sábado, março 30, 2024

DOMINGO DA PÁSCOA DO SENHOR - JOÃO 20,1-9

 


Ao contrário da Vigília Pascal, cujo evangelho muda a cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, no Domingo da Páscoa a liturgia mantém o mesmo evangelho para todos os anos. Trata-se de 20,1-9. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio», pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é um acontecimento indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das trevas.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando, diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.

Os personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo), o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração.

Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A VIGÍLIA PASCAL – MARCOS 16,1-7 (ANO B)


Enquanto o evangelho do domingo da ressurreição é o mesmo para todos os anos (Jo 20,1-9), o da Vigília Pascal muda de acordo com o ciclo litúrgico vigente. Isso quer dizer que, a cada ano, a liturgia propõe a leitura de um dos relatos da ressurreição de Jesus a partir de um dos evangelhos sinóticos (Mt – Mc – Lc). Neste ano, por ocasião do ciclo B, temos a oportunidade de ler o relato de Marcos – Mc 16,1-7. Na verdade, mais do que relatos da ressurreição, os evangelhos trazem cenas que retratam a experiência das mulheres diante do túmulo vazio na madrugada ou início da manhã do primeiro dia da semana, adotado pela tradição cristã como o Domingo de Páscoa. A ressurreição em si, apesar de ser o evento fundante da fé cristã, não chega a ser narrada e nem descrita por nenhum dos evangelhos. Por isso, o mais correto é chamar esses textos de relatos do túmulo vazio. De fato, nenhum evangelista conta como Jesus ressuscitou e deixou a sepultura, nem o momento em que isso aconteceu. O que todos os evangelhos contam são indícios, anúncios da ressurreição e experiências de encontro com a pessoa do Ressuscitado. Nesse sentido, o Evangelho de Marcos, enquanto o mais antigo dos quatro, apresenta-se também mais atípico, pois teve sua redação original concluída com o silêncio das mulheres (Mc 16,8) e, por isso, sem o relato de nenhuma aparição. As referências a algumas aparições do Ressuscitado que se encontram na forma atual fazem parte de um epílogo, acrescentado posteriormente (Mc 16,9-20), quando os outros evangelhos já estavam concluídos, com a finalidade de corrigir a impressão de incompletude que passava, ao ser comparado aos demais.

O relato lido hoje, obviamente, possui versão paralela nos outros dois sinóticos (Mt 28,1-10; Lc 24,1-8), e é por isso que se pode fazer comparações com eles. Possui certo paralelismo também com o relato de João (Jo 20,1-9), embora com menos pontos em comum. É importante recordar que os relatos do túmulo vazio – em todos os evangelhos – fazem parte da seção narrativa que deu origem aos próprios evangelhos: as narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Foi a partir destas narrativas que os evangelhos ganharam corpo como livros. Isso indica a importância que esses textos tiveram para as comunidades do cristianismo nascente. Se trata, portanto, de textos fundantes. Posteriormente, cada evangelista, de acordo com as necessidades catequéticas e teológicas de suas respectivas comunidades, e suas próprias habilidades literárias, desenvolveram a história de Jesus, partindo de fontes orais e escritas, anteriores a eles. Mateus e Lucas, por exemplo, conseguiram reconstruir essa história da ressurreição até o nascimento, enquanto Marcos parou no batismo e testemunho de João Batista. Porém, a pregação inicial se fundava no anúncio de que Jesus Cristo, o Messias e Filho de Deus, morreu na cruz e ressuscitou. Por isso, a escrita dos evangelhos começou pelo final, ou seja, pelos relatos da paixão, morte e acenos à ressurreição. Desde quando Marcos foi reconhecido como o primeiro Evangelho a ser escrito, seus episódios passaram a ser considerados fontes para os demais, e aquilo que parecia incompletude se tornou sinônimo de originalidade, profundidade e riqueza teológica. É, portanto, a partir dessa perspectiva que devemos olhar o evangelho desta noite.

Comecemos, então, a olhar para o texto e logo perceberemos importantes particularidades recordadas pelo evangelista. Eis o primeiro versículo: «Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus» (v. 1). Como se sabe, na tradução judaica o sábado começa ao pôr do sol do dia anterior e termina ao pôr do sol do sábado mesmo. Como o sepultamento de Jesus foi feito às pressas, no final da tarde do dia anterior ao sábado, não houve tempo suficiente para fosse acontecesse com todos os elementos tradicionalmente utilizados, pois obrigatoriamente deveria ser concluído antes que começasse o sábado. E durante o sábado, era proibido realizar qualquer atividade, inclusive tocar um cadáver. Por isso, as mulheres não tiveram tempo sequer de comprar os perfumes necessários para ungir o corpo de Jesus. Somente quando passou o sábado, provavelmente ao anoitecer do próprio sábado, pois a partir das dezoito horas já começava o dia seguinte, e o comércio de Jerusalém reabria nesse horário, mesmo que por pouco tempo, as mulheres puderam comprar os perfumes para levaram ao túmulo ao amanhecer do dia seguinte. O evangelista cita o nome de três mulheres, mas certamente o grupo era maior, inclusive, a própria mãe de Jesus deveria fazer parte da comitiva. Pelos nomes citados, são as mesmas que tinham observado a crucificação, juntas com outras que seguiam Jesus e o serviam desde o começo da sua missão na Galileia (Mc 15,40-41). Elas são exemplo de fidelidade, perseverança e solidariedade, ao contrário dos discípulos homens, que abandonaram Jesus e fugiram, logo no momento da prisão (Jo 14,50). Elas não poderiam esquecer a mensagem de Jesus e o que ele fez por elas, inclusive, aceitando-as no seu discipulado, quando era expressamente proibido pelo judaísmo da época. Num mundo dominado por homens, com tudo pensado para os homens, Jesus deu voz às mulheres, tornando-as protagonistas de suas próprias vidas e de uma nova história.

Tendo, portanto, passado o sábado, e já tendo comprado os perfumes, as mulheres já estavam decididas sobre o que fazer e não tinham tempo a perder. Por isso, o evangelista afirma que, «bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol, elas foram ao túmulo» (v. 2). O primeiro dia da semana, obviamente, é o domingo. O dia do recomeço de sempre, mas a partir daquela ocasião deixou de ser o dia de um simples recomeço e passou a ser o dia do novo início de tudo. Início de uma nova história, de um novo mundo com a humanidade recriada. Certamente, ao nascer do sol daquele dia, as mulheres que foram ao túmulo ainda não tinham consciência do que estava acontecendo, mas a perseverança e solidariedade delas levou-as à descoberta. Foram ao túmulo para embalsamar o cadáver de um homem que tinha mudado o sentido da vida delas, com uma mensagem libertadora, humanizante e emancipatória. Quando tomam a iniciativa de irem sozinhas, logo cedo, ao túmulo, elas já demonstram que o mundo e a vida delas não era mais o mesmo de antes de seguirem Jesus. O seguimento do Nazareno já tinha transformado a vida delas para sempre, antes mesmo de qualquer indício de ressurreição corporal.

Elas estavam decididas a render homenagem a Jesus, custasse o que custasse. Até se preocuparam como fazer: «E diziam entre si: “Quem rolará a para nós a pedra da entrada do túmulo?”» (v. 3). Esse dado é exclusivo de Marcos. Os outros evangelistas, que tiveram Marcos como fonte, não quiseram incorporá-lo aos seus relatos. É um dado que reforça a perseverança das mulheres e o quanto a ressurreição estava distante de seus horizontes. Em praticamente todas as correntes do judaísmo da época, exceto entre os essênios, havia a crença na ressurreição no último dia, no final dos tempos. Uma ressurreição como a de Jesus estava fora de qualquer cogitação, embora ele tivesse anunciado várias vezes aos seus discípulos e discípulas (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34; 14,28). A preocupação das mulheres com a pedra do túmulo ressalta que elas queriam vê-lo a todo o custo e derramar os perfumes sobre seu corpo. Mesmo sem perspectiva de ressurreição, ainda, elas já estavam fazendo memória de Jesus. Isso quer dizer que, ressuscitando ou não, Jesus já tinha transformado a vida delas. Elas compreenderam sua mensagem como semente de um mundo novo, e nunca mais olhariam para o mundo com a mentalidade de antes, por isso estavam dispostas a enfrentar desafios sem recuar, mesmo conscientes do tamanho das pedras que teriam pela frente.

Ao chegar ao túmulo, certamente, se surpreenderam com o que viram, pois «Era uma pedra muito grande. Mas quando olharam, viram que a pedra já tinha sido retirada» (v. 4). A referência ao tamanho da pedra visa enfatizar a distância entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, entre a vida e a morte. Era uma distância muito grande, difícil de ser superada. A ressurreição é o fim dessa distância. Na verdade, é o fim da distância entre o mundo de Deus e a humanidade, e as mulheres foram as primeiras testemunhas desse fim, mesmo que as coisas ainda não estivessem tão claras para elas. Elas viram que a pedra fora retirada. Quer dizer que muita coisa já aconteceu e elas foram as primeiras beneficiárias destas coisas, pois o obstáculo temido por elas desapareceu: a grande pedra, certamente pesada, já tinha sido retirada. Ansiosas como estavam para ver o corpo morto de Jesus, vendo que o túmulo estava aberto, pois a grande pedra tinha sido retirada, elas entraram e, certamente, tiveram uma grande surpresa: «Entraram, então, no túmulo e viram um jovem, sentado ao lado direito, vestido de branco» (v. 5). Ora, entraram no túmulo para ver um cadáver e render-lhe as últimas homenagens, mas não o encontraram. O que encontraram foi um jovem vivo, sinal de esperança e vida nova. Tudo muito surpreendente. No lugar da morte, encontraram vida. Ao invés de um corpo próximo de entrar em estado de decomposição, pois os judeus imaginavam que a decomposição começava a partir do quarto dia após o sepultamento, as mulheres encontram um sinal de vida nova e vigor, simbolizada pelo jovem. Contudo, não encontraram o que queriam: o corpo de Jesus. E, por isso, devem ter sentido tristeza também.

O jovem vestido de branco indica tratar-se de um mensageiro de Deus. A veste branca simboliza o mundo de Deus, de onde veio o jovem. E eis que ele apresenta a mensagem trazida de Deus, antes de tudo, encorajando as mulheres que, naturalmente, ficaram desconcertadas diante do que estavam vendo: «Mas o jovem lhes disse: “Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui» (v. 6). O imperativo «não vos assusteis» é típico dos relatos de manifestação de Deus – teofanias. Visa tranquilizar o ser humano. Não é tanto uma resposta ao medo, mas ao espanto, à admiração causada. E, geralmente, a reação humana diante da manifestação de Deus é o espanto e o temor reverencial, mais do que o medo mesmo. Após tranquilizar as mulheres, o jovem lhes faz uma pergunta retórica, pois já sabia a resposta. Ele sabia a quem as mulheres procuravam: o corpo de Jesus Nazareno, que foi crucificado. Na sequência, como resposta à pergunta retórica, é feito o grande anúncio: Ele ressuscitou, por isso não poderia mais estar ali. Esse anúncio é muito significativo, não apenas por constituir o anúncio fundamental da fé cristã, mas também pelo modo como é feito: quem ressuscitou foi Jesus Nazareno, o crucificado. Com isso, o evangelista ensina que a comunidade não pode separar o anúncio da ressurreição de Jesus da memória da sua vida. O Ressuscitado é Jesus Nazareno, que fora crucificado. As marcas da cruz foram incorporadas à identidade do Ressuscitado.

É muito justo que as mulheres tenham sido as primeiras a receber tal anúncio, pois elas viram a crucificação, enquanto os discípulos homens tinham fugido há bastante tempo, logo no momento da prisão. As mulheres perseveraram, assistiram tudo, viram Jesus morrer na cruz, sofreram com ele. Certamente, elas sentiram muitos sonhos serem crucificados com Jesus, sobretudo o sonho de um mundo novo, com justiça, paz, igualdade e inclusão. A ida delas ao túmulo já demonstrava que o mundo para elas não voltaria mais a ser como antes do seguimento de Jesus. Mas o anúncio da ressurreição ensina que o caminho estava aberto para continuarem o projeto de libertação começado, quer dizer, o Reino de Deus plantado há pouco tempo, continuaria germinando na história. Por isso, elas são convidadas a contemplar o lugar onde Jesus foi colocado: «Vede o lugar onde o puseram» (v. 7a), não como prova material da ressurreição, pois não há necessidade, mas como motivação para não buscarem mais sinais de morte, pois o Reino de Deus, que coincide com a vida em abundância, encontra-se em plena edificação. Logo, é para os sinais de vida que se deve olhar. Portanto, faz parte da ironia narrativa do evangelista o convite o ver o sepulcro como o lugar para onde não se deve mais olhar. O jovem vestido de branco estava ali de passagem, apenas para fazer esse anúncio, dando um recado de Deus. Daquele momento em diante, o sepulcro passaria a ser coisa do passado.

E, finalmente, as mulheres receberam o verdadeiro recado de Deus, o Pai, e do Ressuscitado: «“Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente na Galileia”» (v. 7b). Como se vê, elas recebem a missão de levar um anúncio capaz de recompor a comunidade do discipulado de Jesus, da qual tinham restado somente elas, após o drama da cruz. Da missão delas depende a unidade e a reunião dos que se tinham dispersado com a prisão de Jesus. Temos aqui um verdadeiro mandato apostólico, missionário. As mulheres são as primeiras a receber a ordem “Ide anunciar”! O anúncio é dirigido a todos os discípulos dispersos, com ênfase para Pedro. Certamente, a referência explícita a Pedro não significa um privilégio, mas uma necessidade. Depois de Judas, foi o mais covarde diante do que Jesus estava passando. Por três vezes, negou conhecer Jesus. Por meio das mulheres, ele vai receber o anúncio que o Ressuscitado o espera na Galileia. Esse anúncio pedindo que os discípulos retornem à Galileia retoma uma predição do próprio Jesus, ainda no início da paixão, no monte das Oliveiras. Lá, ele disse que todos se dispersariam, mas ele iria à frente deles, após a ressurreição, para reencontrá-los na Galileia (Mc 14,2-28). Conhecedor das limitações e fragilidades humanas, ele não condenou os discípulos que lhe tinham abandonado. Quis reuni-los de novo, não para fazer uma prestação de contas com acusações e condenações, mas para renovar a confiança e reconfirmá-los na missão. Ele nunca desiste do ser humano. Por isso, o encontro com ele, ressuscitado, na Galileia visa a reconciliação.

O retorno que os discípulos devem fazer a Galileia visa também, além da reconciliação, o reencontro de todos com as motivações originárias do seguimento. Nesse sentido, retornar à Galileia se torna um verdadeiro imperativo. «“Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito”» (v. 7c). Ora, na perspectiva de Marcos, Jerusalém, como centro do poder, estava completamente corrompida. Lá, o Reino de Deus não floresceria, pois tinha se tornado um lugar de morte, sobretudo com o conluio do poder religioso com o político, do qual Jesus mesmo foi vítima. Por isso, quem permanecesse lá não veria o Ressuscitado. O retorno à Galileia significa o reencontro com os fundamentos da vocação e da missão, sobretudo para os discípulos que se dispersaram. Eles precisavam se reencontrar com Jesus e se reencantarem com o seu Evangelho. Precisavam recomeçar, por isso, era necessário um encontro na Galileia, onde tudo começou. É também um aceno que o mundo novo gerado pela ressurreição de Jesus começa pelas periferias, como foi o começo do seu ministério. Como o Ressuscitado é o mesmo Nazareno que fora crucificado, para vê-lo, portanto, é necessário ir à Galileia. Obviamente, mais do que um lugar físico, a Galileia aqui é toda possibilidade e ocasião de encontro com o Ressuscitado e de promoção da vida. Em todo o mundo há Galileias a serem descobertas e reconhecidas.

Que a Páscoa imprima em nós o desejo de participar do mundo novo oferecido pela ressurreição de Jesus e renove nosso compromisso de lutar pela edificação do seu Reino vivendo a fraternidade, a justiça e o amor. No mundo novo, os últimos se tornam primeiros, como se vê pelo protagonismo das mulheres no primeiro anúncio. A vida venceu. Que possamos manifestar essa vitória vivendo à maneira de Jesus, o crucificado que ressuscitou e, por isso, não está mais no sepulcro. Ele quer estar na vida de cada pessoa, humanizando e libertando. Que nossas comunidades sejam pequenas Galileias, para onde possamos retornar quantas vezes for necessário para nos reecontrarmos com ele e recomeçarmos.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

quarta-feira, março 27, 2024

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – LAVA-PÉS (JOÃO 12,1-15)


A liturgia da Quinta-feira Santa, todos os anos, propõe a leitura de Jo 13,1-15, para a missa da Ceia do Senhor. Esse texto corresponde ao relato do lava-pés, um episódio exclusivo do Evangelho segundo João, que é, certamente, uma das passagens mais conhecidas de todo o Novo Testamento. De fato, desde os primeiros séculos, esse texto tem marcado o cristianismo, recebendo diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um texto comprometedor, pois mostra que, no momento mais decisivo da sua existência terrena, Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. E tanto a localização quanto o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: conforme a divisão clássica do Quarto Evangelho em duas grandes partes – “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21) –, o relato do lava-pés inaugura o “Livro da Glória”, introduzindo a narrativa da paixão de Jesus.

Apresentamos uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A princípio, podemos dizer que chega a causar espanto a diferença entre João e os demais evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao contrário dos sinóticos (Mt, Mc e Lc), que dedicam poucos versículos à ceia, João dedica cinco capítulos: de 13 a 17. Ao longo destes capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus, ministrada com gestos e palavras, em forma de testamento, cujo tema central é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais evangelhos; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na descrição da traição de Judas (13,18.17.26.27.30). Essa ausência de referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já havia feito em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães” (6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto apresentando como o “pão da vida” (6,26-66). Por isso, já não havia mais necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita.

O texto começa com um indicativo teológico-temporal importante: «Antes da festa da Páscoa» (v. 1a). O evangelista não nega o contexto pascal no qual Jesus fez a ceia com seus discípulos pela última vez, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a Páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. Inclusive, o evangelista costumava referir-se à festa da Páscoa com a qualificação “páscoa dos judeus” (2,13; 11,55), distanciando Jesus das instituições de Israel que tinham desfigurado o rosto de Deus. Agora, ele apresenta Jesus próximo da Páscoa, mas da sua própria Páscoa, tornando-a uma festa da vida, como sempre deveria ter sido. Por isso, Jesus celebra a Páscoa doando a sua própria vida. A Páscoa de Jesus, portanto, não exige ofertas nem sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois dias depois da sua pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade, já não tem mais sentido. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na Páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor. Nessa, não há morte, há vida, e vida doada por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova Páscoa, subversiva, por sinal. E é essa Páscoa que a comunidade cristã deve viver e celebrar.

Ao longo de todo o seu Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à «hora de Jesus», anunciando que tudo o que Jesus fazia era preparação para esse momento, e sempre advertia o leitor que ainda não tinha chegado (2,4; 7,30; 8,20; 12,23). Tanto o narrador quanto o próprio Jesus anunciaram a chegada dessa hora. Mais do que uma indicação cronológica, a hora de Jesus é um indicativo teológico, por sinal, um dos mais significativos da obra de João. Essa hora é o cumprimento de todo o projeto de salvação oferecido por Deus, por meio de seu Filho, consumado na cruz e ressurreição. Agora ele mostra que essa hora chegou: «sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai» (v. 1b). É a hora de Jesus retornar ao Pai, após cumprir plenamente sua missão de humanizar e salvar o mundo, por isso é também a consumação da constante glorificação do Pai que ele realizou, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora transformado em casa de comércio (Jo 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro culto: «tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim» (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim”.  “Amar até o fim” significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo, o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade: o amor-serviço.

Continuando, diz o evangelista que «Estavam tomando a ceia» (v. 2a). A ceia para a mentalidade bíblica não representa apenas o consumo de alimentos e bebidas para matar a fome e a sede, mas significa comunhão e intimidade, sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão. Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e transparência; o rito é a própria vida, são tratadas as questões existenciais mais profundas da comunidade, por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da traição de Judas (v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles «amados até o fim»; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se aliou ao sistema dominante. O evangelista é enfático nesse sentido: «o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus» (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela Páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado, se tornado cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das injustiças, está permitindo que o «diabo seja posto em seu coração». O conluio com o poder é sempre um pacto diabólico.

A oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus é concretamente demonstrada quando ele «levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura» (v. 4). Certamente, foram grandes o espanto e a curiosidade gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição, o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado e uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto ensina que na comunidade cristã o serviço deve sempre prevalecer sobre o rito. Em toda a sua vida Jesus demonstrou que veio ao mundo para servir e, ao servir, ele glorificava o Pai, pois a motivação do seu serviço foi sempre o amor, e o Pai o enviou para espalhar amor sobre o mundo. Mas é nessa cena que o serviço amoroso se torna mais forte e até escandaloso, como será demonstrado pela reação de Pedro, mais adiante.

Tendo já deposto o manto e improvisado um avental, na sequência, o texto diz o que Jesus fez: «Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido» (v. 5). Assim como os leitores de hoje ainda ficam perplexos com a descrição dessa cena, muito mais devem ter ficado os discípulos que estavam com Jesus à mesa. Aqui devemos considerar o ambiente e a situação histórica da época. Ora, lavar os pés antes das refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo porque as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, principalmente nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, as pessoas se sentavam em almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida. Por isso, lavar os pés antes das refeições era, acima de tudo, uma exigência básica de higiene.

Sendo uma necessidade básica, o lava-pés tornou-se um sinal de hospitalidade e acolhida, no antigo oriente. Ao receber uma visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés, junto ao copo d’água para beber. A grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: é o sujeito da ação o que causa perplexidade. No cotidiano, eram os escravos quem lavavam os pés dos membros da família e dos possíveis hóspedes. Em certas ocasiões, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa chegava a lavar os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos lhe lavassem os pés. Mas, no dia a dia, eram os escravos quem cumpriam esse serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte completamente os valores e as relações: sendo ele Mestre e Senhor (vv. 13-14), fez o que era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos seus discípulos, de outrora e de todos os tempos, que eles devem estar sempre dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais simples e básicas do dia a dia, inclusive nas consideradas mais humilhantes, como lavar os pés uns dos outros.

É claro que houve reação dos discípulos à atitude revolucionária de Jesus. E o primeiro a protestar, como de costume, foi Simão Pedro: «Tu nunca me lavarás os pés» (v. 8). Ora, para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel” e um Messias glorioso, deve mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de poder. A reação de Pedro revela também as possibilidades de resistência dos oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e chefes; essa mentalidade acaba naturalizando um mundo desigual, contrário aos desígnios de Deus. Jesus com suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e solidário.

O outro motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de Jesus: se o mestre lavar os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: «Jesus respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo» (v. 8b). Aceitar um mestre servo e se tornar servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: «Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça» (v. 9). O exagero da resposta de Pedro revela a sua total incompreensão. Na verdade, com essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta revolucionária de Jesus: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter de servir ao próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, Pedro estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que essa implica.

Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: «Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo» (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Logo, para a mentalidade da época, sentar-se à mesa e, ao mesmo tempo, servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de classes na comunidade, porque todos são iguais: o que se senta à mesa serve, e o que serve senta-se à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade. As divisões hierárquicas não têm espaço na comunidade cristã, porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor. E Jesus realizou as duas coisas como prova que ele não media esforços para cumprir a sua missão e atender às necessidades das pessoas. Com o lava-pés, portanto, Jesus fez uma recapitulação de toda a sua existência neste mundo. Ele veio para servir e, por isso, viveu intensamente servindo.

Para os discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema, um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao invés dos romanos e dos sacerdotes do templo, que fossem eles, os discípulos do Messias, a controlar a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, cobrança de impostos, divisões de classe e uso da violência quando a “ordem” estivesse ameaçada. Até os últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu entre os discípulos. Por isso, Jesus dedicou tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de uma nova ordem, partindo do seu exemplo: «portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz» (vv. 14-15). Temos aqui a instituição do serviço como mandamento para a comunidade de Jesus.

A ordem para que os discípulos «façam a mesma coisa» em relação ao serviço, aqui no Quarto Evangelho, equivale ao «fazei isto em memória de mim» da tradição paulina/sinótica sobre a Eucaristia (Lc 22,19; 1Cor 11,24-25). «Fazer a mesma coisa» que fez Jesus, obviamente, não significa repetir o gesto de lavar os pés uns dos outros, o que já não é uma exigência sanitária dos dias atuais; significa a disponibilidade total para o serviço incondicional, motivado pelo amor, na comunidade cristã. A simples repetição do gesto seria transformá-lo em rito. O lava-pés que a comunidade deve fazer permanentemente é a vivência do amor fraterno que traz, como consequência, a disponibilidade para o serviço gratuito e sem distinção. Para isso, é necessário assimilar o estilo de vida de Jesus, com disposição para «amar até o fim», como ele fez. Sem isso, qualquer coisa que se faça em sua memória não passa de encenação.

Jesus em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a Páscoa da subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, março 22, 2024

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – MARCOS 14,1–15,47 (ANO B)


Todos os anos, na liturgia do Domingo de Ramos, faz-se a leitura de uma das narrativas da Paixão e morte de Jesus. Na mesma celebração, no entanto, se lê também uma das versões da entrada de Jesus em Jerusalém. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, temos a oportunidade de ler e refletir sobre os dois episódios a partir do Evangelho de Marcos. Por questão de espaço e relevância, concentraremos nossa reflexão no relato da paixão, apenas. No entanto, serão feitos acenos ao episódio da entrada de Jesus em Jerusalém, sobretudo na contextualização. O relato da paixão é um texto bastante longo – Mc 14,1–15,47 –, que compreende dois capítulos inteiros, totalizando cento e dezenove versículos, sendo que as comunidades têm a opção de ler a forma abreviada (Mc 15,1-39). Em nossa reflexão, consideraremos o texto completo, embora sua longa extensão não permita um comentário mais pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher o sentido global do texto, destacando alguns elementos específicos considerados mais relevantes, partindo de uma ampla introdução contextualizadora. Não trataremos do episódio da ceia com o abreviado relato da instituição da Eucaristia, embora faça parte do evangelho de hoje e possua grande relevância no quadro da paixão, devido ao destaque que a liturgia da Quinta-Feira Santa já reserva à Eucaristia, embora empregando um texto do Quarto Evangelho. 

Embora o nosso foco neste ano seja especificamente o relato de Marcos, os aspectos introdutórios que abordamos aqui valem também para os demais evangelhos. E iniciamos a contextualização recordando que os relatos da paixão de Jesus constituem o núcleo de base da redação dos Evangelhos. Foi a partir destes relatos que os Evangelhos surgiram enquanto livros. Um famoso teólogo alemão – Martin Kähler (1835-1912) – chegou a afirmar que «os Evangelhos são os relatos da paixão com ampla introdução». É claro que uma afirmação desse tipo possui exageros, mas ajuda a compreender e ilustrar a importância dos relatos da paixão no processo de formação dos Evangelhos e, sobretudo, no fortalecimento da fé das primeiras comunidades cristãs. Ora, como a catequese e a vida litúrgica das comunidades giravam em torno do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu respeito, à medida em que as explicações iam se tornando repetitivas e, consequentemente, insuficientes. Essas dúvidas se traduziam em perguntas como estas: «Como Jesus viveu e morreu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?». Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a morte de Jesus, pois só pode ressuscitar quem antes passa pela morte. Diante disso, surgiu a necessidade de contar como Jesus morreu. Por isso, os relatos da paixão ganharam tanta importância nos primórdios do cristianismo.

Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas quanto das lideranças religiosas do judaísmo, a morte se tornava cada vez mais presente na vida das comunidades, não apenas enquanto tema, mas enquanto realidade e possibilidade concreta, pois o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de perigo. Quando se fala do nome de Jesus, no contexto das primeiras comunidades, compreende-se todo o seu projeto de vida e libertação, ou seja, a sua mensagem. Diante, isso, para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. E, para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada mais adequado do que reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua fidelidade aos propósitos do Pai e a sua resistência. Os evangelhos, enquanto livros, surgiram, portanto, como resposta às dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início com a pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de partida do evangelho escrito.

Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, percebemos que o relato da paixão que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas vigentes, político e religioso e, consequentemente, uma incômoda ameaça aos grupos privilegiados do seu tempo. Logo, seu desfecho final foi o rechaço por parte desses sistemas. Durante a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não priorizavam: o amor gratuito e incondicional ao próximo, a justiça, a gratuidade nas relações, o perdão ilimitado, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a acolhida aos excluídos e marginalizados, e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces, pelos sistemas que não compactuavam com essa mensagem. É importante perceber que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi predestinação e nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua obediência e fidelidade estavam todas voltadas para o Pai do céu, tendo em vista a edificação do seu Reino na terra.

O cenário da paixão é a cidade de Jerusalém, obviamente, onde Jesus viveu os últimos dias do seu ministério, que por sinal, foram os mais polêmicos. Após uma entrada triunfante na grande cidade, para participar das festividades pascais (Mc 11,1-11), logo começaram os conflitos, tendo a denúncia do templo como ponto de partida (Mc 11,12-19). Na verdade, a chegada de Jesus em Jerusalém já prefigura o desfecho, ou seja, sua morte na cruz. Aquele povo que o saudou festivamente com mantos, ramos e cantos de Hosana (Mc 11,8-9) eram peregrinos que se sentiam explorados pela religião do templo e, por isso, sonhavam com mudanças a cada Páscoa celebrada. E viram em Jesus uma esperança. É claro que isso não passou despercebido pelos dirigentes romanos e judeus, os quais, sentindo-se ameaçados, já suspeitavam das aspirações de Jesus e vigiavam seus passou há bastante tempo. Fazia tempo que a Páscoa tinha deixado de ser uma festa de libertação e se transformado em comércio, tornando-se também mais um instrumento de exploração, ajudando a legitimar o abuso de poder exercido pelas autoridades de Jerusalém, principalmente a elite sacerdotal. Certamente, muitos dos que saudaram Jesus como Messias e rei não acreditavam em suas credenciais messiânicas, mas o fizeram por não suportar mais a maneira como estavam sendo governados e explorados.

Da entrada festiva, passa-se ao episódio da denúncia do templo, quando Jesus expulsou de lá os vendedores, compradores e cambistas, inconformado por ver a casa de oração transformado em covil de ladrões. Também esse gesto deve ter atraído a atenção e o interesse de muitos peregrinos que já se encontravam em Jerusalém e se sentiam explorados com o comércio praticado no templo. Da mesma forma, deve ter despertado ainda mais o ódio nas classes dirigentes, que viam com urgência a necessidade de eliminá-lo. Esse episódio desencadeou uma série de confrontos com os grupos político-religiosos hegemônicos, com Jesus se sobressaindo em todos eles, sobretudo nos debates em relação à interpretação da Lei. Por questão de prudência e medo da reação do povo, partiram para o confronto intelectual, inicialmente. Depois, percebendo que não conseguiam vencer Jesus no campo das ideias, estes grupos apelaram para a violência, formando um consórcio de morte junto ao poder imperial, para eliminá-lo. E quando o confronto se dá pela força e pela violência, Jesus já não reage, pois, as suas armas não são as do sistema. Por isso, o relato da paixão é tão dramático e doloroso, pois Jesus faz do silêncio e da aparente passividade a sua maneira de reagir e denunciar, deixando até mesmo seus discípulos desconcertados e decepcionados, ao perceber que sua messianidade não correspondia às suas expectativas e aspirações.

Olhemos então para o texto, recordando que, embora o cenário da paixão seja Jerusalém, a primeira cena do evangelho de hoje acontece ainda em Betânia, uma pequena aldeia localizada a cerca de três quilômetros de Jerusalém, e ponto de apoio de Jesus nos últimos momentos de sua vida terrena. É uma cena muito importante, pois apresenta a unção de Jesus por uma mulher desconhecida (14,3-9) que, associada ao final do relato (15,47), compõe a moldura de toda a narrativa da paixão, marcada, do começo ao fim, pela presença das mulheres, cuja coragem e perseverança contrapõe-se ao medo e covardia dos discípulos homens. A mulher que unge o corpo de Jesus é uma profetisa anônima. Ela deposita sobre Jesus uma carga de amor imensurável, representado pelo perfume, que nenhum discípulo de primeira hora fora capaz de fazer. Pelo contrário, até a repreenderam pelo gesto, com um falso discurso em favor dos pobres que, não passava de retórica, sendo corrigidos pelo próprio Jesus (14,7-9). Esse gesto não apenas prepara Jesus para a sepultura, como a prefigura: serão as mulheres as testemunhas da boa ação de José de Arimatéia, o responsável pelo sepultamento de Jesus, e é com elas que o relato da paixão se encerra: «Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde Jesus foi colocado» (15,47). Serão elas também as primeiras testemunhas da ressurreição. Isso mostra claramente que a comunidade de Jesus nasce fora dos padrões do patriarcado.

O segundo aspecto do relato que destacamos, por sinal negativo, é a dispersão da comunidade dos discípulos: «Então todos o abandonaram e fugiram» (14,50). Os discípulos, também sedentos por mudanças, sentem-se frustrados na medida em que percebem que o projeto de Jesus não corresponde às suas expectativas. No início do evangelho, Marcos tinha afirmado que, diante do chamado ao seguimento, «os discípulos abandonaram tudo e seguiram Jesus» (1,18.20). Agora, é a Jesus que eles abandonam. Judas tinha acabado de entregá-lo, Jesus está sendo preso, e os discípulos lhe negam a mínima solidariedade. O mais resistente, o último a fugir, é um jovem anônimo, que foge nu (14,51-52), sendo que não fazia parte do seleto grupo dos doze. Por sinal, esse é um detalhe exclusivo do Evangelho de Marcos: um jovem que foge nu. Inclusive, muitos estudiosos vêem nesse jovem a figura do próprio evangelista Marcos. A fuga dos discípulos é sinônimo de medo e covardia, mas também de decepção com o pretenso Messias. Jesus os tinha advertido sobre sua condição de Messias sofredor, mas eles não tinham acreditado. Só acreditaram na última hora e não aceitaram. Por isso, não é de causar surpresa que as multidões tenham preferido Barrabás, quando interrogadas (15,6-15), pois nem mesmo os discípulos se mantiveram ao lado de Jesus no momento mais difícil da sua vida.

Além da traição de Judas e da fuga dos demais, outros aspectos negativos dos discípulos também são evidenciados por Marcos. Tendo já denunciado a falta de perseverança na oração (14,32-42), o evangelista denuncia também a superficialidade no seguimento deles, ao recordar esta atitude de Pedro, após a prisão: «Pedro seguiu Jesus de longe» (14,54a). Ora, seguir de longe é não se comprometer; significa acompanhá-lo fisicamente, até certo ponto, sem abraçar plenamente a sua causa. Embora os demais já não o estivessem seguindo nem mesmo de longe, não é admissível na comunidade um discipulado tão superficial assim. Quem segue de longe não suporta a pressão nem a perseguição, por isso está fadado à negação, como de fato aconteceu com Pedro. Ora, ao ser identificado como galileu e seguidor de Jesus, Pedro reagiu, dizendo: «Nem conheço esse homem de quem estais falando» (14,71b). O evangelista deixa claro, com isso, que não pretende denunciar com seu relato somente as forças externas que perseguiram Jesus e perseguem a comunidade. Também de dentro da comunidade podem surgir muitas forças tão danosas ao seu crescimento quanto os poderes externos. É claro que os discípulos não poderiam fazer muita coisa àquela altura; na verdade, não poderiam fazer nada, em termos de reação. Mas poderiam, pelo menos, manter-se solidários, acompanhando passo a passo o processo e a condenação.

O duplo julgamento de Jesus, um político e outro religioso, ou seja, diante do sinédrio e de Pilatos (14,53-65; 15,1-15), mostra a união das forças hostis, pois judeus e romanos não se suportavam. Mas, tendo identificado Jesus como um inimigo em comum, os dois poderes se uniram para eliminá-lo, pois seu anúncio de libertação e humanização oponha-se profundamente aos seus planos, denunciando seus privilégios e as injustiças que cometiam para obtê-los. A mensagem de Jesus desmascarava-os completamente. O sinédrio, órgão jurídico máximo do judaísmo, acusa Jesus de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei (15,2). Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria inevitável. A cruz é decretada como pena exemplar para Jesus. Em plena Páscoa, a festa máxima dos judeus, a religião e o império não hesitam em condenar quem lhes parece ameaça. Não obstante tanto sofrimento, Jesus manteve-se firme em seus propósitos e na confiança no Pai. Não hesitou, mesmo não escondendo sua humanidade. Gritou de dor, lamentou-se, mas não renunciou às suas convicções. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia mais ser escondido.

A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, em Jesus, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus. Na cruz ele foi escarnecido e humilhado, mas também reconhecido em sua mais profunda identidade messiânica, como: «Na verdade, este homem era Filho de Deus!» (15,39c). Essa é uma das afirmações mais profundas do evangelho de hoje, do inteiro Evangelho de Marcos e até do Novo Testamento. Surpreende que essa declaração não saiu de nenhum discípulo, mas de um oficial do exército, um soldado romano e, portanto, um estrangeiro. Isso é significativo em dois aspectos, principalmente: primeiro, porque é na morte de cruz que a identidade de Jesus é plenamente revelada; segundo, porque daquele momento em diante, todos, independentemente da etnia e da religião, podem conhecer o rosto verdadeiro de Deus revelado no seu filho amado. Por isso, a confissão do oficial do exército romano é o ponto culminante de todo Evangelho de Marcos. Inclusive, é a revelação definitiva do chamado “segredo messiânico”, um dos temas teológicos e artifícios literários mais relevantes de Marcos. Só na cruz esse segredo é revelado, pois só na cruz se conhece verdadeiramente a identidade de Jesus. Tudo o que se dizia dele até então era parcial, inclusive a confissão de Pedro na região de Cesareia de Filipe também tinha sido parcial, pois ele tinha identificado Jesus como Messias, mas ignorou a natureza da sua messianidade (Mc 8,27). A confissão do centurião é completa.

O reconhecimento do centurião é mencionado após o evangelista dizer que «a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes» (15,38). Esse dado simbólico significa a falência completa da religião e do sistema que tinham acabado de matar Jesus. A cortina ou véu do santuário marcava a divisória do espaço sagrado do templo; somente os sacerdotes podiam ultrapassar a divisória demarcada pelo véu. Jesus, mesmo morrendo, mostra sua força; consegue abolir as divisões e rótulos impostos pela religião. De agora em diante, conhece a Deus quem segue o seu filho até as últimas consequências, quem vê na cruz instrumento de libertação e não mais quem frequenta o templo e oferece sacrifícios conforme as prescrições da Lei. A cortina do santuário rasgada é, portanto, o retrato de uma religião exploradora destroçada pela verdade e o amor que Jesus revela na cruz. As duas partes já não são símbolo de dois povos, mas de dois mundos: o mundo velho e o mundo novo. O mundo velho passou, chegou o mundo novo, do qual a cruz é semeadura. Aquela antiga religião, sobre a qual se sustentava o mundo velho, dividia, segregava e rotulava as pessoas, além de explorá-las economicamente. A cruz denuncia isso, mostrando que é só pelo amor que se relaciona verdadeiramente com Deus. Na cruz, Jesus mostra que Deus, o seu Pai, não tem outra coisa a oferecer ao mundo senão o amor.

A presença das mulheres é destacada como testemunhas da morte de Jesus (15,40), como consequência de um seguimento fiel e serviçal: «Elas haviam acompanhado e servido a Jesus quando ele estava na Galileia» (15,41). Dos discípulos homens, não se diz que eles serviam, mas apenas que seguiam, que acompanhavam Jesus; provavelmente, foi por isso que não perseveraram até o fim. E durante o seu ministério Jesus não cansou de mostrar a inseparabilidade entre seguimento e serviço. A perseverança das mulheres diante da cruz se explica porque, desde o início, elas abraçaram o seguimento como serviço, enquanto os discípulos colocaram aspirações triunfalistas como motivação para o seguimento. Sem pretensões de grandeza, motivadas pelo serviço, as mulheres testemunharam até o fim, acompanhando também o sepultamento: «Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde Jesus foi colocado» (15,47); elas foram também as primeiras testemunhas da ressurreição. Sem sonhos triunfalistas, elas não viram a morte de Jesus como fracasso ou falimento de um projeto; não se sentiram perdedoras, mas viram até a morte como ocasião de testemunhar e servir. Por isso, são modelos de discipulado para todos os tempos, pois foram aquelas que acompanharam Jesus em todos os momentos da sua vida.

A comunidade de Marcos foi edificada e fortalecida a partir deste relato. Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. A presença do Ressuscitado se tornou certeza na comunidade porque percebeu-se que Deus não abandona jamais um projeto quando esse é conduzido pelo amor. Também as comunidades de hoje são chamadas a fazer experiência semelhante àquela de Marcos: perseverar com os crucificados de hoje, todos os que lutam por um mundo de justo e humanizado, com igualdade e amor, para que o Ressuscitado de ontem continue a ressuscitar em cada coração hoje e sempre.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...