quinta-feira, junho 29, 2017

REFLEXÃO PARA O XII DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 10,26-33 (ANO A)



Neste décimo segundo domingo do tempo comum, a liturgia nos propõe Mateus 10,26-33 como texto evangélico. O décimo capítulo do Evangelho segundo Mateus contém o segundo discurso de Jesus, chamado discurso missionário ou apostólico. O Evangelho de hoje, portanto, faz parte desse discurso.

No domingo passado (XI Domingo do Tempo Comum), nós contemplamos o inconformismo de Jesus com a situação do povo: estava violentado e abandonado como ovelhas que não tem pastor (cf. Mt 9,36). Diante daquela situação, Jesus não encontrou outra saída senão convocar os seus discípulos e convertê-los em apóstolos, ou seja, em enviados, para tirar o povo da situação deplorável em se encontrava por causa da violência, corrupção e indiferença dos detentores de poder na época, a religião oficial judaica e o império romano.
O discurso missionário é um conjunto de instruções e recomendações práticas para a missão. Se trata de advertências quanto ao modo de apresentar-se e comportar-se num mundo hostil aos valores do Reino dos céus. O desafio dos discípulos consiste exatamente em anunciar que “o Reino dos céus está próximo” (cf. 10,7) onde predomina o “anti reino”, ou seja, os projetos de morte e negação da vida, impostos por Roma e pela religião.

No final dos anos 70 do primeiro século, a comunidade de Mateus vivia situações de perigo e perseguição. Sabendo que é exatamente em situações assim que os valores do Reino precisam ser corajosamente anunciados, aquela comunidade resgatou as instruções que Jesus deu aos doze primeiros discípulos, atualizando e colocando por escrito, fazendo delas normas para as comunidades cristãs de todos os tempos e lugares do mundo. Foi nesse contexto que surgiu o Evangelho segundo Mateus.

Das tantas recomendações dadas por Jesus aos discípulos, a comunidade mateana recordou mais aquelas a respeito das perseguições e da necessidade de resistência da comunidade, para que, de fato, o Reino pudesse acontecer e as situações de sofrimento e opressão fossem transformadas em situações de paz, liberdade e vida em abundância.

No trecho escolhido pela liturgia de hoje, predomina exatamente o encorajamento: “Não tenhais medo dos homens, pois não há nada de encoberto que não seja revelado e nada há de escondido que não seja conhecido” (v. 26). A expressão “não tenhais medo” (em grego μη φοβηθητε – mé fobethete) ocorre três vezes no texto de hoje (versículos 26, 28 e 31), o que a constitui numa chave de leitura para todo o trecho: indica que coragem, testemunho e anúncio são inseparáveis. É também uma expressão muito usada em toda a Bíblia, compreendendo os dois testamentos. Está sempre relacionada a contextos de vocação e missão.

O medo é um mal do qual a comunidade cristã deve se libertar. O que havia de encoberto e escondido era o mistério do Reino, aquilo que até então somente os discípulos tinham aprendido com o Mestre, sobretudo o seu jeito de viver. Não se trata de planos secretos, como algumas interpretações propõe. A convivência com Jesus era muito enriquecedora para os discípulos e eles aprendiam muito com isso. Necessitavam, pois, de coragem para anunciar e revelar ao mundo a vivência da Boa Nova do Reino, o amor que emanava de Jesus e que os contagiava. O jeito de Jesus viver precisava ser conhecido por todos, não podia mais ser privilégio de um grupo pequeno ou de uma comunidade exclusiva. No entanto, como a vida de Jesus ia de encontro ao que os sistemas da época propunham, tornava-se arriscado para os discípulos anunciar e, principalmente, viver como Jesus vivia.

Uma comunidade amedrontada tende a fechar-se em si mesma e restringir o anúncio às quatro paredes e a grupos muito reduzidos de pessoas. Por isso, o apelo de Jesus: “o que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados” (v. 27). Jesus, condicionado à existência humana, não podia anunciar o Reino sozinho, por isso, convoc0u os doze e os enviou (cf. 10,1-8). A expressão “O que disse na escuridão”, portanto, significa aquilo que somente os discípulos viram e ouviram. Chegou o momento de tornarem público, anunciando sem medo e fazendo uso de todos os meios lícitos possíveis. 

“Proclamar sobre os telhados” é, de fato, o convite à criatividade e à eficácia: os discípulos não podem abrir mão de nenhum meio que possa fazer o Reino dos céus acontecer. As multidões violentadas e abandonadas (cf. 9,36) não podiam esperar que as condições dos discípulos melhorassem para chegarem até elas. A comunidade cristã deve, mesmo sendo perseguida, fazer de tudo, o possível e o impossível, para o anúncio de libertação e vida plena chegar a todos. 

Marginalizada pela sinagoga e por qualquer espaço oficial, a comunidade deve buscar meios alternativos para o anúncio do Reino acontecer, até os telhados, se for necessário. O importante é que a mensagem libertadora não fique restrita a um pequeno grupo, como se tratasse de um conhecimento teórico. O Evangelho é uma proposta de vida que deve ser comunicada a todos e todas sem exceção, independente das circunstâncias. Não há tempo a perder.

Como a maior necessidade da comunidade naquele momento era a coragem, Jesus exorta mais uma vez: “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (v 28a). Pouco tempo antes, Jesus tinha alertado os discípulos de que eles seriam açoitados entregues às sinagogas e tribunais (cf. 10,17), por isso pede para que, mesmo assim, não tenham medo. De fato, quem tem medo da morte não está apto para o seguimento de Jesus. Quem faz experiência de comunhão profunda com Ele, “mesmo que morra, viverá” (cf. Jo 11,25). Os que matam não conhecem a vida em plenitude, pensam que a vida se restringe ao corpo. 

A oposição entre alma e corpo aqui é a distinção entre uma vida restrita à dimensão biológica (corpo) e uma vida plena (alma), uma vida com sentido, própria de quem vive os valores do Reino. Essa não ninguém a tira. Nada tem a ver com o dualismo grego corpo-alma. A alma (em grego ψυχη – psykê) para a comunidade de Mateus significa a totalidade do ser humano que encontra sentido para a vida na experiência de amor-comunhão com Jesus. 

O único temor que deve haver na comunidade cristã é “daquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno” (v. 28b). Essa é uma expressão ambígua. A quem ela se refere? Com certeza não é a Deus! O discípulo só deve ter medo de si mesmo. Deve ter medo de agir covarde e incoerentemente com a Palavra que anuncia. Em outras palavras, o discípulo de Jesus deve ter medo de ter medo. É o medo que destrói a vida. Inferno não significa apenas condenação eterna, mas significa também a inutilidade. A palavra grega que é traduzida por inferno (γεεννa – gheena) se referia ao lixão de Jerusalém, o qual mantinha um fogo permanente, em decorrência da quantidade de lixo que a cidade produzia. Era para lá que iam as coisas inúteis. Um discípulo medroso é tão inútil a ponto de ser comparado a essa realidade desprezível. 

Não é possível superar o medo sem confiança no Pai. Nesse sentido, Jesus usa dois exemplos de coisas aparentemente insignificantes: os pardais e o cabelo (versículos 29 e 30). Os pardais eram os pássaros comestíveis comercializados por menor valor, e o cabelo a unidade do corpo mais insignificante. Se até essas coisas são merecedoras da atenção do Pai, muito mais será a vida do discípulo que levar a sério o seguimento de Jesus e a missão de fazer o Reino dos céus acontecer na terra. 

A comunidade que levar a sério a mensagem de Jesus, superando suas dificuldades e medos, anunciando com determinação a chegada do Reino, transformando situações de morte em vida, terá, não como prêmio, mas como consequência, a certeza do testemunho do próprio Jesus diante do Pai (versículos 32 e 33). De fato, receber o testemunho de Jesus diante do Pai é a certeza de que a vida foi levada a sério. Levar a vida a sério e conduzi-la de acordo com o Evangelho é um ato de coragem. 

Que o Evangelho seja vivido corajosamente e anunciado com alegria!

Mossoró-RN, 24 de junho de 2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, junho 17, 2017

REFLEXÃO PARA O XI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36 – 10,8 (ANO A)


Com a retomada do tempo comum, retomamos também à leitura, quase contínua, do Evangelho segundo Mateus na liturgia dominical. Neste décimo primeiro domingo, o texto evangélico que a liturgia oferece é Mt 9,36 – 10,8. Se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma característica da obra mateana.

O texto compreende, portanto, a conclusão da seção narrativa que seguiu-se ao discurso da montanha (9,36-38), e a introdução de um novo discurso (10,1-8), o chamado discurso missionário ou apostólico. Em seu conjunto, o texto mostra Jesus constatando uma situação e tomando iniciativa para transformá-la. Essa postura de Jesus deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

Consideramos importante recordar o versículo que antecede o nosso texto, para o compreendermos melhor: “Jesus percorria todas as cidades e povoados ensinando em suas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades” (9,35). Esse versículo sintetiza a missão de Jesus até então e, ao mesmo tempo, prepara o leitor para o que o texto de hoje irá apresentar: a continuidade e a extensão da missão de Jesus pela comunidade cristã.

Por se tratar de um texto relativamente longo, não nos deteremos na análise de cada versículo, mas procuraremos colher a mensagem global, embora seja imprescindível enfatizar alguns versículos específicos, como por exemplo, o de abertura do texto: “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (9,36). É a partir dessa constatação que Jesus vai tomar iniciativa para transformar a realidade.

A itinerância da atividade de Jesus (cf. 9,35) lhe dava propriedade para ver em profundidade a situação de miséria das multidões. Sua visão das realidades não era superficial, mas muito real e profunda. Como a miséria é a privação da vida, Ele sabia que aquela situação era o maior entrave para a implantação do Reino. Portanto, era necessário transformá-la para o Reino ser implantado. Daí nascia o sentimento de Jesus diante do que contemplou nas multidões: “compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas”.

Compadecer-se é o mesmo que sentir compaixão. Não se trata de um mero sentimento, mas é algo muito mais profundo, é um “mexer-se por dentro”. O verbo grego usado pelo evangelista (σπλαγχνίζομαι splanknizomai) deriva de um substantivo que significa vísceras (σπλαγχνoν splanknon). Sentir compaixão é, portanto, contorcer-se nas entranhas, o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforma a mentalidade hebraica. Mais profundo até que o coração. É a expressão máxima da misericórdia do Pai.

O que fazia Jesus contorcer-se até as entranhas era a situação das multidões: “estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não tem pastor”. Não se trata de um simples cansaço físico, o qual poderia ser sanado com algumas horas de repouso. O evangelista usa uma palavra grega que se traduz melhor por molestadas ou violentadas (εσκυλμενοι eskilmemoi). E ao invés de abatidas, a melhor tradução seria dispersas ou abandonadas. Portanto, Jesus constata que o povo foi violentando e abandonado pelo poder dominante, religioso e político.

A comparação com “ovelhas que não tem pastor” reflete o grau máximo de abandono e de degradação do qual as multidões eram vítimas. E revela, ao mesmo tempo, a corrupção e hipocrisia dos dirigentes, causa principal da situação de miséria do povo. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade; a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos perigos. Assim era a situação das multidões. É claro que a falta de pastores que cuidem das multidões é uma nítida crítica aos dirigentes religiosos, principalmente. Poderíamos recorrer a muitas passagens do Antigo Testamento e a outras do Novo para melhor fundamentar essa imagem. Preferimos não fazer isso para evitar um maior prolongamento.

Diante de uma situação de calamidade, vendo o povo ser violentado e completamente abandonado, Jesus não se conforma nem se desespera. Reforça sua confiança no Pai e pede a colaboração aos seres humanos: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a colheita” (9,37-38). No discurso da montanha, Ele já tinha recomendado aos discípulos que confiassem no Pai através da oração (cf. Mt 6,4.9-15.26). Aqui novamente Ele recomenda.

Consciente de que a missão será árdua, a imagem da “messe grande” significa isso, Ele sabe que a confiança no Pai e o trabalho humano são indispensáveis e inseparáveis para que a vida violentada pelo sistema dominante seja restaurada. A comunidade cristã não pode se acomodar e esperar apenas pelo Pai, muito menos confiar somente em suas próprias forças. Jesus pede que essas duas dimensões se unam para o resgate da vida violentada.

Se algo tem que ser feito, deve começar pelos mais próximos. Por isso, “Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de doença e enfermidade” (10,1). Diante da situação deplorável em que se encontrava o povo, Jesus toma uma atitude libertadora, estendendo aos discípulos as mesmas prerrogativas que recebeu do Pai. Não se trata de poderes extraordinários para operar milagres. Dar poder ou autoridade aos discípulos significa autorizá-los a fazer o mesmo que Jesus fazia (cf. 9,35). “Expulsar os espíritos maus, curar doença e enfermidade” é apenas uma figura de linguagem que evoca a responsabilidade da comunidade cristã: restituir a vida e a dignidade às pessoas que tinham sido espoliadas pelo sistema dominante político e religioso, principalmente.

De discípulos, os doze passam a ser apóstolos, conforme o evangelista menciona todos os nomes, de Simão, chamado Pedro a Judas Iscariotes (10,2). Não é uma lista hierárquica, bem como a introdução da designação de apóstolos não corresponde a uma “mudança de patente”. É apenas uma mudança de estado: de meros seguidores de Jesus a enviados. Até então, no discipulado, eles apenas assistiam ao que Jesus fazia. De agora em diante, Jesus os envia para que façam o mesmo. A designação de apóstolos (em grego αποστολοι apóstolos) não significa um título de honra, mas um estado: enviado, um estado de missão.

Quando o evangelista diz que “Jesus enviou esses doze com as seguintes recomendações: ‘Não deveis ir aonde moram os pagãos nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!”, ele não está demonstrando nenhuma condição privilegiada de Israel, nem reforçando a exclusão dos samaritanos e pagãos. Israel não recebe o anúncio do Reino por ter sido o primeiro destinatário das promessas de Deus. É um grande equívoco imaginar que o Evangelho segundo Mateus visa a restauração do antigo Israel. Pelo, contrário, é o Evangelho que mais evidencia a ruptura da comunidade cristã com a religião judaica.

Quando ele apresenta “as ovelhas perdidas da casa de Israel” como destino primeiro da missão da comunidade cristã, ele está dizendo que, ao invés de privilegiado, Israel é o mais necessitado da Boa Nova e, portanto, da libertação. De todas dominações, a pior é a religiosa. Os samaritanos e os pagãos estavam, assim como os judeus, sob o domínio político do império romano, mas não submetidos ao templo de Jerusalém. O império romano será contestado também, obviamente. Porém, é mais urgente libertar o povo da dominação e alienação religiosa. Além do domínio político de Roma, os judeus sofriam também com a dominação religiosa, muito mais danosa que o império romano. Se o povo estava violentado e abandonado, a culpa principal era da religião, graças aos abusos e omissões daqueles que deveriam agir como pastores.

O conteúdo do anúncio não deve ser outro: é apenas o advento do “Reino dos céus” (em grego βασιλεια των ουρανων basileia ton uranon). De fato, o Reino dos céus, o qual se manifesta como vida em plenitude, justiça, solidariedade, amor e inclusão é o único antídoto e resposta aos reinos deste mundo. Esse Reino não pode ser imaginado como um evento futuro, porque é no presente que as multidões são mutiladas e maltratadas, exploradas e privadas de vida e dignidade.

Os discípulos, convertidos em apóstolos, são enviados na gratuidade e no amor, para recuperarem a vida ameaçada e explorada. Por isso, devem ser promotores da libertação, como pede Jesus. Não cumprindo gestos mágicos ou fantasiosos, mas sendo sinais de vida, com atuação profética e cristã.

Ainda h0je, são muitos os males que impedem a realização plena do Reino dos céus já aqui. A comunidade cristã é chamada, assim como fez Jesus, a olhar para as multidões, perceber suas necessidades e intervir para transformar. Isso só será possível se a Igreja se colocar cada vez mais em estado de saída, pois somente saindo de si é possível ver a necessidade do outro!


Mossoró-RN, 17 de junho de 2017, Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues 

sábado, junho 10, 2017

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 3,16-18



Neste domingo dedicado à Santíssima Trindade, a liturgia nos oferece Jo 3,16-18 como texto evangélico. Como sempre, a nossa reflexão será pautada pelo Evangelho, e não por afirmações dogmáticas a respeito da Trindade. Como bem sabemos, os Evangelhos não apresentam nenhuma definição de Trindade, embora possamos, a partir deles, encontrar referências e fundamentos que sustentem uma teologia trinitária. Ao invés de conceituar a Trindade, o Evangelho de hoje nos convida mesmo é a confrontar a ideia que fazemos de Deus com o Deus que Jesus apresenta.

O texto oferecido é composto de apenas três versículos, muito profundos por sinal, os quais não podem ser bem compreendidos fora do contexto em que estão inseridos dentro do Quarto Evangelho. Faz parte do edificante diálogo entre Jesus e Nicodemos em Jerusalém. Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da páscoa (cf. 2,13; 3,1-2). Nesse diálogo, Jesus prolongou-se em uma das respostas, e é dessa resposta prolongada que o nosso texto foi extraído.

Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (cf. 3,1), estudioso e bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (cf. 3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim não estava pronto para aderir ao projeto de Jesus. Mas se distinguia dos demais fariseus com quem Jesus se confrontou.

Por precaução e medo de ser repreendido pelos seus colegas de doutrina, Nicodemos não quis ser visto com Jesus, por isso o procurou à noite. Afinal, Jesus tinha, há pouco tempo, desmascarado a religião judaica, ao denunciar o comércio e a hipocrisia praticados na casa que deveria ser do seu Pai, Deus, no episódio que chamamos equivocadamente de “purificação do templo” (cf. 2,13-22). Ora, qual a necessidade de purificar um edifício/instituição prestes a ser demolido? Portanto, Jesus não purificou o templo. Pelo contrário, decretou a sua falência e calamidade, defendendo a sua destruição.

Entremos, pois, no texto proposto com o primeiro versículo: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado. O mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Ao apresentar essa novidade, Jesus estava destruindo um dos principais pilares de sustentação da ortodoxa religião judaica: o privilégio da eleição exclusiva de Israel como povo de Deus e destinatário único de suas promessas.

Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação “Deus amou o mundo” (em grego hvga,phsen o` qeo.j to.n ko,smon – egapessen hó theós ton kósmon) é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que “Deus deu o seu Filho” para a humanidade. O mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe, recebe a vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego zwh. aivw,nioj – zoé aiônios), não significa uma vida no além. “Eterna” aqui não é a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu evangelho. A “vida eterna” não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. À medida que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador.

O segundo versículo reforça o que diz o primeiro: “De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Se o primeiro declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: julgar! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar” (verbo grego kri,nhw - krinô), uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, não julga e, portanto, não condena ninguém.

Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai louco de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas religiões falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor.

O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. Isso não depende de um juízo divino, é escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.

Aceitar o dom do Pai, Jesus, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.

O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (cf. 7,50) e ajudando no seu sepultamento (cf. 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica.

Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai louco de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
  

sábado, junho 03, 2017

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PENTECOSTES – JOÃO 20,19-23


Para o domingo de pentecostes, o texto evangélico oferecido pela liturgia é João 20,19-23, o relato da primeira manifestação do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos, no primeiro dia da semana. Esse texto já foi usado pela liturgia, como parte do Evangelho do segundo domingo da páscoa: Jo 20,19-31.

Ao contrário do que Lucas propõe em Atos dos Apóstolos, a comunidade joanina fez de tudo para que os seus referenciais não coincidissem com os esquemas litúrgicos judaicos. De fato, o envio do Espírito Santo no dia da festa judaica de Pentecostes é um elemento exclusivamente lucano. Pentecostes era uma das três grandes festas judaicas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa das Tendas), era celebrada no quinquagésimo dia após a festa dos ázimos, a páscoa.

Para a comunidade joanina, o Senhor ressuscitado doa o Espírito, seu dom maior, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema lucano, a proposta da comunidade joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como vemos no Evangelho de hoje.

Embora estejamos, de fato, há cinquenta dias da páscoa, o Evangelho nos convida a retornarmos para aquele primeiro dia, o da ressurreição. Somente Maria Madalena tivera, até então, o privilégio de ver o Ressuscitado. Entre os discípulos reina o medo e a dúvida, como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles disse: a paz esteja convosco” (v 19).

Certamente, aquele foi um dia de muita tensão entre os discípulos. Isso se evidencia pelas informações do primeiro versículo: “reunidos de portas trancadas, por medo dos judeus”.  Embora a versão litúrgica do texto use a expressão “portas fechadas”, o evangelista usa mesmo é “de portas trancadas”, (em grego tw/n qurw/n kekleisme,nwn – ton thyron kekleisménon). Isso denota insegurança e medo em demasia. Era uma comunidade em crise, desmoronando.

Embora em crise e amedrontada, parece que a comunidade estava decidida a não voltar mais aos esquemas de sempre: estava reunida “ao anoitecer do primeiro dia da semana”. Segundo o esquema litúrgico judaico, o anoitecer já não fazia mais parte do mesmo dia. Na embrionária comunidade cristã é necessário que o dia se prolongue, ou seja, as trevas não podem prevalecer sobre a luz.

A situação de medo em que os discípulos se encontravam deve ser vista em um sentido mais amplo. Embora o evangelista afirme que era por “medo dos judeus” (em grego fo,bon tw/n VIoudai,wn – fóbon ton iudaion), não podemos generalizar. Nem todos os judeus transmitiam medo aos discípulos. O evangelista se refere às autoridades e fariseus que sempre foram hostis a Jesus e, continuavam sendo também aos discípulos (cf. 9,22; 12,42; 16,16).

Enquanto não fizer uma experiência de encontro com o Ressuscitado, toda comunidade tende a fechar-se por medo e falta de convicções. Naquele medo estava a angústia, a desilusão e o remorso de alguns. O medo é, portanto, a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado, toda comunidade perece.

Diante dessa situação, eis que “Jesus entrou e, pôs-se no meio deles”. Aqui aparece a primeira condição para a comunidade superar a crise: ter Jesus como centro. Com isso, o evangelista reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade livre, igualitária, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. Trata-se de um claro combate à tendência hierarquizante na comunidade do discípulo amado. É esse o significado do seu colocar-se no meio.

Somente tendo o Ressuscitado como centro, a comunidade pode acolher os seus dons. E o primeiro dom oferecido é a paz. A tradução litúrgica diz “a paz esteja convosco”, mas o correto é “paz a vós” (em grego eivrh,nh u`mi/n – eiréne himin), quer dizer que essa paz é atemporal, não pode faltar jamais na comunidade. A paz é sinal da vida em plenitude, o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões, sinal da autêntica felicidade. Obviamente, se o Ressuscitado não estiver no centro, a comunidade não poderá alcançar esse estado de vida.

Na continuidade da experiência, Jesus mostra as mãos e o lado (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, da cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso, Ele diz que a cruz não foi o fim. Assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o motivo principal da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. A cruz não foi um acidente nem algo a ser esquecido pela comunidade; pelo contrário, foi consequência das opções de Jesus, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre habituados com a cruz.

Finalmente, o medo foi vencido: “os discípulos se alegraram por verem o Senhor”. Conforme Ele mesmo tinha garantido, a tristeza dos discípulos foi transformada em alegria (cf. Jo 16,20). De uma situação de medo, a comunidade passa à alegria, como consequência da experiência com o Ressuscitado. A alegria é uma característica marcante da comunidade que vive e celebra a presença do Ressuscitado.

A paz é novamente oferecida (v. 21a). Só é possível acolher plenamente os dons pascais com a paz oferecida por Jesus. É a mesma paz transmitida anteriormente como antídoto ao medo. Aqui, nessa segunda vez, a paz precede o envio, como encorajamento para a missão: não basta transformar o medo em alegria, é necessário anunciar e partilhar essa alegria... a alegria do Evangelho!

Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira destinatária da missão, porque é nessa que estão as situações de medo, desconfiança, falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado. Sendo portadores da sua paz, os discípulos são enviados com as mesmas credencias, pois Ele os envia como o “Pai o enviou” e, portanto, devem fazer as mesmas opções e assumir as respectivas consequências.

O texto mostra, como sempre, a conexão entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente (Gn 2,7). O verbo soprar (em grego evmfu,sa,w – empsáo) significa transmissão de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira.

Finalmente, a comunidade foi revivificada e habilitada para a missão. Ao receber o Espírito Santo (em grego pneu/ma a[gioj – pneuma háguios), a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro.

O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão, equivocadamente. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do ressuscitado a todas as pessoas e de todos os lugares. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado.

Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).

João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia à comunidade essa responsabilidade.  Os pecados são perdoados à medida que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade.

É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada!

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues


REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...