sábado, fevereiro 24, 2018

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 9,2-10 (ANO B)








Todos os anos, no segundo domingo da quaresma, a liturgia nos oferece como texto evangélico, um dos relatos do episódio tradicionalmente chamado de “Transfiguração do Senhor”. Neste ano, o texto oferecido é o relato do Evangelho segundo Marcos: 9,2-10. Inclusive, esse é o último trecho de Marcos utilizado pela liturgia nesta quaresma. Recordemos que a transfiguração é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-13; Lc 9,28-36) e, portanto, de grande relevância para a vida das comunidades cristãs de todos os tempos. Podemos dizer que é uma das páginas mais ricas de teologia dos evangelhos.

Para uma boa compreensão do nosso texto, é indispensável recordar alguns elementos do seu contexto, mesmo que brevemente. Trata-se do episódio que sucede à profissão de fé de Pedro na região de Cesareia de Felipe (cf. Mc 8,27-30), e imediatamente ao primeiro anúncio da paixão (cf. Mc 8,31ss). Daí, podemos concluir que se trata de uma resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos em relação ao seu caminho de doação da vida por fidelidade aos propósitos do Pai.

Mais uma vez, a versão litúrgica do texto nos priva de uma expressão muito importante para uma compreensão mais adequada: o indicativo cronológico “Seis dias depois”, presente no texto original, substituído no texto litúrgico pela genérica e desnecessária expressão “Naquele tempo”. Assim diz o texto: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão” (v. 2a). O indicativo “seis dias depois” (em grego: meta. h`me,raj e]x – metá hemeras ex) faz referência ao último acontecimento narrado: o primeiro anúncio da paixão e a contestação de Pedro. Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude; o homem e a mulher foram criados no sexto dia (cf. Gn 1,26-31) e agora Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização.


Diz o texto que Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. À primeira vista, parece tratar-se de um privilégio: Jesus escolhe os mais próximos e íntimos, hierarquizando o grupo dos Doze. Porém, se fizermos uma leitura mais atenta, concluímos exatamente o contrário: esses três são os discípulos que mais tem dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus, são os mais trabalhosos e, portanto, necessitados. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento, a ponto de ser o único dos Doze a quem Jesus chamou explicitamente de satanás, por colocar-se como pedra de tropeço em seu caminho (cf. Mc 8,33); Tiago e João, além de ambiciosos, ambos queriam lugares de honra ao lado de Jesus (cf. Mc 10,35-40), tinham temperamento bastante explosivo, a ponto de serem chamados de “filhos do trovão” (cf. Mc 2,17). Portanto, esses três são os discípulos que tinham mais dificuldade em aceitar um messias sofredor e, por isso, os mais necessitados de catequese.

O indicativo espacial também é de grande importância para a compreensão teológica do texto: “e os levou sozinhos, a um lugar à parte, sobre uma alta montanha” (v. 2b). Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Nas culturas circunvizinhas a Israel, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. A montanha passou a ser o lugar de intercâmbio entre o mundo humano e o divino. Essa mentalidade acabou sendo adotada também pelo povo de Israel.

No alto da montanha, Jesus “transfigurou-se diante deles” (v. 2c). O verbo grego usado aqui é metemorfoomai  metamorfóomai, cujo significado é ser transformado ou mudado; portanto, Jesus passou por uma metamorfose. Assim, o evangelista está dizendo que Jesus transformou-se, sua forma mudou diante dos discípulos. Ora, diante da incredulidade e resistência em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes: “Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar” (v. 3). As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Somente Marcos faz referência ao fato de nenhuma lavadeira ser capaz de deixar uma veste tão alva como ficaram as vestes de Jesus. Duas intenções estão por trás desse detalhe: apresentar uma atividade do lar, reforçando a ideia e a importância da comunidade como casa, e mostrar que a vida em plenitude (condição gloriosa) almejada pelo ser humano não pode ser conquistada por esforço próprio, mas somente por graça de Deus, ou seja, tem coisas que só Deus pode fazer.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: “Apareceram-lhe Elias e Moisés e estavam conversando com Jesus” (v. 4). Obviamente, estes personagens representam a Lei e os profetas, respectivamente. É mais uma iniciativa divina para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã; essa deve escutar somente a Jesus (v. 7).


Pedro, teimoso como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas desprezíveis: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (v. 5). Duas coisas são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. A segunda coisa reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias”; infelizmente, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.


A falta de sentido nas palavras de Pedro tem uma explicação: “Pedro não sabia o que dizer, pois todos estavam com muito medo” (v. 6). O medo é o grande obstáculo para a comunidade, sobretudo, o medo do que é novo e inesperado. O medo gera incompreensão e insegurança. A comunidade marcada pelo medo não sabe o que diz, diz o que não sabe, diz coisas erradas. O medo bloqueia a sobriedade do anúncio. Onde o medo reside, o anúncio sai distorcido.

As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o interrompe: “Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz” (v. 7). Diante da incompreensão de Pedro, o Pai se manifesta, chamando a sua atenção. Mais uma vez a imagem da luz e da nuvem são evidenciadas como sinais da presença e manifestação de Deus, sendo que o mais importante aqui são as palavras que saem da nuvem: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz”; é praticamente a mesma frase proferida por Deus no momento do Batismo (cf. Mc 1,11), sendo que ali somente Jesus ouviu, enquanto aqui na transfiguração também os discípulos ouvem e ainda são exortados a escutá-lo. O imperativo “escutai-o” (em grego: avkou,ete auvtou/  – akúete autú), é dirigido principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés que a Jesus. Escutar Jesus é um imperativo para a comunidade cristã. Quem não o escuta, não pode segui-lo nem testemunhá-lo.

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas, já disseram o que tinham a dizer. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro tentava constantemente evitar, por medo da cruz. “E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles” (v. 8); ora, Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho.

Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro. Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição.


A ressurreição não pode ser compreendida sem antes ser experimentada e celebrada. De fato, compreender o significado de “ressuscitar dos mortos” para quem tem dificuldade de conviver com a morte e a dor é um grande desafio. De todo modo, mesmo ainda marcados pela incompreensão, é salutar a discussão sobre a ressurreição: “comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (v. 10). Aqui está um direcionamento para as comunidades cristãs de todos os tempos: as discussões e reflexões só são válidas quanto têm em vista a vida, a ressurreição.

  
Roma-Itália, 24/02/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, fevereiro 17, 2018

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 1,12-15 (ANO B)





Após uma sequência de seis domingos, a liturgia dá uma pausa no tempo comum e nos convida a vivenciar um dos seus períodos mais fortes, o tempo da quaresma, iniciado na quarta-feira de cinzas. Hoje, celebramos o primeiro domingo desse tempo especial de preparação para a Páscoa do Senhor. O texto evangélico proposto, Marcos 1,12-15, embora curto, é bastante rico e complexo, cujo conteúdo consiste na narrativa da ida de Jesus ao deserto, onde foi tentado por satanás (vv. 12-13), e do início do anúncio do Evangelho na Galileia (vv. 14-15).

Chega a ser surpreendente a capacidade de síntese do evangelista Marcos: em apenas quatro versículos, ele consegue transmitir muita coisa da vida de Jesus. Antes de nos determos diretamente no texto, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto em que está inserido. O episódio que precede o nosso texto é o batismo de Jesus por João no Jordão (v. 9-11). Enquanto realizava sua missão de batizador, João havia anunciado que viria alguém “mais forte” do que ele, o qual batizaria no Espírito Santo. De fato, veio esse alguém, foi batizado (v. 9), e nele o Espírito se manifestou em forma de pomba (v. 10), e ainda recebeu o testemunho do Pai como o “Filho Amado” (v. 11).

O texto de hoje é a sequência desta série de eventos e sinais introdutórios da missão de Jesus. Vejamos: “E logo o Espírito levou Jesus para o deserto” (v. 12). De início, fazemos uma pequena e importante observação: a versão litúrgica, infelizmente, omite a primeira parte do versículo: “E logo” (em grego:  Kai. euvqu.j – kaí euthis); a ausência desse advérbio compromete o sentido do texto, porque omite o caráter de urgência e imediatez da ação do Espírito em impelir Jesus para o deserto. O verbo empregado pelo evangelista é muito mais intenso que “levar”, utilizado pela versão litúrgica; o verbo grego empregado no texto original (evkba,llw – ekbalo) significa empurrar, atirar, impelir, lançar fora com força.

Jesus não é proclamado “Filho Amado” pelo Pai para isolar-se das provações e dificuldades, mas para experimentar a vida com suas contradições e perigos. A referência ao deserto, obviamente, não é geográfica, mas teológica. O deserto (em grego:  e;rhmoj – eremos) é um elemento de rico significado para a tradição bíblica. Aqui indica, antes de tudo, que Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos e perigos pelos quais esse povo passou, desde a saída do Egito à conquista da terra e, principalmente aos tempos obscuros de dominação e exploração romana de seu próprio tempo. Assim, também o caminho de Jesus até a cruz e ressurreição será marcado por perigos e provas, uma vez que, embora seja verdadeiro Deus, ele é verdadeiro homem.

Embora o deserto evoque provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus; por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança. A experiência do deserto na vida de Jesus representa a confirmação da sua vocação de “Filho Amado” do Pai: E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás” (v. 13a). Associando deserto a provação, o evangelista chama a atenção da sua comunidade para um aspecto muito importante da vida cristã: deixar-se conduzir pelo Espírito não torna a pessoa imune às tentações e dificuldades que a vida apresenta. O tempo de permanência no deserto, “quarenta dias” (em grego: tessera,konta h`me,raj – tesseráconta heméras), também possui um rico simbolismo na Bíblia. É antes de tudo, uma alusão à experiência do êxodo, marcada por quarenta anos de caminhada pelo deserto (cf. Nm 32,13; Dt 8,2), mas também a outros acontecimentos importantes do Antigo Testamento: a duração do dilúvio de quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); a caminhada de Elias rumo ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8).

Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos a uma vida vigilante sem jamais cair em comodismos. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores de poder. O tentador, segundo Marcos, é Satanás (em grego: satanaj), e significa o adversário. Mais do que um ser específico, satanás é toda e qualquer realidade adversa ao Reino de Deus. A vida cristã é um confronto constante com essa realidade. No decorrer do Evangelho, o adversário de Jesus assumirá diversos rostos: a hierarquia religiosa, o poder político romano e até mesmo os seus discípulos (cf. 8,33), quando Pedro será explicitamente chamado de satanás e pedra de tropeço por opor-se aos propósitos do Reino de Deus.

É importante também perceber que, ao contrário de Mateus e Lucas, Marcos não faz a mínima referência ao conteúdo das tentações, nem ao jejum praticado por Jesus. Ao invés de empobrecer, esse dado só enriquece o evangelho marcano. Ora, ao não descrever em pormenores essa realidade simbólica, o evangelista ajuda sua comunidade a não idealizar nem fantasiar uma cena, mas enfatiza que as tentações são imprevisíveis e indescritíveis porque são muitas e, portanto, não podem ser catalogadas ou delimitadas; a qualquer momento podem surgir, e isso durante toda a vida.

A segunda parte do versículo evoca a conquista da paz messiânica: Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (v. 13b). O antigo sonho profético de harmonia entre todos os elementos da criação é recuperado por Jesus, o profeta do Reino por excelência. Aquilo que fora sonhado durante muitos séculos por tantas gerações, tem em Jesus a oportunidade de ser realizado. É claro que é uma imagem simbólica. Significa a missão de Jesus de reconciliar o mundo consigo mesmo e com Deus. Jesus é habilitado pelo Pai, como “Filho Amado”, para combater as forças do mal e vencê-las pelo amor, fazendo acontecer a nova humanidade, instaurando, de fato, os “novos céus e nova terra” (cf. Is 11,1-9). O serviço dos anjos quer dizer a adesão ao Reino da parte daqueles que compreendem a centralidade do evangelho: servir por amor, o triunfo do bem. Animais selvagens e anjos juntos, tendo Jesus ao centro, significa a convivência pacífica entre todos os seres, não obstante as características de cada um. As forças do mal já não tem o que fazer, se tornam impotentes, quando o bem é abraçado e se faz serviço.
A passagem de Jesus pelo deserto é uma antecipação e síntese de toda a sua vida. Quer dizer que o seu programa consiste no combate ao mal e instauração definitiva do bem. Como tudo isso será realizado? Com o anúncio do Evangelho e a construção do Reino de Deus. Esse anúncio é urgente: Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus”  (v. 14). Temos aqui um divisor de águas na vida de Jesus: sendo comandada por Herodes (cf. Mc 6,17), a prisão de João se torna um apelo urgente para a instauração do Reino de Deus; é um triunfo de satanás, o adversário, personificado no algoz do Batista, que precisa urgentemente ser combatido. A ação de satanás se torna evidente quando o sistema dominante oprime e mata. Quem se deixa conduzir pelo Espírito, não pode assistir passivamente a essa realidade. Por isso, Jesus entra em cena com seu anúncio do Evangelho de Deus. A luta contra o mal empreendida por Jesus não se dará pela força nem pelo poder, mas pelo anúncio do “Evangelho de Deus”, cujo núcleo central é o amor.

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus como algo urgente: “o tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. O evangelista se refere ao tempo com o termo grego “kairo.j = kairós”, que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia passar desperdiçada. A condenação injusta do Batista é uma prova disso.

O Reino de Deus (em grego: h` basilei,a tou/ qeou/ - hé basileia tú Theú), conteúdo da pregação de Jesus, consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época; é claro que essa proposta continua válida ainda hoje, e até com mais urgência.

O Reino de Deus não é uma resposta de esperança em um bem-estar futuro, mas a proposta de Deus para o hoje da história. Essa proposta consiste em uma sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcada pela igualdade e fraternidade. Podemos resumir o Reino de Deus como a realização plena da sua vontade neste mundo. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Mais que a temporalidade do Reino, a forma verbal “está próximo” exprime a sua materialidade. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. ). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. O convite à conversão, expresso pela forma verbal grega metanoei/te – metanoeite”, não significa intensificar as práticas penitenciais e devocionais, nem melhorar um pouco, nem rezar mais... significa mudar radicalmente o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho.

Crer no Evangelho significa aceitar o anúncio de Deus por meio de Jesus Cristo, tomando suas palavras como verdadeiras e portadoras de libertação. É acreditar que um anúncio só pode ser bom e edificante se tiver como base a mensagem libertadora de Jesus de Nazaré.

Mossoró-RN, 18/02/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, fevereiro 10, 2018

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,40-45 (ANO B)




Com a liturgia deste sexto domingo do tempo comum, concluímos a leitura do primeiro capítulo do Evangelho segundo Marcos. Estamos acompanhando ainda os primeiros passos do ministério de Jesus. O texto evangélico proposto, Mc 1,40-45, apresenta continuidade com o episódio anterior e, ao mesmo tempo, novidade, de modo que podemos perceber uma certa evolução na atuação de Jesus, com uma abertura cada vez maior em relação aos destinatários da sua ação libertadora.

Até então, a atuação de Jesus tinha se desenvolvido no âmbito do espaço urbano, ou seja, dentro da cidade de Cafarnaum: pregação na sinagoga (cf. 1,21-28) e cura na casa de Simão (cf. 1,29-34). Isso levou os discípulos à tentação do comodismo, propondo a centralização e a fixação da atividade de Jesus em um espaço delimitado, devido o aparente sucesso inicial (cf. 1,28.37). Diante da proposta ridícula dos discípulos, Jesus propôs o contrário: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (cf. Mc 1,38). O evangelho de hoje mostra, portanto, a ação de Jesus “em outros lugares”, comunicando vida e libertando, já que era impossível encontrar-se com um leproso dentro da cidade, uma vez que a lei determinava o seu isolamento: “Enquanto durar a sua enfermidade, o leproso ficará impuro e, estando impuro, morará à parte: sua habitação será fora do acampamento” (Lv 13,46). Podemos, então, perceber como a ação libertadora de Jesus vai ganhando novas dimensões: sinagoga – casa – terreiro da casa – outros lugares; assim, o universalismo do Reino já pode ser sentido.

Dizendo não ao comodismo dos discípulos, Jesus propõe a coragem para arriscar-se e a disposição para conviver com as diferenças e viver ao revés das regras de comportamento convencionais impostas pela religião e adotadas pela sociedade como normas. O evangelho de hoje deixa isso muito claro, ao narrar o encontro de Jesus com o leproso.

Olhemos para o texto: “Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres, tens o poder de curar-me” (v. 40). De acordo com esse primeiro versículo, já percebemos um encontro de duas pessoas rebeldes. Ora, de acordo com a lei, tanto Jesus quanto o leproso deveriam evitar-se mutuamente, cada um se distanciando o máximo possível do outro. Nem o leproso deveria se aproximar, nem Jesus deveria permitir que o leproso chegasse perto. Porém, os dois resolveram transgredir, praticando ambos um gesto de grande rebeldia.

Ao permitir que o leproso se aproximasse de si, Jesus conquista a sua confiança. Com muita liberdade, o leproso faz um pedido em forma de confissão. Na verdade, ele nem sequer pede a cura, apenas sugere que Jesus pode purificá-lo. Infelizmente, a tradução litúrgica distorce um pouco o sentido do texto trocando o verbo purificar por curar. O que o leproso deseja é ser purificado. A melhor tradução seria: “Se queres, podes me purificar”. Como se vê, não é propriamente um pedido, mas um reconhecimento da força de Jesus. Assim, o leproso se torna modelo do verdadeiro crente: aquele que expressa a sua necessidade, sem forçar, sem querer determinar o agir de Deus, mas respeitando a sua liberdade: “se queres”. Ser purificado, naquele contexto, significava voltar a ser reconhecido como gente; era se libertar de todos os estigmas excludentes e segregadores que a lepra comportava; era ser admitido novamente na convivência e na vida da comunidade.

Jesus não resiste ao necessitado que vai ao seu encontro. Por isso, diz o texto que “cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica purificado!” (v. 42). Jesus quer que o homem seja “purificado”, ou seja, readmitido à convivência humana, que ele saia da situação de morte em que se encontra. Compaixão é a resposta de Deus às situações de negação do seu projeto de vida; é um amor tão profundo, a ponto de fazer “contorcer as vísceras”, quer dizer um amor que mexe com o mais profundo do ser. Essa resposta nunca é apenas sentimental, mas é ação. É interessante a descrição da ação: “estendeu a mão, tocou nele”. O gesto de estender a mão significa o cumprimento de uma ação salvífica por excelência: é Deus doando sua força em benefício do seu povo, tirando-o da opressão, de acordo com a linguagem do Antigo Testamento (cf. Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.); é prova do amor e cuidado de Deus para com a humanidade.

Tocar num leproso era um gesto extremamente proibido pela lei. Com esse gesto, Jesus transgride com muita liberdade, ensinando que o bem do ser humano está acima de qualquer preceito e doutrina. Movido por compaixão, tendo tocado com a mão, Jesus sentiu de fato a necessidade daquele homem, e expressou em palavras: “Eu quero: fica purificado”. E como as palavras de Jesus são cheias de vida e de amor, eis que “no mesmo instante, a lepra desapareceu e ele ficou purificado” (v. 43). Jesus anuncia palavras de vida e libertação. Dizer que o leproso ficou purificado é o mesmo que dizer que ele ficou apto para a convivência, foi reintegrado à comunidade, teve sua dignidade restituída. Livrou-se de um estigma condenatório. Aqui, mais uma vez, o evangelista usa o verbo “purificar” (em grego: καταριζω - katarízo); aliás, de acordo com o original, em nenhum momento vem mencionada a palavra “cura”, nem o verbo “curar” nesse texto. Isso evidencia ainda mais o interesse do evangelista pela dimensão social e comunitária da ação de Jesus. O mais importante é despertar na comunidade do evangelista e na comunidade cristã de todos os tempos a necessidade de promover ações de restauração, inclusão e promoção da dignidade humana.

Ao transgredir a lei de maneira tão escancarada, Jesus passa a correr riscos, mas não se intimida com isso. Na verdade, ele pede silêncio ao homem que fora purificado por precaução de má compreensão na sua mensagem: Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: “Não contes nada disso a ninguém!” (v. 44a). Jesus tem pressa com a libertação das pessoas, por isso mandou logo o homem ir embora; ora, certamente aquele homem já havia perdido muito tempo segregado, excluído da convivência. Por isso, devia voltar o quanto antes para a comunidade.

Jesus também não queria ser confundido com um milagreiro. Queria evitar concepções triunfalistas a respeito da sua imagem e do seu messianismo. Por isso, pediu que o homem não contasse nada a ninguém. Aliás, o chamado “segredo messiânico” é uma das principais características de Marcos; a comunidade deve esforçar-se o máximo possível para não apresentar uma imagem equivocada de Jesus.

Além do silêncio, Jesus dá uma segunda ordem ou homem recém-purificado: “Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova contra eles!” (v. 44b). Ora, alguns comentadores vêem aqui uma certa obediência de Jesus aos preceitos da lei, mas isso é um grande equívoco. O sacerdote tinha o papel de atestar se a pessoa estava purificada ou não; porém, a lepra era considerado um mal sem cura, era praticamente impossível alguém livrar-se dela, de modo que o leproso era um “morto vivo”. Com essa ordem, Jesus está, na verdade, provocando os sacerdotes e a religião da época, mostrando que a palavra final sobre a vida das pessoas já não é mais a deles, mas a sua! Portanto, Jesus está ridicularizando aquela religião ultrapassada; inclusive, o próprio texto deixa muito clara essa ironia: “como prova contra eles!”. Jesus quer que eles mesmos, os sacerdotes, reconheçam que já não tem mais autoridade sobre a vida; o poder daquele sistema começava a desmoronar.

O pedido de silêncio que Jesus faz nunca é atendido: “Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato” (v. 45a). Jesus pede algo quase impossível: como silenciar diante de maravilhas tão grandes, coisas nunca antes vistas? Como não irradiar a felicidade de contemplar o Reino de Deus sendo instaurado? Apesar do risco de distorção, o anúncio fluía com facilidade: “Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo” (v. 45b). Sobre essa parte conclusiva do texto, alguns comentadores, também de modo equivocado, vêem mais uma ação de obediência à lei da parte de Jesus; segundo eles, Jesus não entrava mais nas cidades porque tinha ficado impuro por ter se aproximado do leproso. Essa interpretação é absurdo, considerando a capacidade, a necessidade e a liberdade que Jesus tinha de transgredir a lei.

É verdade que a lei declarava que quem tocasse num leproso também ficava impuro, mas Jesus não se prendia aos pormenores da lei, pelo contrário, fazia questão de transgredir. Ele evitava as cidades e procurava lugares desertos porque sua fama aumentava cada vez mais, o que ele não queria; e sua vida começava a correr perigo. Esse afastamento se tornava providencial: quanto mais longe dos centros de poder, mais pessoas impuras poderiam aproximar-se dele. Quanto mais afastado das pessoas consideradas puras, mais os considerados impuros chegariam perto. A religião segregadora expulsava os impuros para os lugares desertos e afastados. Propositadamente Jesus ia a estes lugares levando vida, amor, acolhimento, justiça e libertação.

Assim como a comunidade de Marcos, também nós, cristãos de hoje, somos interpelados pelo evangelho a promover libertação, a colocar o bem do ser humano acima de qualquer norma e doutrina. Para isso, é necessário ir sempre aos outros lugares, aos desertos de hoje, as periferias existenciais, onde estão aqueles e aquelas a quem a religião e a sociedade disseram que não tem mais jeito, já não servem mais para nada. São essas pessoas que mais precisam conhecer o Deus amoroso que Jesus revelou, e somente quem tem intimidade com esse Deus pode acolher e compreender essas pessoas.

Mossoró-RN, 10/02/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues


sábado, fevereiro 03, 2018

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,29-39 (ANO B)




O evangelho deste quinto domingo do tempo comum, Mc 1,29-39, é a continuação e conclusão da chamada “jornada de Cafarnaum” (cf. 1,21-31), cuja leitura foi iniciada no domingo passado (cf. Mc 1,21-28) e, ao mesmo tempo, o início de uma nova etapa da missão de Jesus em outros lugares da Galileia. Ora, tendo chamado os quatro primeiros discípulos (cf. 1,16-20), designando-os como “pescadores de homens”, Jesus inaugurou seu ministério em conformidade com as tradições litúrgicas de Israel: em uma sinagoga num dia de sábado. No espaço sacro, a sinagoga, Jesus apresentou a novidade do Reino em palavras e atos (ensinamento com autoridade e expulsão de espírito impuro), causando admiração e surpresa em todos os presentes, fazendo espalhar sua fama rapidamente (cf. 1,27-28).

Se no domingo passado o evangelho iniciava com a entrada de Jesus na sinagoga, hoje inicia com a sua saída: “Jesus saiu da sinagoga” (v. 29a). Aqui, o evangelista emprega um verbo que recorda o êxodo: evxerkomai – ecserkomai, cujo significado mais exato é escapar, fugir ou libertar-se. Com isso, Marcos ensina que a sinagoga não é o lugar do discipulado; pelo contrário, como símbolo das estruturas de poder e dominação vigentes, a sinagoga é uma realidade da qual as pessoas devem ser libertadas. As instituições, de um modo geral, são espaços hostis para o discipulado de Jesus porque impedem a realização do ser humano em sua liberdade e dignidade plenas.

Saindo da sinagoga, “Jesus foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André”  (v. 29b). A casa (em grego: oivki,a – oikia) é a alternativa proposta por Jesus para a realização do seu projeto em sua dimensão espacial primeira. No âmbito do poder instituído, aqui representado pela sinagoga, não há espaço nem condições para a realização do Reino de Deus; é necessário buscar novas formas viáveis de organização que permitam a plena realização do ser humano. Compreender esse deslocamento da sinagoga para a casa é fundamental para a compreensão de todo o projeto de Reino proposto por Jesus. A casa é o espaço eclesial por excelência; é na casa onde Jesus fala abertamente com seus discípulos. A Igreja primitiva adotou a casa como o lugar da liturgia, da catequese, do encontro. Se é na casa onde acontece a vida, deve ser na casa o culto ao Deus da vida; um culto não ritual, mas serviçal. Do púlpito da sinagoga não era possível conhecer as necessidades reais das pessoas; isso só é possível indo ao encontro delas, ou seja, indo à casa.

Ao chegar na casa com dois dos discípulos, João e Tiago, Jesus encontra uma situação desconfortável, caótica: “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus” (v. 30). Embora se tratasse apenas de uma febre, de acordo com o texto, essa tinha paralisado a mulher, impedindo-a de exercer suas funções. Se a mulher em pleno estado de saúde já valia muito pouco naquela sociedade, muito menos seria enquanto enferma. O ato de deixar Jesus a par da situação evidencia confiança nele; é sinal de que ele já estava sendo reconhecido como doador de vida e de sentido para a vida. É também sinal de que naquela comunidade embrionária a mulher deve ter um papel relevante e até essencial.

Estando ciente da situação, Jesus não se omite, como não se conforma com o domínio do mal na vida das pessoas. Por isso, “ele se aproximou, segurou sua mão, e ajudou-a a levantar-se” (v. 31a). O texto não menciona uma única palavra de Jesus, mas apenas gestos. Por sinal, gestos sacrílegos, considerando que era dia de sábado e, portanto, nenhuma atividade manual era permitida naquele dia. Certamente, o evangelista pensou na sua e nas comunidades cristãs de todos os tempos: os gestos de libertação falam mais que longas e muitas palavras. Sem nenhum temor Jesus se aproxima de uma pessoa com a vida ameaçada; ele não teme nem foge das situações concretas de dor e sofrimento, mesmo que tal atitude fosse proibida pela religião. Pelo contrário, ele enfrenta toda situação em que a vida se encontra ameaçada. O gesto de segurar pela mão significa o cumprimento de uma ação salvífica por excelência: é Deus doando sua força em benefício do seu povo, tirando-o da opressão, de acordo com a linguagem do Antigo Testamento (cf. Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.); é prova do amor e cuidado de Deus para com a humanidade.

Com um cuidado incomparável, Jesus manifesta sua opção incondicional pela vida e o bem do ser humano. O evangelista diz que ele ajudou a mulher a levantar-se empregando o verbo grego h;geirw egheiro, o mesmo usado para falar da ressurreição do próprio Jesus (cf. 16,6). Com isso, ele quer dizer que Jesus restituiu a vida para aquela mulher. A ressurreição é, por excelência, o triunfo da vida sobre a morte e suas causas. Eis, portanto, as consequências da ação de Jesus: Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los” (v. 31b). O mal, representado no texto pela febre, não resiste à presença amorosa e cuidadosa de Jesus. Sendo o mal banido da comunidade, as atitudes de serviço se evidenciam. O serviço é a atitude imediata de quem se encontra com o amor restaurador de Jesus e o critério para perceber se esse amor está sendo vivido na comunidade cristã. Jesus é doador de vida, e quem recebe essa vida se torna servo e serva de todos.

Na sequência, diz o evangelista que “À tarde, depois do pôr-do-sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio” (v. 32). Com esse versículo, percebemos que as pessoas continuavam escravas da religião, colocando o preceito acima do bem. Ora, a expressão “depois do pôr-do-sol” (em grego:  e;du o` h[lioj – edi hó hélios) significa o início do novo dia. Portanto, as pessoas tinham esperado terminar o sábado, por preceito, para levarem seus doentes até Jesus. Estavam literalmente sob a escravidão da lei. Como a fama de Jesus tinha se espalhado rapidamente (cf. 1,28), era grande a procura pela sua ação libertadora. Tanto é que A cidade inteira se reuniu em frente da casa” (v. 33). Ao dizer que a cidade se reuniu, o evangelista emprega o verbo grego evpisunagw epíssinago, cujo significado é reunir, recolher, do qual deriva a palavra sinagoga. Com isso, o evangelista insiste ainda mais com a ideia da casa como alternativa à sinagoga. Se Jesus está na casa, é ali onde as pessoas devem reunir-se; e se as pessoas estão reunidas na casa, é ali onde Jesus está presente. É claro que há exagero do evangelista ao dizer que a cidade inteira se reuniu; a expressão quer enfatizar a adesão e, principalmente, a curiosidade que a presença de Jesus despertava. É perceptível também a intenção de anunciar a falência da religião instituída: as pessoas já não se sentem mais presas à estrutura rígida e fixa da sinagoga. A reunião “em frente da casa” é sinal de liberdade, acolhida e fraternidade.

É importante recordar que, embora tenham levado todos os doentes, “Jesus curou muitas pessoas de diversas  doenças e expulsou muitos demônios” (v. 34), ou seja, não curou a todos. Nas multidões sempre há incompreensão, falso entusiasmo, risco de dispersão. Estar no meio da multidão não significa necessariamente estar em comunhão. Não basta ir fisicamente ao encontro de Jesus ou participar de momentos de reunião comunidade; é necessário, antes de tudo, ter disposição interior e disponibilidade para viver os valores do Reino. A comunidade não deve entusiasmar-se simplesmente por juntar multidões; é necessário muito mais para ser, realmente, uma comunidade de discípulos e discípulas.

Terminada a chamada “jornada de Cafarnaum”, Jesus iniciou uma nova fase do seu ministério. Como comunicador do Reino de Deus, ele precisava nutrir sua intimidade com o Pai através da oração, como atesta o evangelista: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto” (v. 35). Ele não se deixou levar pelo aparente sucesso do dia anterior. Sentia necessidade de comunicar-se com o Pai para permanecer fiel em sua missão. A oração capacita para o discernimento, fortalece as convicções. Muitas vezes o ativismo das comunidades deixa essa dimensão importante da vida cristã passar despercebida. Aqui o evangelista deixa um recado muito claro para a sua comunidade e para as demais.

Enquanto rezava, “Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando o encontraram, disseram: “Todos estão te procurando” (vv. 36-37). Os discípulos, ainda principiantes no seguimento, queriam certamente que Jesus repetisse os feitos da jornada anterior, refazendo o mesmo percurso. É a tentação do comodismo e do poder. Alimentado pela oração e, portanto, cada vez mais convicto de sua missão, “Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (v. 38). Aqui o aspecto dinâmico e itinerante do movimento de Jesus é evidenciado, bem como o universalismo do seu alcance é pré-anunciado. Mesmo sendo desenvolvida inicialmente na Galileia, a itinerância da missão de Jesus antecipa o universalismo que deve marcar o cristianismo de todos os tempos. Não à religião do templo, do comodismo e da conivência com os poderes instalados! Ir a outros lugares é uma necessidade de quem vive a Boa Nova e os valores do Reino.

Na conclusão, temos a atestação do caráter itinerante da missão de Jesus: “E andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os demônios” (v. 39). A atividade de “pescar seres humanos” continuava em evidência, ao priorizar os ambientes onde as pessoas corriam mais perigo: os espaços de domínio da religião; por isso, ele pregava nas sinagogas, inicialmente. Certamente, por onde passava ele fazia a passagem da sinagoga para a casa, libertando do peso da lei para o bem da vida, em espírito de serviço e gratuidade.


Mossoró-RN, 03/02/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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