sábado, dezembro 31, 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTA MÃE DE DEUS, MARIA – LUCAS 2,16-21

 


Para marcar a conclusão da oitava de natal e o início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano 431) que a definiu como “Theotókos”, cujo significado literal é “aquela que gerou Deus”. O objetivo da Igreja com esta festa e com a definição conciliar, no entanto, é afirmar a identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e não necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. Inclusive, até o ano de 1970, esta festa se chamava “festa da circuncisão de Jesus”, fundamentada na tradição judaica de circuncidar as crianças do sexo masculino no oitavo dia após o nascimento, como aconteceu, sem dúvidas, com Jesus. O título atual da festa já é, portanto, fruto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. No ano de 1968, o então papa Paulo VI proclamou este dia – primeiro de janeiro – também como o Dia Mundial da Paz, convidando a inteira humanidade a empenhar-se na construção da paz e da fraternidade universal. Isso torna esta celebração ainda mais significativa.

O evangelho lido na liturgia deste dia é a continuação quase exata daquele da noite de Natal, sendo separado por apenas um versículo: Lc 2,15. Enquanto na noite de Natal o evangelho foi Lc 2,1-14, na solenidade de hoje o texto proposto é Lc 2,16-21. Por isso, consideramos que o primeiro passo para uma boa compreensão do evangelho de hoje é recordar o versículo que o antecede: «Quando os anjos os deixaram e foram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: ‘Vamos já a Belém para ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer’» (Lc 1,15). Ora, os pastores ficaram maravilhados com a Boa Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um Salvador nasceu para eles, naquela noite (cf. Lc 2,10). E, ao anúncio do anjo, seguiu-se o canto da multidão da corte celeste que desceu à terra, para junto dos pastores, proclamando a glória de Deus nos céus e a correspondente paz na terra entre a humanidade (cf. 2,13-14). Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres pastores, assim como a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à categoria das pessoas mais simples e marginalizadas, e eram considerados impuros, compondo o último estrato social e religioso da época.

Uma das grandes novidades de Jesus, desde o nascimento, foi contradizer o que a sua religião tinha afirmado sobre o Messias e sobre Deus. Ora, a religião oficial tinha classificado as pessoas como puras e impuras, justas e pecadoras, imaginando que a vinda do Messias seria marcada pelo extermínio das classificadas como impuras e pecadoras, como eram considerados os pastores na época. Ao invés de seguir as determinações da religião, Jesus preferiu, desde o início, exatamente as categorias excluídas, contradizendo e frustrando muitas expectativas. É nessa perspectiva que podemos e devemos compreender a reação dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus. A eles, a religião tinha ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois eram gente da pior qualidade e que não observava a Lei. De repente, eles recebem um anúncio de salvação e sentem-se amados por Deus. Além, disso, a religião de Israel tinha alimentado as expectativas pela vinda de um messias poderoso, guerreiro e glorioso, e o que veio foi uma criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Perplexos diante de tudo isso, eles decidiram ir a Belém para conferir e tirar todas as dúvidas (cf. Lc 2,15).

Diante de uma novidade sem precedentes, é impossível esperar, por isso diz o texto que «Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16). Merece destaque a expressão adverbial “às pressas” (em grego: σπεύσαντες – speussantes), a qual possui grande relevância no vocabulário da teologia lucana: encontra-se logo após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo a visita a Isabel (cf. Lc 1,39), e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça da árvore, para acolher a salvação em sua casa (cf. Lc 19,5-6). Isso quer dizer que, para Lucas, a salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve ser experimentada sem demora, com urgência. Tanto quem recebe quanto quem proclama o anúncio da salvação devem ter pressa. No caso dos pastores, mais ainda: como passaram a vida inteira às margens, sofrendo o desprezo e a exclusão, não poderiam mais perder tempo. Para eles e todas as categorias de pessoas marginalizadas, a inclusão tem de ser agora, hoje. Por isso, foram às pressas a Belém.

Se os pastores ficaram surpresos com o anúncio do anjo, talvez tenham ficado mais ainda com o que viram em Belém: «encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16b). Na verdade, encontraram tudo conforme lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12), mas é impossível que não tenham se surpreendido, tamanha a reviravolta na história. Ouviram que tinha nascido para eles um Salvador, e encontram na manjedoura, junto aos pais, uma pequena criança, provavelmente em meio às moscas e esterco de gado, sem nenhum sinal distintivo que revelasse glória ou poder, atributos próprios de um salvador. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da novidade e da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um Salvador conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não conseguiriam sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos, foram compreendendo que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem estava às margens estava passando para o centro, como eles. E essa mudança só se tornava possível porque o Salvador veio identificado com eles. Nesta cena, Lucas delineia o primeiro grande esboço de uma Igreja pobre e para os pobres!

Na sequência, o evangelista diz que os pastores «tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino» (v. 17), tornando-se assim, também eles, mensageiros de salvação, portadores de Boa Notícia. Contaram que o anjo lhes aparecera anunciando o nascimento do Salvador, e que depois “uma multidão da corte celeste” baixou perto deles glorificando a Deus e anunciando a paz em toda a humanidade (cf. Lc 2,10-14). Contaram coisas maravilhosas, de modo que quem os escutava também se maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados, pois, até então, não se tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente pouco importante e sem currículo, como eram eles, conforme os padrões da sociedade e da religião da época. Com isso, o evangelista ensina que os pastores foram os primeiros evangelizados com o nascimento de Jesus e se tornaram os primeiros evangelizadores de tão grande acontecimento. Assim, Lucas faz deles modelos de anunciadores, prefigurando neles a missão dos apóstolos e dos discípulos e discípulas de todos os tempos. De fato, mais adiante, no auge da missão e sofrendo as primeiras perseguições, os apóstolos vão confirmar a fidelidade seguindo o exemplo dos pastores: «não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos» (At 4,20). Não calar diante do que se vê e se ouve é exigência básica da evangelização. E os pastores foram os primeiros a fazer isso.

De todas as pessoas que ouviram o relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o texto destaca a reação de Maria como mais profunda, com menos surpresa e mais reflexão. Afinal de contas, ela já estava habituada às maravilhas de Deus, pois foi a primeira destinatária do anúncio salvífico através do anjo Gabriel (cf. Lc 1,26-38) e tinha assistido à exaltação de Isabel quando a visitou (cf. Lc 1,39-52). No entanto, ela não deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de Jesus lhe trará outras surpresas, como no episódio da apresentação no templo, quando ela e José ficarão admirados com o que se dizia do menino (cf. Lc 2,33). A reação de Maria é diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a imagem da discípula modelo: «guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração» (v. 19). Se na atitude dos pastores já havia esboço do modelo de discípulo e discípula, esse modelo se aperfeiçoa em Maria: não basta contar o que se vê e se escuta, mas é necessário também meditar, assimilar bem, interiorizar. O verbo grego empregado pelo evangelista, traduzido pelo lecionário como “meditar” (συμβαλλω – symbálô), possui um significado ainda muito mais profundo: quer dizer “colocar junto”, “unir”, “reunir”. E era isso que Maria fazia: percebia os diversos sinais e acontecimentos do agir de Deus e juntava-os, fazendo sua própria síntese, cuja melhor demonstração está no canto do Magnificat: uma síntese da história da salvação, com ênfase na opção de Deus pelos pobres e humildes de sempre.

Certamente, a meditação de Maria consistia em relacionar os acontecimentos do presente com as ações libertadoras de Deus ao longo da história, como ela mesma já expressara no Magnificat (cf. Lc 1,46-55) e experimentara em sua vida. É exatamente aqui que ela se sobressai sobre os demais ouvintes, porque ela guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que os pastores tinham dito, e juntava com o que já sabia: as palavras do anjo Gabriel e as declarações de Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e humildes. Aquela que já era mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e isso ela vai fazer ao longo de toda a sua vida e a de Jesus. Ao invés de ver os fatos isoladamente, ela vai juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no seu coração, que a história da salvação está sendo reescrita com novos parâmetros, uma inversão de ordem: os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros. E é essa a prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu na história. Nesse sentido, Maria se torna autêntica intérprete da nova história da salvação, sendo, por isso, modelo ideal de discípula e discípula.

Tendo comprovado e visto que tudo o que lhes tinha sido anunciado era verdade, «os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus» (v. 20). Realmente, não faltavam motivos para os pobrezinhos dos pastores glorificarem a Deus! É importante lembrar que a alegria e o louvor também são traços bem característicos de Lucas; quem faz a experiência do amor misericordioso de Deus reage louvando e glorificando. O louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o abismo entre o humano e o divino foi eliminado; céus e terra foram unidos definitivamente. Cantar glória a Deus era função dos anjos no céu que, excepcionalmente desceram à terra e louvaram a Deus diante dos pastores (cf. Lc 1,13-14), mas logo retornaram para o céu. Agora, também aos pastores, os últimos da terra, tem esse direito. Temos aqui uma mudança completa de paradigma: o que era privilégio dos primeiros do céu, se torna acessível aos últimos da terra. O louvor continuado dos pastores mostra que a experiência vivenciada por eles foi verdadeira. O mistério contemplado deixou marcas permanentes. Eles não assistiram apenas a um evento, mas se tornaram participantes e construtores de uma etapa nova da história. Regressaram transformados, renovados, animados, se sentindo gente de verdade. Por isso, daquele momento em diante, dificilmente eles deixaram de anunciar tudo o que tinham visto, escutado e vivido.

No final, vem evidenciado o papel importante de José e Maria na educação de Jesus, levando para a circuncisão conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a liberdade que tinham para seguir mais a Deus do que a Lei: «Quando se completaram os oitos dias para a circuncisão do menino, deram-lhes o nome de Jesus como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido» (v. 21). A circuncisão não era exclusividade de Israel. Era um costume comum a vários povos do antigo Oriente, sendo que a motivação era por questão de higiene e saúde. Em Israel se transformou em preceito religioso, passando a ser o principal sinal de pertença de um homem ao povo eleito. Com esse dado, Lucas reforça a concretude da encarnação. O que está sendo evidenciado mesmo é o nome dado à criança: Jesus, cujo significado é o “Senhor salva”. A Lei determinava que se desse o nome de um parente próximo. Contudo, o nome Jesus fora indicado pelo anjo, no momento do anúncio (cf. Lc 1,31). Com isso, Lucas mostra que, entre a Lei e o Espírito Santo, Maria e José preferiram se orientar pelo Espírito Santo, prefigurando, assim, mais uma característica da comunidade cristã. E Lucas faz essa referência à circuncisão mais como dado cronológico do que mesmo identitário. O importante aqui é o nome que sintetiza a missão de Jesus. E o conjunto dos eventos, do anúncio do nascimento até aqui, mostra a atualidade desse nome.

O significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: «Hoje, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (cf. 2,11). Portanto, hoje, especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e seguir seu exemplo de discípula fiel.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

domingo, dezembro 25, 2022

REFLEXÃO PARA O NATAL DO SENHOR – JOÃO 1,1-18 (MISSA DO DIA)

 


Assim como acontece com a missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo, todos os anos. Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente, da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuram explicar a origem messiânica de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo. Muitos estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à respectiva tradição. A extensão do texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher a mensagem central do texto.

O prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece em todo o Novo Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (sofia – σοφίᾳ) no Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à Sabedoria e influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica. 

Feitas algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo Testamento: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o Pai (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (cf. Ef 1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais evidente se o compararmos aos Sinóticos, que chegam no máximo em Adão e Abraão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus.

Na sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv. 4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer que veio ao mundo para trazer luz e comunicar vida em abundância (cf. Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus, desde a criação até os tempos atuais. A primeira vitória da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos primordial (cf. Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não conseguiram dominá-la.

Por ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados e, por consequência, a chegarem à fé. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia ofuscava a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v. 17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz verdadeira do Pai. Isso porque só ele viu o Pai (v. 18), e só pode comunicar claramente aquilo se conhece verdadeiramente. 

Até então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se claramente à humanidade tinham sido parciais e, por isso, insuficientes (cf. Hb 1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Para compreendê-lo bem e perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez homem. E é somente por causa desse acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus era contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia. A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado.

O Natal é, portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 24, 2022

REFLEXÃO PARA A NOITE DE NATAL – LUCAS 2,1-14

 


Todos os anos, na solene liturgia da noite de Natal se lê o mesmo texto do evangelho: Lc 2,1-14. Isso se explica pelo fato de tratar-se do único texto do Novo Testamento que, de fato, narra o nascimento de Jesus. Como se sabe, somente dois evangelhos canônicos contêm relatos e informações sobre o nascimento e a infância de Jesus, que são Mateus e Lucas, respectivamente. Tanto é que os dois primeiros capítulos destes evangelhos ficaram conhecidos como “evangelhos da infância” (cf. Mt 1–2; Lc 1–2). Contudo, o evangelho de Mateus não chega a narrar o nascimento, propriamente: da aceitação de José ao anúncio do anjo (cf. Mt 1,24-25), o evangelista salta para o episódio da visita dos magos, já depois do nascimento (cf. Mt 2,1-12). Essa lacuna de Mateus rendeu ainda mais privilégio e importância ao relato de Lucas, fazendo com que o texto lido nesta noite se tornasse um dos mais conhecidos e valorizados de toda a Bíblia. Por se tratar de um texto relativamente longo, não comentaremos detalhadamente versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem em seu conjunto, embora seja necessário enfatizar alguns versículos em particular.

Apesar da longa extensão do texto, o relato do nascimento propriamente é muito curto, ocupando apenas dois versículos (vv. 6-7). O restante da narrativa é composta de uma ampla introdução (vv. 1-5) e do anúncio festivo aos pastores (vv. 8-14), os primeiros a se beneficiarem da libertação inaugurada pelo nascimento de Jesus. Este é um dos textos que mais revela as qualidades literárias de Lucas e uma de suas linhas teológicas mais relevantes: a preferência de Deus pelos pobres e marginalizados. Ainda a nível de introdução e contexto, é importante recordar que os relatos da infância de Jesus, tanto em Mateus quanto em Lucas, não possuem finalidade cronística ou histórica, mas catequética e teológica. Aliás, esse pressuposto vale para todos os relatos evangélicos. No entanto, isso não significa que os fatos narrados não possuam raízes históricas. Mas quer dizer que todas as informações e detalhes do texto estão a serviço de um plano teológico e catequético, que visam responder a questionamentos e necessidades de comunidades concretas do final do primeiro século. O que o evangelista quis deixar claro foi que Jesus verdadeiramente nasceu, viveu, fez opções bem concretas e eliminou todas as barreiras entre Deus e a humanidade.

Feitas as considerações contextuais, passemos a olhar diretamente para o texto, partindo das primeiras informações: «Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra» (v. 1). De todos os evangelistas, Lucas é o que mais se preocupa em situar os eventos narrados na história universal. Ele faz isso para ressaltar que Jesus não é um personagem inventado, não é uma lenda, mas um homem concreto que não caiu do céu, e sim que teve uma existência real em circunstâncias de tempo e espaço definidos. Com isso, ele também indica a viabilidade do projeto de salvação e libertação inaugurado por Jesus. Não se trata de uma promessa de felicidade para o além, mas uma forma de vida para ser vivida já neste mundo. É um programa de humanização; o único capaz de inverter a injusta ordem vigente, transformando o mundo em verdadeira irmandade. E os relatos da infância de Jesus (cf. Lc 1–2), sobretudo o nascimento, marcam o início dessa transformação, são o começo da reviravolta na história. Por isso, o episódio começa mencionando a maior autoridade do mundo conhecido na época, o imperador romano, para terminar com os últimos, os pastores, para quem o céu se abre em festa. Por isso, os dados do primeiro versículo são muito importantes para a compreensão de todo o texto.

César Augusto, chamado também de Otaviano, que comandou o império romano de 27a.C. a 14d.C., foi um dos imperadores mais ambiciosos e poderosos da história. Foi ele quem criou a “pax romana”, que não passava de uma política de repressão e controle, com o falso pretexto de manter a lei e a ordem. Foi com ele que se consolidou a atribuição do título de “divino” ao imperador, que significava ser tratado como um deus. Sem dúvidas, era o homem mais poderoso da terra, na época. O decreto do recenseamento de “toda a terra” é uma prova disso. Porém, esse dado é fruto da criatividade de Lucas. Não se tem notícias históricas de um recenseamento de abrangência universal na antiguidade. Quando aconteciam recenseamentos nos grandes impérios, incluindo o romano, se fazia por províncias ou, no máximo, por regiões. Provavelmente, Lucas soube de um recenseamento na província da Judeia e superdimensionou o fato, com a intenção de evidenciar a ambição do imperador com sua força opressora, uma vez que os recenseamentos eram abomináveis em Israel, por serem mecanismos de controle do povo, e só Deus tinha poder verdadeiro sobre o povo, segundo a mentalidade judaica. Por isso, os únicos recenseamentos considerados legítimos foram aqueles da época de Moisés, pois foram ordenados pelo próprio Deus, como demonstra o livro dos Números. Quando era proposto por um rei ou imperador era considerado pecado grave, porque servia para o controle dos impostos e a recrutamento de soldados para o exército. Inclusive, um dos pecados mais graves de Davi foi a realização de um recenseamento (2Sm 24,1-17).

Outra intenção de Lucas com o dado do recenseamento foi encontrar um pretexto para levar o nascimento de Jesus para Belém e, assim, conferir-lhe as credenciais messiânicas, além de enfatizar a importância do caminho, que é outra linha teológica relevante na sua obra. Por isso, o texto diz que, «Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia» (v. 4). Esse versículo também é muito rico de significado e possui grande importância para o sentido do texto. A pertença de José à descendência davídica dá legitimidade à messianidade de Jesus. A distância entre Nazaré e Belém é de aproximadamente 150 km, dificilmente percorrível por uma mulher em gravidez avançada, como se encontrava Maria. Mas a motivação é teológica. Com esse dado, ele mostra o segundo grande movimento de Jesus, ainda no ventre da mãe. O primeiro foi na visitação de Maria a Isabel. Nesse segundo, a distância percorrida é ainda maior. Com isso, ele antecipa que nenhum obstáculo impedirá o percurso da Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Quem se reveste do Espírito Santo, como Maria, jamais se acomoda, por mais que encontre adversidades. E essa deve ser a postura da comunidade cristã em todos os tempos, da qual Maria e José são modelos.

Apesar de ser a cidade natal de Davi, personagem importante da história de Israel, Belém era um lugar praticamente esquecido, sem importância. Possuía apenas um valor simbólico, a começar pelo nome, que significa “casa do pão”. Na prática, era considerada apenas um vilarejo da periferia de Jerusalém, separadas por apenas 10 km. Assim, o nascimento de Jesus nela não significa apenas o cumprimento das Escrituras, mas também a opção de Deus pelos últimos, pelo que é periférico e excluído. Com isso, percebemos uma das principais demonstrações da genialidade de Lucas: ao afirmar que «enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto» (v. 6), ele confirma que Jesus será o Messias esperando, anunciado pelas Escrituras. Em seguida, quase como advertência, ele ensina que não será um Messias glorioso, guerreiro e poderoso como a religião de Israel esperava, ao narrar a situação de completa pobreza em que ele nasceu: «E Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria» (v. 7). Enfaixar os recém-nascidos era um sinal de cuidado e proteção, na antiguidade; acreditava-se que o enfaixamento ajudava a criança a crescer reta, sem deficiências. A falta de lugar na hospedaria é a primeira demonstração de que Jesus já nasceu excluído e entre os excluídos. Ele já nasce banido e, ao longo do seu ministério, vai juntar-se aos banidos de sempre. Pelas expectativas de Israel, o Messias deveria nascer em berço de ouro, enquanto o berço de Jesus foi uma manjedoura (em grego: φτν – fatne), ou seja, um cocho para alimentação de animais. Foi colocado num cocho de animais por falta de lugar digno. Ele nasce um Messias às avessas das expectativas. Nasceu em condições sub-humanas. Numa sociedade desigual, dividida entre privilegiados e injustiçados, ele ficou do lado dos injustiçados, desde o nascimento. Israel não estava preparado para receber um Messias assim e o cristianismo também parece ainda não ter assimilado como ele veio e viveu.

O episódio começou pelo imperador (v. 1), o maior na escala social, passou pelo governador (v. 2), e parou num casal desabrigado com um recém-nascido (v. 7), que é o ponto de partida de uma nova história, de um novo jeito de compreender o mundo. A partir de Jesus, os humildes passam a ter vez, começam a ser lembrados, como diz o texto: «Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho» (v. 8). Apesar de romantizados na Bíblia, devido às origens pastoris do povo de Israel, os pastores constituíam a escória da sociedade; ocupavam o último degrau da escala social, desde que Israel deixou a condição de povo nômade para sedentário. Devido aos cuidados que os rebanhos exigiam, eles não tinham condições de observar a Lei, sobretudo o repouso sabático; por causa das andanças dos rebanhos, eram obrigados a atravessar terras pagãs, e o contato constante e direto com os animais os tornavam impuros. Por isso, eram mais rejeitados até do que os cobradores de impostos. Além da total exclusão, também eram duramente explorados; cuidavam de rebanhos que não eram deles; tinham de vigiar durante e noite, para defender os rebanhos de ameaças de lobos e assaltantes.

Como o nascimento de Jesus inaugura uma nova história, também marca o início de uma nova ordem, com novos protagonistas. Os últimos começam a se tornar primeiros, e o anúncio aos pastores é uma prova disso, como diz o texto: «Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo’» (v. 9-10). Ora, de acordo com a religião da época, os últimos a receber uma mensagem de Deus seriam os pastores. Eles já tinham sido condenados antecipadamente. Mas, como Deus surpreende, eles se tornaram os primeiros destinatários do anúncio do nascimento de Jesus. A notícia dada pelo anjo é para todo o povo, como é a mensagem libertadora de Jesus. Mas algumas pessoas tem prioridade nesse anúncio: os pobres e excluídos. Essa é uma das grandes certezas que os evangelhos revelam. A opção preferencial pelos pobres é clara! Por isso, esse anúncio é dado com uma grande alegria para os pastores. Explorados e excluídos, eles nunca tinham recebido mensagem de alegria; quando alguém se dirigia a eles, o que era raro, era com palavras de condenação ou impondo ordens. O anúncio do nascimento de Jesus para eles é uma grande alegria porque traz eles para o centro da história, que começa a ser reescrita a partir de baixo, a partir dos pequenos e últimos.

E a notícia dada aos pastores é mesmo de alegria, é maravilhosa: «Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (v. 11). Como se vê, o anúncio é atual, indica que a salvação não é um evento futuro, mas um fato cotidiano: é para hoje! Temos aqui, mais uma linha importante da teologia de Lucas: o hoje (em grego: σμερον – semeron), que indica a urgência da salvação/libertação, sobretudo para quem não pode mais esperar, como os pastores, na época, e tantas pessoas marginalizadas ainda hoje. E isso constitui uma séria advertência para a comunidade: é preciso discernir quais são as situações que exigem tomadas de posição e meios de transformação com urgência. Neste versículo, aparecem os três principais títulos cristológicos de Jesus: Salvador (em grego: σωτρ  – sotér), Cristo, que significa messias/ungido (em grego: χριστς – Christós), e Senhor (em grego:  κριος – Kýrios). Quer dizer que Jesus possui a totalidade dos dons de Deus, e tudo foi disponibilizado à humanidade, a partir do seu nascimento. E tudo isso de uma vez, no hoje da história, sendo que todo dia é uma atualização desse hoje. O imperador romano exigia ser reconhecido com essas qualidades, mas o anúncio do anjo está denunciando que era mentira; o poder dele era ilegítimo.

Para não deixar dúvidas, o anjo indica como os pastores encontrarão o Salvador nascido para eles (v. 12). A lógica seria procurá-lo num palácio ou num templo, em meio a refinados ornamentos. Mas desse modo os pastores jamais encontrariam, pois, as portas dos templos e palácios não se abririam para eles. Um recém-nascido é sinal de impotência e fragilidade, a manjedoura indica a extrema pobreza. Temos aqui um grande paradoxo: é nessa impotência, fragilidade e pobreza que está a glória de Deus em plenitude, o que é confirmado pela «multidão da coorte celeste» (v. 13) que se juntou ao primeiro anjo para cantar e festejar. Essa cena marca o fim definitivo da separação entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. O nascimento de Jesus superou as antigas barreiras de separação. Diante dos pastores, os anjos não só cantam, mas proclamam uma nova imagem de Deus, mas também um jeito novo de se relacionar com ele e uma nova ordem para o mundo: «Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados» (v. 14). Como se vê, a glória de Deus está intrinsecamente relacionada ao bem-estar da humanidade. A paz não é um sentimento, nenhuma tranquilidade interior; é a totalidade de todos os bens sonhados por Deus para a humanidade: justiça, liberdade, dignidade, igualdade, fraternidade, terra para trabalhar… logo, não tem sentido proclamar Deus como glorioso sem preocupar-se com essa paz entre os homens. Se as pessoas não podem viver bem na terra, pouco sentido tem a proclamação da glória de Deus nos céus.

Que a celebração de mais um Natal nos ajude a assimilar o seu verdadeiro sentido, abraçando as causas que ele pressupõe. Como diz o Papa Francisco, «Deus faz morada entre nós pobre e necessitado, para nos dizer que é servindo aos pobres que amamos a ele».

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 17, 2022

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 1,18-24 (ANO A)

 


O quarto domingo do advento marca o ápice da preparação para o Natal do Senhor. Por isso, neste domingo, sempre se lê um trecho de um dos chamados “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto lido é Mt 1,18-24. Nesse sentido, a liturgia propõe um verdadeiro caminho pedagógico para expressar as dimensões teológica e espiritual próprias do advento. Ora, à medida em que o Natal se aproxima, a liturgia recorda os acontecimentos que antecedem o nascimento de Jesus, bem como os personagens escolhidos por Deus como mediadores imediatos da sua entrada definitiva na história da humanidade. Se nos dois últimos domingos – segundo e terceiro do advento – foi evidenciada a figura de João Batista, enquanto profeta precursor, neste quarto domingo são recordados José e Maria, os agentes humanos mais próximos do mistério da encarnação e, consequentemente, os destinatários primeiros do fazer-se humano de Deus.

No texto de hoje, tudo gira em torno do anúncio da inesperada gravidez de Maria, por obra do Espírito Santo, o embaraço criado em José, e a providência divina na resolução do problema criado. Ao contrário de Lucas, que evidencia mais a figura de Maria, na narrativa mateana o personagem humano que se destaca neste contexto do nascimento de Jesus é José, sendo ele o destinatário do anúncio divino. É importante recordar que, mais do que descrever fatos, o autor quer mostrar que a vinda de Jesus Cristo não é obra humana, e que, através dessa vinda, Deus faz uma séria interpelação à humanidade. De fato, à humanidade, representada no texto por José, é lançada uma proposta de vida e libertação, tendo ela a liberdade de acolher ou não.

O texto inicia com um enunciado bastante rico de informações: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a um homem chamado José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18). Tudo o que será desenvolvido nos versículos seguintes é esmiuçamento desse primeiro enunciado. Além das informações explícitas no texto, também as entrelinhas são importantes, como veremos ao longo da reflexão. O primeiro passo importante para compreender melhor a “origem” de Jesus Cristo é recordar a “genealogia” apresentada nos versículos anteriores (Mt 1,1-16), na qual prevalece a fórmula “X gerou Y”, com o uso predominante do verbo gerar (em grego: γεννάω – ghennáo) aplicado a grandes personagens da história de Israel, começando por Abraão, e terminando com o desconhecido Jacó, o pai de José. Para falar do nascimento de Jesus, o evangelista abandona a fórmula “X gerou Y”, e apenas diz que ele nasceu de Maria, esposa de José. Com isso, ele quer mostrar que, mesmo inserido na história do povo eleito, Jesus provoca rupturas com os esquemas tradicionais desde a sua concepção. Nenhuma tradição religiosa ou estrutura familiar e social conseguem controlar a pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora.

O primeiro versículo do evangelho de hoje já constitui um grande elemento de ruptura: a origem de Jesus é, ao mesmo tempo, a origem de uma nova humanidade, uma nova criação e, portanto, de novas relações. No entanto, é importante recordar que nos referimos a ruptura enquanto quebra de paradigmas. Ao afirmar que Jesus não foi gerado por José, o evangelista está dizendo que Ele não está atrelado a nenhuma estrutura familiar, é independente, ou seja, ninguém terá domínio sobre Ele. Com isso, quebram-se os paradigmas da sociedade patriarcal fundada no clã e no domínio do masculino. Aqui, apesar de não ser mencionado, o Reino dos Céus, nome dado por Mateus ao que os outros sinóticos chamam de Reino de Deus, o que mais tarde será o objeto da pregação de Jesus, começa a ser delineado como uma sociedade alternativa, em contraposição às antigas instituições, principalmente a instituição familiar patriarcal.

O outro passo necessário é a compreensão do contexto, recordando a estrutura do casamento judaico no tempo de Jesus, como recurso para entender o significado da expressão “Maria estava prometida em casamento a José” (v. 18b). Ora, isso quer dizer que, para efeitos legais, eles já estavam casados. O casamento se realizava em duas etapas: a primeira, a da promessa, consistia no compromisso firmado entre os noivos e suas respectivas famílias, inclusive com assinatura de contrato, não podendo mais ser dissolvido, a não ser por motivo grave. Essa etapa durava aproximadamente um ano, sendo que os noivos continuavam morando com os pais e ainda não podiam ter relações sexuais. Como casava-se muito cedo, geralmente as mulheres tinham entre 12 e 13 anos nessa etapa, e os homens entre 18 e 24. Esse costume dos homens casarem mais velhos era a principal causa para a existência de muitas viúvas em Israel, passando a ser sinônimo de vulnerabilidade social, necessitando de proteção especial na Lei e, posteriormente, na comunidade cristã (cf. At 6,1-7). Foi, então, durante a fase da promessa que Maria quando ficou grávida. Embora ainda não vivessem juntos, já estavam literalmente casados. A segunda etapa do casamento iniciava-se quando os esposos passavam a viver juntos. Essa etapa era marcada por uma grande festa, que poderia durar até uma semana, a depender das condições econômicas dos noivos, sendo que na primeira noite da festa já havia a consumação, ou seja, a relação sexual.

A grande surpresa do texto é a afirmação de que “antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18c). Trata-se de um fenômeno extraordinário e inexplicável, como, de fato, são os planos de Deus. A originalidade de Jesus começa exatamente aqui: gerado pelo Espírito Santo, sem a participação da figura masculina, marcando, assim, uma ruptura total com a sociedade patriarcal. Isso será determinante para a independência e liberdade do seu ministério, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Inclusive, ele mesmo vai confirmar, já no ápice da vida pública, ao declarar aos seus discípulos: “Na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu” (Mt 23,9). Ora, a figura do pai na família patriarcal, como expressão de autoridade máxima, era um impedimento à construção de uma comunidade igualitária. Por isso, Jesus faz de tudo para tirar essa figura do horizonte da comunidade de seus discípulos e discípulas. Assim, mais do que a contemplar um nascimento prodigioso, o evangelista nos convida a aderir às novas relações inauguradas com esse nascimento. É o surgimento de um mundo novo e um novo tempo.

A sequência do texto, como desenvolvimento do primeiro versículo (v. 18), apresenta o esposo de Maria com boas credenciais: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (v. 19). Uma informação que o texto não traz de modo explícito, mas implicitamente devemos imaginar, é a forma como José tomou conhecimento da gravidez de Maria. É necessário percebermos o vácuo entre o versículo 18 e o 19 para imaginarmos essa cena: o texto diz que ela ficou grávida do Espírito Santo (v. 18) e, em seguida, que José, como homem justo, não quis denunciá-la (v. 19), mas não diz como ele ficou sabendo. É muito provável que Maria mesma tenha lhe contado. Aqui, recordemos que o anjo do Senhor só entra em cena quando José pensa em abandoná-la. O plano de abandoná-la prova que a explicação de Maria não fora convincente. Reconstruir essas entrelinhas do texto é essencial para colher e acolher melhor a mensagem.

Diz o texto que, como “José, seu marido era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria em segredo” (v. 19). Aqui, ao afirmar que José era esposo, mais uma vez se confirma a informação de que os dois já eram casados, de fato, embora ainda na primeira etapa do casamento. Mas, o centro do versículo é o adjetivo atribuído a José: justo (em grego: δίκαιος – dikaios), o que confirma, ainda mais, a revolução e inversão de valores apresentada por Mateus. Ora, o que caracterizava um judeu como “justo” era a observância minuciosa e exata da Lei, e aqui, José é considerado justo por recusar-se a aplicar a lei que recomendava o apedrejamento para a mulher que engravidasse de outro na primeira etapa do casamento, a fase da promessa (cf. Dt 22,23-27). O plano de abandonar Maria em segredo mostra que José já tinha compreendido o sentido verdadeiro da Lei, da qual Jesus será constituído o intérprete oficial, credenciado por Deus, o verdadeiro Pai (cf. Mt 5,17-48), ao trocar o mero preceito pela misericórdia. De fato, abandonar Maria em segredo quer dizer que ele se recusou a expô-la publicamente, rompeu com a sinagoga ao não buscar testemunhas entre os anciãos da sua cidade para testemunharem o divórcio e o consequente apedrejamento, como era o costume. Certamente, uma grande crise envolveu José, levando-o a muitas reflexões e discernimento.

Como Deus tinha agido em Maria, também agiu nele: “Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo” (v. 20). Certamente, ele não tinha acreditado plenamente na explicação de Maria, ficando na dúvida e amadurecendo a ideia de abandoná-la. Algo de extraordinário se apresenta, introduzido pela expressão “eis que”. Sempre que essa fórmula de introdução “eis que” (em grego: δο – idú) aparece no Novo Testamento, é sinal de que a informação que lhe segue é uma novidade e tem grande importância; é sempre algo surpreendente; inclusive, no idioma original do Evangelho, o grego, se trata de uma interjeição com função demonstrativa, cuja tradução literal seria “vê!”. De fato, é muito importante a intervenção de Deus através do anjo, seu mensageiro, personagem relevante para a mentalidade judaica, considerando a distância entre Deus e os seres homens e, portanto, muito propícia para a existência de um ser intermediário. Assim, a expressão “anjo do Senhor” significa o próprio Deus; os autores bíblicos a empregam para diminuir o impacto de uma intervenção direta de Deus na vida do ser humano.

As palavras do anjo são encorajadoras e convidam José a participar diretamente da nova humanidade criada por Deus, recebendo Maria como esposa, ou seja, levando o casamento à segunda etapa. Mas, ao mesmo tempo deixa claro que ele não terá nenhum domínio sobre o menino, uma vez que Maria concebeu pelo Espírito Santo. Contudo, a José, cabe um papel relevante: “Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). Na Bíblia, o nome significa a identidade e a própria essência da pessoa. Como o nome Jesus significa “Deus salva”, isso já indica a sua missão: salvar o seu povo de seus pecados. Essa informação é carregada de significado e, mais uma vez, expressa a novidade de Jesus. Ora, esperava-se um Messias para condenar o povo por causa dos pecados; Jesus vem salvar o povo dos seus pecados, o que significa libertar o povo das injustiças e dos erros, individuais e comunitários, inclusive do sentimento de culpa por erros do passado, o que tanto pesava sobre o povo judeu. Isso Jesus fará muito bem ao longo do seu ministério, com sua práxis libertadora.

Como é típico nos evangelhos, e mais ainda no de Mateus, o uso de textos e expressões do Antigo Testamento é imprescindível, sobretudo em momentos marcados pela dúvida e o medo. A citação do Antigo Testamento tem a função de confirmar, dar respaldo ao que está para ser dito. Por isso, o autor recorre ao profeta Isaías com o “oráculo do Emanuel” (Is 7,14) para confirmar que o fato presente tem respaldo na história da salvação: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado de Emanuel, que significa Deus está conosco’” (v. 23). Como se vê, o nome de Isaías não é mencionado, embora o texto citado seja dele. De fato, quando se fazia uma citação dele, não tinha necessidade de dizer o seu nome. Quando se dizia “o profeta”, os ouvintes e leitores já sabiam que se tratava de Isaías, cujo livro é o texto profético mais lido na liturgia da sinagoga e das comunidades cristãs. Mais do que cumprimento de promessa e atestado da virgindade de Maria, a citação profética quer evidenciar que é necessário buscar referências nas Sagradas Escrituras para a construção da história e a compreensão do presente e, sobretudo, para afirmar no que consiste o nascimento de Jesus: a presença definitiva de Deus Conosco, ou seja, Deus no meio da gente e como gente. Quer dizer que o divino veio definitivamente ao encontro da humanidade para habitar em seu meio. Como se sabe, nem a criança anunciada por Isaías, que provavelmente foi o rei Ezequias, e nem Jesus receberam o nome de Emanuel. Na verdade, não se trata de um nome próprio, mas de um título funcional, que expressa um traço característico de Deus: ele está próximo da humanidade, ou seja, está conosco.

Com a citação de Isaías 7,14, Mateus apresenta uma das principais chaves de leitura de sua grande obra: Deus está presente no dia-a-dia da comunidade. Por isso, o seu Evangelho pode ser chamado o “evangelho da presença”, pois do começo ao fim, essa presença é evidenciada: no início, com o anúncio do anjo (cf. 1,23), no discurso sobre a vida em comunidade, quando Jesus promete ficar junto “quando dois ou mais se reunirem em seu nome” (cf. 18,20), e no final, nas últimas palavras do Ressuscitado, quando Jesus promete estar com os discípulos para sempre, até o fim dos tempos (cf. 28,20). À comunidade, de outrora e de hoje, foi conferida a responsabilidade de manifestar essa presença com o anúncio e o testemunho, sobretudo. Após o anúncio do anjo, o evangelista diz que “José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa” (v. 24). Ao invés de seguir a letra morta da Lei, José obedeceu à Palavra dinâmica de Deus, anunciada pelo anjo, antecipando o que Jesus recomendará aos seus discípulos (cf. Mt 5,17-48; 9,13). José foi o primeiro a perceber, segundo a perspectiva de Mateus, que Deus não estava mais na antiga Lei, mas está conosco, no próximo que necessita de acolhida e compreensão. Por isso, o que Maria representa no “evangelho da infância” de Lucas (cf. Lc 1–2), José representa em Mateus: modelo antecipado de discípulo que soube trocar a Lei pelo amor e a misericórdia. Enfim, ele foi o primeiro a superar os fariseus na justiça, como Jesus exigirá dos seus discípulos, mais tarde (cf. Mt 5,20)

Nas entrelinhas, Mateus diz que Deus deixou a letra, o livro, para tornar-se humano. E, no discurso escatológico (cf. Mt 25,31-46), ele vai especificar a categoria humana que Deus se fez: os pequeninos – pobres e desvalidos, famintos, nus, prisioneiros, pessoas marginalizadas em geral. Logo, a preparação para o Natal depende essencialmente da nossa capacidade de acolher e estar do lado destas pessoas que são carne viva do Emanuel.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 10, 2022

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 11,2-11 (ANO A)



A liturgia do terceiro domingo do advento continua evidenciando a figura de João Batista, como acontece todos os anos. Ora, de acordo com os evangelhos, João é o profeta que anuncia, prepara e até antecipa a missão de Jesus. Isso faz dele uma figura fundamental neste itinerário catequético-espiritual que constitui o tempo do advento. Enquanto no domingo passado tivemos a oportunidade de contemplar o Batista no auge do seu ministério profético, pregando e batizando no deserto da Judeia, às margens do rio Jordão, o evangelho de hoje – Mt 11,2-11 – o mostra já encarcerado e próximo de ser decapitado. Entre os estudiosos, convencionou-se intitular essa passagem de “a crise do Batista”. De fato, a pergunta de João sobre a identidade de Jesus não revela apenas uma dúvida, mas uma verdadeira crise, tendo em vista a não correspondência entre a messianidade que Jesus revelava com sua práxis e as expectativas criadas a seu respeito pela pregação do Batista.

E quais tinham sido as expectativas alimentadas por João Batista a respeito da messianidade de Jesus? Ora, assim como muitos de seu tempo, João esperava um messias conforme a tradição: um rei poderoso, um guerreiro forte e juiz rigoroso que, de fato, viesse ao mundo para julgar, recompensando os bons e castigando os maus. Na sua apresentação do messias vindouro, João tinha usado imagens muito fortes como o machado na raiz das árvores, pronto para cortar (cf. Mt 3,10), e o fogo que queima a palha (cf. Mt 3,12). Na verdade, ele esperava um messias que viesse ao mundo mais para condenar do que para salvar, por isso frustrou-se, uma vez que Jesus veio somente para salvar (cf. Lc 19,10). Em outras palavras, João anunciou um messias severo demais, enquanto Jesus veio misericordioso demais. Por isso, é necessário considerar esses aspectos para compreender bem o evangelho de hoje.

Feitas as devidas considerações introdutórias e contextualização, passamos ao estudo do texto propriamente, embora durante a explicação seja necessário acrescentar mais informações de caráter contextual. Eis o primeiro versículo: “João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de Cristo, enviou-lhe alguns discípulos” (v. 2). A primeira informação é impactante, embora esperada. A prisão de João é uma confirmação da sua identidade e missão de profeta. Os motivos dessa prisão só serão apresentados mais tarde, pelo evangelista (cf. Mt 14,1-12). João foi preso por causa da sua pregação, sobretudo pela denúncia pública à relação imoral e ilegítima de Herodes com sua cunhada Herodíades, esposa de seu irmão Filipe. A perseguição sempre marcou os profetas de Israel, principalmente quando desmascaravam os poderosos. Desse modo, a notícia da prisão de João se torna também uma advertência para Jesus e seus discípulos que seguiam, pelo menos na coragem de denunciar os poderosos, os mesmos passos do precursor.

Uma vez preso, João poderia até dar por cumprida a sua missão, tendo em vista que ele fora apresentado como o responsável por preparar a vinda do messias, e o messias já tinha vindo e se encontrava no auge do seu ministério messiânico. Contudo, parece que houve uma inquietação nele, “tendo ouvido falar das obras do Cristo” (v. 2b). De fato, “as obras do Cristo” (em grego: τ ργα το Χριστο – tá erga tu christu), expressão forte que significa o ensinamento e o agir de Jesus, eram preocupantes para quem tinha idealizado nele o messias esperado pelas antigas tradições judaicas, como apresentamos na introdução. Ao invés de condenação, Jesus cumpria somente obras de salvação, como cura de doenças (cf. Mt 8,14-15; 9,27-31), inclusive de leprosos (cf. Mt 8,1-4), libertação de demônios (cf. Mt 8,28-34), e o pior: ao invés de condenar os pecadores, como João havia predito, Jesus gostava era de misturar-se com eles, comendo e bebendo em companhia deles. Portanto, o comportamento de Jesus revelava um messias às avessas, e isso preocupava João.

Além de não cumprir certos ritos e práticas devocionais caras a João e a muitos da sua época, Jesus ainda incentivava seus discípulos a fazerem o mesmo, levando-os até a uma discussão com os próprios discípulos de João sobre o jejum (cf. Mt 9,14-17). Nessa ocasião da discussão sobre o jejum, os discípulos de João preferiram se alinhar aos fariseus, aqueles mesmos que tinham sido chamados de “cobras venenosas” pelo próprio João (cf. Mt 3,7), o que vem a confirmar, ainda mais, a insatisfação de João e de seus discípulos com as atitudes de Jesus. E, se as obras de Jesus deixaram João embaraçado, muito mais ainda deve ter ficado com as palavras dele, como: “Felizes os mansos, felizes os misericordiosos, felizes os que promovem a paz” (Mt 5,4.7.8), “amai os vossos inimigos” (Mt 5,43), “não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Foi ouvindo falar sobre isso, e muito mais, que João enviou alguns discípulos para fazer uma pergunta decisiva a Jesus.

Embaraçado, talvez até com medo de ter acreditado no messias errado e de ter pedido tempo preparando seu caminho, João enviou alguns discípulos a Jesus “para lhe perguntarem: ‘És tu aquele que há de vir ou devemos esperar um outro?’” (v. 3). Pela pergunta, percebe-se claramente que havia dúvidas e preocupação em João sobre a messianidade de Jesus. Aliás, não apenas dúvidas e preocupação, havia também angústia e decepção. Portanto, com essa pergunta, João visava verificar a messianidade de Jesus. E, pelo comportamento de Jesus, as informações que chegavam até João não poderiam animá-lo; na verdade, ele tinha dado características messiânicas que Jesus não possuía. Ao invés do rigorismo predito pelo Batista, Jesus apresentou-se cheio de amor e misericórdia, não aplicando os terríveis castigos aos pecadores, como esperava João. Portanto, a crise do Batista tornou-se inevitável.

João não foi o primeiro e nem o último a se decepcionar com o nazareno. Por isso, a resposta de Jesus foi muito serena, mas cheia de vida e de convicção, deixando até que os fatos falassem por si: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperaram a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (vv. 4-5). Como se vê, Jesus não responde com o tradicional “sim” ou “não”; mas responde com o seu legado, o resultado das suas obras, sobre as quais João ouviu falar e ficou preocupado (v. 2). Aqui, não entra em discussão a historicidade dos milagres e curas de Jesus, mas o que, de fato, estes sinais representam: a renovação completa da humanidade e o início de um novo mundo. Com estas categorias de pessoas sendo reabilitadas, Jesus está afirmando que o seu messianismo consiste em restaurar, resgatar o que parecia perdido, ao invés de destruir com o fogo, como tinha anunciado o Batista (cf. Mt 3,10.12). A resposta de Jesus mostra as primícias do Reino. É a partir das situações transformadas recordadas por ele que o Reino começa a se manifestar no mundo. E nisso revela-se uma clara opção pelos pobres, os últimos, os marginalizados de todos os tempos, mostrando o quanto o Reino é inclusivo, ao invés de seletivo, como João imaginava.

Nessa resposta de Jesus está a certeza de que o Reino dos céus que estava próximo, segundo o próprio João (cf. Mt 3,2), tinha, finalmente, chegado. E, esse Reino é de inclusão e vida nova. Diante disso, Jesus proclama uma bem-aventurança: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (v. 6); é provável que a desconfiança de João a seu respeito tenha lhe entristecido um pouco, mas Jesus tinha consciência de que o Batista era fruto do seu tempo e carregava em si os anseios de um povo e de uma tradição. Assim, passado o desconforto inicial, Jesus faz um grande elogio a João Batista, quando seus discípulos já tinham ido embora levando a resposta: O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. Então o que fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos afirmo, e alguém que é mais do que profeta” (vv. 7-9). Nesse testemunho elogioso a respeito do Batista, Jesus exalta suas qualidades de profeta, ressaltando seu testemunho, integridade, honestidade e austeridade. Para Jesus, João foi até maior do que todos os antigos profetas. Nisso, se percebe o afeto que unia os dois, apesar da inegável crise e divergência na maneira de conceber o Reino de Deus. Se houve um pouco de angústia em Jesus ao receber o “ultimato” dos discípulos de João, muito mais deve ter tido o próprio João, pois, encarcerado, não podia ver o que Jesus fazia, apenas ouvia falar a seu respeito e, certamente, com distorções.

Jesus reconheceu a importância de João Batista, interpretando-o, inclusive, à luz das Escrituras, através da profecia de Malaquias (cf. Ml 3,1): “É dele que está escrito: ‘eis que envio o meu mensageiro à tua frente...” (v. 10). Com isso, Jesus reforça que havia continuidade entre os dois, não obstante as diferenças que se transformaram em rupturas. Fez-lhe um elogio tão grande, a ponto de considerá-lo o maior dos seres humanos até então: “Em verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do João Batista” (v. 11a). No entanto, João pertence a uma ordem antiga, cujos esquemas não coincidem com a nova ordem que Jesus veio inaugurar, o Reino dos céus. Esse Reino é uma sociedade alternativa, incompatível com todas as formas de organização social até então experimentadas. Para entrar nesse Reino, não contam os títulos de honra e grandeza, mas apenas a adesão livre ao projeto libertador de Jesus, cujo critério principal de pertença é a capacidade de fazer-se pequeno (cf. Mt 18,3; 19,14). Por isso, “o menor no Reino dos céus é maior do que ele” (v. 11b). Não se trata de uma desvalorização do Batista, mas de evidenciar que Jesus inaugura uma nova humanidade em todos os sentidos.

Com o exemplo de João Batista, o evangelho de hoje ensina que não devemos ter medo de duvidar e questionar. É a partir das dúvidas que a fé cresce, se tornando autêntica e sólida. Por causa do seu questionamento, João teve a oportunidade de confrontar suas convicções com a verdadeira natureza da messianidade de Jesus. Por ter tido a coragem de questionar, ele aprendeu que o messias autêntico veio para incluir, para renovar o que a religião e a sociedade tinham descartado: os pobres, marginalizados e pecadores. Que este tempo do advento nos ajude a discernir sobre a verdadeira identidade de Jesus, o messias de todos, mas principalmente dos pobres, das pessoas mais necessitadas. Precisamos nos precaver para não esperar o messias errado.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 03, 2022

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 3,1-12 (ANO A)



Todos os anos, a liturgia do segundo e do terceiro domingos do advento destaca a figura de João Batista, apresentado como o profeta que precede de imediato e prepara a missão de Jesus, conforme as narrativas dos evangelhos. Por ocasião do ciclo litúrgico “A”, neste ano temos a oportunidade de ler a versão de Mateus sobre o Batista, tanto hoje quanto no próximo domingo. Segundo a perspectiva dos quatro evangelhos canônicos, a compreensão da identidade e missão de Jesus passa necessariamente pela compreensão da missão de João. E a liturgia católica adotou essa visão. Isso faz do Batista um personagem chave para a teologia e espiritualidade do tempo do advento. O texto lido neste domingo – Mt 3,1-12 – apresenta os principais traços característicos de João, com uma pequena descrição da sua missão e uma síntese da sua pregação. Na verdade, esse esquema é comum aos evangelhos sinóticos, embora cada um o tenha desenvolvido à sua maneira, conforme suas habilidades literárias e respectivas intenções teológicas. A importância de João é evidenciada também no Quarto Evangelho, no qual ele é apresentado, pelo menos implicitamente, como o mentor de Jesus, possibilidade bastante plausível, conforme tem mostrado a exegese contemporânea. É provável, inclusive, que o movimento de Jesus tenha surgido como dissidência do movimento batista.

O texto proposto pela liturgia deste domingo é relativamente longo, composto de muitas informações, o que dificulta um comentário pormenorizado de cada versículo. Por isso, procuraremos destacar os elementos principais e a mensagem central. Considerando que os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus – chamados de “evangelho da infância” (Mt 1–2) –, assim como no de Lucas, foram escritos por último e acrescentados quando a obra já estava concluída, podemos dizer que o texto de hoje é a abertura original da obra. Se trata, portanto, de um texto muito importante para a compreensão da missão de João, de Jesus, e da própria obra de Mateus. Por isso, começamos nossa reflexão a partir do primeiro versículo, que é carregado de relevantes elementos teológicos: “Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia” (v. 1). Nessa afirmação, há três dados fundamentais para a compreensão do texto e da missão do Batista: o indicativo temporal (naqueles dias), a atividade (pregando) e o cenário (no deserto).

Nos deteremos, inicialmente, nas dimensões de tempo e espaço, deixando para falarmos da pregação quando analisarmos diretamente a fala do personagem, que expressa o conteúdo da sua pregação. A expressão “naqueles dias” (v. 1a), dimensão temporal, é um indicativo de importância do acontecimento narrado e do personagem apresentado; foi com essa expressão que o redator do livro do Êxodo introduziu a missão de Moisés (cf. Ex 2,11), e muitos profetas introduziam os anúncios das intervenções de Deus na vida do povo (cf. Is 31,7; Jr 3,16.18; Jl 4,1), e Marcos, a fonte utilizada por Mateus neste episódio, introduziu o ministério do próprio Jesus no momento do batismo (cf. Mc 1,9). Portanto, a ação batizadora de João é apresentada como um evento importante e proveniente de Deus, o que confirma a autenticidade e autoridade do seu ministério.

A segunda informação importante, a dimensão espacial, acerca da atividade do Batista também é fortemente carregada de teologia: “no deserto da Judéia”. Na verdade, muito mais mais do que uma indicação espacial, a palavra deserto aqui possui um profundo significado teológico, como em toda a Bíblia. Ora, o deserto (em grego: ἐρήμος – erémos) é o lugar clássico do encontro com Deus; representa uma etapa importante no processo de libertação, como aconteceu no primeiro êxodo. Ao longo da história, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Assim, a presença de João no deserto é um convite para Israel romper com as estruturas vigentes de injustiça e opressão, e retornar às suas origens, voltando a viver como povo livre.

Além de ser o lugar ideal do encontro com Deus, o deserto, nesse contexto, é também uma nítida contraposição ao aparato religioso institucional de Israel, sediado no templo de Jerusalém; é uma crítica à classe sacerdotal, sobretudo. Com essa imagem, o evangelista diz que o grande templo de Jerusalém já não favorecia mais a relação do povo com Deus, pois, à medida em que foi transformado em casa de comércio, Deus afastou-se de lá, deixando-se encontrar somente no deserto, onde não há obstáculo algum à comunicação com ele: é o lugar do silêncio, é onde se vive somente com o necessário e se percebe que tudo provém de Deus, como o antigo maná (cf. Ex 16). Outro sentido para o deserto na linguagem bíblica, é o da provação e da confiança, uma vez que, na privação completa de bens, não há outra saída senão confiar somente em Deus. Foi no deserto onde Jesus venceu as tentações de satanás (cf. Mt 4,1-11), e é para o deserto que povo é convidado por Deus, através do Batista, à conversão e, assim, voltar a seguir os caminhos da justiça.

Da indicação do tempo e do espaço da atividade de João, o evangelista passa para o conteúdo da sua pregação, e é exatamente aqui que a narrativa de Mateus se destaca sobre as demais: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v. 2). Ora, os três sinóticos são unânimes em mostrar que a pregação de João consistia num convite à conversão, mas somente no relato de Mateus se diz que ele anunciava a proximidade do Reino, que vai ser também o tema da pregação de Jesus (cf. Mt 4,17). Desse modo, ele mostra João e Jesus alinhados, envolvidos num mesmo projeto de salvação e libertação. Essa harmonização entre os dois serviu, provavelmente, para o evangelista combater uma certa rivalidade entre os dois movimentos, após a dissidência de Jesus. Ele quis mostrar que não havia incompatibilidade entre os dois; ambos anunciaram o mesmo Reino. A necessidade de conversão sempre foi recordada, sobretudo, na pregação dos profetas de Israel. Logo, João é apresentado como uma figura profética, tanto pela mensagem da sua pregação, quanto pela maneira como se apresentou diante do povo.

Com o imperativo “convertei-vos”, (em grego μετανοετε – metanoeite), João faz um apelo para uma mudança de mentalidade. Na Bíblia, conversão, (metanoia), nunca significa a adesão a um conjunto de ritos penitenciais ou práticas devocionais, e sim uma mudança de pensamento ou mentalidade, com a assimilação de um jeito novo de viver. No mesmo versículo, João diz o motivo da necessidade de conversão: a chegada do Reino dos Céus. Aqui, verifica-se outra particularidade de Mateus: enquanto Marcos e Lucas usam a expressão “Reino de Deus”, Mateus prefere usar “Reino dos Céus” (em grego: βασιλεα τν ορανν – basileia ton uranôn), tendo em vista que sua comunidade era fortemente marcada pelo judaísmo e, como sabemos, a pronúncia do nome de Deus era uma ofensa para os judeus. Por isso, Mateus usa uma expressão equivalente para não ferir a sensibilidade dos irmãos judeus. O Reino de Deus ou dos Ceus não significa a vida no além, mas o estabelecimento do projeto de Deus neste mundo, que passa pela superação das injustiças, da violência, do preconceito, das desigualdades e de todas as formas de exclusão. E um mundo fraterno, justo e solidário, como já tinha sido anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, e começa e a se concretizar a partir de Jesus.

O convite à conversão é feito porque, com a mentalidade antiga, não é possível reconhecer o Reino que está próximo, ou seja, pensando do mesmo jeito de sempre, é impossível perceber a chegada do Reino e, sem perceber, é impossível também acolhê-lo e dar-lhe adesão. Por isso, o primeiro convite é para a mudança. Mas, que tipo de mudança? Mudança no modo de conceber e compreender as coisas, sobretudo, a relação com Deus e com o próximo. Portanto, é urgente mudar o jeito de pensar. É importante reconhecer a urgência da conversão, considerando que o reino “está próximo”. Essa proximidade, na perspectiva do evangelista, é mais física do que temporal. O Reino dos céus é o próprio Jesus, ele é o Reino em pessoa, com sua mensagem libertadora, conforme Ele mesmo dirá mais tarde, no próprio Evangelho de Mateus, ao contar as parábolas do reino (cf. Mt 13), comparando esse reino a uma rede de pescador (13,47-50), a um tesouro escondido (13,44-46), a um grão de mostarda (13,31-32), ao fermento (13,33), e muitos outros exemplos.

Quem esperava a restauração da dinastia davídica e do reino de Israel, logo, não poderia aceitar o reino inaugurado por Jesus sem passar por uma mudança radical de pensamento. Os que tinham projetado toda a esperança em um futuro escatológico também se decepcionavam com essa pregação, pois o reino que João afirma ter se aproximado e que Jesus confirma, acontece aqui e agora: é o reino dos céus porque é o projeto de Deus para a humanidade, mas não se realiza no céu; realiza-se já aqui e, aceitar essa novidade é o único sinal de conversão exigido. A necessidade de conversão, ou seja, de mudança de mentalidade, portanto, deve-se ao fato de o reino dos céus não ter chegado conforme Israel esperava, ou seja, em meio a grandes teofanias, mas veio na simplicidade de um homem, um filho de carpinteiro, Jesus de Nazaré.

A descrição de João feita pelo evangelista serve como credencial para ter sua missão profética reconhecida: “Usava roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo” (v. 4). De fato, a descrição do vestuário e da dieta de João revelam seu estilo de vida; é típico dos profetas (Zc 13,4; 2Rs 1,8). É mais uma prova de que o verdadeiro profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente, com o testemunho. O estilo de vida simples de João comprova esse testemunho e ainda serve de contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de Jerusalém. Essa descrição funciona como um apelo do evangelista para a comunidade cristã configurar-se como religião profética, combatendo as primeiras tendências de institucionalização do cristianismo. É um modo de dizer que o carisma, principal traço característico da missão profética, é praticamente inconciliável com a institucionalização.

As credenciais de profeta descritas acima davam autoridade e reconhecimento a João, fazendo com que muitas pessoas fossem ao seu encontro, como diz o evangelista: “Os moradores de Jerusalém, de toda a Judéia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João” (v. 5). Nessa passagem, especialmente, a tradução litúrgica não expressa o real significado do texto: ao invés de afirmar que “as pessoas iam ou viunham de Jerusalém ao encontro de João”, a tradução correta seria “saíam ao encontro”. De fato, aqui o evangelista emprega o verbo do êxodo: sair, que expressa libertação, acima de tudo. Logo, essa saída significa que há um novo êxodo em curso. A expressão “Jerusalém e toda Judéia”, aqui, significa a instituição religiosa; é o espaço no qual a religião institucionalizada tinha total controle sobre a vida das pessoas. À medida em que os moradores saíam dessa área, eles se libertavam. Com essa informação, portanto, além de valorizar o sucesso da pregação do Batista, o evangelista está mostrando um novo êxodo acontecendo.

A antiga terra prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se transformado em terra de escravidão. Na época de Jesus, já não era um faraó o algoz, mas a própria casta sacerdotal do templo em conluio com o poder romano. Foi dessa gente que controlava a vida do povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar, em primeiro lugar. A religião institucionalizada era sinal de exploração e abuso de poder. E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o nome de Deus, ou seja, a exploração religiosa. As pessoas que saíam das antigas estruturas, Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão” (v. 6). A confissão aqui, não é um rito, mas um reconhecimento do pecado e arrependimento, conforme reza um salmista: “Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não te encobri; eu disse: “Vou a Iahweh confessar a minha iniquidade!” (Sl 32,4). Ser batizado no Jordão quer dizer atravessá-lo, é passar por ele, como passou o povo do primeiro êxodo; de fato, a travessia do Jordão foi a última etapa da longa caminhada do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, já sob a liderança de Josué, após a morte de Moisés (cf. Js 1,2). Assim, a proposta de João é um convite a um novo êxodo, ou seja, uma nova libertação que se aproxima, e só pode participar quem fizer a experiência do deserto e da travessia, ou seja, quem passa de uma mentalidade antiga para uma nova.

Ao contrário do povo simples que “saía”, os fariseus e os saduceus “iam”, realmente (v. 7). Para esses, o autor emprega um verbo que significa mesmo vir ou chegar. Com isso, o evangelista afirma que os fariseus e os saduceus não buscavam um novo êxodo, pois estavam satisfeitos com a situação vigente, concordavam com as injustiças e a violência praticadas, uma vez que faziam parte do sistema de dominação. Por isso, as palavras de João dirigidas a eles são muito duras, têm a função de desmascará-los: “raça de cobras venenosas”; trata-se de uma afirmação dura que denuncia o mal representado por eles. A cobra (serpente) é o pior dos animais, para o imaginário judaico; além representar a morte, é símbolo do próprio pecado; assim, João está afirmando que, além de não se converterem, os fariseus e os saduceus ainda são obstáculo para a conversão dos demais, eram pessoas venenosas, cuja existência ameaçava a vida dos outros. Inclusive, a afirmação “muitos fariseus vinham para o batismo”, denota uma atitude fiscalizadora: eles não iam para serem batizados, mas para observar o que estava acontecendo com a atividade de João, pois estavam preocupados, porque sabiam que a chegada do Reino dos Céus seria o fim do reino deles, marcado pela injustiça, hipocrisia, mentira e violência institucionalizada.

Sabendo que, de fato, os fariseus e saduceus não estavam dispostos a mudar de mentalidade, ou seja, a se converterem, João deixa claro que é necessário produzir frutos: Produzi frutos que provem a vossa conversão” (v. 8). Essa afirmação constitui mais um elemento da pregação de João com ecos fortemente proféticos. A necessidade de frutos que provem a conversão foi repetidamente recordada pelos antigos profetas, visando a superação da hipocrisia religiosa. Amós e Isaías foram os principais expoentes dessa corrente. Como acontece ainda hoje, também nos tempos bíblicos confundia-se conversão com devoção, de modo que as advertências dos profetas continuam cada vez mais atuais, tendo em vista que o cristianismo institucionalizado continua sobrepondo o devocionismo ao culto em espírito e em verdade.

E João adverte que um novo jeito de se relacionar com Deus está surgindo com o advento do Reino, pois o que vale já não é considerar-se filho de Abraão (v. 9), mas fazer a vontade de Deus, quer dizer, produzir frutos. Ser “filho de Abraão” para o mundo judaica equivale a ser batizado/batizada nas tradições cristãs. Logo, também não é suficiente receber sacramentos, se a vida não for marcada por frutos de conversão, ou seja, pela prática da justiça. E a justiça, na Bíblia, significa, acima de tudo, opção pelos menos favorecidos e compromisso concreto em favor deles. A maneira clássica de Deus fazer justiça na Bíblia é ouvindo o clamor dos pobres! Por isso, a linguagem ameaçadora do fogo, na pregação de João, é um alerta para aqueles que querem entrar no Reino sem abraçar os princípios desse reino; o Reino não exclui ninguém, são as pessoas que se auto excluem, ao preferirem a mentalidade antiga, como os fariseus e os saduceus.

João administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente um sinal do batismo por excelência: com o Espírito Santo. Esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28) e, ao mesmo tempo, sinal da universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. Somos, então, neste segundo domingo do advento, convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão, fazendo um êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as práticas das antigas estruturas, renovando a maneira de conceber a Deus e abrindo-se ao Espírito Santo, dom de Jesus, o batizador por excelência.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...