sábado, novembro 23, 2019

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE CRISTO REI – LUCAS 23,35-43 (ANO C)




Chegamos ao trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, o qual vem intitulado como Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, cujo evangelho neste ano é Lucas 23,35-43. Se trata de um título, a princípio, perigoso, uma vez que a tendência é, de imediato, imaginá-lo como um rei semelhante aos reis deste mundo e atribuir-lhe trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado em diversas imagens, escondendo a sua principal característica: o amor misericordioso destinado a todos, com preferência pelos mais necessitados. Ora, se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem forte, potente, sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando, julgando e ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e subjugando inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do seu tempo e estamos rejeitando Jesus de Nazaré, o servo de todos, aquele que veio para servir e não para ser servido. Infelizmente, boa parte do cristianismo acabou caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe os traços de rei que ele mesmo negou possuir.

Voltemo-nos, pois para o texto bíblico, o qual descreve Jesus crucificado e ridicularizado por aqueles que não o viam como o rei esperado, uma vez que Ele não possuía nenhum sinal de realeza visível. O cenário é o chamado lugar da Caveira (cf. Lc 23,33) ou gólgota. A cena descrita é comum aos quatro evangelhos, sendo que Lucas enriquece seu relato com algumas peculiaridades, como veremos a seguir. Infelizmente, a liturgia apresenta o texto incompleto, omitindo a primeira parte do primeiro versículo: “O povo permanecia lá” (v. 35a). Essa pequena omissão compromete uma compreensão mais adequada do episódio, considerando a linha teológica de Lucas. Ele atribui um papel de neutralidade ao povo, ao dizer que “estava lá” mas não participou do ato violento contra Jesus. É intenção do evangelista comprometer apenas os grupos que interagem diretamente com Jesus, insultando-o: os chefes (v. 35), os soldados (v. 36) e os malfeitores (vv. 39-40).

Assim começa o texto proposto pela liturgia: “Os chefes zombavam de Jesus, dizendo: ‘a outros salvou. Salve a si mesmo se, de fato, é o Cristo de Deus, o escolhido” (v. 35). Obviamente, os chefes aqui, são as autoridades religiosas e políticas da época, principalmente os sacerdotes e anciãos, responsáveis diretos pela condenação e morte de Jesus. Unindo essa atitude dos chefes à parte omissa, a presença do povo, Lucas opõe os líderes aos liderados, enfatizando que pela atitude dos chefes, o povo inocente acaba sofrendo graves consequências. Ao mesmo tempo, há uma crítica à passividade do povo: quando esse se cala, os chefes ficam mais à vontade para cometerem arbitrariedades.

O segundo grupo, formado pelos soldados, representa todo o aparato militar romano, responsável por silenciar qualquer voz que soasse subversiva. Eram os soldados, inclusive, os responsáveis diretos pela execução da pena. O insulto deles é semelhante ao dos chefes, pois estavam a serviço deles, embora tenha uma conotação mais política: “Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: ‘Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!” (vv. 36-37). Além do insulto com palavras, os soldados o insultam também fisicamente. Se o vinho, na tradição bíblica simboliza o amor, o vinagre é a negação do amor, o ódio. O oferecimento do vinagre da parte dos soldados, aqui, portanto, significa a falta de amor e do mínimo de compaixão dispensado a Jesus pelos seus algozes. É da falta de amor que é gerada a violência e o abuso de poder. Como eram soldados romanos, não tinham conhecimento teológico suficiente, por isso, não zombam de Jesus como Cristo (Messias), mas apenas como rei dos judeus, ou seja, o consideravam apenas um subversivo político, e não um blasfemo, como interpretavam as autoridades religiosas. Enfim, tinham por base apenas a declaração irônica, colocada sobre a cruz a mando de Pilatos, provavelmente: “Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus” (v. 38).

O terceiro grupo que interage com Jesus no momento do seu suplício é composto por companheiros de destino, ou seja, pessoas que também receberam a pena máxima da cruz, provavelmente por acusação de crime de subversão e perturbação da ordem estabelecida. De fato, a cruz era o pior suplício de condenação no império romano; era a pena reservada aos que ameaçavam a “pax romana”. Somente pessoas consideradas extremamente perigosas recebiam esta pena, como era Jesus para os poderes da época. Segundo a tradição sinótica, “dois malfeitores foram crucificados com Jesus” (cf. Mt 27,38; Mc 15,27; Lc 23,32).

Deste dado em comum com os demais evangelhos, Lucas dá uma cara própria ao seu texto, tornando o seu relato muito mais rico teologicamente, passando a utilizar a técnica retórica do paralelismo antitético, que predominou na construção de todo o seu evangelho: a apresentação paralela de dois personagens com aititudes opostas; ele fez isso com Zacarias e Maria, ao receberem os respectivos anúncios (cf. Lc 1,5-38), entre Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (cf. Lc 15,11-32), entre o pobre Lázaro e o rico avarento (cf. Lc 16,19-31), entre o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14), e agora repete o mesmo recurso ao contrapor as atitudes dos dois malfeitores (bandidos) crucificados com Jesus: “Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: ‘Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!’. Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação?” (vv. 39-40). Antes de prosseguir, é importante um esclarecimento semântico: para os malfeitores crucificados com Jesus, Lucas não usa um termo equivalente a ladrão, como fazem Mateus e Marcos, mas um termo equivalente a malfeitor, delinquente ou bandido de um modo geral (em grego: κακούργος – kakúrgos), até porque quem praticasse o roubo ou o furto recebia também uma pena, mas não a pena máxima, como a cruz.

Cada um dos malfeitores interpreta os acontecimentos de maneira diferente; enquanto um deles se deixa levar pela ideologia dominante, repetindo o insulto dos chefes e dos soldados, o outro tem uma percepção diferente: reconhece suas culpas e a inocência de Jesus: “para nós é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal” (v. 41). Das palavras de um dos malfeitores manifestando uma confissão de culpa, o texto passa a ser exclusivo de Lucas. A confissão de culpa é o primeiro passo da conversão. Ora, sendo o evangelista que melhor apresenta os traços misericordiosos de Deus em Jesus Cristo, Lucas mostra essa característica divina também no calvário, ao acolher a súplica de misericórdia de um dos malfeitores ou bandidos crucificados. Trata-se de mais um detalhe próprio de Lucas, muito significativo para a sua teologia.

O malfeitor arrependido – já podemos chama-lo assim – sentiu que, finalmente, encontrou alguém com quem pudesse contar, que olhasse para sua miséria, criando assim uma relação íntima com Jesus, a ponto de chama-lo pelo nome: “Jesus, lembra-te de mim quando entrardes em teu reino” (v. 42). Na tradição bíblica, chamar alguém pelo nome é sinal de intimidade, é conhecer o outro e tê-lo como amigo. Assim, finalmente alguém percebeu a verdadeira natureza da realeza de Jesus: um rei tão diferente dos reis deste mundo, a ponto de não necessitar de nenhum título de honra para dirigir-se a Ele, basta chamá-lo pelo nome que Ele responde. Assim, o malfeitor arrependido torna-se modelo de convertido para o evangelista Lucas. Ora, a maioria dos interlocutores de Jesus ao longo do evangelho lhe dirigiam a palavra com o título de mestre ou senhor, incluindo os discípulos. Ninguém tinha se sentido tão íntimo, tão amigo e companheiro de Jesus como este bandido.

Além da intimidade criada entre o malfeitor e Jesus, merece atenção o conteúdo da súplica: “lembra-te de mim” é uma fórmula de oração usada pelos pobres, agonizantes e perseguidos na tradição bíblica do Antigo Testamento (cf. Sl 89,48; 106,4; Jr 15,15). Foi o único a compreender que o Reino de Jesus não é desse mundo, pois sabia ele que, como condenado, jamais teria espaço em um reino desse mundo, por isso, pediu que Jesus se recordasse dele no seu reino. Portanto, o malfeitor elevou uma súplica de confiança e mostrou capacidade para compreender que um reino diferente dos reinos desse mundo é possível e, finalmente ele tinha encontrado, pois estava diante de um rei que não salva a si mesmo, mas aos outros.

Ao que reconhece a verdadeira natureza da sua realeza, Jesus a manifesta plenamente: “Em verdade, te digo, hoje estarás comigo no paraíso” (v. 43). Essa é a única vez em que Jesus pronuncia a palavra paraíso (em grego: παραδείσω – paradeísso) nos evangelhos. Remete à criação e mostra que o mundo que Deus ofereceu primeiro à humanidade, antes do pecado entrar no mundo, Jesus oferece a um pecador ao extremo. Outro pormenor importante da teologia lucana é que a salvação se realiza já no hoje da história, afastando a ideia de um futurismo incerto e utópico. De fato, o termo hoje (em grego σημερον – semeron), é muito relevante para Lucas: aos pobres pastores é anunciado que “nasceu hoje um salvador” (cf. Lc 2,11), na sinagoga de Nazaré, Jesus diz que “as escrituras se cumpriram hoje” (cf. Lc 4,21); Jesus quer “permanecer hoje na casa de Zaqueu” e diz que “hoje a salvação entrou nessa casa” (cf. Lc 19,5.9), e é “hoje” que ele quer estar com um bandido convertido.

Portanto, é com urgência que o reino de Deus é apresentado no Evangelho de Lucas. Infelizmente, nem todos o reconhecem e o acolhem. Na verdade, somente os pecadores, pobres e humilhados demonstram, no decorrer do evangelho, capacidade para tal reconhecimento. Para esses, a salvação não pode ser adiada, é necessário que aconteça logo hoje, agora. Uma vez que a realeza de Jesus se revela na cruz, no ápice da humilhação, fica difícil reconhece-la, de modo que, até hoje, continua sendo mal compreendida e ensinada. O triunfalismo real alimentado por séculos pela tradição judaica acabou sendo disseminado também entre muitos cristãos que insistem em adorar um Cristo Rei com insígnias reais que jamais Ele aceitaria. E foi, exatamente na cruz onde sua realeza se manifestou tão claramente ao deixar de salvar a si para salvar a um pecador visto como caso perdido.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 16, 2019

REFLEXÃO PARA O TRIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)




Com a chegada da fase conclusiva do ano litúrgico, a liturgia nos aproxima de textos do gênero literário apocalíptico, como o evangelho de hoje: Lc 21,5-19. Esse texto faz parte do discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Lucas, e apresenta um episódio comum aos três evangelhos sinóticos. Por ser um texto bastante longo, não comentaremos todos os versículos pontualmente. Antes de entrarmos propriamente no conteúdo do texto, é necessário fazer alguns esclarecimentos acerca do gênero literário e do contexto, como faremos a seguir.

A primeira observação diz respeito ao gênero literário ao qual pertence o texto: o gênero apocalíptico. Derivado da palavra apocalipse (em grego: αποκαλυψις = apoclípisis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”, o gênero apocalíptico foi bastante distorcido ao longo da história do cristianismo, passando a ser sinônimo de catástrofes e desastres, passando a causar medo, quando, na verdade, é um gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência. Portanto, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do Evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão.

Quanto ao discurso escatológico, esse está presente nas últimas partes dos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), antecedendo os relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os evangelistas fazem questão de situá-los no curto ministério de Jesus em Jerusalém. O adjetivo “escatológico” deriva da palavra grega “escatón” (εσχατον), que significa fim. Ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como extermínio de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando o seu verdadeiro destino.

Inegavelmente, a mensagem desse texto de hoje está voltada para o fim; mas um fim como finalidade, e não como extermínio. Infelizmente, a maioria das interpretações têm estimulado uma concepção de fim enquanto extermínio, marcado por uma sequência de catástrofes, inculcando medo nas pessoas e levando-as a um fundamentalismo extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre dois reinos: o reino dos homens e o reino de Deus. Obviamente, pelos contrastes entre um e outro reino, essa transição deverá ser marcada por conflitos inevitáveis, tendo em vista que o advento do Reino de Deus pressupõe a superação de tudo o que diz respeito ao reino dos homens. Por isso, Jesus previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão no período de transição e os consequentes perigos.

Voltemos, pois, a atenção para o complexo texto que nos é proposto. A cena transcorre nas dependências do templo, ambiente de decepção para Jesus, considerando que, de “casa de oração”, foi transformado em “covil de ladrões”, conforme ele denunciou anteriormente (cf. Lc 19,45-46). Para Ele, era muito doloroso contemplar todas as arbitrariedades que aconteciam naquele ambiente, em nome de seu Amado Pai! Na cena anterior ao episódio de hoje, ele tinha lamentado pela pobre viúva explorada (cf. Lc 21,1-4). Como estavam na semana da páscoa, o templo já estava bastante movimentado pela presença de peregrinos de diversas regiões. Muitos peregrinos, provavelmente, estavam lá pela primeira vez. Por isso, a admiração de alguns com uma construção tão esplêndida (v. 6). E Jesus já estava bastante revoltado com tudo o que tinha visto ali; por isso, foi muito duro ao escutar elogios àquela construção que ao invés de revelar, escondia o verdadeiro rosto de Deus, o seu Pai. Por isso, foi curto e grosso na resposta: “não restará pedra sobre pedra” (v. 6b). Com essa expressão, Ele externa seu total descontentamento com aquela instituição, dizendo que não há nada a se aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto antes.

Considerando que o famoso templo de Jerusalém era uma das grandes maravilhas do mundo na época, pela sua imponência e beleza de seus adornos, uma previsão de sua destruição despertava muito espanto e perguntas, como fizeram os interlocutores de Jesus: “Quando acontecerá isso? Qual o sinal de que estas coisas estão para acontecer?” (v. 7). A perguntas desse gênero, Jesus responde com muita cautela e precisão, embora não diga quando, pois não é competência sua, nem se trata de algo relevante. Ele pede, na verdade, para que os discípulos não se apavorem com os acontecimentos que refletem os antigos sinais de fim dos tempos, preditos ao longo da história de Israel pelos antigos profetas: guerras, revoluções e fenômenos naturais como terremotos e pestes (vv. 9, 10, 11). A estes fenômenos e acontecimentos, ele aponta outro perigo: a manipulação de seu nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem fundamentação alguma, o final dos tempos e apresentam-se como sabedores das realidades futuras (v. 8b). Ele pede para não nos deixarmos enganar por esse tipo de gente (v. 8a), presente muitas vezes nas comunidades cristãs, infelizmente.

Na sequência, Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos para as consequências da fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo novo: uma sociedade alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente, o advento de um mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a substituição dos valores tradicionais cultivados pela sociedade e religião do tempo de Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os conflitos se tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores, rejeitará os princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem ideológica da religião e do estado. Tais consequências culminam com as perseguições nos mais diversos âmbitos: religioso, político e familiar.

Quanto às perseguições, que muitos viam como o fim dos tempos, Jesus as apresenta como meios que conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim: são sinais de que o Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos será medida pela reação de três instituições a eles: a religião, o poder político e a família. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho serão perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e os reinos dos homens, o poder político; e serão entregues e mortos até mesmo pelos próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar é abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.

Diante de uma proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte apelo à fidelidade e perseverança dos seus discípulos, encorajando-os a não desanimarem diante das adversidades. Antes de tudo, Ele garante que quando estas coisas começarem a acontecer, os discípulos terão a oportunidade de dar testemunho da fé nele (v. 13). Ora, testemunho, em grego “martyrion” (μαρτύριον), significa testemunhar e assumir as consequências desse testemunho, dando a vida se for preciso, como Jesus mesmo prevê (v. 16b). Jesus aconselha os discípulos também a confiar plenamente nele, sem preocupações com o que dizer e o jeito de se defenderem diante das acusações e calúnias (vv. 14-15). Basta confiar e testemunhar.

É inevitável que, testemunhando Jesus, os discípulos estarão alimentando o ódio daqueles que querem permanecer ligados às antigas instituições e fechados à novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante que o mais importante, a vida, será preservada em sua plenitude: “não perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça” (v. 18). Ora, o fio de cabelo significava a menor parte da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim, Jesus diz que a vida do discípulo e discípula que perseverar no testemunho corajoso do seu Evangelho, será ganha em sua totalidade e abundância (v. 19).

É, portanto, urgente e necessário conceber a adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura total com todas as estruturas e instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo livre e novo, os valores presentes em seu Evangelho. É urgente que abracemos um mundo novo, caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da vida, motivadas única e exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as experiências ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o esplêndido templo de Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a destruição completa. Por isso, temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um mundo antigo insustentável, tendo como finalidade a construção de um mundo novo baseado nos valores do seu Evangelho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 09, 2019

REFLEXÃO PARA O XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 20,27-38 (ANO C)




Neste trigésimo segundo domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas, após a interrupção do domingo passado, devido à solenidade de todos os santos. Por sinal, por ocasião daquela solenidade, fomos privados de celebrar o trigésimo primeiro domingo, cujo evangelho era Lc 19,1-10, um dos principais textos de todo o Evangelho segundo Lucas, pois corresponde ao episódio do encontro de Jesus com o publicano Zaqueu, o ponto culminante do longo caminho para Jerusalém. Acompanhamos praticamente todo o caminho, mas perdemos a sua conclusão, infelizmente. O texto proposto para hoje – Lc 20,27-38 – apresenta Jesus já na cidade de Jerusalém, provavelmente nas dependências do templo, em um debate polêmico com os saduceus acerca da ressurreição dos mortos.

O ministério de Jesus em Jerusalém foi curto e polêmico. Sua primeira atitude ao entrar na cidade foi desmascarar o templo como casa de comércio, expulsando de lá os vendedores (cf. Lc 19,45-46). Depois disso, passou a ensinar no templo todos os dias (cf. Lc 19,47), colocando cada vez mais a sua mensagem em confronto com a doutrina oficial e, consequentemente, tornando a sua morte cada vez mais próxima e real. Durante o ministério na Galileia e no caminho, os principais adversários de Jesus tinham sido os fariseus. Em Jerusalém, os fariseus praticamente saem de cena, o que prova que eles não estavam diretamente ligados ao poder político e nem religioso, mas compunham um movimento mais popular, embora rígido no que se refere à doutrina e à observância da Lei. Os grupos que se opõe a Jesus em Jerusalém são os sacerdotes, os escribas, anciãos e os saduceus – todos componentes do sinédrio – responsáveis diretos pelo poder religioso e coniventes com a dominação romana.

O trecho lido hoje relata uma polêmica com os saduceus acerca da ressurreição. É um episódio relatado nos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; Lc 20,27-38), sendo que é a única vez em que os saduceus aparecem no Evangelho de Lucas. De todos os grupos, partidos ou movimentos existentes na época, os saduceus eram o grupo mais conservador; era também o grupo mais rico, formado pela aristocracia de Jerusalém. Era desse grupo que saíam os sumos sacerdotes; o próprio nome deriva de Sadoc, um importante sacerdote dos tempos de Davi; inclusive, foi Sadoc quem ungiu Salomão como rei (cf. 1Rs 1,38-40). Por isso, era um grupo concentrado em torno do poder religioso e político; aceitavam passivamente a dominação romana em troca de privilégios e detinham o maior número de assentos no sinédrio, o máximo órgão jurídico de Israel. Os evangelhos os mencionam pouco porque eles atuavam somente na cidade de Jerusalém, e a maior parte do ministério de Jesus foi desenvolvido no interior, sobretudo na Galileia, onde havia mais influência dos fariseus.

Uma vez contextualizados, olhemos para o texto: “Aproximaram-se de Jesus alguns saduceus, que negam a ressurreição” (v. 27). No que diz respeito à doutrina, uma das principais características dos saduceus era a negação explícita da ressurreição. Não tratamos disso na contextualização, uma vez que é o próprio texto quem fornece a informação. Inclusive, os saduceus consideravam como palavra de Deus somente a Torá, ou seja, o Pentateuco, e achavam nos cinco primeiros livros não havia nenhuma fundamentação para a fé na ressurreição. Rejeitavam os profetas, porque o ensinamento profético era composto de sérias denúncias à casta sacerdotal e a todos os agentes de exploração, como eles, os saduceus. Respeitavam o restante do Antigo Testamento, mas não o tinham como ponto de referência para a fé.

Os saduceus fazem um questionamento a Jesus sobre a ressurreição, com o intuito de colocá-lo em dificuldade ou contradição. Imaginavam que, diante do caso apresentado, Jesus não encontraria saída. Eis o problema: “E lhe perguntaram: “Mestre, Moisés deixou-nos escrito: se alguém tiver um irmão casado e este morrer sem filhos, deve casar-se com a viúva, a fim de garantir a descendência para o seu irmão” (v. 28). Antes de tudo, eles usam um aspecto importante da Torá, ensinamento considerado inquestionável para eles e para todo o judaísmo. Aqui, eles se referem à chamada “lei do levirato”, termo latino que deriva de “levir”, cujo significado é cunhado. De acordo com essa lei, quando um homem casado morria sem deixar filhos, um irmão do falecido, ou seja, um cunhado, deveria casar-se com a viúva para garantir a descendência (cf. Dt 25,5-10).

A questão em si é bastante simples, pois era muito comum acontecer casos assim. Só se torna inusitada com a história contada para embaraçar Jesus, em seguida: “Ora, havia sete irmãos. O primeiro casou e morreu, sem deixar filhos. Também o segundo e o terceiro se casaram com a viúva. E assim os sete: todos morreram sem deixar filhos. Por fim, morreu também a mulher” (29-32). Aqui, de fato, a história se torna atípica, devido ao exagero; por trás de tudo, há também uma ridicularização da mulher; como era considerada um objeto de posse, a história contada pelos saduceus a apresenta como uma mercadoria que passou por diversos proprietários.

Da história contada, os adversários de Jesus propõem o verdadeiro problema, esperando dele uma resposta contraditória e, assim, teriam mais um motivo para incriminá-lo: “Na ressurreição, ela será esposa de quem? Todos os sete estiveram casados com ela” (v. 33). Além de não acreditarem na ressurreição, os saduceus tinham também uma visão equivocada dessa. Ora, eles partem da ideia tradicional, pregada inclusive pelos fariseus, e da qual Jesus discorda, que concebia a ressurreição como uma mera recomposição aperfeiçoada da vida presente, fruto de uma interpretação equivocada da visão alegórica dos ossos ressequidos no livro do profeta Ezequiel (cf. Ez 37) e de outros textos. Se trata de uma concepção materialista da vida futura. Essa era a ideia difundida na época.

Na resposta, Jesus revela o seu distanciamento da concepção popular de ressurreição, ensinando que a vida futura não será uma continuação desta vida, nem sequer será semelhante, mas será uma nova vida, cujo parâmetro não é a vida presente, mas tudo será novo, uma vez que a ressurreição é a oferta que Deus faz da sua própria vida, da sua eternidade, e isso não está ao alcance das abstrações humanas. Eis a resposta de Jesus: “Jesus respondeu aos saduceus: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento; já não poderão morrer, pois serão iguais aos anjos, serão filhos de Deus, porque ressuscitaram” (vv. 34-36). Antes de tudo, Jesus desconcerta os saduceus: mesmo sem acreditar, eles foram mal formados acerca da ressurreição. Ao dizer que na vida futura “os homens e as mulheres não se casam e nem se dão em casamento”, ele afirma que nenhuma relação ou realidade desta vida pode ser comparada à ressurreição. Os anjos, em quem os saduceus também não acreditavam, eram os seres mais próximos de Deus, conforme a fé tradicional do judaísmo; dizendo que os seres humanos serão iguais aos anjos, ele afirma que serão muito próximos a Deus, com a ressurreição. Com a ressurreição, portanto, não será uma melhoria desta vida, mas uma transformação radical.

O ápice da resposta de Jesus, no entanto, é a citação da Lei, ou seja, a referência a Moisés: “Que os mortos ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o Senhor de ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele” (vv. 37-38). Ora, os saduceus gabavam-se de que na única parte da Escritura válida para eles, o Pentateuco, não havia qualquer fundamento para uma fé na ressurreição, e Jesus mostra que eles estavam equivocados e compreendiam mal a Escritura. De uma leitura atenta do Pentateuco é possível encontrar razões para a ressurreição. Por isso, Jesus recorda o diálogo de Deus com Moisés, no episódio da sarça ardente (cf. Ex 3,1-6), no qual Deus se apresentou como o Deus dos patriarcas, mas não simplesmente como o Deus em quem os patriarcas acreditaram, mas o Deus que estava em comunhão com eles. E o que Deus prometera e concedera aos patriarcas é válido para todas as gerações dos que o temem (cf. Lc 1,50.72-75).

A interpretação limitada da Escritura pelos saduceus, desmascarada por Jesus, alimentava um sistema de dominação e alienação que mantinha os privilégios de uma classe e de todo um sistema. Além de abrir perspectivas e alimentar esperanças, sobretudo a esperança de um mundo novo, Jesus também desmascara o uso reduzido e fundamentalista da Escritura por grupos hegemônicos. Ao deixar claro que a vida futura não será um aperfeiçoamento desta vida, Jesus também nos estimula a melhorar a vida presente em sua realidade mais concreta. Por isso, podemos dizer que o centro do evangelho de hoje não é uma definição doutrinal da ressurreição, mas um convite à esperança para a transformação desta vida, já que da outra é Deus mesmo quem se encarrega.


Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: francornelio@gmail.com

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...