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sexta-feira, fevereiro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,40-45 (ANO B)

Com a liturgia deste sexto domingo do tempo comum, concluímos a leitura do primeiro capítulo do Evangelho de Marcos. Estamos acompanhando ainda os primeiros passos do ministério de Jesus na Galileia. O texto proposto para hoje – Mc 1,40-45 – apresenta continuidade com o episódio anterior e, ao mesmo tempo, novidade, de modo que podemos perceber uma certa evolução na atuação de Jesus, com uma abertura cada vez maior em relação aos destinatários da sua ação libertadora. Além da expansão geográfica do seu agir, a intensidade da ação relatada no texto de hoje também evidencia essa evolução: da expulsão de um espírito mau (Mc 1,21-28 – evangelho do 4º domingo), passou à cura de uma mulher com febre, a sogra de Pedro (Mc 1,29-39 – evangelho do 5º domingo), e hoje chega à cura de um leproso. Considerando a gravidade da lepra para a época, podemos considerar o evangelho de hoje como ápice desta primeira fase do ministério de Jesus. Ele começa demonstrando autoridade ao intervir questões mais simples, como a realização de um exorcismo, até a libertação de um mal sem cura, como era considerada a lepra. Esse mesmo episódio é contado também pelos outros sinóticos (Mt 8,1-4; Lc 5,12-14), mas a versão de Marcos é mais rica, tanto pela maneira de contá-lo quanto pela posição que ocupa no conjunto do Evangelho. Com a liturgia de hoje, conclui-se a primeira etapa sequenciada da Leitura dominical do Evangelho de Marcos, que será interrompida no próximo domingo, o primeiro da Quaresma, e retornará de maneira semi-contínua somente após a conclusão do ciclo pascal.

Até então, a atuação de Jesus tinha se desenvolvido no âmbito do espaço urbano, ou seja, dentro da cidade de Cafarnaum: pregação e exorcismo na sinagoga (Mc 1,21-28) e cura na casa de Simão (Mc 1,29-34). Isso levou os discípulos à tentação do comodismo, propondo a centralização e a fixação da atividade de Jesus em um espaço delimitado, devido ao aparente sucesso inicial (Mc 1,28.37). Diante da proposta absurda dos discípulos, Jesus propôs a descentralização, com o deslocamento para as margens, as periferias, como se pode concluir por esta afirmação: «Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim» (Mc 1,38). O evangelho de hoje mostra, portanto, a ação de Jesus “em outros lugares”, comunicando vida, libertação e humanização, já que era impossível encontrar-se com um leproso dentro da cidade, uma vez que a Lei determinava o seu isolamento total: «Enquanto durar a sua enfermidade, o leproso ficará impuro e, estando impuro, morará à parte: sua habitação será fora do acampamento» (Lv 13,46). E, geralmente, a lepra durava a vida toda, levando o enfermo à morte, de modo que, quando ao alguém se afastava da família e da comunidade por causa da lepra, significava uma antecipação da morte, pois dificilmente ela voltava. Podemos, então, perceber como a ação libertadora de Jesus vai ganhando novas dimensões: sinagoga – casa – terreiro da casa – outros lugares; assim, o universalismo do Reino já pode ser sentido, bem como as bases fundamentais de uma Igreja em saída. Dizendo não ao comodismo dos discípulos, Jesus propõe a coragem para arriscar-se, a disposição para conviver com as diferenças e viver ao revés das regras de comportamento convencionais impostas pela religião e adotadas pela sociedade como normais. O evangelho de hoje deixa isso muito claro, ao narrar o encontro de Jesus com o leproso. O cenário desse episódio, portanto, é o campo, um lugar a céu aberto, afastado de qualquer cidade ou povoado.

Olhemos, então, para o texto: «Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: ‘Se queres, tens o poder de curar-me’» (v. 40). De acordo com esse primeiro versículo, já percebemos um encontro de duas pessoas rebeldes, subversivas. Se Jesus tivesse permanecido no âmbito da sinagoga ou até mesmo da casa, um encontro como esse jamais aconteceria, pois o leproso não podia entrar em nenhuma das duas. A rebeldia do leproso é motivada pela necessidade; a de Jesus é pelo amor. Ora, de acordo com a Lei, tanto Jesus quanto o leproso deveriam evitar-se mutuamente, cada um se distanciando ao máximo possível do outro. Nem o leproso deveria aproximar-se, nem Jesus deveria permitir que o leproso chegasse perto dele. Porém, os dois resolveram transgredir, praticando ambos um gesto de grande rebeldia. A Lei determinava que o leproso deveria ficar longe do convívio social, fora do acampamento, ou seja, longe da comunidade, e até gritar “impuro!”, como aviso, em caso de alguém aproximar-se (Lv 13,45-46). Ao permitir que o leproso se aproxime, Jesus conquista a sua confiança, fazendo o que, certamente, ninguém tinha feito ainda. Com muita liberdade, o leproso faz um pedido em forma de confissão. Na verdade, ele nem sequer pede a cura, apenas sugere que Jesus pode purificá-lo. A tradução litúrgica empobrece um pouco o sentido do texto trocando o verbo purificar por curar. O que o leproso deseja é ser purificado. Por isso, a melhor tradução seria: «Se queres, podes me purificar». Como se vê, não é propriamente um pedido, mas um reconhecimento da força de Jesus. Assim, o leproso se torna modelo do verdadeiro crente: aquele que expressa a sua necessidade, sem forçar, sem querer determinar o agir de Deus, mas respeitando a sua liberdade, ao dizer «se queres». Ser purificado, naquele contexto, significava voltar a ser reconhecido como gente; era se libertar de todos os estigmas excludentes e segregadores que a lepra comportava; era ser admitido novamente na convivência e na vida da comunidade.

Jesus não resiste às necessidades da pessoa que vai ao seu encontro com sinceridade e desejo de libertação. E ele também faz a sua parte, ao permitir o encontro. Por isso, diz o texto que, «cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica purificado!» (v. 42). Jesus quer que o homem seja “purificado”, ou seja, readmitido à convivência humana, que ele saia da situação de negação da vida em que se encontra. Compaixão é a resposta de Deus às situações de negação e ausência do seu projeto de vida; é um amor tão profundo, a ponto de fazer «contorcer as vísceras», quer dizer um amor que mexe com o mais profundo do seu ser. Essa resposta nunca é apenas sentimental, mas é ação, é promoção de vida em abundância. É interessante a descrição da ação: «estendeu a mão, tocou nele». O gesto de estender a mão significa o cumprimento de uma ação salvífica por excelência: é Deus doando sua força em benefício do seu povo, tirando-o da opressão, de acordo com a linguagem do Antigo Testamento (Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.). É prova do amor e cuidado de Deus para com a humanidade. Jesus poderia ter reagido ao leproso apenas com palavras e curá-lo, com sua autoridade, sem necessariamente tocá-lo. Mas antes de demonstrar poder, demonstra compaixão, cria laços, toca, quer dizer, se envolve com a situação. É o seu jeito de se relacionar, de amar, por isso, cura. Não cura por meio de decretos, mas tocando nas pessoas com suas feridas e dores. Tocando, ele sente como sua a dor do outro, comprometendo seus seguidores de todos os tempos a fazer o mesmo. Neste caso, o toque de Jesus é ainda mais significativo, pois, segundo a Lei, quem tocava um leproso ficava impuro também. Mas Jesus não se importa com isso. Nenhuma norma impedia ele de relacionar-se com uma pessoa marginalizada. E ele não sossegava enquanto não resgatava tal pessoa.

Como tocar num leproso era um gesto extremamente proibido pela Lei, com esse gesto, Jesus desobedece com muita liberdade, ensinando que o bem do ser humano está acima de qualquer preceito e doutrina. Movido por compaixão, tendo tocado com a mão, Jesus sentiu de fato a necessidade daquele homem, e expressou sua vontade com palavras: «Eu quero: fica purificado»E como as palavras de Jesus são cheias de vida e de amor, eis que «no mesmo instante, a lepra desapareceu e ele ficou purificado» (v. 43). Jesus anuncia palavras de vida e libertação, e é isso o que ele faz acontecer. Dizer que o leproso ficou purificado é o mesmo que dizer que ele ficou apto para a convivência, foi reintegrado à comunidade, teve sua dignidade restituída, o que significa muito mais do que a cura física. Livrou-se de um estigma condenatório. Aqui, mais uma vez, o evangelista usa o verbo “purificar” (em grego: καταριζω - katarízo); aliás, de acordo com o original, em nenhum momento vem mencionada a palavra “cura”, nem o verbo “curar” nesse texto. Isso evidencia ainda mais o interesse do evangelista pela dimensão social e comunitária da ação de Jesus. O mais importante é despertar na comunidade do evangelista e na comunidade cristã de todos os tempos a necessidade de promover ações de restauração, inclusão e promoção da dignidade humana. No Antigo Testamento, há somente dois casos de cura da lepra: o de Mírian, irmã de Moisés (Nm 12), e o de Naamã, general do exército de Aram (2Rs 5); ambos se dão pela mediação de Moisés e de Eliseu, respectivamente. Mas nenhum se aproxima do que faz Jesus aqui; sua maneira de agir e de cuidar do outro é única. Inclusive, essa é a única cura de leproso no Evangelho de Marcos, o que enriquece o episódio ainda mais.

Ao transgredir a Lei de maneira tão explícita, Jesus passa a correr riscos, mas não se intimida com isso. Na verdade, ele pede silêncio ao homem que fora purificado por precaução de má compreensão na sua mensagem: «Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: ‘Não contes nada disso a ninguém!’» (v. 44a). Jesus tem pressa com a libertação das pessoas, por isso mandou logo o homem ir embora. Certamente, aquele homem já tinha perdido muito tempo da existência vivendo segregado, excluído da convivência. Por isso, devia voltar o quanto antes para a comunidade. Jesus também não queria ser confundido com um milagreiro. Queria evitar concepções triunfalistas a respeito da sua imagem e do seu messianismo. Por isso, pediu que o homem não contasse nada a ninguém. Aliás, o chamado “segredo messiânico” é um dos principais temas teológicos do Evangelho de Marcos. Esse segredo será revelado somente na cruz. De fato, a cruz é o traço distintivo principal da messianidade de Jesus, escapando de todos os esquemas messiânicos alimentados ao longo dos séculos em Israel. Ora, no decorrer do ministério de Jesus, as pessoas, incluindo os discípulos, perceberão traços parciais da sua messianidade, à medida em que contemplam seu agir humanizante, libertador. No contexto narrativo da obra, além de tema teológico, o segredo expressa uma preocupação do evangelista com a vida da comunidade, que deve esforçar-se ao máximo possível para não apresentar uma imagem equivocada de Jesus, da mesma forma que Jesus não queria ser confundido com o Messias triunfalista e poderoso das expectativas dos seus contemporâneos.

Além do silêncio, Jesus dá uma segunda ordem ao homem recém-purificado: «Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova contra eles!» (v. 44b). Assim como eram os sacerdotes quem diagnosticavam se a pessoa tinha lepra, para afastá-la do convívio social, também eram eles quem atestavam se a pessoa estava purificada ou não. Porém, a lepra era considerada um mal sem cura, era praticamente impossível alguém livrar-se dela, de modo que o leproso era um “morto vivo”. Com essa ordem, Jesus está, na verdade, provocando os sacerdotes e a religião da época, mostrando que a palavra final sobre a vida das pessoas já não é mais a deles. Jesus corta o mal pela raiz, deixando desconcertados aqueles que viviam de identificar o mal na vida dos outros. O próprio texto indica a ironia de Jesus: «como prova contra eles!». Jesus quer que eles mesmos, os sacerdotes, reconheçam que já não tem mais autoridade sobre a vida; o poder daquele sistema começava a desmoronar. É claro a ordem expressa também seu desejo de ver o homem readmitido na comunidade e na convivência social e, para isso, precisava da declaração do sacerdote. Há, portanto, necessidade e provocação, ao mesmo tempo, na ordem de Jesus.

O pedido de silêncio que Jesus faz nunca é atendido. Quando mais ele pedia segredo, mais a Boa Notícia do Reino anunciada por ele se espalhava. Eis, então, a atitude do ex-leproso: «Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato» (v. 45a). De fato, Jesus pede algo quase impossível: como silenciar diante de maravilhas tão grandes, coisas nunca vistas antes? Como não irradiar a felicidade de contemplar o Reino de Deus sendo instaurado? Na lógica do Reino, quem recebe se torna doador; aquele que era considerado imundo, se torna evangelizador, após ser humanizado, restaurado em sua plena dignidade.  Apesar do risco de distorção, o anúncio das obras de Jesus fluía com facilidade. Era impossível abafar os sinais da chegada do Reino de Deus no coração das pessoas marginalizadas das periferias da Galileia. Isso lhe trazia consequências, obviamente, até positivas, inicialmente, pois levava mais pessoas a encontrar-se com ele e, assim, recuperavam o sentido da vida, sendo humanizadas, libertadas e emancipadas. Mas ele tinha precauções em relação a isso, como diz o evangelista: «Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo» (v. 45b). Ele evitava as cidades e procurava lugares desertos porque sua fama aumentava cada vez mais, o que ele não queria; e sua vida começava a correr perigo. Esse afastamento se tornava providencial: quanto mais longe dos centros de poder, mais pessoas impuras poderiam aproximar-se dele. Quanto mais afastado das pessoas consideradas puras, mais os considerados impuros chegariam perto. A religião segregadora rotulava pessoas doentes de impuras e as expulsava para os lugares desertos e afastados, fora das cidades e aldeias. Propositadamente Jesus ia a estes lugares levando vida, amor, acolhimento, justiça e libertação.

Assim como a comunidade de Marcos, também nós, cristãos de hoje, somos interpelados pelo evangelho a promover libertação, a colocar o bem do ser humano acima de qualquer norma e doutrina. Para isso, é necessário ir sempre aos outros lugares, aos desertos de hoje, as periferias existenciais, onde estão aqueles e aquelas a quem a religião e a sociedade disseram que não tem mais jeito, já não servem mais para nada. São essas pessoas que mais precisam conhecer o Deus amoroso que Jesus revelou, e somente quem tem intimidade com esse Deus pode acolher e compreender bem essas pessoas, consciente ou não.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 05, 2024

REFLEXÃO PARA A FESTA DO BATISMO DO SENHOR – MARCOS 1,7-11 (ANO B)

 


A festa do batismo de Jesus marca a conclusão do tempo do Natal, tanto nas dimensões cronológica e teológica. Neste ano, por uma questão de adaptação do calendário litúrgico, ela é celebrada na segunda-feira após a epifania. Por estarmos vivenciando o ciclo litúrgico B, o evangelho proposto neste ano é Mc 1,7-11. O batismo de Jesus é o marco inaugural da sua vida pública, ou seja, do seu ministério. Se trata de um evento programático, no qual são reveladas, antecipadamente, a identidade de Jesus e as principais coordenadas da sua missão. A nível de introdução e contexto, é importante recordar que o batismo é um dos eventos narrados pelos evangelhos que os estudiosos vêem com maior probabilidade de ter sido, realmente, um fato histórico da vida de Jesus. Contribui para essa visão o fato de ser um dos poucos acontecimentos presentes nos quatro evangelhos: explicitamente nos três sinóticos (Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22) e implicitamente em João (1,19-34). O fato de estar presente nos quatro evangelhos, não significa uniformidade. Cada evangelista narrou o batismo à sua maneira, adaptando os dados tradicionais às suas habilidades literárias e às necessidades de suas respectivas comunidades. Além dessa pluralidade literária, o que mais tem contribuído para a aceitação do batismo de Jesus como um acontecimento real são os problemas de interpretação deste evento desde as primeiras gerações cristãs. Ora, se não se tratasse de um fato histórico e importante da vida de Jesus, certamente os evangelistas o teriam omitido em seus escritos.

Os principais problemas e questionamentos suscitados pela presença do batismo nos evangelhos, observados por teólogos e exegetas, são os seguintes: sendo o batismo um rito de purificação destinado a pecadores arrependidos, por que Jesus passou por esse rito se não era pecador? Supondo que o ministro do batismo tem autoridade sobre a pessoa batizada, porque Jesus aceitou ser batizado por João, se era superior a ele? Questões desse tipo surgiram muito cedo. Por isso, acredita-se que dificilmente os relatos evangélicos teriam recordado um evento tão problemático se não fosse realmente importante e histórico. A historicidade do evento, no entanto, não isenta o relato de conter artifícios literários e elementos simbólicos. Na verdade, os relatos evangélicos contêm a interpretação teológica do evento, e não uma mera crônica descritiva. Ao colocá-lo como marco inaugural do ministério de Jesus, os evangelistas – especialmente os sinóticos (Mt, Mc e Lc) – apresentaram o batismo como um evento de revelação, revestindo-o de elementos típicos de teofanias do Antigo Testamento, como veremos na sequência da reflexão. Como na maioria dos episódios comuns aos demais evangelhos, o relato do batismo em Marcos é marcado pela brevidade e sobriedade. O mesmo acontece com a apresentação da missão de João Batista, a qual contém apenas uma breve síntese da sua atividade batizadora (Mc 1,2-6) e uma pequena descrição da sua pregação (Mc 1,7-8).

Feitas as devidas considerações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto, propriamente, cujos dois primeiros versículos correspondem à pregação de João: «João Batista pregava, dizendo: ‘Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo’» (vv. 7-8). Nesses dois versículos estão todas as palavras de João no evangelho de Marcos. Percebe-se a sobriedade acenada anteriormente; faltam os elementos apocalípticos e a mensagem ameaçadora, presentes em Mateus e Lucas. Temos em Marcos a imagem de um precursor mais manso, cuja pregação se limita ao anúncio de Jesus, apresentado como o “Mais forte”, uma expressão que revela um dos traços da identidade de Deus no Antigo Testamento (Dt 10,17; Jr 32,18; Dn 9,4; Is 49,24). A expressão “depois de mim” (em grego: όπίσω μου – opísso mú) possui um sentido que vai além de uma indicação temporal, sobretudo na obra de Marcos, pois está relacionada ao seguimento, ou seja, ao discipulado (cf. Mc 1,17; 8,33). Certamente, nesse trecho, indica que Jesus foi discípulo de João, antes de constituir o seu próprio movimento.

Apesar de tê-lo entre os seus discípulos, João reconhece a superioridade de Jesus: «Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias». Ora, desamarrar as sandálias do outro era um gesto bastante humilhante, que competia aos escravos. Inclusive, somente aos escravos estrangeiros, em Israel; os escravos hebreus eram dispensados deste serviço, tendo em vista a humilhação que tal gesto representava. Essa declaração atribuída a João, mostrando a superioridade de Jesus em relação a ele, revela a preocupação das lideranças das primeiras comunidades para que não houvesse confusão e nem dúvidas em relação ao verdadeiro Messias. É inegável que João chegou a ser confundido com o Messias. Por isso, os evangelistas insistem tanto em apresentar João em condição inferior. Alguns exegetas vêem essa expressão também como alusão ao à lei do levirato (cf. Lv 25,5-10; Rt 3,5-11), mas essa relação é mais provável no Evangelho segundo João, cuja chave de leitura principal é a metáfora do matrimônio. Na tradição sinótica, trata-se mesmo de uma declaração da humildade de João e da superioridade de Jesus em relação a ele.

A distinção entre os dois personagens se torna ainda mais clara quando o próprio João declara a provisoriedade do seu batismo e a superioridade do batismo que Jesus realizará: «Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo» (v. 8). A água era um sinal externo de purificação e penitência; é um elemento que não penetra no íntimo da pessoa, permanece na exterioridade. O batismo com o Espírito Santo significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa, transformando-a interiormente. Aqui, fica clara, mais uma vez, a sobriedade do relato de Marcos com a ausência dos elementos apocalípticos na pregação de João; em Lucas, por exemplo, acrescenta-se o fogo como característica do batismo de Jesus (cf. Lc 3,16). A distinção entre os dois batismos era muito necessária para as primeiras comunidades; até mesmo quando João não era mais confundido com o Messias, o seu batismo continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão; muita gente não compreendia a diferença, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (cf. At 19,1-7). É por isso que os evangelistas insistiram tanto com essa distinção.

Tendo apresentado João e sua missão, com o devido cuidado para não ser confundido com o Messias, o evangelista passa a apresentar Jesus e sua missão, cujo marco inaugural é o batismo: «Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no rio Jordão» (v. 9). Apesar de solene, a expressão temporal “naqueles dias” é bastante genérica e vaga. O mais importante, no entanto, é o que se diz em seguida: a procedência de Jesus. É exatamente aqui que começa a revolução de valores do Evangelho de Marcos, que é uma narrativa contra hegemônica. Ora, no primeiro versículo da obra, Jesus fora apresentado como o Cristo (Messias) e Filho de Deus (cf. Mc 1,1); o Batista tinha acabado de apresentá-lo como o “Mais forte” (v. 7); de repente, o evangelista traz um dado que parece contradizer esses predicados: Jesus vem de Nazaré da Galileia, um lugar desprezível e sem importância. Essa afirmação é chocante. A Galileia era considerada uma terra semi-pagã pelos judeus ortodoxos; seus habitantes eram considerados gente da pior espécie. Nazaré era uma aldeia tão sem importância, que não é mencionada uma única vez no Antigo Testamento.

Jesus vem do lugar mais improvável para um Messias e Filho de Deus, e isso é desconcertante. Inclusive, outros evangelistas, como Mateus e Lucas, ilustraram seus relatos com longas genealogias, para relacionar Jesus com os grandes personagens da história de Israel (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), e ainda localizaram o seu nascimento em Belém, nas proximidades de Jerusalém, a cidade mais importante da região, conferindo, assim, melhores credenciais ao Nazareno. Iniciando sua apresentação de Jesus com características tão depreciativas para a época, Marcos deixa claro que sua narrativa será marcada pelo contraste entre centro e periferia. É a partir desse contraste que ele apresentará Jesus como o Messias e Filho de Deus, identificado com os últimos, os pequenos e marginalizados da história, com quem se fez solidário desde o início da sua missão, ao aceitar ser batizado por João. Ora, se o Batista fora apresentado com características humildes, também o gesto de Jesus se submeter ao seu batismo é uma grande demonstração de humildade.

Na continuidade, diz o texto que «E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele» (v. 10). A abertura dos céus é uma imagem comum na literatura judaica bíblica e extra bíblica. Significa, antes de tudo, a disposição de Deus em se comunicar com a humanidade. Quando os tempos estavam muito difíceis, imaginava-se que Deus tinha fechado os céus e não mais se comunicava com a humanidade. Quando o profeta Isaías (Terceiro Isaías) se lamenta do julgo da dominação persa, após o exílio, expressa o desejo de ver “os céus se rasgando para Deus descer em socorro” (cf. Is 63,19). A abertura do céu no evangelho de hoje, portanto, significa que em Jesus a comunicação entre Deus e a humanidade é restabelecida definitivamente. Já a imagem do Espírito descendo como pomba é uma novidade na linguagem bíblica, embora alguns estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem com o “pairar” do Espírito de Deus sobre as águas no princípio da criação (cf. Gn 1,2), ou com a pomba que Noé soltou da arca durante o dilúvio (cf. Gn 8,8); essas interpretações, no entanto, já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador em tudo, até mesmo na simbologia.

As imagens mais usadas para o Espírito de Deus na Bíblia são o fogo e o vento (cf. At 2,1-13). Porém, tanto o fogo quanto o vento, simbolizam o Espírito Santo pela força e a capacidade de criação e transformação; em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o Espírito não desceu sobre ele para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo como o Filho amado do Pai, e para tornar pública essa confirmação. O Espírito preenche e transforma quem é carente dele; em quem já o possui em plenitude, como Jesus, apenas confirma. Desde a sua geração na eternidade, e encarnação no ventre de Maria, Jesus já possuía o Espírito Santo em plenitude. A pomba evoca serenidade, tranquilidade, paz e consolo; não causa assombro algum; é esse o sentido da manifestação do Espírito com essa forma no batismo de Jesus: ele não foi transformado pelo Espírito naquele momento, porque já era fruto desse mesmo Espírito.

Mais importante do que a imagem em si é a comunicação restabelecida entre a humanidade e Deus, não passando mais pela mediação das lideranças religiosas de Jerusalém, mas somente pela pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e afirma que o “seu bem-querer”, ou seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros sacrifícios oferecidos no templo de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo com ecos antico-testamentários (cf. Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui é completamente nova de significado, superando todas as expectativas e promessas: «E do céu veio uma voz: ‘Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer» (v. 11). O Messias que povo das expectativas tradicionais era apenas um servo de Deus e filho de Davi, o que seria um mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho como único mediador. A voz que sai do céu significa Deus falando diretamente com a humanidade e que tem prazer por Jesus realizar a sua vontade. Isso é realmente a inauguração de um novo tempo.

Que a recordação do batismo de Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvindo a sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas diversas situações cotidianas. Que sejamos confirmados como filhos e filhas de Deus, em seu amor, para viver como irmãos e irmãs, à maneira de Jesus de Nazaré, o Filho Amado que fez apenas o bem por onde passou (cf. At 10,38).

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 09, 2023

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO ADVENTO – MARCOS 1,1-8 (ANO B)



Todos os anos, a liturgia do segundo e do terceiro domingos do advento destaca a figura de João, o Batista, como o profeta que antecede, de modo imediato, a missão de Jesus. Neste ano, por ocasião do Ciclo litúrgico B, o evangelho proposto para o segundo domingo é Mc 1,1-8. Como o Evangelho de Marcos é menos extenso do que os demais, também o seu relato sobre a missão do Batista é mais abreviado. Por isso, no próximo domingo – o terceiro do advento – a liturgia utilizará um texto do Evangelho de João para falar do testemunho do Batista. Sendo o advento o tempo por excelência de preparação para o Natal do Senhor, mas também um convite à conversão contínua, é muito importante voltarmos o olhar para o princípio do evangelho, reconhecendo o papel dos personagens que estiveram em tal princípio, como hoje recordamos a figura de João, o Batista. O texto lido hoje contém os primeiros versículos do Evangelho de Marcos, o que lhe confere uma grande importância, pois, além de descrever os elementos essenciais da missão de João, funciona também como introdução geral à toda a obra. João Batista é um personagem importante em todos os evangelhos, mas em Marcos possui uma relevância ainda mais acentuada, pois ele é o primeiro personagem a entrar em ação. Mateus e Lucas, por exemplo, antes de apresentarem a missão de João, colocam José e Maria como protagonistas humanos dos preparativos para o nascimento de Jesus. O Quarto Evangelho, por sua vez, antes de descrever o testemunho de João, faz uma ampla apresentação da existência eterna do Palavra-Verbo, que é o próprio Jesus. Portanto, é somente em Marcos que o Batista abre, de fato, o evangelho.

Olhemos então para o texto, percebendo as grandes novidades que ele traz. De maneira única no Novo Testamento, o Evangelho de Marcos começa com um título programático: «Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus» (v. 1). A palavra evangelho (em grego: εὐαγγελίον – euanguélion) significa boa notícia, boa nova, notícia agradável. No mundo greco-romano, essa palavra era mais utilizada no campo político do que no religioso. No império romano, por exemplo, usava-se a palavra “evangelho” para anunciar os acontecimentos relativos à vida imperial, como o nascimento de um filho do imperador, as vitórias em uma guerra, a construção de grandes obras, como aquedutos e estradas, para anunciar a investidura de um novo imperador e até para apresentar um programa de governo. Quando se ouvia qualquer notícia sobre algo que trouxesse alguma melhoria para a vida do povo, dizia-se que se tinha ouvido um “evangelho”, mesmo que não passasse de propaganda política, pois dificilmente o povo experimentava algum tipo de melhoria, pelo contrário, as coisas só pioravam. É nesse contexto que, de modo subversivo, os primeiros cristãos passaram a empregá-la em referência a Jesus, tanto à sua vida, quanto à sua mensagem. A palavra só passou a ser utilizada como títulos dos livros sobre a Jesus na segunda metade do século segundo. Em meados do século XIX, com o avanço da exegese, a palavra evangelho foi reconhecida também como um gênero literário particular, do qual fazem parte todos os relatos sobre a vida de Jesus, incluindo os considerados canônicos e os apócrifos.

Ao utilizar a palavra “euanguélion” para referir-se à vida e à missão de Jesus, Marcos se assume como um autor altamente revolucionário e subversivo, afirmando que boa notícia não era o que saía de Roma, através de decretos imperiais e outros meios, mas o que saiu de Nazaré, na vida de um homem simples, corajoso e cheio de amor: Jesus. Ora, se Marcos se assume subversivo politicamente, aplicando a palavra “euanguélion” a Jesus, é nítida também a sua subversão religiosa, ao abrir a “história” de Jesus com a mesma palavra com a qual se abre o primeiro livro da Bíblia (Gn 1,1), para falar do início da criação: início ou princípio (em grego: Ἀρχὴ – arkê). Assim, o evangelista está afirmando que a vida e a história têm, em Jesus, um novo princípio, um novo fundamento, desafiando o judaísmo oficial da época que, até então, imaginava ter o controle das coisas de Deus na terra. Por princípio, como aplica Marcos, devemos compreender não apenas o início ou começo, mas também o fundamento, o elemento basilar. Esse elemento passa a ser a Boa Notícia de Jesus, que é a sua própria pessoa com sua mensagem, e não mais a Lei de Moisés. Para o judaísmo da época, essa nova concepção soava como uma verdadeira heresia.

O homem do qual o evangelista irá falar ao longo da sua obra – Jesus de Nazaré – é o Cristo, ou seja, o messias e, ao mesmo tempo, Filho de Deus. Nestes dois títulos aplicados a Jesus – Cristo e Filho de Deus – está a síntese de toda obra de Marcos, e é assim que ele responde à pergunta “Quem é Jesus?”, objetivo geral do seu Evangelho. O termo Cristo (em grego: Χριστὸς – Cristós) significa messias ou ungido; aquele que, sendo ungido, está habilitado para cumprir uma missão; aplicando-o a Jesus, um judeu, o evangelista está afirmando que o tão esperado messias libertador de Israel chegou, mas não como tinha ensinado a religião, ou seja, ele não veio como rei, guerreiro e vencedor, mas simples e pobre, a começar pelas suas origens aldeãs. Ao afirmar que Jesus é também Filho de Deus, Marcos desafia, ao mesmo tempo, tanto o império quanto a religião da época. Ora, o judaísmo esperava um messias filho de Davi, o qual viria para proteger e libertar somente o povo de Israel; ao denominar Jesus como Filho de Deus, Marcos diz que Jesus veio para a humanidade toda, e não para um povo exclusivo, ao mesmo tempo em que desmascara a religião imperial que cultuava o imperador romano como o filho de Divino (em latim: Divi Filius). Portanto, de modo simples, mas ao mesmo tempo profundo, com o seu escrito, Marcos enfrenta dois poderes fortes e organizados: o império romano e a religião oficial judaica.

Até aqui, refletimos apenas sobre o primeiro versículo, o qual funciona como título e introdução geral a todo o Evangelho segundo Marcos. Na continuidade, do segundo versículo em diante, o evangelista apresenta a figura de João, o Batista, e sua missão profética de precursor de Jesus. Para introduzir a missão de João, Marcos recorre à tradição profética, apresentando-o, obviamente, como profeta: «Está escrito no livro do profeta Isaías: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!’» (vv. 2-3). Aqui, embora mencione somente Isaías, a citação é, na verdade, uma junção de trechos dos livros do Êxodo e das profecias de Malaquias e Isaías (Ex 23,20; Ml 3,1; Is 40,3). Como o livro de Isaías era o mais utilizado nas liturgias, entre os escritos proféticos, tanto no judaísmo quanto no cristianismo das origens, muitas vezes atribuía-se a ele qualquer citação profética, como aqui. Inclusive, ele é o único profeta citado nominalmente em Marcos e somente em duas ocasiões: aqui e em 7,6. Com essa citação, o evangelista está afirmando que a missão de João continua e atualiza o profetismo bíblico tradicional, do qual Jesus é o seu verdadeiro cumprimento. A missão de João é clara: preparar o caminho do Senhor. Na linguagem bíblica, sobretudo nos profetas, a palavra caminho indica a dimensão ética da fé. Significa a proposta de vida que Deus oferece à humanidade, marcada pela justiça e o amor. Por isso, na sequência vem apresentado o convite à conversão. Mas, ao mesmo tempo em que esse caminho ainda deve ser preparado, há também uma alusão prefigurativa da identidade da comunidade cristã: um caminho que se faz continuamente.

Após a fundamentação bíblico-profética, o evangelista descreve a missão de João e os seus efeitos, dizendo que ele «apareceu no deserto, pregando um batismo de conversão para a remissão dos pecados» (v. 4). Como se sabe, mais do que uma indicação espacial, a palavra deserto possui um profundo significado teológico na Bíblia. Ora, o deserto (em grego: ἐρήμος – erémos) é o lugar clássico do encontro com Deus; representa uma etapa importante no processo de libertação, como aconteceu no primeiro êxodo. Ao longo da história, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Assim, a presença de João no deserto é um convite para Israel romper com as estruturas vigentes de injustiça e opressão, e retornar às suas origens. Mas é também indicativo de um novo tempo, de uma nova história. Ora, pelas convenções do judaísmo da época, esperava-se que a manifestação do esperado Messias começasse em Jerusalém, no templo. Logo, a localização da pregação preparatória de João no deserto significa também um deslocamento do centro para as margens. Por isso, o deserto aqui significa também a identificação do Messias Jesus com as periferias. Seu ministério será uma demonstração disso, conforme vem mostrado ao longo dos evangelhos. No deserto, João estava “pregando”, palavra que poderia ser substituída por “proclamando” ou “anunciando”. Do verbo pregar (em grego: κηρύσσωkerysso), empregado pelo evangelista, deriva a palavra “kerygma” (κήρυγμα), termo empregado nos primórdios do cristianismo como síntese de todo o anúncio cristão. E, de fato, o objeto da pregação de João tem tudo a ver com a pregação cristã, pelo menos na perspectiva de Marcos: um “batismo de conversão” (em grego: βάπτισμα μετανοίας – baptisma metanoías).

O batismo de conversão serve como chamada de atenção: todos tem um certo grau de culpa na situação de degradação do povo; há culpas coletivas e pessoais. É necessário que cada um tome consciência de sua responsabilidade na construção de um mundo novo, através da conversão simbolizada pelo batismo, sendo que o significado real de conversão é mudança de mentalidade. E para acolher um Messias tão às avessas como Jesus era indispensável uma profunda mudança de mentalidade. A pregação de João, como proposta de libertação, atraía «toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro» (v. 5a). Certamente, o evangelista exagera ao dizer que “todo mundo” ia ao encontro do Batista, mas faz parte de suas intenções teológicas. Com isso, ele está propondo que um novo êxodo estava para acontecer, iniciando com a pregação do Batista e se completando com a missão de Jesus. A antiga terra prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se transformado em terra de escravidão. Dessa vez, não era um faraó o algoz, mas a própria casta sacerdotal do templo em conluio com o poder imperial romano. Foi dessa gente que controlava a vida do povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar, em primeiro lugar. A religião institucionalizada era sinal de exploração e abuso de poder. E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o nome de Deus, ou seja, a exploração religiosa. Nessa passagem, especialmente, a tradução litúrgica não expressa o real significado do texto: ao invés de afirmar que “as pessoas iam da Judeia e de Jerusalém ao encontro de João”, a tradução correta seria «toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém, saíam ao encontro». Ora, essa saída significa que há um novo êxodo em curso. As pessoas saíam de onde estavam sendo exploradas em busca da libertação, cujo processo é iniciado com a pregação de João e realizado plenamente por Jesus.

As pessoas que saíam das antigas estruturas de escravidão e injustiça e «confessavam os seus pecados e João as batizava no rio Jordão» (v. 5b). A confissão aqui, não é um rito sacramental ainda, mas um reconhecimento do pecado e arrependimento, conforme rezava o salmista: «Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não te encobri; eu disse: ‘Vou ao Senhor, confessar a minha iniquidade!» (Sl 32,4); é a decisão de aceitar trilhar o caminho do Senhor, enquanto prática concreta de justiça e amor. Esse salmo era muito utilizado na liturgia judaica e, por isso, bastante conhecido pelo povo. Ser batizado no Jordão quer dizer atravessá-lo, passar por ele, como passou o povo do primeiro êxodo; de fato, a travessia do Jordão foi a última etapa da longa caminhada do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, já sob a liderança de Josué, após a morte de Moisés (Js 1,2). Assim, a proposta de João é um convite a um novo êxodo, ou seja, uma nova libertação que se aproxima, e só pode participar quem faz a experiência do deserto e da travessia, ou seja, quem passa de uma mentalidade antiga para uma nova. Além das anteriores citações de Isaías e Malaquias e Êxodo, a descrição que o evangelista faz de João também reforça suas credenciais de profeta: «João se vestia com uma pele de camelo e comia gafanhotos e mel do campo» (v. 7). De fato, A descrição do vestuário e da dieta de João revelam seu estilo de vida; é típico dos profetas (Zc 13,4; 2Rs 1,8). É mais uma prova de que o verdadeiro profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente, com o testemunho. O estilo de vida simples de João comprova esse testemunho e ainda serve de contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de Jerusalém. Essa descrição funciona como um apelo do evangelista para a comunidade cristã configurar-se como religião profética, combatendo as primeiras tendências de institucionalização do cristianismo.

Até aqui, a pregação de João, como convite à conversão, fora apenas mencionada, mas nenhuma palavra sua fora ainda citada. Eis, então, a sua pregação: «Depois de mim, virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo» (vv. 7-8). Certamente, muitas pessoas confundiam João com o messias, por isso, ele esclarece. Como verdadeiro profeta, sabe que seu papel na história da salvação é de instrumento de Deus, Aquele que é maior! A referência ao gesto de desamarrar as sandálias pode ter duas interpretações; no Evangelho de Marcos e nos demais Sinóticos, certamente, significa o reconhecimento da inferioridade de João em relação a Jesus. Desamarrar as sandálias fazia parte dos serviços cotidianos dos escravos em relação aos patrões. O evangelista apresenta esse reconhecimento como um gesto de humildade do Batista. A outra explicação, que vê nestas palavras uma referência à lei do levirato (Rt 3,5-11), aplica-se à passagem correspondente do Evangelho de João, o qual recorre à imagem do matrimônio para descrever a vida e a missão de Jesus. A referência ao “mais forte” que virá é uma confissão antecipada da divindade de Jesus, pois o “mais forte” na tradição bíblica significa o próprio Deus. Outro detalhe que chama a atenção na pregação de João apresentada por Marcos é, além da sobriedade, a ausência de qualquer conotação apocalíptica, ao contrário do que se vê nas versões de Mateus e Lucas que, em tom de ameaça, mostram João anunciando um Messias castigador. Inclusive, Marcos não fala sequer de um batismo de fogo, como falam Mateus e Lucas (Mt 3,11; Lc 3,16). Enfim, Marcos faz questão de manter a coerência: se abriu seu relato como Boa Notícia, ou seja, como Evangelho, não pode anunciar outra coisa que não seja boas notícias, de fato.

Para concluir, recordemos que João administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente um sinal do batismo por excelência: com o Espírito Santo. O batismo com o Espírito Santo é definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28) e, ao mesmo tempo, sinal da universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. Somos, então, neste segundo domingo do advento, convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão, fazendo um êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as práticas das antigas estruturas, renovando a maneira de conceber a Deus e abrindo-se ao Espírito Santo, dom de Jesus, o batizador por excelência.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

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