sábado, abril 27, 2019

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 20,19-31



Todos os anos, o Evangelho do segundo domingo da páscoa é João 20,19-31, texto que apresenta a continuidade dos acontecimentos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade de discípulos e discípulas completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (cf. Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, um mundo em gestação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (cf. Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou a ausência do corpo do sepulcro como sinal da ressurreição e acreditou, o Discípulo Amado (cf. Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (cf. Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto empregado pela liturgia do domingo passado.

Da madrugada do primeiro dia, quando ainda estava escuro (Evangelho do domingo passado), passamos para o anoitecer, como diz o texto de hoje: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco” (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma natural dispersão. Provavelmente o anúncio de Maria Madalena – Eu vi o Senhor! (cf. Jo 20,18) – tenha influenciado nesse processo de recomposição. Embora se recompondo, essa comunidade continua em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades religiosas que condenaram Jesus em parceria com o império romano, e não todo o povo. É típico de João usar o termo “judeus” em referência às autoridades. O medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns; significa a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro contraponto ao medo: o dom da paz, que não é uma mera saudação, mas o sinal de vida plena e equilíbrio. É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada. Jesus comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é apresentado apenas como uma demonstração de provas materiais da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado; porém, não se trata apenas disso. Mais do que estigmas, as mãos e o lado aqui são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que demonstrou em sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. A certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria. Como fruto da paz transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das características da comunidade que vive para servir e amar, como fez Jesus.

Já estabelecido como centro da comunidade, “novamente Jesus disse: A paz esteja convosco” (v. 21a). A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Ora, Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. 

O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, e não exatamente poder: A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz. Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus.  O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia à comunidade de discípulos essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade. 

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também “Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio” (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que o mesmo foi, injustamente, rotulado negativamente pela tradição. O motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos à portas fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava com eles é porque não tinha medo e, portanto, circulava livremente e sem temor algum; era, portanto, um discípulo corajoso, ao contrário dos demais. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no episódio da reanimação de Lázaro. Jesus já tinha sido alvo de diversas ameaças e tentativas de assassinato pelas autoridades dos judeus; quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: “Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele! (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se dos judeus. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo.

Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os outros dez deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi, sem dúvidas, o seu grande erro, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (cf. Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor em seu meio. Nenhum deles acreditou no testemunho de Maria Madalena; esperaram o Senhor aparecer. Mesmo sem acreditar ainda na ressurreição, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco” (v. 26). É importante, antes de continuar falando de Tomé, perceber o dado cronológico-teológico “oito dias depois”; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade cristã no domingo, na casa de um dos membros da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado e de quem dedicou sua vida para servir e amar: “Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’ (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé: Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Senhor, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. 

Ainda chamamos a atenção para mais um detalhe que não pode passar despercebido: diz o evangelista que Tomé era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato, e os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Isso significa um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos e muitas videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte da maioria dos apóstolos. Os novos cristãos da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado pelo Espírito que ele transmite. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como características; sem esses traços, o Ressuscitado não está ocupando o seu lugar central.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho segundo João: Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v. 31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, questionada pela comunidade devido à negação e outras incoerências; e também para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. O Senhor Ressuscitado insiste incansavelmente para recuperar um amor perdido. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 20, 2019

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DA RESSURREIÇÃO – JOÃO 20,1-9



 


O evangelho que a liturgia propõe neste Domingo de Páscoa é João 20,1-9. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do “sepulcro encontrado vazio”, pois a ressurreição em si não é relatada, é indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem no entanto descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: “No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo” (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão “quando ainda estava escuro”; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (cf. Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal “bem de madrugada” e seu complemento enfático “quando ainda estava escuro” significam muito mais que um dado cronológico; é o indício da mentalidade da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos, o túmulo, reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: “Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: “Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram” (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (cf. Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra do túmulo removida foi suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala da Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: “Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo” (v. 3). Continuando, diz o texto que “Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo” (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (cf. 19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado. Os personagens anônimos no Evangelho segundo João tem a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: “viu as faixas de linho no chão, mas não entrou” (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (cf. Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (cf. Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será recuperado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: “Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão” (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: teorêo), o que significa mais que simplesmente ver; desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração. Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não havia espaço para hierarquia, o que Jesus deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, “viu e acreditou” (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive. Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: “Pedro, tu me amas?” (cf. Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria teve espanto, Pedro fez silêncio, e o Discípulo Amado acreditou logo. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (cf. v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura “não sabemos onde está o Senhor” (v. 2).

A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companhia para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

quinta-feira, abril 18, 2019

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – JOÃO 13,1-15




A liturgia da Quinta-feira Santa propõe, todos os anos, a leitura de João 13,1-15, texto que narra o episódio do lava-pés. Essa cena é exclusivo do Evangelho segundo João e, certamente, é uma das passagens mais significativas de todo o Novo Testamento. Desde os primeiros séculos, tem marcado o cristianismo, recebendo diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um texto comprometedor, pois mostra que, no ápice da sua existência terrena, Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. A localização do texto e o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: esse episódio serve para delimitar a divisão clássica do Evangelho segundo João em dois livros, “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21), e faz João introduzir a narrativa da paixão com um gesto tão marcante de Jesus.

Apresentamos uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A princípio, pode nos causar espanto a diferença entre João e os demais evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao contrário dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que dedicam poucos versículos à ceia, João dedica nada menos que cinco capítulos: 13, 14, 15, 16 e 17. Ao longo desses capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus, ministrada com gestos e palavras, numa espécie de testamento, cujo tema central é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na descrição da traição de Judas (cf. 13,18.17.26.27.30). Essa ausência de referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já havia apresentado em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães” (cf. 6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto apresentando como o “pão da vida” (cf. 6,26-66). Por isso, já não havia mais necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita. O texto que a liturgia propõe é a primeira parte do longo relato da ceia.

O texto começa com um indicativo teológico-temporal importante: “Antes da festa da páscoa” (v. 1a). O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A páscoa de Jesus não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois dias depois pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade, está caduca e vencida. Na páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova páscoa, subversiva, por sinal; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

Ao longo de todo o Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à “hora de Jesus” (cf. 2,4; 12,23). Pois bem, essa hora chegou: “sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora” (v. 1b). É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora transformado em casa de comércio (cf. Jo 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro culto: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim”.  “Amar até o fim” significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo, o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade: o amor-serviço.

Continuando, diz o evangelista que “Estavam tomando a ceia” (v. 2a). A ceia não representa apenas o consumo de alimentos, mas significa comunhão e intimidade, sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão. Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e transparência; por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da traição de Judas (cf. v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles “amados até o fim”; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se aliou ao sistema dominante; o evangelista é enfático nesse sentido: “o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus” (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado e cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das injustiças, está permitindo que o “diabo seja posto em seu coração”.

A oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus começou a se materializar quando ele “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura” (v. 4). Certamente, foi grande o espanto e a curiosidade gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição, o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado de uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto ensina que na comunidade cristã o serviço prevalece sobre o rito.

Na sequência, o texto diz o que Jesus fez após deixar de lado o manto e pôr-se em atitude de serviço: “Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v. 5). Assim como os leitores ainda hoje ficam perplexos com a descrição dessa cena, muito mais ficaram os discípulos que estavam com Jesus. Aqui devemos considerar o ambiente e a situação histórica na época: lavar os pés antes das refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo, porque as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, sobretudo nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, sentava-se em almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida. Por isso, lavar os pés antes das refeições era uma exigência básica de higiene.

O lava-pés era também um gesto de hospitalidade e acolhida: ao receber uma visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés. A grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: no cotidiano, esse papel era próprio dos escravos; em ocasiões especiais, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa lavava os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos lhe lavassem os pés. Mas, no dia-a-dia, eram os escravos quem cumpriam esse serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte completamente os valores: sendo ele Mestre e Senhor (cf. vv. 13-14), fez o que era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos discípulos de outrora e de sempre que eles devem estar dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais simples e básicas do dia-a-dia, inclusive nas mais humilhantes, como lavar os pés.

É claro que houve reação dos discípulos à atitude de Jesus. O primeiro a protestar foi Simão Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés” (v. 8). Ora, para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel”, deve mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de poder. A reação de Pedro revela também a resistência dos oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e chefes, e acabou naturalizando essas condições; Jesus com suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e solidário.

O outro motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de Jesus: se o mestre lava os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: “Jesus respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo” (v. 8b). Aceitar um mestre servo e se fazer servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (v. 9). Com essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter que servir ao próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, ele estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que essa implica.

Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: “Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo” (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar à mesa e servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de classes na comunidade, porque todos são iguais: o que senta à mesa, serve, e o que serve, senta à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade. As divisões hierárquicas não tem espaço na comunidade cristã, porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor.

Para os discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema, um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao invés dos romanos, que fossem eles, os discípulos do Messias, que controlassem a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, impostos, divisões de classe e uso da violência quando a estabilidade estivesse ameaçada. Até os últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu. Por isso, Jesus dedicou tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de uma nova ordem, partindo do seu exemplo: “portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (vv. 14-15).

Jesus em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a páscoa da subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 13, 2019

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE RAMOS – LUCAS 22,14 – 23,56 (ANO C)





Todos os anos, na liturgia do domingo de ramos, faz-se a leitura de uma das narrativas da paixão de Jesus. Neste ano, temos a oportunidade de ler e refletir a partir do relato de Lucas. Pela sua extensão, a liturgia salta alguns versículos, propondo a leitura à partir do relato da última ceia, e terminando com o sepultamento: Lc 22,14 – 23,56; mesmo assim, a leitura proposta continua longa, totalizando 113 versículos; essa longa extensão, obviamente, nos impede de fazer um comentário pormenorizado de cada versículo. Por isso, procuraremos colher a mensagem global do texto e, na medida do possível, enfatizar alguns aspectos específicos de Lucas, já que é o evangelista que mais apresenta particularidades, em relação aos demais sinóticos (Marcos Mateus).

Os relatos da paixão e morte de Jesus constituem o núcleo de base da redação dos evangelhos. Embora o nosso foco nesse ano seja especificamente o relato de Lucas, os aspectos introdutórios que abordaremos valem também para os demais evangelhos. As primeiras páginas escritas dos livros que hoje conhecemos como evangelhos, foram exatamente as narrativas da paixão e morte de Jesus. Como a catequese e a vida litúrgica das primeiras comunidades giravam em torno do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu respeito, tipo: “Como ele viveu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?”. Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a morte de Jesus, pois só ressuscita quem passa pela morte. Logo, era necessário contar como Jesus morreu.

Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas quanto dos líderes religiosos judeus, a morte se tornava cada vez mais presente nas comunidades, e o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de perigo. Para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. Para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada melhor que reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua fidelidade aos propósitos do Pai e sua resistência. Os evangelhos, enquanto livros, surgiram, portanto, como resposta às dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início com a pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de partida do evangelho escrito.

Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, no caso de Lucas desde o anúncio do nascimento de Jesus, percebemos que o relato da paixão que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas vigentes, político e religioso. Logo, seu desfecho final foi o rechaço da parte desses sistemas. Durante toda a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não aceitavam: o amor ao próximo, a justiça, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a acolhida às mulheres e excluídos em geral, e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces, pelos sistemas que não compactuavam com essa mensagem. É importante perceber que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi predestinação, nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua obediência e fidelidade estava toda voltada para o Pai do céu.

O texto que estamos lendo situa Jesus com seus discípulos em Jerusalém, para onde tinham ido celebrar a páscoa, a festa dos judeus por excelência. Jesus é condenado à morte nessa cidade; ao dirigir-se para lá, Jesus já tinha consciência do que iria acontecer, pois ele mesmo tinha advertido durante a viagem que, historicamente, “Jerusalém mata os profetas e apedreja os que foram enviados” (Lc 13,34); como ele pertencia a essas duas categorias, sua condenação era esperada. Na verdade, podemos dizer que, em Jerusalém, Jesus recebe a sentença, mas a sua condenação começou ainda em Nazaré, na sinagoga, quando se apresentou como “ungido, portador do Espírito do Senhor para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (cf. Lc 4,18-30). Sua morte trágica, portanto, foi consequência de uma inteira existência marcada por uma opção radical pelas causas do seu Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas consequências.

A páscoa, festa em que os judeus faziam memória da libertação da escravidão do Egito, tinha como ponto alto a ceia pascal, na qual comia-se o cordeiro imolado, símbolo da festa. Ciente de que era a sua última, estando à mesa com os discípulos (cf. Lc 22,14-20), Jesus mesmo se apresenta como cordeiro, doando a sua existência. Ele diz que “desejou ardentemente comer aquela ceia” (Lc 22,15); essa expressão significa a sua paixão e zelo para consumar a obra do Pai; é claro que nem ele e nem o Pai desejaram a sua morte, mas essa era uma realidade inevitável, àquela altura, pois em seu ministério tinha colocado em confronto dois projetos: o projeto de vida, idealizado pelo Pai, marcado pela prática constante do amor, e o projeto de morte, sustentado pelas instituições religiosa e política, marcado pelas disputas de poder, pela corrupção, opressão e violência. Por isso, aquela ceia, sendo a última, fora desejada por ele com grande paixão.

Dois fatos marcantes e dramáticos, certamente até mais dolorosos do que a cruz, foram vividos por Jesus logo após a ceia: o anúncio da traição de Judas (cf. 22,21-23), e a disputa por poder pelos discípulos, o que revelava pouca compreensão do que lhes tinha ensinado até então (cf. 22,24-30). Lucas é o único evangelista que mostra Jesus chamando a atenção dos discípulos sobre o perigo da ambição e a sede de poder no contexto da última ceia, e propondo o serviço como resposta. Os outros evangelistas sinóticos fazem isso durante o ministério (cf. Mc 9,33-34; 10,35-45; Mt 20,20-28). Isso revela que o apego ao poder nas estruturas eclesiais é um problema que tem suas raízes ainda nas origens do cristianismo. Isso, obviamente, prejudica a credibilidade e a eficácia do anúncio. Por isso, a recomendação de Jesus para que os discípulos tenham somente ele como exemplo, e não imitem jamais as estruturas de poder e as formas como esse é exercido pelos “reis das nações, chamados de benfeitores” (cf. 22,25). Quando o serviço é substituído pelo poder em uma comunidade, é sinal de que essa se afastou do projeto de Jesus.

Outro fato mais doloroso para Jesus foi, sem dúvidas, a negação de Pedro (cf. 22,31-34.54-60). Também esse fato mostra o quanto os discípulos tiveram dificuldade em assimilar a proposta de vida de Jesus. Mesmo após tantos ensinamentos, durante cerca de três anos, desde o início na Galileia, eles chegaram em Jerusalém ainda sem compreender nem aceitar o destino de Jesus. À debilidade de Pedro, bastou um olhar sincero de Jesus para a sua conversão: “então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. (...). Então Pedro saiu para fora e chorou amargamente” (22,60a.62). Quando o olhar de Jesus é correspondido, a conversão acontece. Esse olhar não foi de condenação, mas de compreensão da fragilidade humana; o choro de Pedro, marcado pelo remorso, é a prova da necessidade constante de conversão no seio da comunidade. Às vezes, a conversão só é exigida de quem vem de fora, esquece-se que é nos membros da comunidade que mais há necessidade, pois são esses os que mais negam a Jesus, quando deixam de reproduzir o seu amor nas relações, na maneira de viver e na confiança ao Pai.

Um dos traços mais característicos de Jesus em seu “retrato” pintado por Lucas é a prática constante da oração. Para esse evangelista, a oração é essencial, por isso, ele diz que todos os momentos importantes da vida de Jesus foram marcados pela oração, começando pelo batismo (cf. Lc 3,21) até a paixão, tanto no monte das Oliveiras (cf. Lc 22,39-46), quanto no processo (cf. 23,34), e até na própria cruz (cf. Lc 23,46). Sua oração durante a Paixão é um reforço dos itens essenciais do Pai Nosso: “Que seja feita a tua vontade” (cf. 22,42); “para não cair em tentação” (cf. 22,46); “perdoa-lhes” (cf. 23,34). Para ser autêntica e eficaz, a oração depende necessariamente de levar em conta a vontade do Pai.

O duplo julgamento de Jesus, um político e outro religioso, ou seja, diante do sinédrio (cf. 22,66) e de Pilatos-Herodes-Pilatos (cf. 23,1-25), mostra a covardia e a hipocrisia da união das forças hostis quando tem um inimigo em comum, pois os poderes romano e judaico não se suportavam. O sinédrio, órgão jurídico máximo do judaísmo, o acusa de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei. Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria inevitável.

O outro traço marcante de Jesus que Lucas evidencia ao longo de toda a sua obra, a misericórdia, também é destacada no drama da paixão. Se ele veio ao mundo para trazer anunciar a Boa-Nova, veio para manifestar o amor do Pai, isso o fez até as últimas consequências, amando e perdoando. Pede perdão ao Pai pelos seus algozes (cf. 23,34), e faz da cruz um sinal de conversão e salvação. Foi crucificado entre dois malfeitores, pois não sabemos se eram ladrões como transmitiu a tradição, poderiam também ser assassinos, uma vez que o termo empregado pelo evangelista (em grego: κακούργος - kakúrgos) designa o bandido em geral; da cruz, ele continua a salvar. Aqui, merece destaque mais uma particularidade de Lucas: é típico dele apresentar dois personagens juntos com comportamentos opostos: Marta e Maria (cf. 10,38-42), o pobre Lázaro e o rico avarento (cf. 16,19-31), o fariseu e o publicano (cf. 18,9-14). Ele repete essa técnica literária com os dois malfeitores crucificados: um deles, repete o discurso das autoridades e da maioria, e escarnece de Jesus; o outro, percebe que Jesus está sendo injustiçado e vê n’Ele a possibilidade de salvação, por isso, suplica-lhe: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino” (23,42). A esse, Jesus dá a mais preciosa das garantias: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso” (23,43).

Para quem acredita em Jesus e aceita compartilhar com ele a sua vida, a salvação é sempre um acontecimento do presente, do “hoje”, uma palavra cara para a teologia de Lucas, desde o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores (cf. 2,11); na sinagoga de Nazaré, a Escritura se cumpriu “hoje” (cf. 4,21), a salvação entrou “hoje” na casa de Zaqueu (cf. 19,9). Portanto, a salvação não é uma realidade futura, mas é sempre atual; se salva quem faz comunhão com Jesus hoje, da situação existencial. Para o malfeitor crucificado, a salvação aconteceu em um momento até inesperado. O importante para o evangelista e para nós é que da manjedoura até a cruz, a vida de Jesus foi salvar, fazer o bem, como dirá Pedro em Atos dos Apóstolos (cf. At 10,38). Salvar, acolher e amar é fazer a vontade do Pai; por isso, na cruz, sofrendo dores, o último grito de Jesus é de confiança no Pai, sabendo que lhe foi fiel até as últimas consequências: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (23,46). Certamente, o diálogo salvífico com o malfeitor ajudou Jesus dar o seu último grito com mais convicção ainda, sabendo que até ali, a vontade do Pai estava sendo feita, não porque o seu Filho único estava morrendo, mas porque até morrendo, esse Filho salva.

Para o sepultamento, entra em cena um novo personagem, surpreendente até, José de Arimatéia, membro do sinédrio. É interessante esse detalhe, pois fora o sinédrio, o principal responsável pela condenação de Jesus; porém, mesmo ali tinha pessoas boas. Segundo Mateus, esse homem se tornou até discípulo de Jesus (cf. Mt 27,57); isso mostra que as generalizações são sempre perigosas; ninguém pode ser julgado pelo grupo ou movimento ao qual pertence. José de Arimatéia alivia o drama, dando sepultura digna para Jesus (cf. 23,50-53), quando era costume deixar os condenados pregados na cruz, sofrendo até morrer e, depois de mortos, ainda continuavam crucificados até serem devorados pelas aves de rapina. A cruz era uma pena tão cruel, que quem passava por ela não tinha direito sequer à sepultura; por isso, o local da crucifixão se chamava “lugar da caveira”, pois era um ossuário a céu aberto.

Por último, recordamos a presença das mulheres, também uma categoria por quem Jesus tinha grande simpatia no evangelho de Lucas. As mulheres são as pessoas mais perseverantes em todo o drama da paixão (cf. 23,55) e, por isso, serão as primeiras testemunhas da ressurreição. Enquanto os discípulos saem de cena com medo, muito cedo, o último a aparecer foi Pedro, e mesmo assim chorando, as mulheres perseveram até o fim, são as mais solidárias. Na verdade, elas reconheciam o que Jesus tinha feito por elas; até então, nenhum líder popular religioso tinha acolhido tanto às mulheres, promovido a emancipação e as aceitado como discípulas. Jesus deu vez e voz às mulheres, por isso elas não desistiram dele em nenhum momento: resistiram ao drama da paixão, participaram do sepultamento e testemunharão a ressurreição em primeira mão.

Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia ser escondido. A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sábado, abril 06, 2019

REFLEXÃO PARA O QUINTO DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 8,1-11 (ANO C)



A liturgia deste quinto domingo da quaresma dá uma pausa na leitura do Evangelho segundo Lucas, e propõe uma passagem do Quarto Evangelho: João 8,1-11. Esse texto, tão rico e precioso, teve uma história bastante turbulenta, desde as suas origens. Sobre isso, acenaremos brevemente, apenas a nível de contexto. Dando continuidade à temática central da espiritualidade quaresmal – o convite à conversão e sua respectiva necessidade – é importante perceber a dinâmica e a pedagogia de Jesus: ele não faz esse convite à partir de ameaças e ordens, mas revelando com clareza a misericórdia e o amor de Deus, através de palavras e atitudes. No domingo passado, essa misericórdia foi apresentada de maneira ilustrada, através da parábola do pai misericordioso e os dois filhos (cf. Lc 15,11-32). Hoje, a liturgia dá um passo a mais e mostra Jesus revelando a sua misericórdia, que é a mesma de Deus-Pai, com um gesto concreto, salvando uma mulher flagrada em adultério e prestes a ser apedrejada. Isso dá credibilidade ao seu ensinamento, pois mostra que ele viveu e praticou tudo o que ensinou.

Antes de olharmos diretamente para o texto, fazemos algumas breves considerações, a nível de contexto. Começamos pelo amplo debate criado ao longo da história da interpretação, sobre a origem e a posição desse texto no Evangelho segundo João. Nos quatro primeiros séculos, esse texto foi omitido, por ser considerado muito perigoso; isso se comprova pela sua ausência nos manuscritos da época. Ora, o adultério era um dos pecados mais abomináveis, tanto no judaísmo quanto no cristianismo das origens; na maioria das vezes, o perdão não era concedido às mulheres que praticavam; os homens, sempre conseguiam uma saída. Por isso, imaginavam não ser prudente mostrar Jesus perdoando esse tipo de pecado. O perdão de Jesus a uma mulher adúltera, poderia ser visto como incentivo a essa prática pelos líderes das primeiras comunidades, e uma relativização do pecado; a liderança das comunidades, por sinal, era exercida por figuras masculinas, o que facilitava a marginalização da mulher. Esse texto circulava como uma página isolada, e poucas pessoas tinham acesso a ele. Quando as comunidades chegaram à conclusão de que não poderiam mais escondê-lo, o colocaram no Evangelho segundo João, embora tudo indique que seja um texto originalmente de Lucas; diversos fatores contribuem para isso, principalmente o fato de ser Lucas o evangelho da misericórdia, por excelência, e aquele que mais valoriza a figura da mulher, além do vocabulário típico do Terceiro Evangelho. Porém, como nos foi transmitido no Evangelho de João, é a partir dele que devemos lê-lo.

Jesus se encontrava em Jerusalém, participando de uma das grandes festas dos judeus, a festa das tendas, com duração de uma semana (cf. Jo 7,2.14.37; 8,2). Durante o dia, ensinava no templo, e à noite se retirava para dormir fora da cidade: “Jesus foi para o monte das Oliveiras” (v. 1). No dia seguinte, “De madrugada, voltou de novo ao templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v. 2). A madrugada significa o rompimento das trevas, a aurora de um novo dia; nos evangelhos, essa expressão é um dado teológico, mais que cronológico; é sempre um aceno à ressurreição; é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio, no domingo da ressurreição (cf. Lc 24,1); portanto, o episódio que a liturgia propõe hoje é uma cena de ressurreição, é um texto pascal: a mulher flagrada em adultério, prestes a ser apedrejada, faz uma experiência de vida nova ao ser confrontada com a misericórdia, o perdão e o amor de Jesus.

Durante as festas, iam pessoas de todas as partes da Palestina para Jerusalém; era uma oportunidade para os pregadores itinerantes apresentarem suas doutrinas e versões na interpretação da Lei; esses se espalhavam pelos vastos átrios do templo, e os peregrinos iam se amontoando em círculos ao redor deles, conforme a curiosidade e a eloquência de cada pregador. Como a pregação de Jesus era sempre polêmica e crítica, talvez conseguisse juntar mais ouvintes que outros pregadores, pois ele não tinha medo de desmascarar a hipocrisia dos dirigentes, principalmente as autoridades religiosas da época. Ele dizia o que muita gente queria dizer, mas não dizia por medo de repressão. Isso, obviamente, fazia também com que as autoridades lhe vissem como suspeito, aumentando a vigilância sobre ele.

Enquanto ensina, Jesus é repentinamente interrompido: “os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles” (v. 3). Os sujeitos da ação são os tradicionais adversários de Jesus: mestres da Lei e fariseus, os fiéis observadores dos preceitos da Lei em seus mínimos detalhes, os mesmos que no domingo passado tinham criticado Jesus por acolher e comer com os pecadores (cf. Lc 15,2). Esses dois grupos são a síntese do fechamento e do conservadorismo na época de Jesus; pregavam um Deus punitivo, exigente, vingativo e, por isso, se escandalizavam com o Deus amoroso de Jesus. Ao colocarem a mulher no centro, eles a expõem à máxima humilhação. No Antigo Testamento, o adultério foi usado como sinônimo de idolatria, o principal pecado de Israel. Por isso, a lei era tão rigorosa com esse pecado. Na época de Jesus o adultério estava entre os piores pecados, comparável ao assassinato. Como os casamentos eram verdadeiros negócios, decididos pelos pais, às vezes os noivos só se conheciam no dia do próprio casamento, isso tornava o adultério uma prática bastante comum, embora perigosa, pois as relações não eram motivadas pelo amor, mas pelos interesses econômicos das famílias; por isso, havia muita vigilância, principalmente, sobre as mulheres.

Como representantes de uma religião severa e excludente, os mestres da Lei e os fariseus expõem somente a mulher. Eles tinham clareza do que a Lei prescrevia, mas pedem uma pena parcial, expondo e ridicularizando a mulher, e silenciando sobre o homem que, certamente, fora flagrado junto. Aqui, essa mulher é imagem de todas categorias de marginalizados e marginalizadas, por quem Jesus toma partido. Eles conheciam a sentença prevista: “Disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?”  (vv. 4-5). De acordo com a lei, o apedrejamento era a pena para o adultério quando o casamento ainda estava na primeira fase, a da promessa; porém, essa pena era prevista também para o homem envolvido na relação (cf. Dt 22,23-24). Como diz o próprio texto, o que eles queriam era colocar Jesus em situação embaraçante, pondo-o à prova (cf. v. 6a): se Jesus confirmasse o apedrejamento, estaria negando o seu lado misericordioso e contradizendo a sua pregação até então; se negasse o apedrejamento, estaria transgredindo a Lei de Moisés.

Conhecedor das intenções dos seus adversários, Jesus simplesmente os ignora, com a sua típica ironia: “Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão” (v. 6). Sobre esse gesto inusitado, foram levantadas diversas hipóteses sobre o que Jesus escreveu no chão, algumas até folclóricas. São Jerônimo, por exemplo, acreditava que Jesus escreveu os pecados dos acusadores que estavam com pedras na mão, para deixá-los envergonhados e constrangidos. Ora, se estavam no interior do templo, o piso ali não era de barro ou areia, mas de pedras; logo, não tinha como escrever nada ali. Portanto, qualquer hipótese sobre o conteúdo que Jesus escreveu nessa cena, carece de fundamento e de sentido. O gesto de Jesus é, além de irônico, denunciador. Ele olha para o chão por indiferença aos seus acusadores, enquanto pensa na atitude e na resposta adequada que dará. Não escreve nada, apenas simula uma escritura em pedra denunciando a rigidez da Lei por eles observada: uma lei escrita em tábuas de pedra, inflexível e dura como eram os corações deles.

Com a sua ironia e indiferença, Jesus deixava seus interlocutores impacientes: “Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Ao levantar-se para responder, Jesus dá um tom de solenidade à situação e, finalmente, chama para si a responsabilidade. Tendo pensado por um tempo, sua resposta é surpreendente: não toma posição sobre o caso, propriamente, não discute o pecado da mulher, mas convida cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Com essa proposta, Jesus desmascara e desarma os acusadores da mulher, e os falsos moralistas de todos os tempos. É uma resposta que não necessita de contra-resposta nem de novas perguntas, mas apenas da coragem de cada um olhar para si, para sua consciência. Certamente, deixou a todos em silêncio e pensativos, admirados e sem reação. Por isso, Jesus repete a ironia “E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão” (v. 8). Na primeira vez, simulou a escritura no chão enquanto ele mesmo pensava na sua resposta; dessa vez, faz a simulação enquanto aguarda uma atitude ou resposta dos acusadores.

Envergonhados, certamente, “eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos; e Jesus ficou sozinho, com a mulher que estava lá, no meio do povo” (v. 9). É interessante perceber a reviravolta na história: o objetivo dos mestres da Lei e fariseus era colocar Jesus em situação constrangedora, “num beco sem saída”; as coisas se inverteram e foram eles que ficaram embaraçados, em situação desconfortável. É provável que tenham saído ainda mais furiosos com Jesus, mas também a eles foi dirigido um convite à conversão. Jesus não os condenou; esse detalhe é importante que seja bem recordado. Jesus deu aos seus ferrenhos adversários uma oportunidade de conversão, convidou-os a um exame sincero de consciência. Não sabemos se houve conversão da parte deles, mas é possível identificar pelo menos dois sinais importantes: a vida da mulher foi poupada, e cada um reconheceu ser pecador, uma vez que nenhum atirou a pedra.  

Percebendo que todos os acusadores saíram, em silêncio, no meio do povo que escutava seu ensinamento antes da interrupção, “Jesus se levantou e disse: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’. Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Então Jesus lhe disse: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (vv. 10-11). É a primeira vez que a mulher acusada tem oportunidade de falar, e é Jesus quem lhe dá essa oportunidade. Essa voz da mulher é a sua própria vida recuperada. Jesus sabia que ninguém a tinha condenado; faz a pergunta apenas para torná-la protagonista. Todo ser humano tem direito e liberdade de expressão. Toda voz deve ser ouvida. Diante da fúria dos acusadores, essa mulher sentiu-se morta, com suas horas contadas. Diante de Jesus, ela se sente uma pessoa digna, pois sabe que tem quem lhe escute.

As palavras finais de Jesus constituem o ápice da cena e o motivo para esse texto ter sido considerado tão perigoso: “Eu também não te condeno”. Para uma religião segregadora, excludente e moralista, um Deus que não condena se torna um perigo e um problema, pois tira também da religião o direito de condenar. Não dá para pregar o Deus de Jesus fazendo ameaças, nem promovendo a violência ou destilando ódio. Para a religião praticada e proposta por Jesus, essa é uma das páginas mais consoladoras. Mais uma vez, se repete o esquema da parábola do pai misericordioso e os dois filhos: assim como o Pai não condenou o filho, Jesus não condena a mulher; a conversão vem depois: “vai e não voltes a pecar!”; não se trata de uma ordem ou imposição, mas de um encorajamento. Tendo se sentido acolhida e compreendida, talvez pela primeira vez em sua vida, com certeza aquela mulher se converteu.

Sem realizar nenhum sinal extraordinário, Jesus salvou uma vida. Apenas falando, Jesus fez aquela mulher passar da morte à vida; da fúria dos acusadores à ternura de Deus. O impacto da palavra de Jesus transforma situações. É essa Palavra que precisa ser ouvida, substituindo regras e preceitos, para mudar todas as estruturas perversas que impedem o triunfo da vida digna. Por isso, como afirmamos no início, o evangelho de hoje é uma cena de ressurreição, é um texto pascal. Que todas as comunidades possam, festivamente, celebrar a alegria de conhecer um Deus que não condena ninguém!


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


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