sábado, março 30, 2019

REFLEXÃO PARA O QUARTO DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 15,1-3.11-32 (ANO C)


O evangelho que a liturgia deste quarto domingo da quaresma nos oferece – Lucas 15,1-3.11-32 – contém a mais conhecida das parábolas de Jesus e, certamente, uma das mais belas e ricas, teologicamente falando, a ponto de ser considerada a “obra prima de Lucas”, por muitos estudiosos. Esse é mais um texto exclusivo do Evangelho segundo Lucas. Estamos diante da chamada parábola do “filho pródigo”. Esse título foi dado por São Jerônimo (vive entre os séculos IV e V), mas hoje em dia é considerado inadequado, uma vez que não corresponde à riqueza do texto, nem exprime a sua totalidade; pelo contrário, até reduz e esconde o seu amplo significado, uma vez que considera apenas um dos personagens. Diante disso, tem sido feitas tentativas de intitulá-la de maneira mais apropriada, tais como “parábola do pai misericordioso” e “Parábola do pai e os dois filhos”. O mais importante, no entanto, não é o título, uma vez que esse será sempre insuficiente; devemos olhar para a parábola em sua inteireza e contemplar a sua riqueza.

Com o afunilamento do tempo quaresmal, o tema da necessidade de conversão também se aprofunda. Aqui, é importante recordar que a primeira necessidade de conversão diz respeito à imagem e à concepção de Deus. A verdadeira conversão, em seu sentido mais profundo, enquanto mudança radical de mentalidade é, sobretudo, a aceitação de um Deus que é pai, cheio de misericórdia e amor, deixando de lado a imagem de um Deus patrão e vingativo que faz distinção de pessoas. A parábola de hoje visa exatamente isso: apresentar uma nova imagem de Deus, bem diferente daquela que os adversários de Jesus, fariseus e mestres da lei, tinham em mente. O tema é tão importante, que Jesus conta três parábolas seguidas, denominadas “parábolas da misericórdia”, ocupando um capítulo inteiro, o que justifica, ainda mais, que Lucas é mesmo o evangelho da misericórdia: “parábola da ovelha perdida e reencontrada” (cf. Lc 15,4-7), “parábola da moeda perdida e reencontrada” (cf. Lc 15,8-10), e a do “pai e os dois filhos”. O ideal é lê-las em conjunto, e a liturgia deste ano nos dará essa oportunidade no vigésimo quarto domingo do tempo comum. Hoje, nos interessa somente a terceira parábola. Pela sua dimensão, não comentaremos cada versículo; procuramos colher a mensagem central, embora seja imprescindível comentar alguns versículos específicos.

O contexto é dado pelo próprio texto em sua introdução, correspondente aos dois primeiros versículos: “Os publicanos e os pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus: ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’” (vv. 1-2). Jesus está diante de dois grupos bem distintos entre si: pessoas de má reputação (publicanos e pecadores), e pessoas religiosas e fiéis (fariseus e mestres da lei); um grupo se destacava pelo mau exemplo, e o outro pelo comportamento exemplar. Esses grupos também se distinguem pelas atitudes opostas diante de Jesus: um o escuta, e outro o critica. Os “publicanos e pecadores”, como síntese de todas as pessoas rejeitadas, sobretudo pela religião, se aproximavam de Jesus para escutá-lo porque, finalmente, tinham encontrado, alguém que os acolhia sem discriminações nem preconceitos, sem julgamentos, sem apontar o dedo. Isso terminava comprometendo a reputação de Jesus diante dos representantes e praticantes da religião oficial, “os fariseus e os mestres da lei”, considerados justos, devido à fiel obediência aos mandamentos. Esses identificam duas atitudes reprováveis em Jesus: acolher e comer com os pecadores.

O mais grave no comportamento de Jesus é, sem dúvidas, fazer refeição com os considerados pecadores; comer junto significa entrar em comunhão; no mundo antigo oriental, as refeições eram servidas em um único prato, que poderia ser colocado no centro da mesa, de onde todos se serviam, ou poderia ir passando de mão em mão, entre os convivas. Logo, se tivesse pessoas consideradas impuras na mesa, todos se contaminavam. Por isso, o comportamento de Jesus era considerado herético pelos fiéis cumpridores dos mandamentos, defensores fiéis da moral e dos bons costumes na época. Assim, identificamos, de imediato, os destinatários primeiros da parábola:  os fariseus e os mestres da lei. Esses, embora fossem considerados justos, reconhecidos pelo comportamento exemplar eram, para Jesus, os primeiros necessitados de conversão.

A parábola inicia com um dado que já identifica que o título de “filho pródigo” não é apropriado: “Um homem tinha dois filhos” (v. 11); esse versículo é o verdadeiro título. Com esse dado, o evangelista já sinaliza que vai apresentar uma relação polêmica: quase sempre, as histórias bíblicas que envolvem dois filhos (irmãos) são conflituosas: Caim e Abel, Isaac e Ismael; Esaú e Jacó, Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42). O grande drama desse homem, na verdade, é ter dois filhos que não se sentem irmãos. Pelas linhas e entrelinhas, a parábola mostra que nenhum dos dois filhos viviam uma relação de amor com o pai, nem entre si; antes, ambos o consideravam um patrão; o mais novo, bem mais ousado, toma uma decisão inusitada: “O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles” (v. 12). Embora não fosse comum para o mundo judeu, era possível que a herança fosse dividida com o pai ainda em vida. Porém, isso significava o rompimento total das relações: era como se o filho morresse para o pai e vice-versa. De acordo com a lei, ao filho mais novo correspondia somente um terço da herança, enquanto dois terços pertenciam ao primogênito (cf. Dt 21,17).

Além de se desligar da família, o filho mais novo rompe também com os laços culturais e religiosos, indo para “um lugar distante” (cf. v 13). Logo, aparece o primeiro traço que identifica o pai da parábola com o Deus-Pai de Jesus: a concessão da liberdade aos filhos. O pai poderia opor-se ao filho, impedindo sua partida ou negando a herança. O filho experimenta a liberdade, mas não mede as consequências de suas escolhas e, com o tempo, sente os efeitos dessas (cf. v. 14). A sua degradação chega ao ápice: se torna, praticamente, escravo de um estrangeiro, submetendo-se a cuidar de porcos (cf. v. 15); ora, o porco era um animal impuro para os judeus; cuidar desses animais era uma verdadeira humilhação. Passando fome, tem vontade de comer, mas não tem direito sequer à comida dos porcos (cf. v. 16). O reconhecimento da situação de completa penúria e degradação, leva o filho mais novo a uma reflexão seguida de uma decisão: Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; Já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’” (vv. 17-19). Aqui, não temos nenhum sinal de conversão, ao contrário do que afirmam as interpretações mais tradicionais. Por isso, é inadequado o uso dessa passagem para fundamentar o sacramento da confissão (reconciliação). As motivações para a reflexão e decisão do rapaz voltar para casa foram meramente materiais: ele não sentiu falta do amor do pai, mas da mesa farta. Por isso, não pensa em reconquistar a dignidade de filho, mas a oportunidade de ser seu escravo, pois até aos escravos, o seu pai trata dignamente.

A decisão do retorno do filho, embora não seja ainda uma conversão, é um primeiro passo. Certamente, houve conversão, não tenhamos dúvida; mas essa aconteceu devido à acolhida que o pai proporcionou: “Quando ele ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v. 20). A misericórdia e o amor de Deus precedem à conversão. Só se converte verdadeiramente quem se sente abraçado e beijado por um pai assim. O filho faz a sua declaração-confissão (v. 21), mas essa já não tem efeito; ele foi amado e perdoado antes. O pai não pede garantia de arrependimento nem promessa de bom comportamento no futuro; para ele, não importa o que o filho fez, nem o que disse; importa apenas que esteja na sua presença, sentindo seu abraço. O pai tem pressa em restituir a dignidade do filho e festejar o seu retorno: “O pai disse a um dos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa” (vv. 22-24). Túnica, anel e sandália são sinais de dignidade e representam a condição de filho reconquistada. O banquete com o novilho gordo é sinal de grande festa e alegria.

Se a parábola fosse mesmo do “filho pródigo”, poderia ser concluída aqui no versículo 24. De fato, esse versículo constitui o ápice do ensinamento: a passagem da morte para a vida e do perdido para o encontrado; essa dinâmica resume a missão e a vida de Jesus. Por isso, termina em banquete. Assim, Jesus justifica aos seus interlocutores, fariseus e mestres da lei, o seu comportamento e acolhida para com os pecadores e publicanos, considerados casos perdidos pelos mais devotos judeus. A misericórdia infinita do Pai já foi mostrada até aqui, quer dizer, o que Deus tem a oferecer a seus filhos. Mas Jesus quer ensinar mais; não basta sabermos que Deus é Pai; é preciso vivermos como irmãos. Por isso, a segunda parte da parábola visa o restabelecimento da fraternidade, a começar pela denúncia e superação da autossuficiência e do orgulho dos fariseus e mestres da lei, representados na parábola pelo filho mais velho: “O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança” (v. 25). A presença do filho mais velho no campo significa que ele estava cumprindo seus deveres; é a imagem dos fariseus cumprindo minuciosamente as prescrições da lei; para esses, qualquer comportamento diferente é inaceitável. A lei, como obrigação, é privada de alegria, por isso, o som da música, sinal de festa, o incomoda.

Curioso, mas precavido, o filho mais velho não enfrenta diretamente a situação, talvez com medo de se contaminar, como os fariseus. Pede informações a um dos criados (cf. v. 26), o qual lhe deixa à par da situação: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde” (v. 27). Ao invés de se alegrar, o filho mais velho fica com raiva, o que faz o Pai sair em sua procura (cf. v. 28). É importante como Jesus e o evangelista reforçam os traços do Pai: ele sai em busca de todos, pois a sua casa pertence a todos os seus filhos. A queixa do filho mais velho diante do Pai é de quem vivia uma relação retributiva, baseada no mérito: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (vv. 29-30). Além da presunção em reivindicar seus méritos (trabalhar tanto!), ainda denuncia os erros do outro. Essa é a imagem de quem não se sente filho de Deus, mas servo. Quem não se sente filho, tem dificuldade de reconhecer o outro como irmão, por isso, o filho mais velho chama o mais novo apenas de “esse teu filho”; é a mesma postura dos fariseus e mestres da lei que não se conformam porque Jesus acolhe os pecadores e come com eles (cf. v. 1-2).

Assim como Pai deu liberdade para o filho mais novo ir embora, também não obriga o filho mais velho a entrar na festa; apenas deixa claro que suas relações são livres e gratuitas, não considera o mérito mas apenas a disposição de deixar-se abraçar por ele, mostrando que tudo o que é seu é também de quem se sente ou quer ser filho seu: “Então o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu” (v. 31). Sempre que alguém decide retornar para sua casa, a recepção será festiva, porque é uma verdadeira ressurreição: “Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v. 32). O evangelista deixa a parábola aberta, sem conclusão. Não diz se o filho mais velho entrou na festa, se reconheceu o outro filho como irmão. O evangelista quis mostrar, partindo do auditório de Jesus e da sua comunidade, que a conversão é uma necessidade constante de cada um e cada uma sendo que, muitas vezes, quem mais necessita é quem se sente mais justo e perfeito. Por isso, a interpretação mais comum hoje em dia é que nessa parábola o Pai é Deus, indiscutivelmente, Israel (os judeus) é o filho mais velho, o qual tem dificuldade de aceitar os pagãos e pecadores na comunidade, e o filho mais novo é a imagem dos pagãos e pecadores que a comunidade cristã deve acolher sem distinção e sem obriga-los a observar a Torá.

Como nenhum dos dois filhos correspondem ou corresponderam ao amor do Pai, o evangelista convida o leitor e a leitora a ser um terceiro filho, capaz de aprender dos erros e acertos dos dois da parábola, sobretudo na concepção da imagem de Deus-Pai: alguém que acolhe a todos, independentemente de onde vem e do que fez. É dessa síntese de pagãos e judeus que Lucas construirá a primeira imagem do cristianismo em sua segunda obra (Atos dos Apóstolos).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 23, 2019

REFLEXÃO PARA O TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 13,1-9 (ANO C)





Enquanto nos dois primeiros domingos da quaresma a liturgia apresentou episódios comuns aos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), as tentações e a transfiguração, respectivamente, o episódio relatado no evangelho deste terceiro domingo é exclusivo de Lucas – 13,1-9. Com esse texto, a liturgia evidencia o tema principal da espiritualidade quaresmal: a necessidade de conversão. Como esse tema não fora tratado diretamente nos evangelhos dos dois primeiros domingos, podemos dizer que somente hoje a liturgia dominical da quaresma encontra seu foco principal. Assim, é correto afirmar que o primeiro e o segundo domingo foram introduções que nos ajudaram a conhecer a identidade de Jesus como Filho de Deus para, de agora em diante, ouvirmos o que Ele tem a nos dizer, conforme as palavras do próprio Deus, o Pai, no evangelho do domingo passado: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!” (Lc 9,35). Hoje, especificamente, Ele diz que todos têm necessidade de conversão e de produzir frutos.

Como sempre, é necessário contextualizar, ou seja, situar o texto no conjunto do Evangelho, para termos uma compreensão mais adequada do mesmo. Lc 13,1-9 faz parte da grande seção da viagem de Jesus com seus discípulos para Jerusalém; essa é maior seção do terceiro evangelho (Lc 9,51 – 19,27); enquanto caminha, Jesus ensina, cura, reza, interage com as pessoas, independente da condição social, entra em conflitos e aprofunda a formação dos seus discípulos. O texto de hoje está inserido numa sequência de ensinamentos após um dos tantos conflitos com os fariseus e mestres da lei (cf. Lc 11,53; 12,1). Jesus tinha sido convidado por um fariseu para almoçar em sua casa, e aceitou o convite (cf. Lc 11,37); durante a refeição, aconteceu uma ferrenha disputa com o anfitrião e os demais convidados; esse encontro acirrou ainda mais os ânimos entre Jesus e os fariseus. Logo que saiu da casa do fariseu, Jesus chamou a atenção dos discípulos para terem cuidado com “o fermento dos fariseus” (cf. Lc 12,1). Certamente, essa é uma das maiores precauções que a comunidade cristã deve ter em todos os tempos: ter cuidado para não reproduzir aquilo que Jesus reprovou e condenou em seus tradicionais adversários, sobretudo a concepção de Deus. O evangelho de hoje ajuda a evitar isso.

Eis o texto: “Vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam” (v. 1). Jesus estava ensinado às multidões (cf. Lc 12,54), e dá a impressão de ter sido interrompido por algumas pessoas. Como um bom mestre e catequista, Jesus não monopolizava a palavra quando ensinava; dava espaço para os ouvintes fazerem observações, perguntas, e até críticas; Ele sabia ouvir. Aqui, Lucas mostra uma de suas grandes habilidades: dosar história com teologia; as pessoas que interagem com Jesus trazem notícias de um fato histórico, certamente, embora não haja registro em outras fontes. Pilatos era conhecido pela crueldade; gostava de humilhar o povo judeu e não perdia uma oportunidade para mostrar a força do império romano. A notícia é de um fato chocante, não apenas pela matança dos galileus, mas pelo contexto: provavelmente, foram mortos na páscoa e nas dependências do templo; é o que se deduz da expressão “misturando seu sangue com o dos sacrifícios”. Portanto, uma cena abominável.

Somente os sacerdotes podiam imolar os animais e oferecer os sacrifícios no templo; porém, na semana da páscoa, abria-se uma exceção, devido ao grande número de peregrinos oferentes. Assim, os próprios peregrinos eram autorizados a realizar os sacrifícios, pois o número de sacerdotes não era suficiente. Sendo a páscoa a memória do êxodo e, por isso, uma festa da libertação, essa se tornava um momento propício para motins e movimentos libertários de grupos inconformados com a dupla exploração: a romana e a religiosa. É muito provável que essa matança de Pilatos tenha sido repressão a um desses movimentos. Na época, a sede do procurador romano da Judeia era a cidade de Cesareia, mas durante a páscoa, esse se transferia para Jerusalém, levando todo o seu aparato militar, com uma dupla finalidade: conter, através da repressão, qualquer revolta popular e, principalmente, humilhar os judeus, mostrando que eles não eram livres, pois imperador romano mandava neles. O termo “galileus” não designava apenas os habitantes da Galileia, mas era uma expressão pejorativa, designando as pessoas rebeldes, de um modo geral. Isso porque era na Galileia onde mais surgiam movimentos revolucionários, o que contribuía para o movimento de Jesus ser visto com desconfiança pelas autoridades, desde o seu início.   

Embora o texto não cite, supõe-se que a notícia da tragédia provocada por Pilatos tenha sido seguida de perguntas sobre o acontecimento e os envolvidos; é o que deduzimos pela sequência da narrativa: “Jesus lhes respondeu: ‘Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?” (v. 2). As causas de qualquer catástrofe eram atribuídas ao pecado. Predominava a teologia da retribuição: a ideia de um Deus que punia os pecadores com terríveis castigos, e premiava os bons, o que Jesus vai corrigir: “Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (v. 3). Os galileus não foram assassinados por serem pecadores, mas porque Pilatos era, de fato, cruel. Assim, Jesus corrige uma falsa concepção de Deus, e o evangelista faz uma chamada de atenção para a sua comunidade não promover divisões ilusórias entre as pessoas “boas” e “más”. Todos devem ser acolhidos e a necessidade de conversão também é para todos.

Para reforçar seu ensinamento, Jesus recorda outra tragédia acontecida em Jerusalém: “E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (vv. 4-5). Também sobre esse acontecimento, não há registros históricos que o comprovem com exatidão, mas estava na memória do povo, e era usado pelos pregadores da época para reforçarem a falsa concepção de um Deus punitivo. Siloé era um bairro de Jerusalém, onde se localizava um grande reservatório de água, conhecido na Bíblia como “piscina de Siloé”; como era uma zona estratégica para a cidade, é quase certa a construção de uma ou mais torres nessa área. Ao negar a relação entre o acontecimento trágico e o pecado dos envolvidos, Jesus denuncia, de novo, o uso da religião para inculcar medo nas pessoas.

Nem a crueldade de Pilatos, nem o desabamento da torre, bem como nenhuma fatalidade na história é castigo de divino para punir os pecadores. Existem governantes cruéis, como Pilatos, acontecem acidentes das mais variadas formas, advém catástrofes naturais, mas nada disso deve ser interpretado como castigo de Deus. Quem disser que tais eventos correspondem à vontade de Deus, não está anunciando o Deus de Jesus. Porém, sabendo que estamos imersos no mundo e na história, estamos sujeitos a tais acontecimentos, daí a importância de levar a sério o convite de Jesus à conversão. Após falar de cada um dos dois acontecimentos recordados, Jesus conclui com uma advertência: “...se não vos converterdes...”. Conversão (em grego: μετάνοια - metánoia) não significa uma simples melhora no comportamento ou um avivamento nas devoções, mas uma mudança radical de mentalidade, culminando, obviamente em mudança também de comportamento. Na perspectiva do Evangelho, conversão é assimilar e viver os ensinamentos de Jesus, compreendendo toda a sua radicalidade, para o Reino de Deus se tornar realidade. A necessidade de conversão, portanto, não é para evitar castigos, mas para dar sentido à vida enquanto há tempo. Todos morrem, de modo trágico ou natural; porém, como tudo é imprevisível, a conversão não pode ser adiada, uma vez que dela depende o sentido da vida.

Na conclusão, diz Lucas que Jesus contou uma pequena parábola para ilustrar o que estava ensinando e, ao mesmo tempo, provocar os seus interlocutores. O evangelista faz essa recordação também para tranquilizar a sua comunidade, mostrando a paciência de Deus diante da resistência do ser humano no processo lento de mudança de mentalidade, ou seja, de conversão; e também como advertência diante das frequentes distorções da imagem de Deus e do risco de esterilidade na comunidade. Eis a parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Porque está inutilizando a terra?” (vv. 6-7). A imagem da figueira é clássica na cultura bíblica; inclusive, é a primeira árvore identificada pelo nome na Bíblia: segundo Gn 3,7, “Quando Adão e Eva perceberam que estavam nus, se cobriram com folhas de figueira”. Junto com a videira, a figueira é bastante citada na literatura profética como imagem do povo de Israel e suas instituições religiosas (cf. Os 2,14; Jer 5,17; Mq 7,1); Lucas, bom conhecedor dessa tradição, utiliza as duas imagens ao mesmo tempo: a figueira está plantada na vinha. Ao falar de uma figueira estéril, Jesus denuncia a situação de esterilidade da religião judaica na sua época e Lucas adverte a sua comunidade e seus leitores de todas as épocas.

Como são poucos, os personagens da parábola são facilmente identificáveis: o dono da vinha onde a figueira está plantada é Deus, e o vinhateiro é o próprio Jesus. Num primeiro momento, Jesus apresenta o proprietário com as características do Deus que os judeus imaginavam: alguém que vem para acertar as contas e disposto a castigar, cortando a figueira. Mas Jesus faz isso por ironia, denunciando que se Deus fosse mesmo como a religião pregava, todos já teriam perecido, pois eram completamente estéreis. No segundo momento, Jesus mostra a intercessão do vinhateiro junto ao proprietário e, assim, a verdadeira face de Deus, um Deus que escuta: “Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volto dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (vv. 8-9). O pedido para a figueira ficar mais um ano é a oportunidade dada à humanidade de ouvir a Boa-Nova de Jesus. Com isso, o evangelista remete ao início da missão de Jesus, quando disse que ele veio anunciar “um ano da graça do Senhor” (cf. Lc 4,19); não se trata de um ano cronológico, mas de um tempo favorável e propício para a libertação.

Com essa parábola, Jesus se opõe ainda mais à teologia tradicional, se distanciando, inclusive da pregação de João Batista, o seu mentor; ora, a paciência com a figueira estéril contradiz a pregação de João, o qual tinha dito que, com a chegada do messias, “toda árvore que não produzir fruto será cortada e queimada” (cf. Lc 3,9). Jesus mostra o contrário: não veio para cortar árvores infrutíferas, mas para adubá-las e fazê-las produzir. Embora denunciador, o evangelho de hoje é, muito mais, portador de esperança. O ser humano tem sempre diante de si “mais um ano”, porque Deus não desiste dele. Porém, sabendo dos riscos das fatalidades da vida, os dois casos citados no início são uma prova e servem de alerta: a conversão é uma necessidade urgente e inadiável, pois dela depende a construção do Reino. Deus dá todo o tempo, mas o ser humano não conhece a durabilidade desse tempo. Por isso, é urgente aproveitar esse “ano a mais”.

A parábola não tem conclusão: ninguém sabe se a figueira produziu figos ou se continuou estéril. A conclusão, na verdade, deve ser a vida de cada um e cada uma, entre ouvintes de Jesus e leitores do Evangelho segundo Lucas. O objetivo de Jesus e do evangelista foi provocar a reflexão em cada pessoa sobre si mesma. Cada um e cada uma sabe e conhece seus frutos, bem como a necessidade de ser “adubado”(a) pelo Evangelho. Havia entre os interlocutores de Jesus, e também na comunidade de Lucas, a tendência de separar os “bons” e os “maus”, reforçando a errônea concepção de um Deus que premia ou castiga. Com o exemplo do vinhateiro, Jesus anuncia a misericórdia desse Deus, mas reforça a necessidade de conversão: o “ano a mais” é a oportunidade que o ser humano tem a cada dia de dar sentido à sua vida, assimilando os ensinamentos do Evangelho, pautando a sua vida no amor, na justiça e na solidariedade; são esses os frutos que ele espera de cada um e cada uma, e o que é necessário para a construção do Reino de Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 16, 2019

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 9, 28-36 (ANO C)




Todos os anos, a liturgia do Segundo Domingo da Quaresma utiliza um dos relatos da “Transfiguração”. Esse episódio é narrado pelos três Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A,B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra de maneira própria, considerando suas características literárias, as intenções teológicas e, principalmente, as necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos se diferenciem entre si. Neste ano, a liturgia faz uso do relato de Lucas – 9,28-36. Por sua vez, esse é o mais rico de elementos e detalhes próprios, como veremos durante a reflexão.

Antes de adentrarmos diretamente no texto, é importante fazer algumas considerações a nível de contexto. Começamos pela sua localização dentro do Evangelho. Esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de Pedro (cf. Lc 9,18-21), o primeiro anúncio da paixão (cf. Lc 9,22) e a declaração de Jesus sobre exigências para o discipulado (cf. Lc 9,23-27); se trata de uma sequência narrativa reveladora da identidade e do destino de Jesus, por isso, os discípulos devem estar à par de tudo isso para decidirem se vale a pena continuar ou não no seu seguimento. Ora, Jesus tinha lhes perguntado sobre a sua identidade: o que diz o povo e o que seus discípulos pensavam a seu respeito; em nome dos Doze, Pedro respondeu que Jesus é “o Cristo de Deus” (cf. Lc 9,18-22).

Embora correta, a resposta de Pedro poderia ser facilmente distorcida, pois contemplava as expectativas do messianismo nacionalista vigente: um messias (Cristo) glorioso e potente; por isso, Jesus o repreendeu e, imediatamente, fez o primeiro anúncio da sua paixão, morte e ressurreição, para evitar falsos entusiasmos. Logo em seguida, tratou de deixar claro que o seu seguimento compreendia diversas exigências, tais como: renunciar à própria vida e carregar a(s) cruz(es) a cada dia. As palavras de Jesus pareciam não ser suficientes para a compreensão dos discípulos. Outro dado interessante, ainda a nível de contexto, é que a transfiguração antecede o segundo anúncio da paixão (cf. Lc 9,43-45) e, prepara para a viagem decisiva a Jerusalém, a maior seção do Evangelho segundo Lucas (cf. Lc 9,51 – 19,27).

Como diz o texto, “Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago e subiu à montanha para rezar” (v. 28). A escolha desses três discípulos não significa privilégio, mas necessidade; eram os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, é o primeiro a responder e o que mais se expõe, também é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (cf. Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (cf. Mc 10,35-45), e de temperamento explosivo; pouco tempo após a transfiguração, João será repreendido proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em nome de Jesus (cf. Lc 9,49-50); os dois, João e Tiago, também serão repreendidos no início da viagem ao proporem tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (cf. Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades.

Logo nesse primeiro versículo, encontramos um detalhe importante que distingue o relato de Lucas dos outros dois (Mateus e Marcos): a oração como finalidade da subida à montanha. Mateus e Marcos dizem apenas que Jesus subiu à montanha com os discípulos, mas somente Lucas diz que foram para rezar. A oração é um traço característico de Jesus em todo o Evangelho segundo Lucas, sobretudo quando antecede os momentos decisivos de sua vida: antes da escolha dos Doze (cf. Lc 6,12), antes de perguntar aos discípulos sobre a sua identidade (cf. Lc 9,18), durante o caminho para Jerusalém (cf. Lc 11,1), e antes de ser preso (cf. Lc 22,39-46). Lucas caracteriza Jesus como um homem de oração: “Ele costumava retirar-se em lugares desertos para rezar” (Lc 5,16). A montanha é, por excelência, na linguagem bíblica, o lugar do encontro com Deus. Essa montanha não é determinada em nenhum dos evangelhos, embora a tradição, a partir de Orígenes – teólogo que viveu entre os séculos II e III – a tenha identificado como o Monte Tabor, o que não se sustenta com dados da Bíblia. É melhor mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

A oração revela a verdadeira identidade de Jesus: “Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (v. 29). As vestes brancas e brilhantes são características do que é do céu (cf. Lc 24,4; At 10,30), o que pertence a Deus. Com essa imagem, o evangelista revela que Jesus, embora homem, pertence também à esfera divina; Ele reflete a glória do Pai no seu rosto. Não se trata de um milagre; é uma maneira simbólica de dizer que, na oração, o ser humano se comunica claramente com Deus, rompem-se as barreiras entre o humano e o divino. Também não se trata de uma antecipação da glória, como às vezes se diz, mas uma demonstração de que o humano e o divino se encontram e se fundem na oração, o que se comprova pela afirmação seguinte: “Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias” (v. 30). Moisés e Elias, representantes da antiga aliança, respectivamente da Lei e dos Profetas, também estavam revestidos de glória, porque já pertenciam ao âmbito do divino; Moisés é aquele que morreu, “mas ninguém sabe onde é a sua sepultura” (cf. Ex 34,6), e isso é um modo de dizer que o seu corpo foi levado para junto de Deus; já Elias, nem sequer morreu, de acordo com 2Rs 2,11, foi levado para o céu em uma carruagem de fogo. Portanto, de acordo com a tradição hebraica, Moisés e Elias pertenciam ao âmbito celestial e, por isso, se comunicam com Jesus que também pertence a esse âmbito, e a oração favorece essa comunicação.

Somente Lucas diz o tema da conversa entre Jesus, Moisés e Elias: “Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v. 31); sobre isso, Mateus e Marcos silenciam. Porém, essa tradução não é suficiente; o evangelista diz que eles conversavam sobre o “êxodo” de Jesus, (em grego: έξοδος), o que comporta não só a morte, mas todo o mistério pascal: paixão, morte e ressurreição. Jesus não vai apenas morrer, mas fazer um processo de libertação que comporta sofrimento e morte, mas culminará com a ressurreição. Os discípulos não participam da conversa porque se distraem: “Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele” (v. 32). Aqui aparece outro detalhe exclusivo de Lucas, relacionado à oração: o sono dos discípulos. Esse detalhe é, na verdade, uma denúncia do evangelista: a falta de perseverança na oração priva a comunidade da experiência com Deus. Não se trata de um sono real, mas de uma imagem para descrever a desatenção e a falta de perseverança. No Monte das Oliveiras, já no contexto da paixão, Jesus irá repreendê-los exatamente porque estavam adormentados, quando deveriam estar rezando (cf. Lc 22,45-46).

Sem perseverança na oração, as propostas da comunidade tendem a ser superficiais, pois não são geradas da intimidade com Deus, o que o evangelista denuncia com a ideia absurda e ingênua de Pedro: “E, quando estes homens iam se afastando, Pedro disse a Jesus: ‘Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias’. Pedro não sabia o que estava dizendo” (v. 33). Antes de tudo, percebe-se a tentação do comodismo, pois ficar na montanha em oração é praticamente lavar as mãos para os problemas e sofrimentos do mundo, é uma fuga. Deve-se subir à montanha para fortalecer-se para a missão e os desafios que essa implica. No entanto, o mais grave na fala de Pedro, é revelar que Jesus ainda não era o centro da sua vida e nem do grupo dos discípulos: ele(s) continua(m) dando mais importância a Moisés! É esse o sentido do nome de Moisés aparecer no centro: “uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”; na mentalidade hebraica, o nome que aparece no centro é o mais importante. Com isso, o evangelista está denunciando, as comunidades que colocam a Lei acima do Evangelho. Esse era um problema das comunidades primitivas e, Lucas e Paulo, sobretudo, combateram com muita ênfase em seus escritos (Atos dos Apóstolos e Cartas Paulinas). Onde o Evangelho não é o centro, não há discipulado nem cristianismo.

Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e interrompe: “Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (vv. 34-35). A nuvem com sua sombra, ao longo da tradição bíblica é sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Diante das dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Por isso, o mais importante aqui são as palavras que saem da nuvem: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”. Mateus e Marcos mantém a mesma fórmula da cena do batismo; Lucas a modifica, trocando a qualificação do Filho de Amado para Escolhido. “Amado” tem um sentido mais amplo; na verdade, todas as pessoas são amadas pelo Pai; “Escolhido” tem um sentido mais específico, denota a unicidade da missão de Jesus, o que o habilita a ser o único portador de palavras dignas de atenção, daquele momento em diante. Daí, a ordem: “Escutai o que ele diz!”.

Moisés e Elias, como representantes da Lei e dos Profetas, já disseram tudo o que tinham a dizer; de agora em diante, somente o Evangelho tem palavras adequadas para a comunidade. O Evangelho não contradiz a Lei e os Profetas, mas é a sua plenitude, ao mesmo tempo em que é diferente e novo. Por isso, enquanto o Pai dá ordem aos discípulos para escutarem seu Filho Escolhido, Moisés e Elias desapareceram: “Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho” (v. 36a). Ora, nas primeiras comunidades, inclusive entre os apóstolos, insistiam em usar o Antigo Testamento como norma, gerando divisões e exclusões, o que Lucas denuncia com clareza em sua segunda obra, os Atos dos Apóstolos. O uso do Antigo Testamento (a Lei e os Profetas) deveria ser feito para incluir, para mostrar que o Evangelho de Jesus é o seu pleno cumprimento, e não para separar. Havia uma tendência de reproduzir na comunidade cristã a mesma estrutura e mentalidade do judaísmo: apego à lei e exclusivismo. Isso Jesus mesmo combateu em seu ministério e era necessário que os continuadores da sua missão continuassem fazendo. Por isso, o evangelista ensina que é Jesus o único e autêntico interprete da Escritura (Antigo Testamento); Moisés e Elias falaram o que tinham que falar e, de agora em diante, só vale o que Jesus disser, ou seja, o seu Evangelho.

Marcos (a fonte principal utilizada por Lucas) diz que Jesus proibiu os discípulos de falar sobre essa experiência. Lucas omite a proibição, mas diz que “Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto” (v. 36b). O silêncio dos discípulos é fruto de uma necessidade: eles devem anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado. Eles perceberam a necessidade de, antes de tudo, escutar, como o Pai ordenou. O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Escolhido. É claro que sua voz ressoará de diversas maneiras, sobretudo onde há dor, injustiça, sofrimento e opressão. É preciso discernimento para reconhecer a sua voz nas vozes anônimas e sofridas dos marginalizados da história. Sem ouvir essas vozes, o Evangelho não será anunciado em sua essência.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, março 09, 2019

REFLEXÃO PARA O PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 4,1-13 (ANO C)




Após uma sequência de oito domingos, a liturgia interrompe o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a Quaresma, iniciada na quarta-feira de cinzas, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho deste primeiro domingo compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, após ser batizado. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as comunidades primitivas. Neste ano, especificamente, nós lemos a versão do Evangelho segundo Lucas: 4,1-13; se trata de um texto bastante rico, muito bem elaborado tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com uso abundante de linguagem simbólica. 

Marcado por forte simbologia, o relato evangélico de hoje corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de relato. Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer alguns considerações importantes para uma adequada compreensão. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13); dessa informação simples e vaga, Lucas, com muita criatividade e atendendo às necessidades da sua comunidade, “criou” a história que lemos hoje na liturgia, como fez também Mateus (cf. Mt 4,1-11).

A nível de contexto, é imprescindível recordar que o relato das tentações segue, imediatamente, o relato do batismo – cf. Lc 3,21-22 – e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do evangelista com este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje (cf. Lc 3,22), o qual permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã, pois indica como deve agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo Espírito Santo.

O primeiro versículo já apresenta a principal chave de leitura de todo o texto: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v. 1). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma corpórea de pomba (cf. Lc 3,22) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto não é um indicativo geográfico, mas teológico. A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente ser humano, assumiu a humanidade em todas as suas dimensões. Embora o deserto evoque a provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25).

Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. Por isso, diz que “Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome” (v. 2). O protagonista da tentação é o diabo (διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.

Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os “quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser considerados como um dado cronológico. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade, idolatria e prova (Ex 16,35; Dt 8,2-5; Sl 5,10); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer também uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos). Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.

A primeira tentação diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas; a lógica do império incentiva o consumo e satisfação dos desejos. Eis o que diz a primeira tentação: O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem” (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende somente do alimento material, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no decorrer do seu ministério. O messianismo da época previa um messias milagreiro, ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos.

A segunda tentação diz respeito à relação com o próximo, sobretudo quanto à maneira de conceber e exercer o poder: O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). A lógica religiosa-imperial incentivava a busca constante por prestígio e poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade universal.

Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade, e fruto de suas convicções de Filho Amado do Pai. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através dos seus seguidores e seguidoras, em todos os confins da terra e, assim, que a humanidade seja transformada por esse amor. É claro que o evangelista não descreve o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino de Deus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade.  

A terceira tentação chama a atenção para a relação com Deus: Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’. Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus” (v. 9-12) Ora, no templo de Jerusalém, onde a religião dizia que Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus “filhos bons” e castigar os maus, como afirmava a religião da época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano.

Na conclusão, diz o evangelista que Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v. 13). O diabo se afastou, momentaneamente, porque não encontrou em Jesus um aliado. De imediato, o evangelista já liga às tentações à cruz, o tempo oportuno em que o diabo retornou; de fato, também no calvário, já crucificado, Jesus foi tentado três vezes, por três categorias que assumiram o papel do diabo e o puseram à prova: o povo (multidão); os soldados e um dos malfeitores crucificado com ele (cf. Lc 23,35-39); esses três grupos tentaram Jesus na cruz com a mesma tática do diabo: “se és o Cristo ou o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. Também lá, Jesus resistiu.

As três tentações ou provas relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com o próximo e com Deus. São como uma parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino de Deus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo. A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus depende essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 02, 2019

REFLEXÃO PARA O OITAVO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,39-45 (ANO C)




No último domingo da primeira fase do tempo comum, antes da pausa para o ciclo pascal, a liturgia conclui a leitura do discurso da planície, iniciada há dois domingos, mesmo ainda restando alguns versículos (cf. Lc 6,46-49). O texto proposto para hoje é Lucas 6,39-45, um conjunto de sentenças proverbiais usadas como advertências e incentivo para a comunidade cristã manter-se coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus. O discurso, desde o seu início com a proclamação dos pobres como bem-aventurados, propõe uma verdadeira revolução no jeito de viver dos seguidores e seguidoras de Jesus, cuja expressão mais comprometedora é a exigência de amor até pelos inimigos (cf. Lc 6,27.35), e a regra de ouro é “fazer aos outros o que deseja para si” (cf. Lc 6,31). Se trata de um programa de vida revolucionário, movido pelo amor, cujo sucesso ou fracasso depende da adesão e coerência dos discípulos, foco do evangelho de hoje.

Embora Jesus se encontrasse diante de um auditório numeroso e heterogêneo, pois além dos discípulos havia uma grande multidão composta por pessoas de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidônia (cf. Lc 6,17), os principais destinatários são os discípulos. São eles, portanto, os que devem viver primeiro e de modo incondicional o programa de vida proposto por Jesus. Por isso, diz o evangelista que “Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (v. 39). Provavelmente o evangelista empregou o termo parábola (em grego: παραβολή – parabolê) aqui para dar ênfase ao ensinamento, mas o conteúdo, formalmente, não pertence a esse gênero literário, exceto os últimos versículos que comparam o agir humano aos frutos de uma árvore, e o coração a um tesouro. Com um provérbio bastante claro, Jesus chama a atenção dos seus seguidores e seguidoras a viverem como pessoas iluminadas e lúcidas e, sobretudo, abertas aos seus ensinamentos. A cegueira, em linguagem bíblica, significa ausência de Deus e dos seus mandamentos; na comunidade de Jesus, significa fechamento ao Evangelho. Se os cristãos são chamados a ser luz, logo devem esforçar-se para evitar a cegueira. Isso se faz vivendo e praticando o que ensina o Evangelho. Só pode ser luz para os outros quem já é portador de luz, ou seja, quem se deixa iluminar pelo Evangelho de Jesus.

O segundo provérbio é uma denúncia aos sinais de divisão e prepotência que podem surgir na comunidade e, consequentemente, um convite à humildade: “Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre” (v. 40). Provavelmente, esse versículo reflete mais a situação da comunidade de Lucas do que o grupo inicial dos discípulos. Havia uma tendência de hierarquização, e isso comprometia bastante a vida comunitária, pois feria o princípio de uma comunidade igualitária, como propôs Jesus. Para manter o princípio da igualdade é necessário que estejam todos numa mesma condição e ninguém se atreva a ocupar o lugar de mestre que pertence somente a Jesus. Ao invés de ocupar o seu lugar, os discípulos devem esforçar-se somente para ser como ele, vivendo como ele viveu, sobretudo, no jeito de amar.

Do risco de alguém na comunidade ocupar o lugar do mestre, emanam diversos outros riscos, como a arrogância e a prepotência, inclusive falsos ideais de perfeição. Por isso, a séria advertência de Jesus: “Por que vês o circo que está no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?” (v. 41). Mais do que um risco, esse parece ser um problema já enraizado na comunidade, e combatido pelo evangelista. Existiam e existem pessoas que se consideram irrepreensíveis, atribuindo para si a capacidade e o direito de julgar os outros. Esse tipo de comportamento é totalmente alheio ao ensinamento de Jesus e, por isso, inadequado à sua comunidade.

O próprio Jesus reforça o combate a essa tendência tão prejudicial ao seu projeto: “Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando não percebes a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (v. 42). Essa é a primeira vez que Lucas emprega a palavra hipócrita no seu evangelho; esse termo (em grego: υποκριτική – hipocritês) significa literalmente “aquele que põe a máscara”, o ator ou intérprete no teatro grego. Enquanto Mateus, por exemplo, reserva essa palavra aos fariseus e mestres da lei (cf. Mt 6,2.5.16; 15,7;22,18), Lucas reconhece o perigo da hipocrisia também no seio da comunidade e, por isso, denuncia. Geralmente, quem mais vê defeitos no outro, quem se considera irrepreensível diante de Deus, quem tem facilidade em julgar o próximo, são as pessoas mais distantes dos verdadeiros valores do Evangelho. Essa tendência deve ser combatida e denunciada constantemente, pois fere o ideal de vida proposto por Jesus.

A imagem da árvore com os frutos tem a finalidade de animar os cristãos a traduzir na vida concreta a relação com Cristo: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas” (vv. 43-44). A pertença de alguém a Cristo e a coerência aos seus ensinamentos serão reveladas naturalmente pelos frutos. De quem se alimenta do Evangelho, não podem brotar frutos que não sejam amor, justiça e solidariedade. Ao invés de julgar o próximo, conforme a advertência anterior (cf. vv. 41-42), os seguidores e seguidoras de Jesus devem preocupar-se com a qualidade dos frutos gerados. A oposição entre frutos bons e ruins deve ajudar o ouvinte e leitor a perceber as consequências de suas ações e pensamentos, levando-os a uma reflexão mais profunda sobre a fonte de todo o agir humano, conforme a mentalidade bíblica: o coração.

Como síntese conclusiva, Jesus apresenta uma pequena parábola: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (v. 45). Assim, ele ensina que, além do agir, também as palavras tem grande importância para a vida cristã, pois revelam a qualidade da fonte que as origina: o coração humano. O coração como um tesouro é uma imagem clássica na linguagem bíblica (cf. Eclo 29,11), pois é o que o ser humano tem de mais precioso; é a sede do processamento de todos os sentimentos e pensamentos. Se o comportamento e o agir são importantes e decisivos para o bem da comunidade, cada um e cada uma devem estar atentos ao que origina tal agir. Por isso, o cuidado com as disposições interiores, das quais dependem se os frutos produzidos serão bons ou ruins.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – LAVA-PÉS (JOÃO 12,1-15)

A liturgia da Quinta-feira Santa, todos os anos, propõe a leitura de Jo 13,1-15, para a missa da Ceia do Senhor. Esse texto corresponde ao...