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sábado, fevereiro 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 9,2-10 (ANO B)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico B, o texto proposto para este ano é o relato de Marcos: 17,1-9. Por se tratar do Evangelho mais antigo, os textos de Marcos são sempre muito originais, e a passagem lida na liturgia deste domingo demonstra isso. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada, a começar pela definição do gênero literário da teofania, ao qual pertence o texto. Etimologicamente, teofania significa manifestação divina; é uma palavra de origem grega, formada da junção do substantivo “Theós” (Deus) com o verbo “faino” (aparecer, manifestar). Enquanto gênero literário, teofania designa o tipo de relato que descreve uma manifestação solene de Deus. Geralmente, são relatos carregados de elementos simbólicos, o que se vê no episódio da transfiguração, como a brancura, a voz celestial. Embora as teofanias sejam mais frequentes no Antigo Testamento, o Novo Testamento contém algumas, como o batismo de Jesus, a transfiguração, as aparições pascais e o relato de Pentecostes.

A nível de contexto narrativo, é importante recordar o lugar do texto na estrutura do Evangelho. Está localizado no início da segunda parte da obra, considerando a divisão tradicional do Evangelho em duas partes – I) Mc 1,1–8,30; II) Mc 8,31–16,8. Esse episódio é a sequência imediata dos acontecimentos da região de Cesareia de Filipe, que compreendem a confissão de Pedro (Mc 8,27-30); o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-32); a repreensão de Jesus a Pedro (Mc 8,33), e a declaração das exigências para o discipulado (Mc 9,34-38). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cujo ápice é exatamente o episódio da transfiguração. O primeiro anúncio da paixão deixou os discípulos profundamente assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz anunciados por Jesus. Criou-se uma verdadeira crise no grupo, tanto nas convicções do seguimento quanto na relação pessoal deles com Jesus e vice-versa. Jesus chegou a chamar Pedro de satanás (Mt 8,33), devido à resistência em aceitar um messias tão diferente como ele estava se revelando. Ora, esperava-se um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida plena. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, quer dizer, a realização plena, mas essa passa pelo sofrimento, cuja expressão máxima é a cruz. Trata-se, portanto, de um texto catequético e teológico, e não de uma crônica. Inclusive, um número considerável de estudiosos defende que o episódio da transfiguração foi construído a partir de um relato de aparição do Ressuscitado, que Marcos adaptou às necessidades catequéticas da sua comunidade, sendo posteriormente seguido pelos outros sinóticos (Mt; Lc).

Feita a contextualização, comecemos, então, a olhar para o texto, partindo do primeiro versículo: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2). Aqui, a versão litúrgica do texto nos privou de uma expressão muito importante: o indicativo cronológico “Seis dias depois”, presente no texto original, substituído na tradução do lecionário pela genérica expressão “Naquele tempo”. O indicativo “seis dias depois” garante a relação do episódio da transfiguração com os últimos acontecimentos narrados, começando pela confissão de Pedro, conforme recordamos acima na contextualização. Perceber essa relação é essencial para a compreensão do texto. Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o até de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. A transfiguração, portanto, é resposta a tudo isso. Por isso, “seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude, manifestando-se em sua máxima humanização. Como se sabe, as indicações temporais na Bíblia possuem mais valor simbólico do que cronológico. O sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), na criação originária, e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade.

Diz o texto que Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. Se por um lado a escolha desses três discípulos significa um certo privilégio, por outro indica mais uma necessidade. Certamente, eles não eram os melhores nem os piores, mas possuíam certas características que os tornavam mais difíceis de lidar, demonstrando mais dificuldades de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Há outros momentos em que Jesus prefere estar só com eles três, como no episódio da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37) e na oração e agonia no Getsêmani (Mc 14,37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

O indicativo espacial também é de grande importância: «e os levou sozinhos, a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2b). Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém, no séc. IV, e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico. Toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

No alto da montanha, Jesus «transfigurou-se diante deles» (v. 2c), quer dizer que passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. A sua figura mudou. É esse o significado exato do verbo empregado pelo evangelista (μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes: «Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar» (v. 3). As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; o brilho é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Somente Marcos faz referência ao fato de nenhuma lavadeira ser capaz de deixar uma roupa tão branca como ficaram as vestes de Jesus. Duas intenções estão por trás desse detalhe: apresentar uma atividade do lar, reforçando a ideia e a importância da comunidade como casa, o espaço embrionário do Reino, e mostrar que a vida em plenitude (condição gloriosa) almejada pelo ser humano não pode ser conquistada por esforço próprio, mas somente por graça de Deus, ou seja, tem coisas que só Deus pode fazer. As vestes brancas são sinais da identidade divina e da pertença ao mundo de Deus e dos ressuscitados.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Apareceram-lhe Elias e Moisés e estavam conversando com Jesus» (v. 4). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente, mas também a própria identidade de Israel. Eles lembram o conjunto da esperança e das promessas acumuladas ao longo do tempo, enquanto Jesus é o cumprimento, a verdadeira realização, embora por caminhos e meios diferentes daqueles percorridos por Moisés e Elias. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Inclusive, Marcos não diz nada sobre o conteúdo ou o tema do colóquio dos três. Apenas diz que eles conversavam. Os discípulos não participam sequer como ouvintes, apenas vêem. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim, enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, como é próprio da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então Pedro, tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”» (v. 5). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda (em grego: σκηνή – skenê) era o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

A falta de sentido nas palavras de Pedro tem uma explicação, como mostra o texto: «Pedro não sabia o que dizer, pois todos estavam com muito medo» (v. 6). O medo é o grande obstáculo para a comunidade, sobretudo, o medo do que é novo e inesperado. O medo gera incompreensão e insegurança. A comunidade marcada pelo medo não sabe o que diz, diz o que não sabe, enfim, diz coisas erradas. O medo bloqueia a sobriedade do anúncio. Onde o medo reside, o anúncio sai distorcido. As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o interrompe: «Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz”» (v. 7). Ora, diante da incompreensão de Pedro, o Pai se manifesta, chamando a sua atenção. A nuvem é sinal da manifestação e da presença de Deus, desde o Antigo Testamento, sendo um elemento marcante na maioria das teofanias bíblicas (Ex 24,16). As palavras que saem da nuvem são praticamente as mesmas do episódio do batismo (Mc 1,11), à exceção do imperativo da escuta: «Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz». Outra diferença é que, no batismo, a voz foi dirigida a Jesus, enquanto aqui na transfiguração é dirigida aos discípulos. Para compreender a importância dessas palavras devemos recordar o contexto, como fizemos na introdução. O grupo dos discípulos vivia um momento de crise exatamente porque eles estavam com dificuldade de ouvir o que Jesus dizia, como o anúncio da paixão. Na Bíblia, a escuta significa adesão e seguimento. E os discípulos estavam com dificuldade de seguir e aderir plenamente a Jesus, pois sonhavam com o messias poderoso e guerreiro enquanto Jesus se revelava o messias pobre sofredor. O imperativo “escutai-o” é dirigido a todos os discípulos, principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés do que a Jesus. Escutar Jesus é um imperativo para a comunidade cristã. Quem não o escuta, não pode segui-lo nem testemunhar.

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas, já disseram o que tinham a dizer, deram o que tinham de dar. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro e seus companheiros tentavam constantemente evitar, por medo da cruz. Por isso, o próprio Deus, o Pai, precisou intervir. Os discípulos pareciam insistir ouvindo mais a Moisés e Elias do que a Jesus. Continuavam apegados às tradições e preceitos, fechados à novidade de Jesus. E a voz do Pai vem corroborar o programa de Jesus. Vem confirmar que o seu modo de anunciar e construir o Reino, com palavras e gestos de libertação, é confirmação da sua fidelidade. Isso não diminui o valor de Moisés e nem de Elias, mas eles cumpriram a missão que lhes fora confiada no momento oportuno. É claro que seus exemplos continuam importantes, bem como de todos os profetas. Mas Jesus é o critério e o parâmetro para a comunidade cristã. Tudo o que a comunidade vive e anuncia deve estar alinhado ao seu Evangelho. Por isso, «E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles» (v. 8). Ora, Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu Evangelho.

Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro. Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. A ressurreição não pode ser compreendida sem antes ser experimentada e celebrada. De fato, compreender o significado de “ressuscitar dos mortos” para quem tem dificuldade de conviver com a morte e a dor é um grande desafio. De todo modo, mesmo ainda marcados pela incompreensão, é salutar a discussão sobre a ressurreição: «comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”» (v. 10). O grande debate das comunidades primitivas era sobre o significado da ressurreição e as implicações concretas que a fé nela representava na vida cotidiana. Aqui está um direcionamento para as comunidades cristãs de todos os tempos: as discussões e reflexões só são válidas quanto são voltadas para a vida, e a vida em plenitude, cujo expressão máxima é a ressurreição. É a fé na ressurreição que faz os cristãos e cristãs sonharem com um mundo novo e, por conseguinte, lutarem para construí-lo.

Que a liturgia deste segundo domingo da Quaresma ajude a nos conscientizar mais sobre o que é essencial na vida de discípulos e discípulas de Jesus, tornando nossas comunidades sempre mais parecidas com o Reino de Deus, sendo espaços de humanização e fraternidade. Que o percurso da Quaresma favoreça uma escuta sempre mais atenta e profunda ao tudo o que Jesus tem a falar. Somente escutando bem poderemos tornar o mundo mais humanizado e mais parecido com o seu projeto.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 04, 2023

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA – MATEUS 17,1-9 (ANO A)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças, apesar de serem muito parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto proposto para este ano é o relato de Mateus: 17,1-9. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada.

A nível de contexto, é importante recordar a localização do texto na estrutura do evangelho. Esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de fé de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração. Ora, com o primeiro anúncio da paixão, Jesus deixou os discípulos assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz, como Jesus havia predito (Mt 17,21). Os discípulos esperavam um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida em plenitude. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, mas essa passa pela cruz.

Uma vez contextualizados, vamos olhar para o texto, começando pelo primeiro versículo: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 1). Aqui, a versão litúrgica omitiu um indicativo temporal importante, substituindo-o pela genérica expressão “naquele tempo”. O texto original começa com a indicação cronológica “seis dias depois”, como sinal de relação e continuidade com o último episódio narrado: o primeiro anúncio da paixão e a contestação de Pedro, com as exigências para o discipulado (cf. Mt 16,21-28). Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude; o sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade.

Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. A escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz, mas necessidade. Eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Na Paixão, esses três – Pedro, João e Tiago – serão as testemunhas de Jesus durante a agonia no Getsêmani (Mt 26,36-37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

E é justamente no Evangelho de Mateus que a montanha tem mais relevância no Novo Testamento, sendo o lugar onde ele diz que Jesus viveu momentos importantes do seu ministério: proclamou as bem-aventuranças (5,1), multiplicou os pães (15,29), e como Ressuscitado, aparecerá aos discípulos pela primeira vez (28,16). O texto de hoje diz que, no alto da montanha, Jesus «foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz» (v. 2). quer dizer que passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. É esse o significado do verbo empregado pelo evangelista (em grego: μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes. As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Nisto, apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus» (v. 3). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, própria da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então, Pedro tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’» (v. 4). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda é a o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e interrompe: «Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!’» (v. 5). A nuvem luminosa, ao longo da tradição bíblica é também sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Diante das dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Essa voz reitera a autoridade de Jesus: o Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho, ou seja, o que Jesus ensina e vive.

A primeira reação dos discípulos diante das palavras do Pai é de completa falência: «Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra» (v. 6). Ao longo da Bíblia, é normal o medo e o temor dos seres humanos diante da presença Deus. Mas nesse caso o medo tem outra causa: as implicações e consequências de escutar. Ora, escutar Jesus significa aderir plenamente ao seu projeto de vida e libertação, o que comporta até mesmo a doação da vida. É isso o que causa medo nos discípulos que imaginavam seguir um messias guerreiro e glorioso. Diante do medo dos discípulos, eis a reação de Jesus: «se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantai-vos e não tenhais medo’» (v. 7). É próprio de Jesus dar força aos caídos e encorajar os amedrontados. O gesto de tocar é o mesmo que ele faz ao curar os enfermos, restituindo-lhes vida e saúde (8,3.15; 9,25.29). O medo de assimilar e viver o Evangelho torna a comunidade doente, necessitada da força de Jesus que a impele a levantar-se. Para superar o medo, duas coisas são necessárias: escutar Jesus, como o Pai ordenou, e deixar-se tocar por ele.

O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: «Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus» (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que a atenção dos discípulos se voltasse somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro.

Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também por prudência, pois se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. Eles deveriam anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. E somente à luz da ressurreição é que esse anúncio se torna eficaz e perfeito. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado. O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Amado.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, março 10, 2018

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 3,14-21 (ANO B)




A liturgia deste quarto domingo da quaresma nos oferece mais um texto do Evangelho segundo João. Após contemplar o gesto profético de Jesus denunciando o templo transformado em comércio, no domingo passado (cf. Jo 2,13-25), o texto proposto para hoje faz parte dos desdobramentos daquele acontecimento: Jo 3,14-21; é a parte final do episódio conhecido como o “diálogo com Nicodemos” (cf. Jo 3,1-21).

A enérgica denúncia de Jesus contra a corrupção da elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado diversos questionamentos a respeito da sua pessoa. Muitos, certamente, o condenaram imediatamente, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da época, também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica e menos comercial. Certamente, Nicodemos era um destes; ao invés de condenar, preferiu ir ao encontro de Jesus e escutá-lo, motivado por muitos questionamentos.

Embora o episódio seja chamado de “diálogo”, o que se lê está mais para monólogo, pois o evangelista concede totalmente a palavra a Jesus, a ponto de Nicodemos pouco falar. Como o texto escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos importantes do que o antecede.

Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (cf. 3,1), estudioso e bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (cf. 3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim não estava pronto para aderir ao projeto de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se confrontou ao longo do evangelho.

Por precaução e medo de ser repreendido pelos seus colegas de doutrina, Nicodemos não quis ser visto com Jesus, por isso o procurou à noite. Afinal, Jesus tinha, há pouco tempo, desmascarado a religião judaica, ao denunciar o comércio e a hipocrisia praticados na casa que deveria ser do seu Pai (cf. 2,13-22). As primeiras palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento: “Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele” (3,2).

As poucas palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar. O texto escolhido pela liturgia começa com um dado escriturístico: “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado” (v. 14).

Sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, o evangelista faz Jesus citar explicitamente uma passagem do livro dos Números (cf. Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu praticado por Ele mesmo (cf. Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender a forma contraditória como Jesus será elevado: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com sua comunidade para que aceite a cruz com suas consequências, pois ela é necessária para a vivência plena do amor de Deus em seu meio.

Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade é irrenunciável. Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário “Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” (em grego: zwh. aivw,nioj – zoé aionios) no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). O mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Ao apresentar essa novidade, Jesus estava destruindo um dos principais pilares de sustentação da ortodoxa religião judaica: o privilégio da eleição exclusiva de Israel como povo de Deus e destinatário único de suas promessas.

Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação “Deus amou o mundo” é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que “Deus deu o seu Filho” para a humanidade. O mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe ou crê, recebe a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. “Eterna” aqui não é a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu evangelho. A “vida eterna” não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. Ela começa aqui na terra. À medida que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador.

O versículo seguinte reforça o anterior: “De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, não julga e, portanto, não condena ninguém.

Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai louco de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor.

O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. Isso não depende de um juízo divino, é escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.

A parte mais importante do texto e talvez até de todo o Evangelho segundo João está nos versículos 16-18. Os versículo seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (cf. Jo 1,9-10). Quem rejeitou a luz foi a própria religião; foram as pessoas religiosas que mais se sentiram sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as trevas, odiou a luz por ter ódio da verdade.

Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o dom do Pai, Jesus, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.

O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (cf. 7,50) e ajudando no seu sepultamento (cf. 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica.

Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai louco de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma quaresma!

ROMA, 10/03/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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