sábado, abril 28, 2018

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,1-8




Neste quinto domingo da páscoa, iniciamos a leitura do capítulo 15 do Quarto Evangelho, a qual será continuada no próximo domingo, o sexto do tempo pascal. O trecho proposto para hoje, especificamente, é Jo 15,1-8. Se trata de um texto rico e profundo, de alto valor para a vida das comunidades cristãs, principalmente quando passam por momentos de crise, com tendências ao desânimo na vivência da fé e dos valores do Evangelho, sobretudo do amor.

Embora esteja inserido no longo discurso de despedida de Jesus na última ceia, é muito provável que esse capítulo, juntamente com o seguinte (c. 16), não tivesse a atual localização na primeira redação do Evangelho, mas estivesse inserido em outra seção, uma vez que o capítulo anterior terminou com a seguinte ordem de Jesus: “Levanta-vos, saiamos daqui” (Jo 14,31b). É improvável que, após esse comando, Jesus tenha continuado o discurso.

Considerando a preciosidade do ensinamento, a comunidade julgou que esse deveria fazer parte do “Testamento de Jesus” (Jo 13 – 17) e, por isso o transportou para o contexto da última ceia. Ora, o que chamamos de “Testamento de Jesus”, iniciado com o gesto inconfundível do lava-pés, é o coração do Quarto Evangelho, a sua parte mais preciosa e essencial para a comunidade manter-se fiel no discipulado ao longo da história. É, portanto, nessa perspectiva que devemos ler o Evangelho de hoje: como um ensinamento imprescindível, constituinte do próprio ser da comunidade cristã e, por conseguinte, da sua identidade. Como estar unido a alguém que não se pode ver, como o Ressuscitado? Esse era um questionamento constante nas comunidades cristãs das origens, principalmente nos momentos de perseguição. O evangelista ensina que se permanece unidos produzindo frutos, ou seja, vivendo o amor em plenitude.

O texto de hoje é marcado pela auto apresentação de Jesus a partir da imagem da videira: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor” (v. 1). Com a afirmação “Eu sou” (em grego: VEgw, eivmi – egô eimi), Jesus confirma sua identidade divina; no Quarto Evangelho essa afirmação é repetida diversas vezes, o que se explica pelas seguintes razões: dos quatro, é o Evangelho segundo João o que apresenta mais rupturas de Jesus com o judaísmo e suas tradições; a repetição constante da afirmação “Eu sou” funciona como garantia e confirmação de que, não obstante as rupturas, a divindade de Jesus é a do mesmo Deus que outrora se revelou a Moisés como “Eu sou” (cf. Ex 3,1-15). Portanto, a ação libertadora e salvífica de Jesus é a mesma do único Deus que liberta sempre, Iahweh.

A videira, juntamente com a oliveira e a figueira, está entre as plantas clássicas da tradição bíblica para representar a relação de Deus com seu povo, embora leve vantagem em relação às demais, por gerar a matéria prima do vinho, símbolo da alegria, da felicidade e do amor. Tanto os profetas quanto a tradição sapiencial fizeram uso dessa imagem, referindo-se a Israel como destinatário do amor de Deus (cf. Is 5,1-7; Jer 2,21; Ez 15,1-6; 17; 19,10-14; Sl 80), embora no Antigo Testamento prevalecesse mais a figura coletiva da vinha, a plantação de videiras, do que a figura individual da videira, como Jesus aplica a si.

É importante observar que Jesus não se apresenta simplesmente como videira, mas como “a videira verdadeira” (em grego: h` a;mpeloj h` avlhqinh. – hé ampelos hé aletinê); com isso ele afirma que existem outras videiras não verdadeiras e, por isso, a comunidade pode se enganar. É necessário, portanto, que a comunidade de discípulos e discípulas esteja atenta. É importante também perceber o papel do Pai: ele é o agricultor da videira verdadeira. Ora, esse Pai que assume a função de agricultor, é o mesmo que assumiu a de Pastor, como refletimos no domingo passado. Decepcionado porque os pastores tinham apascentado a si mesmos, deixando perecer o rebanho (Ez 34), o Pai enviou Jesus como pastor bom e belo, ao contrário dos mercenários; assim também os agricultores não cuidaram da vinha como deveriam, e o resultado foi “uvas azedas” (cf. Is 5,1-7). Por isso, o Pai assume pessoalmente a função de cuidar da videira verdadeira, o seu Filho Jesus e, nele, fazer frutificar um novo povo. A imagem da videira era usada também para representar a Lei, o que ajuda também a compreender a ênfase do adjetivo “verdadeira”, ou seja, Jesus contrapõe suas palavras e gestos às prescrições da Lei de Moisés.

O Pai, como agricultor, tem um papel inconfundível: “Todo ramo que em mim não dá fruto, ele o corta, e todo ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda” (v. 2). A última palavra é sempre do Pai. A comunidade joanina passava por diversas crises, e uma dessas era a tendência ao puritanismo e à hierarquização. Essas palavras de Jesus são colocadas como respostas a essas tendências: ninguém pode ocupar o lugar do Pai. A comunidade não é lugar de julgamentos e acusações. É o Pai que, como agricultor único, a seu tempo, corta e poda os ramos conforme a capacidade e disponibilidade de produzir frutos em cada um. E todos, frutíferos ou não, necessitam da ação do Pai.

Se a comunidade está atenta às palavras de Jesus, ela está limpa e, portanto, não necessita de nenhum rito de purificação: “Vós estais limpos por causa da palavra que eu vos falei” (v. 3). Muitos na comunidade joanina insistiam em querer conciliar o ensinamento de Jesus com o conjunto de ritos judaicos, principalmente os de purificação. Isso não é mais necessário. O que purifica é a adesão à Palavra, e isso é atestado pelos frutos produzidos, ou seja, a prática do amor.

A necessidade da permanência em Jesus é vital para a os discípulos e a comunidade: “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim” (v. 4). Ora, se durante a experiência terrena de convivência com Jesus, vendo seus sinais e ouvindo suas palavras, os discípulos ainda se “separaram” (traição de Judas e negação de Pedro), após a ressurreição essa permanência se tornava ainda mais difícil, por isso o evangelista recorda essas palavras e ressalta sua importância para a comunidade.

A alegoria atinge seu ápice aqui: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (v. 5). Destacado da planta, nenhum ramo pode frutificar. Se a característica dos discípulos e discípulas é produzir frutos, isso só se faz estando unidos à planta. E para que os frutos sejam bons é necessário que a planta à qual devem estar unidos seja verdadeira. É por isso que, sem ele, a comunidade nada pode. São os frutos que atestam se uma comunidade está unida ou não a Jesus. Esses frutos, por sinal, são o cumprimento do mandamento do amor: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Não há outro critério que ateste a união a Jesus que não seja o amor.

É claro que terá consequências para quem não permanecer com ele, ou seja, para quem não produzir frutos ou, em outras palavras, para quem não viver o seu amor: “Quem não permanecer em mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos, lançados no fogo e queimados” (v. 6). Aqui não está a descrição de um castigo, mas o retrato de uma vida sem sentido; de fato, não tem sentido a vida de quem não ama. A falta de amor faz perecer a existência de qualquer pessoa. Quem ama, consciente ou não, está unido a Cristo; da mesma forma, quem não ama está separado, mesmo que tenha vínculos religiosos e participe de ritos e sacramentos.

A permanência do discípulo em Jesus, semelhante à do ramo à videira, garante a sintonia entre ambos, a ponto de a vontade de um ser confirmada pelo outro: “Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vos será dado” (v. 7). Não se trata de uma confiança mágica, mas de uma afinidade de sentimentos. O discípulo e discípula que ama, vive com Jesus uma relação de tamanha transparência, semelhante àquela entre Jesus e o Pai: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).

A verdadeira glória a Deus não se dá por meio de ritos ou hinos, mas simplesmente pelos frutos de amor: “Nisto meu Pai é glorificado: que deis fruto e vos tornais meus discípulos” (v. 8). Não se torna discípulo para dar frutos, mas é dando frutos que se torna discípulo. Aqui o evangelista recorda à sua comunidade e às nossas, que o discipulado é algo dinâmico, não é um status; ninguém nasce discípulo, mas se torna discípulo à medida em que vai conduzindo a sua existência pelo amor, ou seja, produzindo frutos. Quanto mais pessoas se tornam discípulos ou discípulas, o amor de Jesus se espalha pelo mundo e, nisso, o Pai é glorificado.

Que possamos unirmo-nos cada vez mais a Jesus, videira verdadeira, deixando-nos podar pelo Pai, para que, produzindo frutos de amor, cheguemos realmente à condição de discípulos e discípulas de Jesus Cristo.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 21, 2018

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18




Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da páscoa se serve do capítulo décimo do Evangelho segundo João, no qual Jesus se auto apresenta como único, verdadeiro e bom pastor. Por isso, esse domingo foi batizado como o “domingo do bom pastor”. Nesse ano, o texto específico é Jo 10,11-18, versículos que contém, de fato, a apresentação de Jesus como pastor, uma vez que nos primeiros versículos ele tinha se apresentado simplesmente como a “porta das ovelhas” (cf. Jo 10,1-9).

A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente ao que Jesus fala de si no Quarto Evangelho. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada “parábola da ovelha perdida” (cf. Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque o conhece verdadeiramente e se deixa conhecer.

É importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).

Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após o seu discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (cf. Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (cf. Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protege-lo.

Ainda a nível de contexto, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo episódio, também polêmico, da cura do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir do medo.

Após apresentar-se como porta das ovelhas, eis que ele se apresenta como pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (v. 11). Jesus fala de modo claro, associando o discurso à práxis; diz que é o pastor bom e porque o é: porque dá a vida por suas ovelhas. A tradução mais justa é “Eu sou o pastor belo”; o evangelista emprega aqui um adjetivo que corresponde mais a belo do que a bom; o belo (em grego: o` kalo,j – hó kalós) tem um sentido mais profundo: não se trata de uma qualidade, mas da sua própria essência. Significa que Jesus é o modelo único de pastor. Só há um critério para verificar a bondade-beleza do pastor: a capacidade de dar a vida por suas ovelhas. A vida, nos escritos joaninos, está intrinsecamente relacionada ao ato de amar. Portanto, dar a vida significa amar sem limites. Essa é a essência do pastor belo.

Após apresentar-se como pastor, Jesus apresenta a sua antítese: “O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa” (v. 12). O termo mercenário (em grego: misqwto.j – mistotós), que se tornou tão pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, “pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as ovelhas” (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam.

O lobo representa todas as forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Ao invés de combate-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante lembrar que todas as denúncias feitas por Jesus às estruturas do seu tempo foram, ao mesmo tempo, alerta para que os seus seguidores não repetissem tais erros.

Na sequência, Jesus explicita como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (cf. Os 4,6), por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante à relação de Jesus com o próprio Pai: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas” (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com os seus é atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida.

Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, através do amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir” (v. 16a). Aqui está a abertura de horizonte. Por necessidade, o seu pastoreio começa por Israel, libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a todo o universo.

Nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também aqueles que não estão no redil pertence a Deus e são amados por ele. Como diz Jesus, também “elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v. 16b). A voz inconfundível de Jesus deve ressoar em todo o universo, expressa na linguagem do amor, jamais através de proselitismos ou ritos. Sobre o “sonho da unidade”, fazemos a seguinte observação: ao invés de um “só rebanho e um só pastor”, a tradução correta seria “um só rebanho, um só pastor”, sem a conjunção aditiva, como no texto grego (mi,a poi,mnh( ei-j poimh,n – mía poímne, eis poimén), ressaltando a unidade entre o pastor e o rebanho, a ponto de serem uma coisa só; o pastor é rebanho, o rebanho é pastor, é essa a relação ideal na comunidade cristã, cujo pastor único é Cristo, mas está tão unido aos seus como a videira aos ramos (cf. Jo 15,1-5). A tradução “um só rebanho e um só pastor” foi usada pela primeira vez por São Jerônimo, na Vulgata, e adotada pela Igreja para ajudar a fundamentar a autoridade papal.

Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: “É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente” (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la, torná-la eterna. A vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo” (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor incondicional não mede consequências.

A expressão “tenho o poder de entregá-la e de recebê-la novamente” (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: “essa é a ordem que recebi do meu Pai” (v. 18c). Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida, obedeceu porque viviam uma relação de amor recíproco, a ponto de serem um só, como ele mesmo diz na continuação desse discurso: “Eu e o Pai somos um” (v. 30). É isso que ele pede aos seus seguidores de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja “um só rebanho, um só pastor”, ou seja, uma comunidade de amor.


Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró- RN

sábado, abril 14, 2018

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA – LUCAS 24,35-48





Neste terceiro domingo do tempo pascal, a liturgia oferece um texto de Lucas para o evangelho, interrompendo uma sequência de leitura do Evangelho segundo João. O texto proposto para hoje é Lc 24,35-48, trecho que é a continuação e conclusão do episódio bastante conhecido dos “Discípulos de Emaús”. Esse dado é, por si, suficiente para nos situar já no seu contexto.

Cronologicamente, esse texto situa-se ainda naquele “primeiro dia da semana”, ou seja, o dia mesmo da ressurreição, marcado por tantas dúvidas, tensões e medos na comunidade, desde a visita das mulheres ao sepulcro, ainda de madrugada, até a caminhada triste dos dois discípulos para Emaús, e a manifestação do Senhor aos Onze, como mostra o relato lido hoje.

É importante recordar que a preocupação do evangelista não é apenas narrar fatos mas, através da sua narrativa, responder às perguntas da sua comunidade: se Jesus de Nazaré ressuscitou mesmo, onde e como encontrar-se com ele? Ora, a essência da pregação apostólica pós-pascal consistia nisso: “Jesus de Nazaré, morto crucificado, ressuscitou”; obviamente, muita gente questionava esse anúncio, pedindo provas, muitos queriam conhecê-lo e encontrar-se com ele.

Esses questionamentos continuam sendo feitos e os Evangelhos continuam dando as respostas. Lucas, de um modo particular, responde com mais precisão: o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação e espaço: ele está na estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (cf. 24,13-35), está na mesa durante as refeições e no meio da comunidade reunida. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos e a mente para a fé.

Olhemos então para o texto: “os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão” (v. 35). O evangelista se refere aos dois discípulos de Emaús que retornaram a Jerusalém assim que reconheceram o Ressuscitado, após uma longa caminhada marcada pela tristeza e desilusão. Ao afirmar que o Ressuscitado foi reconhecido ao partir o pão, ensina o evangelista que ele está no cotidiano das pessoas, é alguém de casa, faz parte da família e é acessível.

No encontro com os Onze, os dois que tinham retornado de Emaús relataram toda a experiência e “ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!” (v. 36). Ora, falar de Jesus é um modo de torná-lo presente; partilhar a experiência com ele é expandir a sua presença. Nesse sentido, a comunidade reunida, mesmo insegura, se torna o lugar privilegiado de encontro com o Ressuscitado, e o seu lugar é o centro; por isso, ele apareceu “no meio” deles. Ora, a comunidade não pode ter outro ponto de referência senão o Ressuscitado. A paz é oferecida como primeiro dom; não se trata de uma simples saudação ou um mero tranquilizante, mas de uma força reconciliadora e regeneradora.

Apesar das evidências da presença do Ressuscitado, o medo continuava, e isso impedia que os discípulos o reconhecessem: “imaginavam ver um fantasma” (cf. v. 37). O medo faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. De fantasma a juiz, o Ressuscitado pode ser confundido quando a comunidade não absorve a sua paz, nem compreende as Escrituras. Questionando a comunidade pelas dúvidas (cf. v. 38), Jesus ensina que só reconhece o Ressuscitado quem aceitar Jesus de Nazaré, crucificado e morto: “vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” (v. 39). Obviamente, com “mãos e pés”, ele faz referência às marcas da paixão; aqui, o relato lucano se aproxima do joanino (cf. Jo 20,24-27), refletido no domingo passado, reforçando que as dúvidas de Tomé são, na verdade, de todos os discípulos.

O evangelista alerta que tanto o medo quanto a euforia paralisam a comunidade e impedem sua experiência com o Ressuscitado: “Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos” (v. 41a); é preciso buscar um equilíbrio de modo que o Ressuscitado não passe despercebido com sua identidade. É ele mesmo quem quer ser encontrado e reconhecido pela comunidade; por isso, pede algo para comer (cf. v. 41b). Além de evidenciar ainda mais a sua identidade de ser vivente, comendo ele reforça a comunhão com os discípulos.

Tendo ele mesmo pedido, “deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles” (vv. 42-43). O Ressuscitado come o que lhe dão, e se solidariza com todos os famintos e necessitados de pão; esse é mais um dos significados oferecidos pelo evangelista, além da intenção de evidenciar que o Ressuscitado é uma pessoa viva e concreta. Além de querer provar a fé, Jesus quer também testar a capacidade de solidariedade para com os necessitados na sua comunidade. Mais tarde, quando começaram as perseguições, o cristianismo adotou o peixe também como um símbolo cristológico-eucarístico, pois do nome peixe em grego (ivcqu,j - ikthís) forma-se o acróstico: “Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador”, e a simples pronúncia dessa palavra era reconhecida como uma profissão de fé.

No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu a partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas oferece à comunidade quais são os seus elementos essenciais constitutivos: a partilha do pão e da Palavra.

A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo das suas duas obras (Evangelho e Atos). Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Bíblia. A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: Lei, Profetas e Salmos (v. 44). Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história.

Dos Discípulos de Emaús o evangelista diz que se abriram os olhos (cf. 24,31); dos Onze ele diz que “Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (v. 45). A tradução mais correta seria “abriu a mente”. Essa é também uma exigência para as comunidades de todos os tempos: as Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, faz parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã.

Um dos temas mais caros a Lucas, o universalismo da salvação, é evidenciado pelo próprio Ressuscitado: “no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (v. 46). Não apenas Israel, mas todos os povos são destinatários da paz e do amor do Ressuscitado. A reconciliação da humanidade com Deus é acessível a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos; ninguém pode ser excluído dessa oferta de amor.

Surge, portanto, um novo tempo, uma nova etapa na história que começa por Jerusalém, mas não por privilégio, e sim por necessidade. Quanta reviravolta na história: a terra dos considerados justos é a mais necessitada de perdão! Foi Jerusalém com suas forças de poder que matou Jesus; o mal estava radicado lá e amparado pela religião. São as pessoas religiosas as primeiras necessitadas de conversão.

Dos discípulos e da comunidade cristã de todos os tempos, Jesus pede apenas uma coisa: “Vós sereis testemunhas de tudo isso” (v. 48). Em Lucas, Jesus não confere uma doutrina nem uma regra; não envia os discípulos como pregadores e batizadores, como em Mateus, mas como testemunhas, o que é muito mais comprometedor e exigente. Ser testemunha (em grego: ma,rtuj – mártis) implica a coragem de dar a vida.

Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados pelo evangelista Lucas a fazer um esforço constante para reconhecer o Ressuscitado em nosso meio, com disponibilidade para a partilha e mente aberta para o conhecimento das Escrituras. O critério de reconhecimento de uma comunidade que vive à luz do Ressuscitado é disponibilidade dos seus membros para o testemunho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 07, 2018

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - JOÃO 20,19-31





A liturgia do segundo domingo da páscoa oferece Jo 20,19-31 para o evangelho, texto que narra a continuidade dos acontecimentos envolvendo a comunidade dos discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a quase repetição da mesma experiência uma semana depois, ou seja, no domingo seguinte. Esse texto é também a conclusão do Evangelho segundo João (v. 31). O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para melhorar a imagem de Simão Pedro, tão desgastada após sua oposição a Jesus no lava-pés e a negação durante o processo.  

No evangelho do domingo passado, contemplamos as reações da comunidade de discípulos logo no início daquele primeiro dia da semana, no qual fora constatado o sepulcro vazio (cf. Jo 20,1-9), inicialmente por Maria Madalena, e logo em seguida por Pedro e o Discípulo Amado. Dos três, somente o discípulo Amado acreditou na ressurreição diante do primeiro sinal, o sepulcro vazio (cf. 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar (cf. Jo,11-18), após confundir o Ressuscitado com o jardineiro, mas esse episódio já não constou no texto da liturgia do domingo passado. 

Da madrugada do primeiro dia, passamos para o anoitecer, como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco” (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma natural dispersão. Embora se recompondo, essa comunidade continua em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades religiosas que condenaram Jesus em parceria com o império romano, e não todo o povo. É típico de João usar o termo “judeus” em referência às autoridades. 

O medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns; significa a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada. Jesus comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade sonhado e praticado durante toda a sua vida: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. 

Na continuidade da experiência, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, do flagelo e da cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso ele diz que a cruz não foi o fim e, assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. É importante recordar que é João o único evangelista que se preocupa com esse detalhe: o Ressuscitado tem as marcas do Crucificado. Ora, a cruz não foi um acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz, não como símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como fez Jesus. 

A presença do Ressuscitado transforma a comunidade: “Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v. 20b). A alegria é o primeiro fruto da paz que faz superar o medo, e uma das características fundamentais da comunidade que sabe contemplar o Ressuscitado em seu meio. 

Já estabelecido como centro da comunidade, “novamente Jesus disse: A paz esteja convosco” (v. 21a). A paz como bem-estar do ser humano em sua totalidade é novamente oferecida. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas.  

Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). O verbo soprar (em grego: evnmfusaw – emfsáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. 

Ao receber o Espírito Santo (em grego: pneu/ma a[gioj – pneuma háguios), a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. 

O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz. Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus.  

O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia à comunidade essa responsabilidade.   Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade. 

É importante considerar ainda, como diz o próprio texto, que comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também “Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio” (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que o mesmo foi, injustamente, rotulado negativamente pela tradição.  O motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos à portas fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava com eles é porque não tinha medo e, portanto, circulava livremente e sem temor algum; era, portanto, um discípulo corajoso, ao contrário dos demais. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no episódio da reanimação de Lázaro. Jesus já tinha sido alvo de diversas ameaças e tentativas de assassinato pelas autoridades dos judeus; quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, Tomé foi o único a dispor-se a ir para morrer com ele: “Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele!” (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se dos judeus. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo.

Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os outros dez deve-se apenas ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade. Não dar credibilidade à comunidade foi, sem dúvidas, o seu grande erro, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (cf. Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor em seu meio. Nenhum deles acreditou no testemunho de Maria Madalena; esperaram o Senhor aparecer. Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou a todos na intensidade e convicção da fé: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28); essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Senhor, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. 

A propósito, chamamos a atenção para mais um detalhe que não pode passar despercebido: diz o evangelista que Tomé era chamado Dídimo (em grego: Di,dumoj  – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato, e os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Isso significa um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto.  

É claro que se Tomé estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, ele teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos e muitas videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico.  

A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte da maioria dos apóstolos. Os novos cristãos da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado pelo Espírito que ele transmite. 

Como afirmamos no início, esse texto marca a conclusão original do Evangelho segundo João: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (vv. 30-31).  O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, questionada pela comunidade devido à negação e outras incoerências; e também para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. O Senhor Ressuscitado insiste incansavelmente para recuperar um amor perdido. 


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


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