quinta-feira, outubro 31, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a



Todos os anos, a liturgia propõe para a solenidade de todos os santos o texto de Mateus 5,1-12a. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido a repetição constante do termo grego μακαριοι – makárioi, cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados.

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação.

Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido a ocorrência do termo grego μακαριοι – makárioi por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é μακαριοι – makárioi, o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é אשרי – ashrei, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças não passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido a pior interpretação ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχος – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνευμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se Ele dissesse: “não parem, continuem caminhando e lutando”. Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme Ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por Jesus entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

sétima bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra   שלום– shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro e na sobreposição de uns sobre os demais. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Não consideramos essa afirmação como uma nova bem-aventurança, mas como um reforço e síntese das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como Ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como Ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho; não para fugir da realidade, mas para transformá-la.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 26, 2019

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,9-14 (ANO C)




A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum propõe a leitura da conhecida parábola do fariseu e o publicano – Lc 18,9-14 – um texto exclusivo do Evangelho segundo Lucas, inserido no contexto do longo caminho de Jesus em direção à cidade de Jerusalém (Lc 9,51 – 19,27). Como temos repetido, esta seção narrativa do caminho reúne os principais ensinamentos de Jesus ao seu discipulado, dentro da dinâmica do evangelista Lucas. E dentre os principais ensinamentos de Jesus está, obviamente, a oração, tema central do capítulo dezoito de Lucas, tratado em duas parábolas: a primeira, do juiz injusto e a viúva insistente (vv. 1-8), foi lida no domingo passado, e a segunda, do fariseu e o publicano (vv. 9-14), corresponde ao evangelho de hoje. Embora esse tema receba um destaque especial no capítulo dezoito, é importante recordar que a oração é um dos temais principais de todo o Evangelho de Lucas.

Convém recordar que Lucas apresenta, entre o batismo e a paixão, sete momentos de Jesus rezando/orando (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,28-29; 11,1; 22,41). Considerando a simbologia do número sete como perfeição e totalidade, e o batismo e a paixão como início e conclusão do ministério, Lucas quer mostrar que toda a vida de Jesus foi marcada e conduzida pela oração, pela intimidade com o Pai. Ora, se toda a vida de Jesus foi marcada pela oração, obviamente, também a vida dos seus discípulos e discípulas deve ser. Por isso, a insistência com o tema. É importante, no entanto, não considerar a oração como algo isolado na vida de uma pessoa, mas relacionada com as concepções e atitudes de cada um/a, sobretudo a maneira de relacionar-se com Deus e o próximo. Uma imagem distorcida de Deus leva o ser humano a atitudes reprováveis, como o orgulho, a prepotência e o desprezo pelo próximo, como denuncia a parábola de hoje.

Olhemos, então, para o texto que possui dois versículos introdutórios, ambos muito importantes. Sem compreendê-los bem, logo, a compreensão de toda a parábola estará comprometida. Eis o primeiro: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros:” (v. 9). Esse versículo é extremamente importante, sobretudo no que diz respeito aos destinatários da parábola. Ora, é muito comum lermos nos evangelhos, incluindo o de Lucas, fórmulas introdutórias aos ensinamentos de Jesus como “Jesus contou aos discípulos”, “Jesus disse às multidões”, “Jesus contou aos fariseus”, etc. A maneira como Lucas introduz a parábola de hoje chega a ser surpreendente pela abrangência, sobretudo; não é dirigida a um grupo específico, mas a todas as pessoas que se comportam da maneira descrita, ou seja, “a quem confia na própria justiça e despreza os outros”, independentemente do grupo religioso e da condição social de pertença.

Pelo conteúdo da parábola, muitos leitores, precipitadamente, imaginam logo que os destinatários sejam os fariseus. Porém, como a parábola anterior (lida no domingo passado) dizia claramente que os destinatários eram os discípulos, e essa de hoje é praticamente a continuação daquela, podemos concluir que também essa tem como destinatários principais e primeiros os próprios discípulos que insistiam em não assimilar o que Jesus ensinava. Ora, julgar o próximo e considerar-se justo é uma tendência comum nos seres humanos e que, no entanto, deve ser combatida com veemência, sobretudo entre os seguidores de Jesus. O evangelista se preocupa com o presente das suas comunidades e o futuro de todo o cristianismo. Mais do que o desânimo, consequência das perseguições externas, tendência combatida pelo evangelista com a parábola do juiz injusto e a viúva insistente (evangelho do domingo passado), o que mais ameaçava a vida interna das comunidades era a arrogância de alguns membros que se consideravam justos e irrepreensíveis, pessoas que se achavam perfeitas e santas. E a primeira tendência de quem se considera perfeito é desprezar quem não se comporta da mesma maneira. O desprezo pelos outros, portanto, é consequência do sentir-se justo e, obviamente, de uma imagem errada de Deus. Com certeza, ainda hoje, há muitas pessoas nas comunidades e movimentos cristãos com essa tendência, e é exatamente isso que faz desta parábola uma das mais atuais de todo o Novo Testamento.

O segundo versículo introdutório também é muito importante, pois já nos insere no conteúdo mesmo da parábola, com a apresentação dos personagens e do cenário: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos” (v. 10). Considerando a primeira parte do versículo, não vemos nada de surpreendente: sendo o templo a casa de oração, por excelência, é muito comum o fato de dois homens subirem até lá para rezar. Aqui, o verbo subir (em grego: άναβαίνω – anabaíno) tem o mesmo sentido que dirigir-se ou entrar; é o verbo que os judeus empregavam com orgulho para expressar a ida ou a entrada, tanto no Templo quanto na cidade de Jerusalém. Ora, estando Deus nos céus, ou seja, nas alturas, como imaginavam os judeus, o encontro com Ele exigia do ser humano um movimento para cima, e a localização elevada da cidade de Jerusalém e do templo, especialmente, favoreciam esse movimento. A surpresa surge na apresentação dos personagens. É típico de Lucas apresentar dois personagens juntos, mas com características opostas; aplicando a técnica retórica chamada de paralelismo antitético. Um fariseu e um publicano constituíam os pólos opostos da sociedade palestinense da época de Jesus, principalmente no âmbito religioso.

O fariseu era símbolo de religiosidade e vida impecável. Embora os evangelhos apresentem os fariseus com traços bastante negativos, a ponto de os associarem de imediato à hipocrisia, na verdade eles constituíam a classe das pessoas mais respeitadas na época. Pela observância minuciosa da Lei e pelas boas obras que cumpriam, eles gozavam da simpatia popular, principalmente pela vida exemplar que levavam. Já o cobrador de impostos, pelo contrário, gozava de uma péssima reputação. Conhecidos também como publicanos, os cobradores de impostos eram colaboradores diretos do poder opressor, o império romano. Além das altas taxas exigidas pelo império, eles ainda cobravam grandes proporções a mais, enriquecendo ilicitamente às custas do povo mais pobre, principalmente; além do salário, ainda retinham para si o que cobravam em excesso. Por isso, eram odiados pelo povo e totalmente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que observassem a Lei. A oração do fariseu, no versículo seguinte, deixa bastante clara a má reputação do cobrador de impostos: é o último dos últimos, em termos de prestígio social e religioso, considerado pior que “os ladrões, desonestos e adúlteros” (v. 11). Portanto, Jesus escolheu, aqui, um personagem símbolo de perfeição (o fariseu) e outro símbolo de degradação moral (o cobrador de impostos) para contrapô-los e alertar os cristãos sobre o perigo de sentir-se superior aos demais.

A parábola não se limita a dizer que os dois subiram para orar, mas mostra também o conteúdo da oração de cada um; e é esse conteúdo o que vai determinar o desfecho da história. Primeiro, é descrita a oração do fariseu: “O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos” (v. 11). Como se vê, a oração do fariseu é toda voltada a si mesmo; ele não agradece pelo que Deus faz em sua vida, mas pelo que ele mesmo faz, considerando-se superior e demonstrando total desprezo pelas demais pessoas. Sua oração é um louvor a si próprio. Ao invés de confrontar sua vida com o projeto de Deus, ele a compara à vida dos outros. Na verdade, ele considera Deus um mero contador, a quem apresenta as boas obras e recebe créditos em troca. Para provar que era um homem “acima da média”, ele elenca suas vantagens: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dizimo de toda a minha renda” (v. 12). Ora, a Lei exigia o jejum apenas uma vez ao ano, no chamado “dia da expiação” (cf. Lv 16,29); os judeus mais devotos, no entanto, como este fariseu, jejuavam duas vezes por semana, nas segundas e quintas-feiras, em alusão à subida e à descida de Moisés ao monte para receber a Lei, imaginando que com esta prática acumulariam créditos diante de Deus. Quanto ao dízimo, a Lei exigia apenas dos produtos principais: do trigo, do vinho, do azeite e das primeiras crias do rebanho (cf. Dt 14,22-27), enquanto este fariseu dava o dízimo de tudo. Em sua oração, portanto, o fariseu não fez mais que uma prestação de contas a Deus.

Já a descrição da oração do cobrador de impostos revela a postura de uma pessoa sincera, que tem consciência da sua condição de pecador: “O cobrador de impostos, porém, ficou à distância e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu; mas batia no peito dizendo: ‘Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!’ (v. 13). Antes de tudo, vale ressaltar a coragem deste cobrador de impostos; ora, como pecador público, ele foi ousado ao entrar no templo, pois sabia que seria observado pelas pessoas e até julgado e escarnecido, como foi pelo fariseu em sua oração: “não sou como este cobrador de impostos” (v. 11). O reconhecimento da condição de pecador é evidenciado pela postura e as palavras do cobrador de impostos. Sobre a postura: ficou à distância e sem coragem de levantar os olhos para o céu, e batia no peito, em sinal de penitência e arrependimento; sobre as palavras: expressam a oração dos humildes de Deus – ‘Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!’  uma fórmula bastante repetida nos salmos penitenciais (cf. Sl 25,11; 51,13; etc). Somente quem é humilde reconhece a necessidade de Deus em sua vida.

A parábola é concluída com uma declaração solene e surpreendente de Jesus: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e que se humilha será elevado” (v. 14). A fórmula solene “eu vos digo” (em grego: λέγω ύμιν – lêgô himin) antecede sempre um ensinamento importante e definitivo, algo irrevogável, como é o desfecho desta parábola. Isso significa que se trata de algo muito importante para a comunidade cristã. A surpresa é que o cobrador de impostos foi justificado e o fariseu não. Ser justificado significa ser reconciliado com e por Deus e admitido à salvação; e isso não se dá por méritos pessoais, mas pela gratuidade do amor de Deus. Voltado para si e para os seus méritos, o fariseu não se abriu à misericórdia de Deus. O cobrador de impostos, pelo contrário, reconhecendo sua condição de pecador, suplicou o perdão de Deus e recebeu justiça. E a justiça de Deus, que não é retributiva, está à disposição de quem necessita e a busca de coração sincero. A frase final é um provérbio, usado por Lucas em outras duas ocasiões (cf. Lc 14,11; 18,14), que expressa a lógica contraditória do Reino, um tema tratado por Lucas desde o início do seu evangelho, no Magnificat: “dispersou os orgulhosos, aos humildes exaltou” (Lc 1,51b.52b).

À guisa de conclusão, convém recordar alguns elementos: Jesus não declarou que o fariseu é uma má pessoa, muito menos reprovou a sua fidelidade à Lei; porém, condenou a sua postura egoísta, a sua autossuficiência e o seu desprezo pelos demais como consequência de uma visão distorcida de Deus. Sendo o fariseu a imagem mais expressiva de uma pessoa religiosa na época, Jesus quis alertar os seus seguidores, de outrora e de sempre, que as pessoas religiosas demais são as que mais tendem a distorcer a imagem de Deus. Por outro lado, Jesus não apresentou o cobrador de impostos como um exemplo de comportamento para os seus discípulos imitarem; não resta dúvidas, inclusive, de que Jesus condenava a exploração dos cobradores de impostos e a contribuição que davam ao sistema opressor, o império romano; Jesus apenas mostrou que a sua atitude humilde, reconhecendo seus limites e sua condição de pecador, foram determinantes para receber a justiça de Deus. O ensinamento geral da parábola é uma denúncia clara a qualquer pessoa que se sente justa e despreza os demais. Há pessoas prepotentes em todos os lugares; porém, o lugar mais inapropriado para estas pessoas estarem é a comunidade cristã.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
francornelio@gmail.com

sábado, outubro 19, 2019

REFLEXÃO PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,1-8 (ANO C)




Chegamos ao vigésimo nono domingo do tempo comum, o que significa que já nos aproximamos do final do ano litúrgico, e a liturgia propõe, mais uma vez, um texto exclusivo do Evangelho segundo Lucas, ainda dentro da longa seção narrativa do caminho de Jesus em direção à Jerusalém: a parábola do juiz injusto e a viúva insistente (18,1-8). Por sinal, esse caminho também está sendo quase concluído, restando, depois de hoje, apenas dois domingos em que ainda leremos trechos desta seção narrativa. Como temos afirmado, não se trata apenas de um percurso físico-geográfico, mas de um itinerário catequético e teológico cuja finalidade é a formação do discipulado de Jesus. Por isso, é durante o caminho que o evangelista apresenta os principais ensinamentos de Jesus aos discípulos e discípulas, sendo até mesmo repetitivo e insistente, conforme a necessidade e a importância do ensinamento. O texto de hoje – Lc 18,1-8 – apresenta um dos temas que parece repetitivo na catequese de Jesus em Lucas: a oração contínua, juntamente com a busca da justiça e a perseverança na fé.

Localizada entre um pequeno discurso escatológico (Lc 17,20-37) e a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14), a parábola do juiz injusto e a viúva insistente possui uma riqueza ímpar, embora carregue em si algumas dificuldades de interpretação, o que tem contribui para que ela passe quase despercebida no rico conjunto das parábolas exclusivas de Lucas. Inclusive, há estudiosos que, equivocadamente, a vêem como mera introdução à conhecida parábola do fariseu e o publicano. O certo é que a beleza e a clareza desta última, a qual será lida na liturgia do próximo domingo, contribui bastante para ofuscar a parábola de hoje, tão rica de sentido, mas de difícil interpretação. O primeiro passo para compreendê-la bem é considerar o contexto histórico das comunidades do evangelista, as primeiras destinatárias do texto.

Ora, entre os anos 80 e 90 do primeiro século, período da redação do Evangelho segundo Lucas, quando Domiciano era o imperador romano, as perseguições aos cristãos já estavam em plena evidência, o que gerava um clima de desânimo nas comunidades. Daí, a necessidade de uma palavra de encorajamento e estímulo à perseverança diante das hostilidades. Além da violência, os cristãos eram vítimas de preconceitos e marginalização; pelo fato de serem cristãos, todo o aparato administrativo do império conspirava contra eles; inclusive, nos tribunais as causas sempre eram julgadas e resolvidas em seu desfavor. Diante disso, muitos cristãos desanimavam. Além disso, muitos dos cristãos das comunidades ligadas ao evangelista Lucas eram de origem pagã e não estavam habituadas à prática da oração; em suas práticas religiosas anteriores a relação com o divino se dava basicamente por meio de ritos e sacrifícios, por isso tinham dificuldade de assimilar a necessidade da oração constante, e esse foi um motivo a mais para o evangelista insistir tanto com esse tema.

Feita a devida contextualização, olhamos para o texto, cujo primeiro versículo tem a função de introdução e síntese, ao mesmo tempo: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir, dizendo:” (v. 1). Quando o evangelista introduz um ensinamento de Jesus dizendo que é dirigido aos discípulos, é sinal de grande importância e valor; significa que esse ensinamento é essencial para o discipulado de todos os tempos, como esta parábola de hoje. De fato, a prática da oração contínua, juntamente com a luta por justiça e a perseverança na fé são dimensões que se a comunidade as abandonar, deixa de ser uma comunidade cristã. Obviamente, o evangelista não trata de uma oração ininterrupta como a repetição contínua de uma fórmula, mas de uma oração que caracterize a própria existência. É, acima de tudo, um convite para os cristãos ritmarem as suas vidas pela oração, 0u seja, pela intimidade com Deus. A oração contínua dos cristãos visa sempre a chegada do Reino (cf. Lc 11,2), que é essencialmente um reino de justiça.

Do versículo introdutório, passamos ao conteúdo próprio da parábola. Embora o tema anunciado pelo narrador tenha sido apenas a oração, logo se percebe que esse compreende também a busca por justiça. É uma parábola tipicamente lucana, a começar pela construção dos personagens: um juiz injusto e uma viúva insistente. É típico de Lucas apresentar dois personagens em paralelo com grandes diferenças entre si, sobretudo nas parábolas, com o objetivo de levar o leitor a escolher um lado, identificando-se com um dos personagens; exemplos: o pobre Lázaro e o rico avarento (cf. Lc 16,19-31), o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14). Eis, portanto, o primeiro personagem: “Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (v. 2). A tradição bíblica, desde o Antigo Testamento, apresenta os magistrados com traços bastante negativos, de modo que essa descrição do juiz da parábola é uma verdadeira síntese: a falta de temor a Deus e de respeito ao próximo representa o máximo de prepotência e injustiça.

A experiência de Israel em sua história mostra a atuação de juízes corruptos e adeptos ao suborno. Por isso, um dos alvos constantes das denúncias dos profetas foi a figura do juiz ou “administrador da justiça” (cf. Is 10,1; Am 5,7; etc). Além de ser uma crítica à magistratura, essa descrição também sintetiza o oposto de como deve ser a pessoa cristã. Temor a Deus não significa medo, mas reverência, é o reconhecimento da sua grandeza e do seu amor; o respeito ao próximo é o reconhecimento da dignidade do outro, do valor que cada um possui por ser imagem e semelhança do Criador, independente das características individuais de cada um. As características do juiz, portanto, são de quem não está aberto ao advento do Reino de Deus e, portanto, não pode fazer parte da comunidade cristã, por mais inclusiva que essa comunidade seja.

Paralelo ao juiz, o evangelista apresenta o segundo personagem, com características completamente diferentes: “Na mesma cidade havia uma viúva, que vinha à procura do juiz, pedindo: ‘Fazei-me justiça contra o meu adversário!’ (v. 3). Se o primeiro personagem é um homem poderoso e prepotente, um juiz, o segundo é uma mulher indefesa e injustiçada. Convém recordar que a figura da viúva, na tradição bíblica, é uma das expressões mais fortes da vulnerabilidade e, consequentemente, da predileção de Deus. De fato, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, há uma atenção especial às viúvas, principalmente na obra de Lucas (cf. Lc 2,37; 4,25-26; 7,12; 20,47; 21,2-3; At 6,1; 9,31.41). Ora, o estado de viuvez em si já é motivo de cuidados e preocupação, o que exige bastante proteção; tudo isso aumenta ainda mais quando a viúva tem um adversário (em grego: αντίδικος – antídikos) que ameaça constantemente os seus poucos direitos. A cena retrata bem uma situação muito comum no antigo Israel: as viúvas tinham suas heranças roubadas e ao recorrer aos tribunais tinham sempre o desfecho da causa em seu desfavor. Mesmo que o evangelista não especifique a causa do pleito da viúva, os casos mais comuns tinham a ver com herança.

Como se trata de uma parábola, o que significa uma comparação, o objetivo do evangelista é descrever, de modo comparado, a situação dos cristãos e cristãs da sua época. Assim, o juiz da parábola é a imagem do império romano com todo o seu aparato ideológico e militar que nega vida e dignidade aos mais pobres, mas também os sistemas dominantes de todas as épocas. A viúva, por sua vez, é a imagem das comunidades cristãs da época do evangelista, especialmente, que eram vítimas de injustiças e perseguições, sem nenhum direito reconhecido, sem nenhum amparo legal; essa imagem se aplica também às comunidades de todos os tempos. O Reino de Deus não será instaurado a partir dos sistemas de poder estabelecidos no mundo, mas a partir da luta insistente dos cristãos e cristãs que rezam e buscam a justiça constantemente.

O desfecho da parábola mostra que vale a pena lutar, mesmo quando tudo conspira contra: “Durante muito tempo, o juiz se recusou. Por fim, ele pensou: ‘Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (vv. 4-5). A insistência da viúva é uma demonstração de que não pode haver espírito de conformismo e nem resignação na comunidade cristã; essa não pode assistir passivamente às injustiças e negação da vida. Porém, não pode recorrer à violência. A construção do Reino exige paciência e coragem para lutar sempre, sem desanimar. As situações adversas não são meras fatalidades do destino, e muito menos vontade de Deus. Tudo o que é injusto deve ser mudado e combatido pelos cristãos e cristãs. Porém, as mudanças não acontecem com a rapidez desejada. Por isso, é necessário perseverança e paciência.

A explicação final que Jesus dá, de acordo com o evangelista, é o que dá margens a interpretações equivocadas da parábola, tornando-a difícil, como alertamos na introdução: “E o Senhor acrescentou: “Escutai o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa.” (v. 6-8a). O equívoco que deve ser evitado é comparar o juiz a Deus. Ora, os atributos do juiz são o oposto de Deus, o qual é descrito por Lucas como um Pai cheio de amor e compaixão pela humanidade (cf. Lc 15). Uma das poucas certezas que podemos ter na vida é a de que Deus é justo e a sua justiça nos é favorável. Porém, essa certeza não deve ser motivo de conformismo, e sim um incentivo para os cristãos lutarem sem cessar, rezando, trabalhando e denunciando, para que os sistemas injustos deste mundo sejam transformados. A palavra mais repetida no texto é justiça: aparece quatro vezes (vv. 3.5.7.8). Assim, Jesus ensina, através do evangelista, que a essência de ser cristão é empenhar-se por justiça.

Na conclusão, temos uma chamada de atenção sobre a necessidade da fé perseverante como algo imprescindível para as comunidades manterem viva a luta por justiça: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v. 8). Se trata de uma pergunta retórica que visa chamar a atenção dos discípulos de todos os tempos. A vinda do Filho do Homem é uma referência à parusia, quer dizer, ao final dos tempos, e significa que a fé é necessária durante todo o tempo, durante toda a vida. É necessário que até lá os discípulos permaneçam em oração sem cessar. A fé, aqui, portanto, é a consciência e a atitude do discipulado em manter-se constantemente em oração, paralelo à busca por justiça.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: francornelio@gmail.com

sábado, outubro 05, 2019

REFLEXÃO PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 17,5-10 (ANO C)




O texto evangélico que a liturgia deste vigésimo sétimo domingo do Tempo Comum nos apresenta continua a nos situar no longo caminho de Jesus para Jerusalém, com os seus discípulos. É certo que nesse longo caminho muitos obstáculos são encontrados, enfrentados e superados. Como esse caminho é, sobretudo, um itinerário formativo para o discipulado de todos os tempos, os obstáculos se estendem também aos leitores e leitoras do Evangelho de Lucas, tanto no que diz respeito às exigências para o seguimento de Jesus, quanto à compreensão daquilo que o texto quer dizer. Diante disso, podemos afirmar que o texto de hoje – Lc 17,5-10 – pode ser considerado um destes obstáculos, tendo em vista as dificuldades de interpretação que o mesmo apresenta.

Uma vez que estamos diante de um texto considerado difícil, a melhor forma de ir superando as dificuldades de compreensão é olhando para o seu contexto. Ora, o capítulo dezessete de Lucas apresenta a retomada das exigências de Jesus aos seus discípulos. À medida em que avança no caminho e se aproxima de Jerusalém, Jesus vai deixando cada vez mais claro o que é necessário para os discípulos continuarem com Ele. Muitas exigências já tinham sido apresentadas até então: a renúncia a todos os bens (cf. Lc 14,33), a coragem para enfrentar a cruz como consequência do discipulado (cf. 14,27) e até mesmo a ruptura nas relações familiares (cf. Lc 14,26). Até então, parece que a fé dos discípulos estava sendo suficiente para suportar tantas exigências. Pelo menos, não tinham reclamado ainda, embora nem tudo fosse claro para eles. Porém, surge uma nova fase com obstáculos mais difíceis.

A situação se complica quando Jesus exige dos discípulos a disponibilidade para perdoar constantemente e ilimitadamente ao irmão que tiver ofendido (cf. 17,3-4). Portanto, para compreendermos bem o evangelho de hoje, é necessário partirmos do seu contexto imediato, recordando a mensagem apresentada nos versículos iniciais deste capítulo dezessete (vv. 1-4). A primeira recomendação feita por Jesus foi o cuidado com o “escândalo” (cf. Lc 17,1-2), recomendando que seus discípulos não escandalizassem a nenhum dos pequeninos, os destinatários principais do Reino de Deus (os pobres; as mulheres; as pessoas marginalizadas de modo geral). É importante ressaltar que “escândalo” (em grego: σκάνδαλον = skandalon) na linguagem do Novo Testamento não significa propriamente um comportamento moral inadequado, e sim um obstáculo para o Reino, tudo o que é capaz de atrapalhar uma adesão completa a Jesus, como o apego aos bens materiais, o orgulho, a inveja, a incapacidade de perdoar, e tantos outros.

Dentro da advertência sobre os “escândalos”, Jesus apresentou a maior de todas as exigências até então: a necessidade e a disponibilidade para perdoar de modo ilimitado, até sete vezes num único dia, sinal de totalidade, ao irmão que tiver ofendido (vv. 3-4). Foi essa exigência que deixou os apóstolos em crise, a ponto de perceberem que não tinham, ainda, uma fé suficiente para tal. Deixar a família, abrir mão dos bens, abraçar a cruz e romper com tantos laços tradicionais parecia mais fácil do que perdoar. E, para Jesus, o maior escândalo que pode existir entre os seus seguidores é a falta de perdão. Sem dúvidas, essa foi a maior exigência feita até aqui.

Desconcertados pela exigência de perdoar ilimitadamente, diz o evangelista que “Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!’” (v. 5). O emprego do termo “apóstolos” aqui, ao invés de “discípulos” reflete a necessidade do evangelista mostrar às suas comunidades que até mesmo o grupo dos primeiros seguidores de Jesus tiveram a sinceridade de se reconhecerem necessitados da ajuda de Jesus, ou seja, não foram autossuficientes. trata-se de uma reação ao que lhes fora anteriormente exigido. Ora, na época da redação do evangelho já não havia mais nenhum dos apóstolos vivos e, por terem convivido pessoalmente com Jesus, o que o evangelista transmitisse como palavras deles tinha muito peso para as comunidades. Ao pedido dos apóstolos, Jesus responde até de modo irônico, dizendo, antes de tudo, que a fé não se mede quantitativamente. Os apóstolos consideravam que já tinham fé, mas não em quantidade suficiente para abraçarem a exigência do perdão. Porém, essa exigência não era tão nova, pois já estava contida no Pai-nosso: “Perdoa os nossos pecados como também nós perdoamos aos nossos devedores” (cf. Lc 11,4); assim, a oração ensinada por Jesus, também em resposta a um pedido deles, “Senhor, ensina-nos a orar” (cf. Lc 11,1-4), não estava sendo levada a sério. Por isso, a resposta de Jesus soa irônica.

Se os apóstolos concebiam a fé como algo mensurável quantitativamente, imaginavam que já possuíam em pequena quantidade e, portanto, necessitavam de algumas “porções” a mais. Daí a ironia de Jesus com o exemplo parabólico do grão de mostarda: “O Senhor respondeu: ‘Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (v. 6). Em outras palavras Jesus disse que ou se tem fé ou simplesmente não se tem, ou seja, basta que seja autêntica, qualitativa e não quantitativa. O grão de mostarda era considerado o menor dos grãos conhecidos na época, inclusive já utilizado pela tradição sinótica em uma parábola sobre o Reino de Deus (cf. Mt 13,31-32; Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Para deixar os apóstolos ainda mais desconcertados, Jesus usa o exemplo oposto da amoreira, a árvore conhecida na sua época como a possuidora das raízes mais profundas e de maior tempo de sobrevivência e, portanto, a mais difícil de ser arrancada; e se o simples fato de uma amoreira ser arrancada já parecia impossível para a mentalidade da época, menos possível ainda seria a sua sobrevivência no mar.

É importante também recordar aqui a criatividade de Lucas, o qual modifica e enriquece a tradição recebida: em Mateus e Marcos essa demonstração da força da fé é feita com a imagem do mover-se de uma montanha (cf. Mt 17,20; Mc 11,23), enquanto Lucas a substitui por uma árvore. A resposta é simbólica e irônica. Jesus não promete dar algumas porções a mais de fé aos apóstolos, porque isso não é possível. A fé não pode ser medida e muito menos ofertada por Ele. A fé é a resposta incondicional ao seu amor, é a adesão plena ao Reino, e isso é pessoal. O exemplo da fé com poder de fazer uma árvore arrancar-se sozinha e plantar-se no mar é apenas um modo de dizer que a fé transforma realidades, quando autêntica. No caso dos apóstolos, era a mentalidade deles que necessitava de uma transformação. Portanto, Ele não promete o poder de fazer e ver milagres extraordinários a quem tem fé; pede uma transformação interior e radical, a começar pela vivência do perdão sem medidas. O grande milagre da fé é arrancar pela raiz tudo o que obstaculiza o advento pleno do Reino de Deus: o egoísmo, a injustiça, a falta de amor e de solidariedade, o apego aos bens materiais, a dureza de coração; é tudo isso que, movidos pela fé, os cristãos devem “jogar no mar”, recordando que na mentalidade bíblica o ‘mar’ tem um sentido muito negativo, pois era considerado também o lugar onde habitavam as forças do mal. Inclusive, no início do capítulo em questão, como destino de quem escandalizar um pequenino, Jesus sugere “ser jogado no mar” (cf. Lc 17,1-2).

Na continuação, Jesus conta-lhes uma pequena parábola (vv. 7-10), aparentemente sem nexo com a discussão sobre a fé, porém intrinsecamente relacionada: “Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: ‘Vem depressa para a mesa?’ Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e bebe?’. Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado?” (vv. 7-9). Trata-se de mais uma parábola exclusiva de Lucas. Com ela, Jesus quer mostrar aos discípulos a melhor maneira de cultivar e viver uma fé autêntica e verdadeira: colocando-se como servos, completamente disponíveis e despretensiosos. Ora, vigorava na época, sobretudo em ambientes farisaicos, uma mentalidade meritocrática.

Os fariseus observavam fielmente a Torá pensando na retribuição, vivendo uma relação contratual com Deus: observavam a Lei porque eram justos e, portanto, seriam mais merecedores dos dons de Deus. Infelizmente, essa mentalidade contaminava também os discípulos de Jesus. O evangelista Lucas observou isso em suas comunidades. Havia uma reivindicação de privilégios entre as lideranças das comunidades; por isso, ele quis mostrar que o verdadeiro discípulo é aquele que, movido por uma fé autêntica, não reivindica direitos nem privilégios para si. Tudo o que faz é para a edificação do Reino, até porque, desde o início Jesus deixou muito claro o seu projeto, exigindo dos discípulos que fossem capazes de “renunciar a si mesmo” (cf. Lc 9,23). Logo, era completamente descabida a tendência à exigência de reconhecimento da parte deles. Portanto, ou serve ou não é servo.

No último versículo, há um exagero na tradução. A expressão mais adequada, ao invés de “servos inúteis” seria “simples servos” ou “apenas servos”, pois o servo não é inútil, pelo contrário, é necessário para a edificação do Reino. De fato, se não fossem úteis, Jesus não teria chamado discípulos para o seu seguimento. Porém, é necessário que o servo não esqueça a sua condição e, portanto, tudo o que venha fazer pelo Reino não pode ser motivo de mérito nem de reconhecimento, pois é essa a sua missão: servir de modo incondicional e movido pela fé. Podemos dizer, então, que o Evangelho de hoje nos convida a viver e cultivar uma fé autêntica, que nos leve a cortar pela raiz tudo o que se opõe ao Reino, dentro de nós, de modo incondicional e livre, e a assumirmos a nossa condição de simples servos, porque nossa missão é servir sempre!

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: francornelio@gmail.com

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...