição diz respeito à própria vida! Para seguir Jesus é necessário compreender e aceitar que o sentido da vida está na capacidade de doá-la por amor para torná-la fecunda, como ele mesmo diz: «Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna» (v. 25). Com essa declaração, Jesus não está convidando seus seguidores a menosprezarem a vida e a existência terrena, mas pedindo que lhe dêem sentido. E esse sentido passa pela capacidade de não se apegar tanto a ela, para que dela outras vidas também venham a ter sentido. Para isso, é necessário viver à sua maneira. Por isso, ele reforça o convite ao seguimento, associando-o ao serviço: «Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará» (v. 26). Ora, muitos queriam e ainda querem ver Jesus ou receber explicações a seu respeito. Mas o próprio Jesus deixa claro que ele é inexplicável; para conhecê-lo é indispensável o seu seguimento com a disposição de servir. A comunidade tem a missão de, onde ela estiver, tornar presente Jesus e o Pai. Isso só é possível onde o servir e o seguir são de fato prioridades, tendo o amor por motivação. E a Jesus serve e segue quem vive à sua maneira, amando sem medidas, a ponto de entregar a própria vida.

Como esse texto antecede de imediato à narrativa da paixão, é muito oportuno que o evangelista ressalte a humanidade de Jesus, como se vê: «Agora sinto-me angustiado! E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim» (v. 27). Essa confissão de Jesus é muito relevante. É reveladora da sua humana condição, com todas as limitações que essa implica. Dar a própria vida custa dor e sofrimento, custa o derramar-se do sangue. Porém, mais forte do que a dor e a angústia foi a confiança no Pai e a certeza de que, daquele amor transbordante, muitas vidas novas surgiriam, muitos frutos brotariam. Foi de fato, para “esta hora” que ele veio; não para morrer tragicamente como aconteceu, mas para testemunhar o amor até as últimas consequências. A voz do céu confere a este episódio uma importância equivalente à transfiguração nos sinóticos: «“Pai, glorifica o teu nome!” Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” (v. 28). A transfiguração aconteceu num momento de crise entre Jesus e os discípulos que insistiam em não aceitar a cruz como destino. É uma confirmação da fidelidade de Jesus aos propósitos do Pai. É também expressão da comunhão entre Jesus e o Pai, pois consiste praticamente na mesma coisa que ele mesmo tinha dito sobre a chegada da sua hora e da glorificação (v. 23). A explicação de Jesus sobre a origem e o motivo da voz do céu reforça ainda mais a equivalência com a transfiguração (v. 30): o Pai intervém quando os discípulos ou as multidões se mostram incapazes de compreender ou aceitar o caminho do Filho, que leva à glória, porém, mediante a cruz. Ele já vivia em plena comunhão com o Pai sem necessidade de sinais exteriores, por isso ele diz que a voz do céu não ressoou por sua causa, mas por causa do povo.  

Como o(s) chefe(s) deste mundo (v. 31) não suportaram a irradiação do amor de Jesus em demasia, eis que a “hora” se transformou em dor. O(s) chefes(s) deste mundo são todas as forças de morte, toda oposição ao amor e à justiça; é tudo o que se opõe ao Reino de Deus. Na época, foram, sobretudo, as lideranças políticas e religiosas que levaram Jesus à morte de cruz. Mas essas forças continuam atuantes no mundo, revestindo-se de diversas aparências. Quase sempre, se revestem de religiosidade, usando o nome de Deus para perseguir, discriminar e até matar. Aos chefes do tempo de Jesus, o Pai deu a resposta definitiva: na mesma cruz em que morreu um corpo, dela irradiou amor como nunca visto antes. E é no momento da angústia maior que Jesus reforça sua confiança e esperança no Pai, atestando o verdadeiro cumprimento da sua missão no mundo: «Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim» (v. 32). É claro que “ser elevado” diz respeito à crucifixão. Àquela altura, já estava clara qual seria a sua pena: a cruz, como era para quem ousava desmascarar os sistemas de dominação, comandados pelo(s) chefes(s) deste mundo, na época as lideranças religiosas e políticas, atualmente com muitas outras formas de expressão. Jesus sabia que o seu elevar-se na cruz seria tão frutífero quanto o enterrar um grão de trigo no chão: sementes haveriam de germinar; sementes de amor, justiça, solidariedade, inconformismo e fé. 

Não obstante a dor e a angústia, assim como Jesus, os cristãos e cristã são convidados a crer que o sangue derramado por amor faz germinar; o amor tem uma força de atração indescritível. Ao mesmo tempo, não podem acomodar-se com a vida banalizada e as milhares de morte geradas por omissão e injustiças dos chefes do mundo de hoje. Só vê Jesus quem o segue e vive verdadeiramente o mandamento do amor. Só quem o ver compreende a grandeza do amor e suas consequências. E quem o vê, não pode ser conivente com as injustiças e maldades no mundo que geram morte, exclusão, dor e sofrimento. Concluindo, recordamos também que, à medida em que a Quaresma entra em fase de afunilamento, cabe questionarmo-nos sobre os grãos que estamos fazendo germinar em nossos corações.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sexta-feira, março 08, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 3,14-21 (ANO B)

 


A liturgia deste quarto domingo da Quaresma continua a sequência de leituras do Evangelho segundo João, iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, o texto lido fora o relato do gesto profético de Jesus, denunciando a situação do templo transformado em comércio e a consequente mercantilização do sagrado (Jo 2,13-25). O episódio relatado no texto de hoje – Jo 3,14-21 – faz parte dos desdobramentos daquele episódio. Trata-se do famoso encontro entre Jesus e Nicodemos. É um texto extremamente importante para o conjunto do Quarto Evangelho, tanto no plano teológico quanto no narrativo. É a abertura de uma série de três encontros decisivos de Jesus com personagens que representam três mundos (culturas) diferentes: 1) Nicodemos, representante da mais genuína fé judaica; 2) a mulher samaritana, representante do sincretismo (Jo 4,1-42); e 3) o funcionário real, representante do mundo pagão (Jo 4,46-54). Interligados, esses três encontros culminam na realização do segundo sinal de Jesus no Quarto Evangelho, que é a cura do filho do funcionário real (Jo 4,46-54). Dos três personagens, somente Nicodemos é chamado pelo nome, cujo significado é “vitória do povo”.

A enérgica denúncia de Jesus contra a situação do templo e de toda a elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado muitos questionamentos e curiosidades sobre a sua pessoa, além de ira da parte dos dirigentes. Muitos, certamente, se enfureceram, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da época também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica, mais fiel ao ideal da aliança e menos mercantilizada. Certamente, Nicodemos era um destes; ao invés de condenar Jesus, preferiu ir ao seu encontro e escutá-lo, motivado por muitos questionamentos e dúvidas. Como o texto escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos importantes do que o antecede. O evangelista diz que Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (3,1) e, certamente, um bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da Lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim ele não estava pronto para aderir totalmente ao projeto de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se confrontou ao longo do seu ministério.

A ida de Nicodemos ao encontro de Jesus à noite tem recebido diversas explicações, ao longo da complexa história da interpretação do Quarto Evangelho. A maioria dos estudiosos acredita que ele procurou Jesus à noite por prudência, com medo de ser criticado pelos seus colegas de doutrina, afinal, Jesus não era visto como boa companhia para as pessoas mais devotas da época. E o gesto profético no templo, desmascarando a hipocrisia da instituição religiosa, dera prova disso (2,13-22), contribuindo decisivamente para o rótulo de agitador e subversivo. Outros vêem o encontro à noite como uma imagem da situação de Nicodemos: enquanto apegado à doutrina e à Lei, ele estava longe da luz, que é o próprio Jesus. Nesse caso, a noite representa o estado de trevas em que Nicodemos se encontrava. Por sinal, o paradoxo trevas-luz e vice-versa é muito importante para a teologia de João; isso é evidenciado desde o prólogo (Jo 1,1-18). No respectivo poema de abertura do seu Evangelho, João apresenta Jesus como o Verbo encarnado e luz, que veio ao mundo para vencer as trevas e iluminar a humanidade inteira, porém as trevas não a acolheram (Jo 1,5.9). Nicodemos estaria, portanto, imerso no mundo das trevas, mas insatisfeito e desejoso de ser iluminado. Por isso, procurou Jesus, reconhecendo-o, implicitamente, como fonte de luz, mesmo num estágio embrionário de um caminho de fé. Inclusive, as primeiras palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento de sua procedência divina: «Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele» (3,2). Essas poucas palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como o ser humano pode participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar.

O trecho selecionado para a liturgia começa com um dado das Escrituras aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω agapáo), dar ou oferecer (em grego: δίδωμι didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo, a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.

O versículo seguinte reforça o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.

Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito» (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. E isso não é fruto de um juízo divino, mas escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.

Os versículos seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (Jo 1,9-10). «Ora, o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más» (v. 19). Novamente, fala-se de um julgamento, mas não se apresenta Deus como juiz, pois a modalidade do julgamento corresponde à atitude interior de cada pessoa ao acolher ou rejeitar a luz que é Jesus. E é o próprio Jesus quem constata que, enquanto luz, ele foi rejeitado. E quem rejeitou a luz foi a própria religião que tinha transformado Deus em mercadoria, ao fazer da sua casa um comércio. Por isso, foram as pessoas religiosas que mais se sentiram sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as trevas, odiou a luz por ter aversão à verdade. De fato, «Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas» (v. 20). E foi isso que aconteceu, conforme Jesus denunciou e continua acontecendo, inclusive por grupos que reivindicam a condição de seus seguidores. Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o maior dom do Pai, que é o seu próprio Filho, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.

O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (Jo 7,50) e ajudando no seu sepultamento (Jo 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica e, certamente, amadureceu sua resposta com o tempo. Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai cheio de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma Quaresma.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 02, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 2,13-25 (ANO B)

 


Com a liturgia de hoje, abre-se uma sequência de três domingos de leitura de textos do Evangelho de João. A leitura do Evangelho de Marcos voltará somente no Domingo de Ramos da paixão. Para este domingo, o primeiro da sequência e o terceiro da Quaresma, o texto lido é Jo 2,13-25. O texto lido hoje é o relado que compreende o episódio da expulsão dos vendedores e cambistas do templo, por Jesus, conhecido popularmente como “purificação do templo”, um título considerado hoje como inadequado, tendo em vista o significado e os desdobramentos do gesto de Jesus. Ora, o texto indica claramente que as intenções de Jesus não eram propriamente purificar, mas abolir aquele templo de pedras, suprimindo o culto mercantilizado que ali se praticava e, finalmente, edificar a morada permanente de Deus na terra: o próprio ser humano, com sua integridade e dignidade recuperadas. Isso é garantido pelo próprio Jesus com a doação plena de si, passando pela cruz e ressurreição, tornando a vida em abundância acessível a todo o gênero humano.

Alguns elementos do contexto são essenciais para uma boa compreensão do texto. De início, recordamos que esse é um dos poucos episódios da vida de Jesus narrado pelos quatro evangelistas. Não resta dúvidas de que esse dado atesta a importância do episódio e a alta probabilidade de corresponder a um fato real da vida de Jesus, o que não o isenta de ser revestido de elementos simbólicos pelos evangelistas, conforme as necessidades catequéticas de suas respectivas comunidades. Chama a atenção a localização do episódio no Quarto Evangelho: logo no começo do livro e, por conseguinte, no início do ministério de Jesus, enquanto nos sinóticos aparece já na parte final, na chamada “última semana”, vivida em Jerusalém (Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46). Ora, João apresenta Jesus participando de três festas de Páscoa, em Jerusalém, enquanto nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual ele fora condenado e morto. O motivo da antecipação em João se deve ao caráter programático da cena: se trata do episódio que melhor descreve a proposta de ruptura de Jesus com as instituições de Israel. Essa ruptura é essencial para a inauguração de um novo tempo, com um jeito novo de relacionar-se com Deus. E o inteiro ministério de Jesus será uma demonstração desse novo relacionamento.

A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar este episódio ao relato que lhe precede no Evangelho: as bodas de Caná (Jo 2,1-12). A transformação da água em vinho, ali, representou a passagem da Lei para o amor, da letra para o Espírito, antecipando a substituição da antiga pela nova aliança. E assim como não combina «vinho novo em odres velhos» (Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também não combina aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova aliança, Jesus parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a supressão do antigo em sua máxima expressão visível: o magnífico templo de Jerusalém. Foi por causa dessa relação que João transferiu esse episódio para o início do ministério de Jesus, adequando as tradições recebidas às suas intenções teológicas e catequéticas, as quais refletem a necessidade da sua comunidade. Portanto, conforme a dinâmica narrativa e teológica do Evangelho de João, o texto de hoje é o complemento das bodas de Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida não permitia que se sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado no Filho. Logo, as bodas de Caná e o episódio lido hoje constituem a introdução e síntese de todo o programa de Jesus, que visa estabelecer uma nova maneira de relacionamento entre Deus e a humanidade.

Olhemos, então para o texto, começando do primeiro versículo: «Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém» (v. 13).  Com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista já faz uma importante advertência: aquela Páscoa já não pertencia mais a Deus, tinha perdido a sua sacralidade; era uma Páscoa dos homens, era apenas uma festa religiosa, na qual Deus já não era mais o centro. É importante recordar que, ao longo do seu Evangelho, João usa o termo “judeus” para designar a hierarquia religiosa, e não o povo judeu em si, ao qual pertencia Jesus e as primeiras gerações de seus seguidores e seguidoras. Com isso ele diz que a classe dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que é de Deus e, portanto, a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus deveria distanciar-se daquela instituição. A Páscoa do Senhor tinha sido desvirtuada, transformada em Páscoa dos sacerdotes, dos comerciantes e cambistas. Logo, não era mais de Deus, e o evangelista adverte a sua comunidade e os leitores de todos os tempos. Subir a Jerusalém significa o deslocamento feito pelas pessoas até lá, sobretudo para quem ia da Galileia, como Jesus. É também uma referência à localização da cidade na região montanhosa da Judeia.

Ao chegar em Jerusalém, Jesus se enfurece porque no espaço considerado mais sagrado de Israel – o templo –, ele não encontrou o que deveria encontrar: «No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados» (v. 14). Ora, o que deveria ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero, adoradores e adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião degenerada, transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e pombas, eram comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em sacrifícios pelos pecados do povo, que a própria religião determinava. A variedade de animais, de bois a pombas, quer dizer que nenhuma classe social escapava, ou seja, ricos e pobres, aproximando-se do templo, eram praticamente obrigados a compactuar com o sistema, comprando animais para oferecer em sacrifício. Geralmente, esses animais pertenciam às famílias dos próprios sacerdotes que constituíam a aristocracia da época. A presença dos cambistas evidencia, ainda mais, o completo desvirtuamento do templo: o sistema econômico funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar conviviam em harmonia no mesmo lugar. O templo possuía um verdadeiro sistema econômico, com moeda própria e as ofertas em dinheiro só eram aceitas nessa moeda. Por isso, quem levava a moeda do império romano ou moedas estrangeiras deveria fazer o câmbio na entrada, certamente pagando altas taxas. Por isso havia cambistas lá.

A situação encontrada por Jesus no templo era inaceitável. Por isso, sua atitude foi bastante dura: «Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas» (v. 15). João é o evangelista que mais enfatiza a postura furiosa de Jesus; somente ele faz referência ao chicote de cordas, um dos elementos mais significativos da cena. Mais do que a descrição de um gesto, o evangelista quer evidenciar a postura e o sentimento de Jesus diante de uma religião exploradora. A comercialização do sagrado, independentemente da época e do lugar, deixa Jesus enfurecido, inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda estrutura de exploração deve ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando essa se apoia no nome de Deus. Esse gesto se configura também como uma ação simbólica típica dos profetas do Antigo Testamento. Quando as palavras não eram suficientes, eles cumpriam gestos e ações, tanto para anunciar quanto para denunciar. Porém, em relação ao culto, os profetas ousaram denunciar com palavras (Is 1,10-20; Am 5,21-23), enquanto Jesus foi muito além, passando das palavras à ação. A crítica ao culto mercantilizado sempre foi uma das principais causas dos profetas. E Jesus assume essa linha, ao cumprir esse gesto.

Das categorias de vendedores, o evangelista faz questão de destacar uma delas: «E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”»  (v. 16). O evangelista não mostra Jesus dirigindo a palavra aos outros vendedores, mas apenas cumprindo o gesto. Aos vendedores de pombas ele repreende também verbalmente, dando-lhes uma ordem. Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso daqui!”. Como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os mais afetados pela exploração. Quem comprava as ovelhas e bois eram os peregrinos mais abastados; também eles eram explorados, mas Jesus tem mais urgência em combater a exploração dos pobres. Por isso, os primeiros comerciantes denunciados diretamente foram aqueles que vendiam para os pobres. Custava para Jesus ver a casa do Pai transformada em comércio e, consequentemente, Deus transformado em mercadoria. Diante disso, os pobres terminavam sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas, pois eram eles os mais explorados. Por isso, a solução ali não seria purificar o templo, mas suprimi-lo, acabar completamente com aquele sistema injusto e explorador.

A motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o zelo pela casa do Pai: «Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”» (v. 17). O que é recordado pelos discípulos, segundo o evangelista, é uma citação do Salmo 69,10. De fato, toda a ação de Jesus em seu ministério, e mais ainda na perspectiva de João, será motivada pelo incansável zelo pelas coisas do Pai, sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada por um sistema tão injusto e explorador como tinha se tornado o templo de Jerusalém. O “zelo pela casa” significa muito mais do que uma preocupação cultual ou apego a uma construção. É zelo pela habitação de Deus, que os judeus queriam delimitar à estrutura do templo, mas Jesus sabia muito bem onde Deus realmente estava. Esse zelo que o consume expressa, acima de tudo, o seu amor pelo ser humano, morada privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de ter sido condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade, dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano. Para Jesus, a verdadeira casa de Deus é a pessoa humana. E toda vez que uma pessoa é injustiçada e explorada a casa de Deus está sendo profanada.

Diante do que estavam vendo, e inconformados com aquilo, «os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”» (v.18). Aqui novamente a expressão “os judeus” significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados, pois isso implicava em perda de credibilidade e de privilégios. Ainda quando o questionador era um simples galileu, como Jesus, sem nenhum sinal distintivo de messianidade. Os judeus pediam sinais, ou seja, credenciais que autorizassem Jesus a agir daquela maneira. Jesus poderia reivindicar a seu favor o pensamento de tantos profetas que ao longo da história já tinham identificado aquele culto como obstáculo para o encontro com o Pai (Is 1,10-20). Mas preferiu falar do futuro, das realidades novas que estavam para ser inauguradas: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual estava com os dias contados, e sua ressurreição como instauração definitiva do novo culto, verdadeiro e sincero: «Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei» (v. 19). Obviamente, as pessoas que ouviram essa declaração se admiraram, sem compreender. Até mesmo os discípulos só compreenderam após a ressurreição (v. 22). Os judeus, inconformados com tudo o que estavam vendo, ainda questionaram o sentido da declaração de Jesus: «Os judeus disseram: “Quarenta e seus anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?”» (v. 20). Como se percebe, o pensamento deles é todo voltado para o que é material, por isso não compreendiam.

O culto autêntico, compatível com a nova aliança celebrada no amor, já não necessita de templos de pedras, mas apenas de corações sinceros que busquem e adorem a Deus em espírito e em verdade, como Jesus dirá posteriormente, no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,23). Aquele templo de pedras, imponente e faraônico, ao invés de aproximar, distanciava as pessoas de Deus; por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso, um templo novo e definitivo estava para ser inaugurado, graças à ressurreição de Jesus (vv. 21-22), como vitória definitiva da vida sobre a morte. Com isso, a vida em plenitude, o culto por excelência agradável a Deus, se torna acessível a toda a humanidade, sem mais a necessidade de sangue de animais e ofertas, mas a partir do coração de cada um. Os sinais e gestos proféticos de Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal muitos em Israel esperavam por um Messias corajoso para reformar a religião e a vida social do país. Por isso, muitos “creram nele” (v. 23); porém, não basta crer com palavras, é necessário viver à sua maneira, e como Jesus conhecia o ser humano por dentro, percebia quando havia conversão verdadeira ou não (vv. 24-25). Pelas exigências radicais para o seguimento de Jesus, o cristianismo não comporta adesão superficial. Por isso, as comunidades cristãs, em todas as épocas, não devem se entusiasmarem com multidões: «muitos creram no seu nome, mas Jesus nãos lhes dava crédito, pois ele conhecia a todos» (vv. 23-24). A religião da superficialidade era aquela que Jesus quis abolir.

A comunidade joanina compreendeu a novidade de Jesus porque soube associar as palavras aos fatos, os sinais realizados por ele às Escrituras. Era uma comunidade que lia os acontecimentos do cotidiano à luz do que Jesus dizia e fazia (vv. 21-22), por isso, tornou-se modelo para as comunidades de todos os tempos. Como cristãos de hoje, somos chamados a olhar o exemplo daquela comunidade em busca do devido equilíbrio entre a liturgia e a vida, de modo que reine o amor e, no amor entre os irmãos e irmãs, seja revelado o corpo do Ressuscitado e o rosto do Pai.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 9,2-10 (ANO B)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico B, o texto proposto para este ano é o relato de Marcos: 17,1-9. Por se tratar do Evangelho mais antigo, os textos de Marcos são sempre muito originais, e a passagem lida na liturgia deste domingo demonstra isso. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada, a começar pela definição do gênero literário da teofania, ao qual pertence o texto. Etimologicamente, teofania significa manifestação divina; é uma palavra de origem grega, formada da junção do substantivo “Theós” (Deus) com o verbo “faino” (aparecer, manifestar). Enquanto gênero literário, teofania designa o tipo de relato que descreve uma manifestação solene de Deus. Geralmente, são relatos carregados de elementos simbólicos, o que se vê no episódio da transfiguração, como a brancura, a voz celestial. Embora as teofanias sejam mais frequentes no Antigo Testamento, o Novo Testamento contém algumas, como o batismo de Jesus, a transfiguração, as aparições pascais e o relato de Pentecostes.

A nível de contexto narrativo, é importante recordar o lugar do texto na estrutura do Evangelho. Está localizado no início da segunda parte da obra, considerando a divisão tradicional do Evangelho em duas partes – I) Mc 1,1–8,30; II) Mc 8,31–16,8. Esse episódio é a sequência imediata dos acontecimentos da região de Cesareia de Filipe, que compreendem a confissão de Pedro (Mc 8,27-30); o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-32); a repreensão de Jesus a Pedro (Mc 8,33), e a declaração das exigências para o discipulado (Mc 9,34-38). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cujo ápice é exatamente o episódio da transfiguração. O primeiro anúncio da paixão deixou os discípulos profundamente assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz anunciados por Jesus. Criou-se uma verdadeira crise no grupo, tanto nas convicções do seguimento quanto na relação pessoal deles com Jesus e vice-versa. Jesus chegou a chamar Pedro de satanás (Mt 8,33), devido à resistência em aceitar um messias tão diferente como ele estava se revelando. Ora, esperava-se um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida plena. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, quer dizer, a realização plena, mas essa passa pelo sofrimento, cuja expressão máxima é a cruz. Trata-se, portanto, de um texto catequético e teológico, e não de uma crônica. Inclusive, um número considerável de estudiosos defende que o episódio da transfiguração foi construído a partir de um relato de aparição do Ressuscitado, que Marcos adaptou às necessidades catequéticas da sua comunidade, sendo posteriormente seguido pelos outros sinóticos (Mt; Lc).

Feita a contextualização, comecemos, então, a olhar para o texto, partindo do primeiro versículo: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2). Aqui, a versão litúrgica do texto nos privou de uma expressão muito importante: o indicativo cronológico “Seis dias depois”, presente no texto original, substituído na tradução do lecionário pela genérica expressão “Naquele tempo”. O indicativo “seis dias depois” garante a relação do episódio da transfiguração com os últimos acontecimentos narrados, começando pela confissão de Pedro, conforme recordamos acima na contextualização. Perceber essa relação é essencial para a compreensão do texto. Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o até de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. A transfiguração, portanto, é resposta a tudo isso. Por isso, “seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude, manifestando-se em sua máxima humanização. Como se sabe, as indicações temporais na Bíblia possuem mais valor simbólico do que cronológico. O sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), na criação originária, e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade.

Diz o texto que Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. Se por um lado a escolha desses três discípulos significa um certo privilégio, por outro indica mais uma necessidade. Certamente, eles não eram os melhores nem os piores, mas possuíam certas características que os tornavam mais difíceis de lidar, demonstrando mais dificuldades de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Há outros momentos em que Jesus prefere estar só com eles três, como no episódio da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37) e na oração e agonia no Getsêmani (Mc 14,37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

O indicativo espacial também é de grande importância: «e os levou sozinhos, a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2b). Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém, no séc. IV, e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico. Toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

No alto da montanha, Jesus «transfigurou-se diante deles» (v. 2c), quer dizer que passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. A sua figura mudou. É esse o significado exato do verbo empregado pelo evangelista (μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes: «Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar» (v. 3). As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; o brilho é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Somente Marcos faz referência ao fato de nenhuma lavadeira ser capaz de deixar uma roupa tão branca como ficaram as vestes de Jesus. Duas intenções estão por trás desse detalhe: apresentar uma atividade do lar, reforçando a ideia e a importância da comunidade como casa, o espaço embrionário do Reino, e mostrar que a vida em plenitude (condição gloriosa) almejada pelo ser humano não pode ser conquistada por esforço próprio, mas somente por graça de Deus, ou seja, tem coisas que só Deus pode fazer. As vestes brancas são sinais da identidade divina e da pertença ao mundo de Deus e dos ressuscitados.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Apareceram-lhe Elias e Moisés e estavam conversando com Jesus» (v. 4). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente, mas também a própria identidade de Israel. Eles lembram o conjunto da esperança e das promessas acumuladas ao longo do tempo, enquanto Jesus é o cumprimento, a verdadeira realização, embora por caminhos e meios diferentes daqueles percorridos por Moisés e Elias. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Inclusive, Marcos não diz nada sobre o conteúdo ou o tema do colóquio dos três. Apenas diz que eles conversavam. Os discípulos não participam sequer como ouvintes, apenas vêem. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim, enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, como é próprio da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então Pedro, tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”» (v. 5). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda (em grego: σκηνή – skenê) era o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

A falta de sentido nas palavras de Pedro tem uma explicação, como mostra o texto: «Pedro não sabia o que dizer, pois todos estavam com muito medo» (v. 6). O medo é o grande obstáculo para a comunidade, sobretudo, o medo do que é novo e inesperado. O medo gera incompreensão e insegurança. A comunidade marcada pelo medo não sabe o que diz, diz o que não sabe, enfim, diz coisas erradas. O medo bloqueia a sobriedade do anúncio. Onde o medo reside, o anúncio sai distorcido. As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o interrompe: «Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz”» (v. 7). Ora, diante da incompreensão de Pedro, o Pai se manifesta, chamando a sua atenção. A nuvem é sinal da manifestação e da presença de Deus, desde o Antigo Testamento, sendo um elemento marcante na maioria das teofanias bíblicas (Ex 24,16). As palavras que saem da nuvem são praticamente as mesmas do episódio do batismo (Mc 1,11), à exceção do imperativo da escuta: «Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz». Outra diferença é que, no batismo, a voz foi dirigida a Jesus, enquanto aqui na transfiguração é dirigida aos discípulos. Para compreender a importância dessas palavras devemos recordar o contexto, como fizemos na introdução. O grupo dos discípulos vivia um momento de crise exatamente porque eles estavam com dificuldade de ouvir o que Jesus dizia, como o anúncio da paixão. Na Bíblia, a escuta significa adesão e seguimento. E os discípulos estavam com dificuldade de seguir e aderir plenamente a Jesus, pois sonhavam com o messias poderoso e guerreiro enquanto Jesus se revelava o messias pobre sofredor. O imperativo “escutai-o” é dirigido a todos os discípulos, principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés do que a Jesus. Escutar Jesus é um imperativo para a comunidade cristã. Quem não o escuta, não pode segui-lo nem testemunhar.

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas, já disseram o que tinham a dizer, deram o que tinham de dar. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro e seus companheiros tentavam constantemente evitar, por medo da cruz. Por isso, o próprio Deus, o Pai, precisou intervir. Os discípulos pareciam insistir ouvindo mais a Moisés e Elias do que a Jesus. Continuavam apegados às tradições e preceitos, fechados à novidade de Jesus. E a voz do Pai vem corroborar o programa de Jesus. Vem confirmar que o seu modo de anunciar e construir o Reino, com palavras e gestos de libertação, é confirmação da sua fidelidade. Isso não diminui o valor de Moisés e nem de Elias, mas eles cumpriram a missão que lhes fora confiada no momento oportuno. É claro que seus exemplos continuam importantes, bem como de todos os profetas. Mas Jesus é o critério e o parâmetro para a comunidade cristã. Tudo o que a comunidade vive e anuncia deve estar alinhado ao seu Evangelho. Por isso, «E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles» (v. 8). Ora, Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu Evangelho.

Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro. Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. A ressurreição não pode ser compreendida sem antes ser experimentada e celebrada. De fato, compreender o significado de “ressuscitar dos mortos” para quem tem dificuldade de conviver com a morte e a dor é um grande desafio. De todo modo, mesmo ainda marcados pela incompreensão, é salutar a discussão sobre a ressurreição: «comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”» (v. 10). O grande debate das comunidades primitivas era sobre o significado da ressurreição e as implicações concretas que a fé nela representava na vida cotidiana. Aqui está um direcionamento para as comunidades cristãs de todos os tempos: as discussões e reflexões só são válidas quanto são voltadas para a vida, e a vida em plenitude, cujo expressão máxima é a ressurreição. É a fé na ressurreição que faz os cristãos e cristãs sonharem com um mundo novo e, por conseguinte, lutarem para construí-lo.

Que a liturgia deste segundo domingo da Quaresma ajude a nos conscientizar mais sobre o que é essencial na vida de discípulos e discípulas de Jesus, tornando nossas comunidades sempre mais parecidas com o Reino de Deus, sendo espaços de humanização e fraternidade. Que o percurso da Quaresma favoreça uma escuta sempre mais atenta e profunda ao tudo o que Jesus tem a falar. Somente escutando bem poderemos tornar o mundo mais humanizado e mais parecido com o seu projeto.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 5º DOMNINGO DA QUARESMA – JOÃO 12,20-33 (ANO B)

  A liturgia deste quinto domingo da Quaresma propõe novamente a leitura de um texto do Quarto Evangelho, concluindo a sequência iniciada no...