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sábado, setembro 06, 2025

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)



A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus discípulos. Como já sabemos, mais do que um percurso físico, este caminho é um verdadeiro programa formativo, na perspectiva de Lucas. É um itinerário catequético, espiritual e teológico, no qual o evangelista distribui os principais ensinamentos de Jesus voltados à formação do seu discipulado, sendo também uma projeção antecipada da natureza missionária da Igreja, que deve estar sempre em saída, apesar das dificuldades e perigos que a imagem do caminho evoca. Pela natureza formativa que evoca, o caminho em Lucas se torna também um percurso humanizante, afinal, Jesus é um grande mestre de humanização, como revelam seus ensinamentos e seu estilo de vida. O evangelho de hoje – Lc 14,25-33 – apresenta a retomada da caminhada propriamente dita, após uma parada num dia de sábado para o culto da sinagoga, provavelmente, e um almoço festivo na casa de um dos chefes dos fariseus, conforme vimos no evangelho do domingo passado (Lc 14,1.7-14). Por sinal, a alternância entre a casa e a estrada possui grande relevância na obra de Lucas. Como os espaços institucionalizados eram hostis à mensagem de Jesus, o evangelista apresenta a casa e a estrada como alternativas para a anúncio da sua mensagem do nazareno, tanto no Evangelho quanto em Atos dos Apóstolos.   

À medida em que avançava no caminho, Jesus aprofundava o seu ensinamento, deixando cada vez mais claras as exigências para o seu seguimento e a seriedade que esse implica. No evangelho de hoje, ele apresenta três condições indispensáveis para quem pretende ser seu discípulo ou discípula. E são exigências muito fortes e comprometedoras. Apesar de possuir elementos comuns a Mateus e Marcos, o texto é carregado de traços tipicamente lucanos. Além de reformular o material comum aos demais, Lucas ainda ilustra as exigências com duas pequenas parábolas exclusivamente suas, conferindo ao texto um refinado teor de originalidade. Tanto o conteúdo quanto a maneira como o texto é construído tem por objetivo responder às necessidades das comunidades destinatárias, na época da redação do Evangelho, em meados da década de 80 do primeiro século. Com o passar do tempo e o surgimento das perseguições, crescia o desânimo e a falta de entusiasmo na vivência dos ensinamentos de Jesus. As comunidades passavam por um esfriamento na fé, com uma forte tendência a relativizar as exigências do discipulado. Preocupado, o evangelista procurou recordar o que é indispensável na vida cristã. Por isso, a não aceitação de qualquer uma das exigências recordadas no evangelho de hoje tem como resposta a declaração «não pode ser meu discípulo» (vv. 26.27.33), que funciona como refrão neste texto.

Começamos a analisar o texto, partindo do primeiro versículo, que funciona como introdução, ao mesmo tempo em que recorda o contexto do caminho: «Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse:» (25). Como Jesus tinha passado um bom tempo parado, devido à refeição na casa do fariseu (Lc 14,1-24), o evangelista recorda a retomada do caminho com um verbo um de movimento – acompanhar (em grego: συμπορεύομαι – symporeuomai) – que serve também de advertência à comunidade: muita gente apenas acompanhava Jesus, mas não o seguia verdadeiramente. Era o que faziam as multidões e muitos membros da comunidade começava a fazer também: de seguidores comprometidos, tinham passado a meros acompanhadores, deixando de viver a radicalidade exigida pelo Evangelho. Por isso, o evangelista faz questão de mostrar Jesus advertindo quem apenas o acompanha. Ora, nas multidões que acompanhavam Jesus estavam pessoas impressionadas pela sua pregação, outras interessadas em aproveitar-se de possíveis milagres, outras ainda movidas pelo messianismo nacionalista, e pouca gente, de fato, comprometida com a sua causa, que é a edificação do Reino de Deus. Diante disso, ele procura esclarecer o que é necessário para alguém não apenas acompanhá-lo, mas tornar-se verdadeiro discípulo ou discípula, passando da superficialidade ao compromisso com a causa do Reino.

Voltando-se para as multidões que o acompanhavam, então, Jesus fala claramente quais são as exigências para um autêntico seguimento, advertindo para o risco de decisões precipitadas e equivocadas. Eis então, a primeira exigência: «Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo» (v. 26). Considerando a cultura, com os costumes e tradições do mundo semita, talvez essa exigência fosse a mais dura. Ora, o valor do clã era revestido de sacralidade para aquela cultura. Romper com os laços familiares era um grande desafio, era um processo doloroso, realmente. Aqui, a tradução do texto litúrgico procura suavizar as palavras de Jesus, pois no texto original o evangelista emprega um verbo que significa odiar (em grego: μισέω = missêo), ao invés de desapegar, sendo que, para a mentalidade semita, odiar significa também “amar menos”, e é esse o sentido atribuído pelo evangelista nesta passagem. É claro que Jesus não estimularia, jamais, a disseminação do ódio; o que ele diz aqui, portanto, significa que para alguém entrar no seu discipulado é preciso amar menos do que a ele até mesmo as pessoas mais caras que temos, que são os familiares. A opção pelo Reino é tão exigente, que torna todo o restante relativo, inclusive a própria vida pessoal e familiar. Jesus exige prioridade, não por egoísmo, mas devido ao elevado comprometimento que sua mensagem comporta. A fórmula conclusiva da exigência, «não pode ser meu discípulo», mostra que essa é uma condição indispensável: ou faz isso ou não entra no discipulado! Por causa dessa exigência tão radical, muitas pessoas deixavam de segui-lo, mesmo impressionadas pela sua mensagem e seu estilo de vida (Lc 9,57-62). De fato, o amor a Jesus e suas causas devem ser colocados acima de tudo e, sobre isso, ele não faz concessões.

A segunda exigência é consequência da primeira, que já determinava a renúncia à própria vida, sendo ainda mais impactante, considerando o sentido da cruz aqui empregado: «Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo» (v. 27). Ora, tanto no tempo de Jesus quanto na época da redação dos evangelhos, a cruz não era um mero adorno ou sinal sagrado como hoje, mas um sinal de condenação e maldição, aplicada às pessoas subversivas que representavam perigo para a ordem estabelecida, conforme determinava a “pax romana”, que era, na verdade, uma política de repressão e controle social do império romano. No contexto específico deste texto, a cruz significa perigo iminente de morte, e não a capacidade de suportar as provações e dificuldades do dia-a-dia com paciência e aceitação passiva, como algumas interpretações sugerem, transformando o evangelho num discurso de resignação, quando na verdade é um manifesto de contestação ao(s) sistema(s). A disponibilidade para carregar a cruz significa, portanto, a disposição para entregar a vida por causa do Reino, e quem não tem essa disposição não pode ser discípulo ou discípula de Jesus. No império romano, sistema dominante em Israel, na época de Jesus e da redação dos evangelhos, a cruz era o destino das pessoas inquietas, inconformadas e subversivas, consideradas perigosas, como era Jesus, e ele exige que seus discípulos sejam assim mesmo: subversivos e inconformados diante das injustiças e desigualdades.

Depois de apresentar as duas primeiras exigências, Jesus reforça o ensinamento e, ao mesmo tempo, prepara a terceira com duas pequenas parábolas que recordam a seriedade do seu seguimento e a necessidade de reflexão e discernimento, diante do risco de decisões precipitadas e movidas por emoções passageiras. Eis a primeira parábola: «Com efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, Ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!» (vv. 28-30). A opção pelo Reino, ou seja, a adesão ao discipulado de Jesus, exige uma séria reflexão, sobretudo, em relação às consequências, tendo em vista a radicalidade das exigências. Nessa pequena parábola, o cálculo minucioso dos gastos que um construtor deve fazer antes de iniciar um empreendimento significa a consciência das exigências que o discipulado implica. É claro que o Reino não pode ser experimentado a partir de cálculos minimalistas e matemáticos, mas quem pretende ser discípulo ou discípula deve estar ciente, com clareza, do que condiz ou não com o seguimento de Jesus. E o investimento exigido dos discípulos e discípulos é muito mais precioso do que qualquer gasto material, pois é a própria vida. Por isso, é necessário refletir bem, o que é tão bem expresso na parábola com as atitudes de “sentar e calcular”. Esses dois verbos, de fato, simbolizam o discernimento, atitude indispensável para o seguimento de Jesus. Com isso, ele adverte sobre os riscos de um entusiasmo passageiro, como era frequente nas multidões que lhe seguiam. Muitas pessoas se impressionavam com uma pregação eloquente ou um gesto surpreendente e, diante disso, tomavam decisões improvisadas, fazendo a imediata passagem do acompanhamento ao seguimento, sem fazer a devida reflexão.

A segunda parábola tem praticamente o mesmo sentido da primeira. Eis o que se diz nela: «Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar condições de paz» (vv. 31-32). A primeira parábola era mais interpelante, tanto é que começava com a envolvente fórmula “qual de vós”, ausente nesta seguinte. Qualquer pessoa poderia ter se envolvido em alguma experiência de construção, mesmo que não fosse de uma torre. Logo, era um exemplo mais acessível. Nesta segunda, o exemplo parece mais distante, mas também permite a reflexão, pois além da clareza da história contada na parábola, no imaginário popular não faltavam exemplos de narrativas de guerras vencidas ou perdidas por esperteza ou incompetência de reis. Obviamente, o objetivo de Jesus com esse exemplo não é convocar os discípulos à promoção de guerra, tampouco compará-los a um rei. Assim como na primeira, o que ele quer é chamar a atenção para a necessidade da reflexão antes de qualquer escolha ou decisão. Independentemente da instância da vida, uma decisão equivocada traz, inevitavelmente, consequências danosas. Acompanhar Jesus sem ter clareza das exigências concretas que isso implica terminará sempre em decepção, constrangimento e frustração pessoal. Também nessa segunda pequena parábola se recorda a necessidade de sentar e refletir, sendo que, dessa vez, o segundo é ainda mais profundo, pois já não se trata de calcular, mas de examinar, o que seria mais correto ter sido traduzido como “aconselhar-se”, considerando a forma verbal empregada na língua original do texto, o grego (aconselhar-se em grego βουλεύομαι - buleuomai). O aconselhamento, ao longo de toda a Bíblia, é apresentado como um verdadeiro dom, uma necessidade indispensável para o ser humano conduzir bem a sua existência.

Após as duas pequenas parábolas, finalmente, Jesus apresenta a terceira condição para o seu seguimento«Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!» (v. 33). Ora, Jesus quer pessoas completamente livres no seu seguimento. E o apego aos bens sempre foi um dos grandes obstáculos para isso; o fato de ser mencionado por último entre as três condições, sendo preparado pelas duas parábolas, significa que era uma exigência muito desafiadora, talvez mais até do que a primeira, quer é o desapego à família. De fato, a primeira exigência, que compreendia o distanciamento, mais do que físico, sentimental, dos familiares mais próximos, poderia ser cumprida gradativamente e até superficialmente, pois se trata, acima de tudo, de uma atitude interior. Em caso de arrependimento, se poderia voltar ao seio familiar, pedindo perdão pela separação, e ser novamente aceito(a). A renúncia aos bens, pelo contrário, não poderia ser remediada; uma vez renunciando-os, seria para sempre, já que essa atitude consistia em vender tudo o que possuía e distribuir aos pobres. Portanto, essa condição exige uma decisão irrevogável, sendo necessária uma reflexão mais aprofundada e séria, o que justifica a necessidade das duas parábolas como introdução e preparação, tendo em vista o necessário discernimento para a tomada de tal decisão.

Como foi acenado ainda no início, a fórmula conclusiva de cada uma das exigências – não pode ser meu discípulo! – significa que Jesus não está propondo sugestões, mas apresentando condições indispensáveis e inegociáveis para alguém fazer parte do seu discipulado. Diante disso, devemos refletir pessoalmente e comunitariamente se, na situação em que nos encontramos, com o que temos e o que somos, estamos sendo, de fato, discípulos e discípulas de Jesus? A positividade ou negatividade da nossa resposta depende das renúncias e opções que fazemos. É importante questionar se nossas comunidades atuais são formadas por discípulos e discípulas ou apenas por pessoas que acompanham Jesus.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN 

sábado, agosto 30, 2025

REFLEXÃO PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,1.7-14 (ANO C)



Dando sequência à leitura semicontínua do Evangelho de Lucas, como é próprio do ciclo litúrgico C, a liturgia deste vigésimo segundo domingo do tempo comum continua nos situando no contexto do longo caminho de Jesus, acompanhado de seus discípulos e discípulas, em direção à cidade de Jerusalém, onde consumará a sua missão com a paixão, morte e ressurreição. Como temos insistido ao longo dos domingos, esse caminho é, mais do que um percurso físico-geográfico, um itinerário catequético e um programa formativo, além de ser também uma metáfora da própria vida e uma imagem da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, denominada explicitamente de “Caminho”, no livro dos Atos dos Apóstolos, o segundo volume da obra lucana. Trata-se, portanto, de uma criação do evangelista Lucas, que selecionou os mais importantes ensinamentos de Jesus e distribuiu-os nesta longa seção narrativa, composta de dez capítulos (Lc 9–19). Por isso, não consiste apenas no ato de caminhar, mas no ensinamento dos valores do Reino de Deus, sendo que Jesus é o próprio Reino em pessoa, de modo que tais valores se manifestam na sua maneira de agir diante das mais diversas situações.

Enquanto caminhava, Jesus se servia das mais diversas situações do cotidiano para instruir o povo e formar os seus discípulos e discípulas. A passagem selecionada para a liturgia de hoje – Lc 14,1.7-14 – apresenta Jesus numa refeição festiva do dia de sábado, na casa de um fariseu. A refeição, para todas as culturas antigas, possuía um valor sagrado; na cultura judaica era, acima de tudo, um momento de memória e de rendimento de graças a Deus por suas obras em favor de Israel, ao longo da história, principalmente a libertação da escravidão do Egito. No mundo greco-romano, que o evangelista Lucas conhecia muito bem, a refeição era também ocasião de ensino e aprendizado, através dos diálogos travados entre os comensais, de modo que o banquete se tornou um elemento importante para a filosofia grega, considerado, inclusive, um gênero literário próprio. No evangelho de hoje, Lucas procura conciliar e sintetizar as duas perspectivas. Por sinal, é exatamente Lucas o evangelista que mais apresenta Jesus sendo convidado e aceitando convites para participar de refeições, utilizando, assim, a comensalidade como ocasião de ensinamento (Lc 5,29-39; 7,36-50; 11,37-54; 19,5-6), além das refeições pascais de antes e depois da ressurreição (Lc 22,14-23; 24,41-43). Por isso, Lucas é conhecido também como o evangelista da comensalidade. Ao prezar tanto por mostrar Jesus entrando nas casas das pessoas para comer, ele reforça a imagem de um messias mais próximo das pessoas, sendo a visita definitiva de Deus à humanidade, espalhando misericórdia por onde passa. Das refeições de Jesus que Lucas descreve, três foram em casa de fariseus (Lc 7,36ss; 11,37ss; 14,1ss), sendo a de hoje a última. Por sinal, sempre havia conflito quando Jesus comia na casa de um fariseu. O trecho selecionado salta alguns versículos (vv. 2-6), os quais contêm uma cena também polêmica, na qual Jesus questiona o real valor do sábado, ao curar um enfermo hidrópico, mas esse salto não compromete a compreensão do texto, pois o foco da liturgia é o comportamento no banquete, tanto dos convidados quanto do anfitrião, como veremos.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, voltemos a atenção para o texto, começando pelo primeiro versículo: «Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam» (v. 1). Nos dias de sábado, após o culto matinal da sinagoga, as famílias almoçavam festivamente; a comida tinha sido preparada na véspera, a sexta-feira, o “dia da preparação”, como eles chamavam, uma vez que nenhum trabalho poderia ser feito no sábado, dia de culto e repouso. Nos povoados, os judeus mais influentes costumavam oferecer verdadeiros banquetes, convidando com frequência o pregador daquele dia na sinagoga, de modo que o almoço se transformava numa extensão do culto. Assim, à mesa, se discutia o assunto da pregação, aproveitando o espaço para se tirar as dúvidas, fazer esclarecimentos e até propor novas possibilidades de interpretação. Tudo isso faz supor que, naquele sábado, Jesus pregou na sinagoga do lugar por onde passava e, após o culto, recebeu o convite para uma refeição na casa de um fariseu ilustre, alguém importante do lugar. De fato, o evangelista não se refere ao anfitrião de Jesus apenas como um fariseu, mas como um “chefe” (em grego: ἄρχων) deles. Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante, os primeiros interessados em conferir o teor de sua mensagem eram os fariseus, como guardiães da reta doutrina na época. Além de Jesus, o anfitrião de Jesus tinha outros convidados à mesa, certamente, outros fariseus, seus colegas de doutrina. E eles “observavam” Jesus. Com esse detalhe, que não é novidade para o leitor, o evangelista denuncia qual era a intenção deles com o convite: observar cuidadosamente os gestos e as palavras de Jesus, para o acusarem de blasfemo e transgressor da Lei de Deus, uma vez que a interpretação de Jesus geralmente trazia elementos novos que eles não aceitavam, pois ele colocava o bem e o serviço à vida acima de qualquer doutrina e norma.

Porém, pela continuidade do texto, podemos dizer que havia uma dupla malícia em ocasiões como essa: os fariseus convidavam Jesus para observá-lo e depois acusá-lo, e Jesus aceitava tais convites para desmascará-los, muito mais do que para desfrutar da fartura do banquete, como evidencia o próprio texto: «Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então, contou-lhes uma parábola» (v. 7). Como se vê, também Jesus observava os que estavam à mesa com ele. E, com base em suas observações, ele faz sérias advertências, tanto aos convidados, quanto ao anfitrião, especificamente sobre a humildade (vv. 8-11) e a generosidade-gratuidade (vv. 12-14). Destas advertências a pessoas específicas, que na cena descrita eram os fariseus, surge um ensinamento universal, direcionado inicialmente aos discípulos de primeira hora, mas estendido aos cristãos de todos os tempos: o cultivo da humildade e da gratuidade nas relações, ou seja, um estilo de vida baseado em novos critérios, em discordância com os valores defendidos pelas tradições ultrapassadas e excludentes da sociedade e da religião da época.

Ao advertir os convidados (vv. 8-11), Jesus recorre à tradição sapiencial e constrói uma pequena parábola, baseada em uma citação do livro dos Provérbios: «Não te vanglories na frente do rei, nem ocupes o lugar dos grandes; pois é melhor que te digam: “Sobe aqui!” do que seres humilhado na frente de um nobre» (Pr 25,6-7). Ora, tendo notado que os convidados escolhiam os primeiros lugares, demonstrando um notório espírito de competição, foi muito oportuna a chamada de atenção. A princípio, a recomendação de Jesus parece um convite à esperteza: como lograr sucesso na frente dos demais e ser promovido, passando do último para o primeiro lugar (v. 10). Era essa a mentalidade do autor sapiencial. Mas, Jesus usou o texto de Provérbios apenas como ilustração. O que, de fato, ele quer apresentar é a dinâmica do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, prevenir seus discípulos para não imitarem o comportamento dos fariseus que ele tanto combatia. Por isso mesmo, ele continuará essa observação em outras ocasiões: na parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14) e, já em Jerusalém, no discurso contra os escribas (Lc 20,45-47).

Portanto, a intenção principal, tanto de Jesus quanto do evangelista, é a formação dos discípulos. Ora, a busca pelos primeiros lugares, característica do grupo dos fariseus, não pode fazer parte do discipulado de Jesus. A atitude do cristão deve ser sempre a do serviço, e quem serve não pensa nos lugares de honra, mas nas necessidades do próximo. Certamente, esse texto reflete também a preocupação de Lucas com a tendência hierarquizante nas suas comunidades, que passavam por um processo de institucionalização. O banquete dos fariseus é, aqui, apresentado como o antimodelo em relação ao banquete cristão, o qual deve prefigurar o banquete do Reino. Assim, renunciar aos lugares de destaque é, mais do que humildade, um gesto de amor. É dar espaço para o outro, optando por um modelo de sociedade alternativa, renunciando a qualquer indício de concorrência e egoísmo. É uma atitude inclusiva, como será desenvolvido na sequência do texto. Escolher o “último lugar” (em grego: ἔσχατος τόπος – eskátos tópos) significa estar completamente alinhado às opções de Deus, claramente reveladas na vida de Jesus, desde o nascimento na manjedoura até a morte na cruz. De fato, manjedoura e cruz sintetizam uma vida toda voltada para os últimos. Entre esses dois lugares, Jesus viveu entre os últimos e buscou-os, tomando-os como suas companhias prediletas. Por conseguinte, a escolha pelos últimos lugares recomendada por Jesus indica a opção pelos últimos enquanto pessoas marginalizadas, excluídas. Trata-se, acima de tudo, de assimilar a lógica do Reino que subverte toda a lógica da meritocracia, amparada pela sociedade e a religião da época de Jesus. A inversão de valores que Jesus propõe é caminho de humanização.

A segunda advertência de Jesus é dirigida ao anfitrião, e completa a primeira, afinal, convidados e anfitrião refletiam e representavam os mesmos modelos de sociedade e religião da época, ambas antagônicas ao Reino de Deus que ele veio apresentar. Eis o que diz o texto: «E (Jesus) disse também a quem o tinha convidado: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos”» (vv. 12-13). Ora, tendo antes observado como «os convidados escolhiam os primeiros lugares» (v. 7a), ele percebeu também as características destes convidados, e os critérios empregados pelo dono da casa para convidá-los. Estava muito clara a lógica da retribuição naquele ambiente. Aqui, ele retoma o discurso das bem-aventuranças: «fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca» (Lc 6,35). Por sinal, todo esse episódio está alinhado à lógica das bem-aventuranças e do Magnificat, que constituem completa subversão à lógica vigente. Esse conselho dado ao dono da casa é completamente contrário aos costumes da época. Trata-se de algo revolucionário. O convite à generosidade e à gratuidade nas relações é, aqui, apenas um dos ricos significados desse trecho. Fazer o bem sem esperar recompensa é, de fato, uma atitude necessária para a comunidade dos discípulos e uma exigência para a construção do Reino, como alternativa ao modelo de sociedade daquela época e de hoje. Aquilo que Jesus recomenda ao anfitrião não é apenas um conselho, mas representa um modelo novo de sociedade, um ideal de mundo. Há um forte apelo a uma verdadeira revolução social, ao conceber as novas relações, e um convite para uma luta da qual nenhum cristão pode fugir: a superação de todas as formas de exclusão, marginalização e desigualdade.

Jesus observou, naquele ambiente, quatro categorias de convidados: «amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos» (v. 12); todas estas categorias tinham capacidade de retribuir o convite, e parece que já o faziam com bastante frequência. Para superar essa situação, que refletia uma mentalidade e teologia retributivas, Jesus propõe outros critérios, sendo o primeiro deles a impossibilidade de retribuição. Por isso, sugere também quatro categorias como convidados ideais: «os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos» (v. 13). É aqui onde se encontra a máxima da novidade de Jesus neste episódio. Ora, é inegável que a religião dos judeus pregava uma atenção especial aos pobres, juntamente com os órfãos e as viúvas, sobretudo nos livros proféticos; mas a prioridade aos «aleijados, coxos e cegos» é uma grande novidade, sendo exclusividade de Jesus; essa atenção é fruto do seu amor infinito pelos últimos. Inclusive, de acordo com a Lei, quem fosse portador de qualquer deficiência física, incluindo cegos, coxos e aleijados, não podia sequer entrar no templo (Lv 21,18-20); logo, eram pessoas extremamente excluídas. E, de repente, Jesus diz que estas categorias devem ser as convidadas principais do banquete, contrariando a mentalidade da sociedade e da religião da época.

Para aquele fariseu e seus convidados, o que Jesus disse foi apenas uma sugestão. Para os cristãos, isso é compromisso e exigência: não há vida cristã sem luta pela inclusão e pela superação de todas as formas de discriminação e preconceitos. Ora, naquele banquete, Jesus viu uma miniatura da sociedade e da religião do seu tempo, marcadas pela competição e a lógica da retribuição. Por isso, ele investiu tanto nas críticas, apresentando também a proposta ideal de superação, ao combater a competição com a humildade e a retribuição com a gratuidade e a inclusão dos marginalizados. É interessante observar a fórmula “quatro por quatro”: tirar os privilégios de quatro grupos específicos, e incluir quatro grupos que representam todas as categorias de pessoas excluídas e marginalizadas, inclusive da vida religiosa, uma vez que os aleijados, os coxos e os cegos nem entrar no templo podiam. Assim, o projeto do Reino, anunciado no Evangelho de Lucas, logo no cântico de Maria, prevendo a ascensão dos humildes e a queda dos poderosos (Lc 1,52), vai ficando cada vez mais claro.

Não podemos deixar de perceber aqui uma antecipação da Eucaristia e seu sentido mais profundo: banquete para todos, motivado por amor-doação, sem exclusão alguma. Na conclusão, Jesus proclama uma bem-aventurança destinada a quem aceitar o seu projeto de inversão de ordem nas estruturas e nos costumes exclusivistas, conservados pela religião e a sociedade da época: «Então, tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos» (v. 14). É feliz quem assimila a lógica do Reino. A única recompensa para quem acolhe os mais necessitados, e excluídos em geral, é a certeza do amor de Deus em demasia. A expressão “ressurreição dos justos”, aqui, não é uma definição doutrinal, mas significa uma relação tão íntima com Deus que nem a morte consegue interromper. E, aquilo que garante essa relação é o amor e a solicitude para com os mais necessitados. Por isso, é necessário repensar, questionar e até reconfigurar, se for necessário, o banquete cristão, que é a Eucaristia. Se não ajuda a superar as exclusões e desigualdades do mundo, está longe de ser a ceia do Senhor.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, julho 26, 2025

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 11,1-13 (ANO C)



Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é próprio do ano litúrgico C. E o texto proposto para este dia é a sequência imediata aquele do domingo passado, que correspondia ao episódio da visita de Jesus à casa das irmãs Marta e Maria (Lc 10,38-42). A passagem lida neste dia – Lc 11,1-13 – constitui-se uma verdadeira catequese sobre a oração, dentro do contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, é sempre oportuno recordar a importância do caminho para as dinâmicas narrativa e teológica de Lucas: não se trata de um percurso físico-geográfico, simplesmente, mas de um itinerário formativo, catequético e espiritual, no qual Jesus apresenta o seu programa, com seus principais ensinamentos e as exigências básicas que o seu seguimento comporta. Na verdade, o caminho de Jesus na perspectiva de Lucas é metáfora da própria vida cristã. Logo, só pode ser cristão/cristã quem se dispõe a percorrer com ele esse caminho. E, enquanto caminha, Jesus se relaciona com Deus e com as outras pessoas: entra nas casas, responde perguntas, corrige os discípulos, faz advertências, conta histórias, participa de banquetes festivos e também encontra tempo para rezar, como mostra o evangelho de hoje.

Se no domingo passado o evangelho evidenciava a convivência de Jesus com as pessoas durante o caminho, ao relatar sua visita à casa das irmãs Marta e Maria, o de hoje destaca sua relação com Deus, o Pai, por meio da oração. Inclusive, convém recordar que Lucas é, por excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (Lc 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). De fato, Lucas mostra Jesus em oração do começo ao fim da sua missão. Atitude semelhante ele vai mostrar da Igreja, no segundo volume da sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. Obviamente, o evangelista quer mostrar que a oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela força da oração que ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua vida. E o ponto alto do evangelho de hoje é a oração que Jesus ensina aos seus discípulos, preservada e transmitida pelas comunidades cristãs com o título de “Pai-nosso”. Se tem notícias de pelo menos três versões desta oração circulando nas primeiras comunidades: uma versão no Evangelho de Mateus (Mt 6,9-13), outra em Lucas, contida no evangelho deste domingo, e ainda outra na Didaquê, um texto do segundo século que é considerado o primeiro catecismo do cristianismo. Das três versões, a de Lucas é a mais abreviada e, por isso, considerada a mais próxima das palavras originais de Jesus, de acordo com a maioria dos estudiosos.

O texto começa com uma introdução típica de Lucas, que ajuda o leitor a perceber a ambientação e o contexto do episódio: «Jesus estava rezando num certo lugar» (v. 1a). Independentemente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte do seu tempo para a oração; era algo que integrava o seu cotidiano. Assim como tinha estado há pouco tempo numa casa, em diálogo claro e sincero com duas mulheres, Marta e Maria, agora ele se encontra em diálogo com Deus, o Pai. O ambiente é “um certo lugar”, provavelmente um espaço improvisado, de acordo com o contexto do caminho e das características itinerantes do seu movimento que, ao contrário do judaísmo oficial, não possuía estruturas fixas. Com isso, o evangelista quer recordar que ele não dependia das estruturas oferecidas pela religião oficial para cultivar sua intimidade com o Pai. Na sequência, encontramos informação impressionante: «Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos”» (v. 1b). Certamente, era bonito o jeito de Jesus rezar, impressionava quem via, não pelo palavreado, mas pela intimidade com Deus que ele revelava. As entrelinhas do texto dão a entender que os discípulos estavam olhando ele rezar e ficaram admirados, tanto que não ousaram interrompê-lo, mas esperaram que ele terminasse. Impressionados, tiveram vontade de fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados porque conviviam com ele já há um certo tempo e ainda não tinham aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como ele. E, o discípulo tem o dever de tornar-se parecido com o seu mestre, de fazer tudo à sua maneira, incluindo jeito de rezar.

Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu grupo, com seus ensinamentos, regras e fórmulas, inclusive, de oração. Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, não estabelecendo regras e fórmulas, o que poderia deixar seus discípulos muito livres, por um lado, mas também até inseguros, por outro. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Em todos os evangelhos, essa é a única vez que os discípulos pedem que Jesus lhes ensine algo. Diante disso, seus discípulos usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto, obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar, embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. Tem-se notícias de fórmulas de oração de outros movimentos e grupos contemporâneos. Tudo isso levava os discípulos de Jesus a sentirem necessidade de fórmulas também para eles. Contudo, a particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era exclusivamente pelo exemplo, pelo seu jeito de viver. Por isso, não tinha preocupação de ensinar fórmulas para serem posteriormente repetidas.

Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá uma fórmula, como faziam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário, dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de Deus, antes de fazer as suas preces; utilizavam termos e expressões como “Altíssimo”, “Todo-Poderoso”, “Onipotente”, “Senhor”, “Santo dos Santos”, etc; essas expressões ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade entre os seus seguidores. De fato, ele veio abolir o abismo estabelecido pela religião entre o humano e o divino. Por isso, introduz a sua oração ensinando a chamar a Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto, sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para nós, hoje, parece já não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi altamente revolucionário. Ora, no Antigo Testamento, Deus é chamado de Pai poucas vezes, na maioria das vezes como metáfora ou como pai apenas de Israel enquanto povo, não na oração pessoal cotidiana. Em todo o Antigo Testamento, a palavra pai é atribuída a Deus somente quinze vezes. Enquanto isso, os evangelhos mostram Jesus chamando Deus de Pai cento e oitenta vezes, sem contar as inúmeras ocorrências nos demais livros do Novo Testamento. Tradicionalmente, a quem os judeus chamavam de pai era Abraão. Por isso a oração de Jesus é revolucionária e, mais ainda por ser um paradigma de relação com Deus e o próximo, muito mais do que uma fórmula.

Com o imperativo «Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome» (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu destinatário. E é claro que é a Deus que deve ser direcionada toda oração cristã. Deus é um pai atento a todos os seus filhos e filhas que podem relacionar-se diretamente com ele, sem necessidade de intermediações. É um Deus que é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se relacionar com Deus e com o próximo, como se verá na continuidade do texto. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus, emerge a certeza de que ele está próximo de nós, como se fosse um amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer lugar. A «santificação do nome de Deus» (v. 2) e a “vinda do seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionadas, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. E reconhecer a santidade de Deus é saber que ele é Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (Lc 4,16-22), precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se ele está sendo reconhecido como realmente é:  um Pai. Logo de início já se percebe, portanto, o quanto é comprometedora a oração ensinada por Jesus, pois o seu primeiro fruto é a fraternidade, consequência imediata do reconhecimento de Deus como Pai. A invocação da vinda do Reino de Deus esclarece que não se trata de uma realidade para o futuro, não é uma promessa para o pós-morte, mas uma urgência para este mundo. O Reino de Deus pensado por Jesus é a alternativa de sociedade aos reinos deste mundo, sobretudo aos grandes impérios que dominaram Israel, como a Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Torna-se alternativa também a todos os projetos de poder que ferem a dignidade humana e a inteira criação. Por isso, continua urgente a sua instauração, cujo resultado será a vida em abundância, com o primado da fraternidade nas relações humanas e um mundo plenamente humanizado.

Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. E a primeira petição corresponde à necessidade mais básica do ser humano: «Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos» (v. 3). Na Palestina antiga, o pão era o principal alimento. Aqui, além do alimento concreto, significa tudo o que o que ser humano necessita para viver com dignidade, a começar pelo acesso diário às refeições. Com isso, Jesus compromete bastante os seus seguidores, associando a instauração do Reino de Deus ao compromisso concreto para que o pão cotidiano esteja sempre presente em todas as mesas. Invocar o Reino é comprometer-se na luta por uma vida digna para todas as pessoas. A falta de acesso ao alimento cotidiano denuncia que o Reino ainda não foi completamente instaurado e, portanto, recorda a necessidade de os seguidores de Jesus se empenharem cada vez mais nessa construção. Esta luta comporta um combate à cultura do acúmulo, ao egoísmo, por isso a invocação é pelo “pão de cada dia”, nem demais e nem de menos. Com isso, ele também recorda a condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente, Jesus alude ao antigo maná (Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as parábolas do rico insensato (11,14-21) e do rico avarento com o pobre Lázaro (16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve caracterizar a comunidade cristã, pois o perdão é essencial para a vivência da fraternidade plena. Por isso, Jesus recomenda este pedido na sua oração: «Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores» (v. 4). O pedido de perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por Jesus nesta oração é a condição para se buscar o perdão de Deus: «nós também perdoamos aos nossos devedores» (v. 4). Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais do que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.

A última das petições da oração de Jesus é «não nos deixes cair em tentação» (v. 4). A palavra tentação (em grego:  πειρασμός – peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras, é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso como o de Jesus. É necessária muita resistência para lutar pelo Reino, contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora. Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança. Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai. Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões evocam a alguém distante e inacessível, inalcançável, aquele que não está presente no cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam, constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.

Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta duas pequenas parábolas: a do amigo importuno (vv. 5-8) e a do pai terreno (vv. 11-12). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível do que um amigo, e muito melhor do que um pai humano. Desse modo, ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais ele deixará de atender. Um amigo e um pai terreno, por melhores que sejam, tem suas limitações, mas mesmo assim não deixam de atender a outro amigo ou a um filho quando recorrem. Deus pode ser comparado a eles, mas é muito superior, não apenas em poder, mas em bondade, acima de tudo. Por isso, dá o que tem de melhor: O Espírito Santo (v. 13). Ora, o Espírito Santo é o dom de Deus, por excelência, e a prova de que ele doa o que tem de melhor.

A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai concederá, desde que em consonância com a sua vontade. E é da sua vontade que todas as pessoas tenham acesso aos bem e meios necessários para viver com dignidade e que possam todos viver como irmãos e irmãs. São estas, portanto, as causas de quem reza como Jesus ensinou, pois, mais do que uma fórmula, como já foi bastante enfatizado, o Pai-nosso é reflete um jeito de viver.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 05, 2025

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,1-12.17-20 (ANO C)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, interrompida domingo passado, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, que substitui o décimo terceiro domingo. O texto proposto para hoje é Lc 10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão dos setenta e dois discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona como uma síntese antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver com mais precisão no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. O contexto dessa passagem já é o da grande viagem – o caminho –de Jesus para Jerusalém, em companhia dos seus discípulos, que constitui a seção narrativa mais extensa de todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos (9,51 – 19,28). Com esse caminho, o evangelista não trata apenas de um percurso físico, mas de um itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância do movimento de Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja. Para Lucas, o caminho é metáfora da missão da Igreja, do discipulado de Jesus e da própria vida.

Como se sabe, literalmente, ser discípulo é ser seguidor de alguém – um mestre. Logo, é na dinâmica do caminho que o discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto da formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva do evangelista Lucas. Inclusive, é durante essa seção narrativa que ele mais apresenta mais elementos exclusivos seus, ou seja, acontecimentos e palavras de Jesus que não se encontram nos outros evangelhos. Com exceção do chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do caminho para Jerusalém corresponde ao que Lucas apresenta de mais original em seu Evangelho. E a passagem lido na liturgia de hoje ilustra essa originalidade, o que serve como indicativo de importância. Diante disso, é importante recordar que os três evangelhos sinóticos mostram o envio missionário dos Doze discípulos (Mt 10,1-11; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6), cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje; mas a missão dos setenta e dois é exclusividade de Lucas. Ao longo da reflexão, ainda serão recordados outros elementos a nível de contexto, essenciais para a compreensão do texto.

Infelizmente, o primeiro elemento a ser destacado no evangelho de hoje foi omitido pela tradução do lecionário, sendo substituído pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”. Trata-se da expressão “depois disso” ou “depois dessas coisas” (em grego: Μετὰ δὲ ταῦτα – metá dé tauta). Ora, sempre que uma cena bíblica começa com uma expressão desse tipo, deve-se recordar os acontecimentos anteriores, pois é certo que há relação, seja como continuidade, ruptura ou consequência. No caso do evangelho de hoje, a relação parece ser de consequência. Os acontecimentos anteriores, ou seja, o “isso” ou “essas coisas” que precedem a missão dos setenta e dois discípulos são o conjunto dos fatos que se deram após o início do caminho: a passagem por um povoado da Samaria, onde houve rejeição dos samaritanos e intolerância dos filhos de Zebedeu (Lc 9,51-53); depois desse fato, enquanto caminhavam, Jesus foi interpelado por três pessoas que demonstraram interesse em segui-lo, mas impuseram certas condições prévias, e Jesus nãos as aceitou. O envio dos setenta e dois, portanto, é precedido por duas situações de aparente fracasso no caminho de Jesus, e deve ser visto como resposta a elas. Por isso, é também uma demonstração da sua perseverança e confiança na força da Palavra. Diante das adversidades, ele não desistia; pelo contrário, renovava as convicções e reforçava o empenho para que o anúncio acontecesse com mais eficácia.

Diante disso, «O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir» (v. 1). O termo “outros” (em grego: ἕτερος – heteros) indica tratar-se de um grupo além dos Doze, enviados em missão antes do início do caminho (9,1-6). São outros, mas não inferiores, são outros porque o seguimento de Jesus é aberto a todos, aos outros, ao que é diferente. Todos têm espaço na comunidade cristã. De fato, o número dos “outros” – setenta e dois – evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse o número das nações da terra (Gn 10) – setenta ou setenta e duas. Com isso, o evangelista recorda que o mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus e, por consequência, humanizado por seu amor. É também uma recordação atualizada dos setenta e dois anciãos escolhidos como colaboradores de Moisés na condução do povo de Deus na travessia do deserto, no contexto do êxodo, a quem foi dado o espírito da profecia (Nm 11,24-30). O envio “dois a dois” recorda a importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado para estar sozinho, mas acompanhado (Gn 1,18). O número dois é o princípio da pluralidade, o rompimento do fechamento e do egoísmo. Aqui há também uma maneira de chamar a atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua mensagem a um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Jesus vai aonde eles vão, pois são eles que levam Jesus, através da missão.

Com a imagem da messe, Jesus alerta para a urgência do anúncio, ao mesmo tempo em que ensina os discípulos a cultivarem intimidade com o Pai, o verdadeiro dono da messe: «E dizia-lhes: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita”» (v. 2). A messe é grande porque representa o mundo inteiro, o que torna os trabalhadores sempre poucos, insuficientes, para deixar o mundo como Deus quer: plenamente humanizado, cheio de amor, com todas as pessoas vivendo como irmãs umas das outras, cuidando também da criação. Por isso, devemos todos nos sentir enviados e destinatários, ao mesmo tempo, pedindo sempre ao dono da messe que mande operários para a colheita. O dono da messe é Deus – o Pai –, princípio e fonte da missão, sendo Jesus – o Filho – o primeiro enviado seu. Com efeito, Jesus é o enviado do Pai, e tem autoridade para ampliar sua missão, compartilhando as suas prerrogativas com seus discípulos de todos os tempos, tamanho o seu amor compassivo. A grandeza da messe corresponde também à imensidão dos braços de Deus, capazes de abraçar o mundo inteiro. Jesus veio ao mundo estender esses braços sobre toda a humanidade e, para isso, quis contar com a colaboração dos seus seguidores e seguidoras. A missão da Igreja, portanto, pode ser definida como extensão do abraço de Deus ao mundo. Por isso, deve ser marcada pelo amor, fonte de salvação e humanização. Pedir operários ao Pai indica a necessidade de intimidade com Deus, além de confiança na sua providência.

Ao mesmo tempo em que convoca e envia, Jesus prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os adverte: «Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos» (v. 3). Ora, os últimos acontecimentos já demonstravam que a mensagem de Jesus encontraria empecilhos. Aliás, desde o anúncio do seu ministério ele sofria rejeição, como aconteceu em Nazaré, sua terra natal (Lc 4,14-30). O anúncio do Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a violência e fazem uso dessa. Os representantes desses projetos são verdadeiros lobos. E, para Jesus, é inadmissível o uso da força pelos seus discípulos, nem mesmo para autodefesa, por isso, emprega a imagem do cordeiro, como símbolo de quem não reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência, por isso, ele recomenda a sobriedade na missão: «Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!» (v. 4). Bolsa e sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e sandálias aqui, especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas incompatíveis com o seguimento de Jesus. É claro que a sandália constitui um item indispensável para o caminho. Nesse versículo possui valor simbólico. Também a recomendação para não cumprimentar ninguém no caminho é simbólica, indica do urgência do anúncio, pois as saudações pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam rituais bastante longos.

Na continuidade das recomendações, Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!”. Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós» (vv. 5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de acordo com a mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar integral do ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso coincide exatamente com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser humano, acima de tudo. Além do desapego aos bens materiais, o discipulado exige também o abandono de mentalidades fechadas e de preceitos separatistas, como as leis de pureza alimentar: «Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de Deus está próximo de vós”» (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de pureza alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se contaminarem; tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que faz com que essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A missão dos enviados de Jesus, independente da época histórica, consiste na promoção da vida e da dignidade das pessoas. Curar e expulsar demônios, na linguagem bíblica, é combater tudo o que impede o bem-estar do ser humano, incluindo a cura das doenças e a libertação das estruturas injustas e toda forma de escravidão; e esses são os sinais de que o Reino de Deus está se concretizando.

Jesus previne os discípulos também para a possibilidade de não aceitação da sua mensagem, não pregando vingança, mas alertando para que não insistam diante da recusa e partam logo para outros lugares: «Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: “Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!”. Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade» (vv. 10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida que não pode ser imposta, mas apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a vingança para quem não aceita o anúncio do Reino, mas alerta os discípulos a não perderem tempo e deixa claro que há consequências para quem recusa o anúncio do Reino; essas consequências não são castigo, mas a privação da vida plena e abundante que somente com a vivência do Evangelho é possível experimentar.

A liturgia salta alguns versículos (vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante entusiasta, por sinal: «Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome”» (v. 17). A alegria dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por eles anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos os sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e preconceitos. Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino de Deus em pessoa. Diante do entusiasmo dos discípulos, Jesus toma novamente a palavra: «Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal”» (vv. 18-19). Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do domínio das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu” não significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo bem. Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as hostilidades, representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e escorpiões”. O Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que geram morte, dor, injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal desaparece.

Por último, Jesus recomenda aos discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por precaução de um possível envaidecimento da parte deles: «Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu» (v. 20). O que importa para o discipulado é a certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus, ajudando a construir o seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a certeza de ser amado por Deus, e é isso que conta na vida do ser humano, e não os méritos pessoais de cada um. É a certeza desse amor que deve motivar o ser humano a lutar para que esse mesmo amor chegue a todos os lugares e corações e, para isso, é necessária a missão.

A missão dos setenta e dois é um aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A luta contra o mal exige essa disposição.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 05, 2024

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,2-16 (ANO B)

 


A liturgia deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum continua apresentando o caminho de Jesus com seus discípulos em direção à Jerusalém, conforme a dinâmica narrativa do Evangelho de Marcos. O trecho proposto hoje – Marcos 10,2-16 – compreende uma importante etapa deste caminho. Como já foi afirmado em outras ocasiões, esse caminho não é apenas um percurso geográfico; é, acima de tudo, um itinerário catequético, teológico e espiritual, que visa a formação do discipulado de Jesus e sua revelação como Messias e Filho de Deus. É importante recordar que, durante esse caminho, Jesus sofre uma contínua e sistemática oposição, o que serve de preparação para o confronto final em Jerusalém com as autoridades religiosas e políticas que o levarão à morte na cruz. É durante o caminho que os discípulos demonstram muita incompreensão, fechamento e até oposição a Jesus, demonstrando que o acompanhavam fisicamente, mas ainda não tinham compreendido o sentido real do seguimento, por isso, não aceitavam as consequências.

O texto de hoje marca uma nova etapa no caminho: tendo atravessado o rio Jordão, Jesus já se encontra no território da Judéia (Mc 10,1) e, portanto, cada vez mais perto de Jerusalém e, consequentemente, da morte de cruz. Até então, a oposição encontrada por Jesus ao longo do caminho tinha sido somente dos próprios discípulos: desde Pedro, que o repreendeu após o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,27-35 – evangelho do 24º domingo), até João que proibiu a um homem de agir em nome de Jesus, apenas por não fazer parte do grupo dos Doze (Mc 9,38-48 – evangelho do 26º domingo). Essa observação é importante para lembrar que a mensagem de Jesus nunca encontra facilidade no seu anúncio; pelo contrário, o Evangelho sempre encontra obstáculos, pois possui uma proposta de transformação de vidas e de mudança nas estruturas do mundo. Propostas assim, tendem a incomodar, tanto às instituições, quanto às pessoas a elas conformadas. Enfim, a mensagem humanizante de Jesus causava incômodo em muitos ambientes e pessoas.

Os opositores que confrontam Jesus no evangelho de hoje são os fariseus, seus mais tradicionais adversários, desde o início do seu ministério (Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com eles, o confronto é sempre no campo doutrinal, sobretudo na maneira de compreender e interpretar a Lei de Moisés. Dessa vez, a discussão diz respeito à legitimidade do divórcio, como afirma o texto logo no início: «Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher» (v. 2). Como se vê, o evangelista já começa denunciando a intenção dos fariseus: eles querem “pô-lo à prova”; o verbo grego traduzido por essa expressão é o mesmo empregado no episódio das tentações, para referir-se à atitude de satanás (verbo πειράζω – peirazo). Assim, o evangelista denuncia os fiéis guardiões da doutrina, neste caso, os fariseus, como agentes satânicos. Porém, o espírito satânico estava presente também nos discípulos, inclusive, Pedro é a única pessoa a quem Jesus denomina explicitamente de satanás (Mc 8,33). Como recorda o evangelista, os fariseus não perguntam para aprender mais, nem para tirar dúvidas; perguntam para tentar. O que eles esperavam de Jesus era uma resposta que confirmasse sua fama de relativizador da Lei, para posteriormente acusá-lo de blasfemo, herege. Como fiéis observadores da lei, eles já tinham consciência formada e conhecimento a respeito desse tema.

Conhecendo bem as intenções dos fariseus, Jesus lhes responde com uma nova pergunta, evocando Moisés, exemplo de legislador e sinônimo da lei em Israel, sobretudo para eles, os fariseus: «Jesus perguntou: o que Moisés vos ordenou?» (v. 3). E os fariseus respondem de acordo com a Lei, ou seja, de acordo com Moisés: «Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la» (v. 4). Está claro, portanto, que o divorcio estava regulamentado em Israel, ou seja, era legítimo. A lei, na qual os fariseus se apoiavam, realmente permitia isso (Dt 24,1-4). Porém, Jesus recorda o motivo pelo qual a Lei foi dada: «Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne» (vv. 5-7). Ora, o mundo regido pela lei não é o mundo ideal. A lei não corresponde aos propósitos originais da criação, mas foi dada como um paliativo, diante do mal enraizado no mundo, referido por Jesus como dureza de coração. Mas Jesus não veio ao mundo para conformá-lo à Lei, e sim para recuperar o ideal fraterno da criação, instaurando definitivamente o Reino de Deus. A Lei de Moisés é resposta ao pecado, bom seria que ela não fosse necessária.

Como a lei permitia o divórcio, na época de Jesus o debate girava em torno dos motivos aceitáveis para que alguém se divorciasse. Havia duas principais correntes rabínicas de interpretação: uma delas, afirmava que o divórcio só podia ser dado em caso de um erro muito grave por parte da mulher, como o adultério propriamente dito, ou um “defeito” também grave, como esterilidade. Para outra corrente, o divorcio poderia ser dado por qualquer motivo, até mesmo se a mulher deixasse queimar uma comida, ou se o homem encontrasse outra mulher mais “bonita”. Ambas as correntes se baseavam numa lei deuteronomista (Dt 24,1-4). Para Jesus, essa lei era absurda, pois legitimava a submissão e marginalização da mulher. Em todas as questões relativas à lei, a preocupação de Jesus é sempre com os abusos que podem ser praticados e fundamentados a partir dela. No caso do divórcio, quem se prejudicava sempre era a mulher, pois o homem poderia repudiá-la a qualquer momento, expulsando-a de casa. Essa lei legitimava a família patriarcal e mantinha a mulher marginalizada. Por isso, Jesus se distancia dessa lei e convida a sua comunidade a manter-se alinhada aos propósitos da criação: “Deus os fez homem e mulher” para serem “uma só carne”, ou seja, uma unidade, formando uma profunda comunhão, sem submissão da mulher (Gn 1,27; 2,24). Portanto, prender-se à lei, para Jesus, é negar o projeto original de Deus e fechar-se ao seu Reino, por consequência.

A discussão com os fariseus tinha sido no caminho, enquanto o ensinamento aos discípulos acontece já na casa. É típico da pedagogia de Jesus aprofundar em casa, com os discípulos, o tema discutido no caminho, sobretudo no Evangelho de Marcos. Assim, mais uma vez, o evangelista evidencia caminho e casa como lugares privilegiados da catequese de Jesus. Por isso, diz o texto que, «em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo assunto» (v. 10). Talvez os discípulos tenham ficado embaraçados com as respostas de Jesus aos fariseus, e quiseram também tirar suas dúvidas, afinal, também eles tinham crescido aprendendo e observando a lei de Moisés. Era normal, portanto, que também eles se espantassem com a “subversão” de Jesus na interpretação da Lei. Ainda mais sobre o tema do casamento/divorcio, um assunto importante e muito relacionado ao cotidiano das pessoas. Além do provável espanto com a resposta de Jesus aos fariseus, os discípulos devem ter imaginado que também eles poderiam ser abordados sobre esse tema; por isso, o interesse em aprender mais e melhor com Jesus, mesmo que nem sempre conseguissem, devido ao fechamento de mentalidade e obstinação, como tinham demonstrado com a atitude de João, no evangelho do domingo passado.

E o evangelista diz que, aos discípulos, «Jesus respondeu: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se casar com outro, cometerá adultério”» (vv. 11-12). Nessa resposta, Jesus reafirma seu compromisso com os propósitos da criação: o divórcio não deveria existir. Ao mesmo tempo, ele traz uma grande novidade: coloca a mulher em condição de igualdade com o homem, ao afirmar que também o homem comete adultério ao divorciar-se e casar-se com outra. Ora, de acordo com a Lei, fundamento da família patriarcal, quando a interpretação era conveniente, a culpa e as consequências, em caso de divórcio, recaiam somente sobre a mulher, afinal, era o próprio marido quem escrevia a certidão do divorcio, na qual dizia os motivos pelos quais estava mandando a esposa embora. A depender dos motivos escritos na certidão, as consequências seriam as piores possíveis para a mulher, a começar pelo rótulo de adúltera, causando discriminação, segregação e até apedrejamento. Também podia acontecer que o homem escrevesse motivos simples para o divórcio, coisas que não comprometessem tanto a imagem da mulher; com isso, ela poderia ser aceita novamente na casa do pai e até casar-se de novo. Mas isso era muito raro.

Era praxe o homem destratar a mulher ao máximo possível, na certidão de divórcio, até para justificar sua atitude perante familiares, amigos e lideranças religiosas. Quando isso acontecia, e era frequente, a mulher não seria mais acolhida pelos pais e dificilmente encontraria um novo marido. Geralmente, terminava na prostituição, quando não morria apedrejada. Enfim, a mulher era fortemente prejudicada. Portanto, a grande lição de Jesus aqui, além de remeter a humanidade ao plano da criação, é a proteção da mulher, com sua dignidade e igualdade nas relações, combatendo uma lei que discriminava e excluía, por isso, reprovável em todos os sentidos. Se praticada, pelo menos que as consequências não recaíssem apenas sobre a mulher. Em outras palavras, Jesus reivindica direitos iguais: se a lei concede ao homem o direito de repudiar a mulher, que conceda também à mulher o direito de repudiar o homem. Com isso, ele afirma a igualdade entre homem e mulher, e isso é extremamente revolucionário para a época. Mas o ideal para Jesus é que não seja necessária a aplicação da lei por nenhuma das partes. O ideal é viver plenamente o princípio de unidade e comunhão da criação, ou seja, que sejam uma só carne.

Na parte final, o evangelista coloca, novamente, em cena personagens tão caros para esta seção do caminho: as crianças. Assim diz o texto: «Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os discípulos as repreendiam» (v. 13). A ênfase de Jesus e do evangelista às crianças tem uma função didática muito específica, sobretudo para a formação dos discípulos. Ora, quanto mais se aproximavam de Jerusalém, mais os discípulos alimentavam projetos de poder e sonhos de grandeza, imaginando a restauração do reino davídico-salomônico e, consequentemente, a ocupação de cargos de honra na administração. Diante disso, o evangelista insiste em apresentar as crianças como modelo, considerando a insignificância que lhes era atribuída na época. E o fato de os discípulos repreenderem as crianças, mostra o quanto eles ainda estavam distantes do projeto de Jesus. Na verdade, estavam em completa oposição a Jesus, pois faziam o contrário do que ele proponha. No debate sobre o divórcio, Jesus elevou a mulher à condição de igualdade; agora, com as crianças, eleva todas as categorias de pessoas excluídas à condição de preferidas do Reino.

Com a atitude escandalosa dos discípulos – no evangelho, causa escândalo quem atrapalha alguém de se aproximar de Jesus – o evangelista diz que «Jesus se aborreceu e disse: “Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas”» (v. 14). Esse esse episodio é narrado pelos três evangelhos sinóticos, mas somente Marcos diz que Jesus “se aborreceu”. Aliás, considerando os quatro evangelhos, essa é a única passagem em que se afirma que Jesus teve esse sentimento. O verbo grego empregado pelo evangelista (ἀγανακτέω – aganakteo) poderia ser traduzido também por “ficou irado” ou “teve raiva”. Esse detalhe é importante por três motivos: primeiro, porque demonstra a importância que Jesus dava às crianças – como imagem de todas as categorias de pessoas vulneráveis e marginalizadas da sociedade; segundo, porque denuncia o quanto era absurda a atitude dos discípulos; e, terceiro, porque mostra a preocupação do evangelista Marcos em revelar plenamente a humanidade de Jesus, apresentando-o como um homem de sentimentos. De fato, Revelar os traços humanos de Jesus era muito importante para Marcos. Isso torna o seu Evangelho o mais realista dos quatro.

Ao dizer que Jesus, um homem que adotou o amor como regra de vida, ficou irado, e disse o motivo da ira, o evangelista comprometeu a sua comunidade e as comunidades de todos os tempos: acolher as crianças, ou seja, os pequeninos, é um imperativo cristão. As crianças, sobretudo nesta passagem do evangelho, são a síntese e imagem de todas as categorias de pessoas necessitadas, marginalizadas, discriminadas pela sociedade e a religião. Quando a comunidade cristã se distancia destas pessoas, quando não faz opção preferencial por elas, está provocando a ira de Jesus. Além de preferidas, as crianças são apresentadas também como modelo de pertença ao Reino de Deus (v. 15). Os discípulos estavam alimentando sonhos triunfalistas, imaginando a conquista de um reino pela força. Pensavam estar a caminho de Jerusalém para a restauração da monarquia davídica. Por isso, Jesus insiste tanto em propor as crianças como modelo para eles, como forma de combate a essa mentalidade. A criança é exemplo de quem necessita aprender, de quem está aberto ao outro, de quem não trama maldade nem alimenta ambições, de quem não se sente autossuficiente. Para pertencer ao Reino de Deus, como uma sociedade igualitária e justa, é imprescindível ter essas características.

Além de reprovar a atitude absurda dos discípulos com palavras, Jesus o faz também com gestos, como mostra o último versículo: «Ele abraçava as crianças e as abençoava, impondo-lhes as mãos» (v. 16). Isso mostra que seu ensinamento é coerente em todos os sentidos. São três atitudes bastante significativas: abraçar, abençoar e impor as mãos. Tudo isso representa a plenitude do cuidado e da proteção de Deus. Parece até uma forma de provocar os discípulos que não queriam sequer que as crianças se aproximassem dele. E Jesus não só quer que os pequeninos estejam perto de si, mas quer que se sintam abraçados, que sintam sua ternura. O gesto tradicional de acolhida e saudação da cultura judaica era o beijo no rosto, conhecido como “ósculo da paz”; o abraço era raro, sobretudo em espaço público, porque era um gesto considerado íntimo demais e tipicamente feminino; era reservado às mães para com os filhos. Com isso, o evangelista mostra que em Jesus se manifestam também os traços maternos de Deus, já anunciados no Antigo Testamento, mas como metáfora. Em Jesus, deixa de ser metáfora e se torna realidade. É também um sinal do evangelista para as comunidades de todos os tempos: é preciso acolher os pequenos com amor materno. Os pequeninos de sempre devem sentir-se abraçados pela comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré.

Igualdade nas relações e amor aos pequeninos são a síntese do evangelho de hoje. Por isso, é preciso que nossas comunidades acolham a mensagem humanizadora de Jesus conforme o relato de Marcos e reconfigurem suas estruturas, tornando-as cada vez mais alinhadas ao seu projeto. Mulher e criança, duas categorias de pessoas marginalizadas na época, evidenciadas no evangelho de hoje, são imagem e síntese de todas as pessoas por quem Jesus fez opção preferencial. Logo, são indicações claras do que devem fazer também as comunidades de hoje.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...