sábado, setembro 28, 2019

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,19-31 (ANO C)




Neste vigésimo sexto domingo do tempo comum, a liturgia propõe a continuidade e a conclusão da leitura do capítulo dezesseis de Lucas. Esse capítulo é todo dedicado a um dos temas mais caros a Lucas, a saber, o uso das riquezas e dos bens materiais em geral, e contém duas ricas parábolas, exclusivas deste evangelista: a do “administrador acusado de desonestidade”, lida e refletida no domingo passado (vv. 16,1-8), e a do “rico indiferente e o pobre Lázaro” (vv. 19-31), texto proposto para hoje. Intercalando as duas parábolas, temos um conjunto de sentenças de estilo sapiencial (vv. 9-13), também lidas no domingo passado, e uma pequena controvérsia com os fariseus (vv. 14-16). Esta parábola do “rico indiferente e o pobre Lázaro” é uma das mais conhecidas de todo o Novo Testamento, ocupando a terceira posição entre as mais lidas, das parábolas exclusivas de Lucas, ficando atrás apenas daquela do “pai misericordioso e os dois filhos” ou do “filho pródigo” – 15,11-32 (a primeira), e daquela do “bom samaritano” – 10,25-37 (a segunda).

O contexto geral do texto de hoje continua sendo o do caminho de Jesus para Jerusalém, junto com seus discípulos e discípulas. Como temos enfatizado no decorrer dos últimos domingos, mais que um percurso físico-geográfico, esse caminho é um itinerário catequético-espiritual de formação para o discipulado de Jesus. Lucas, como refinado escritor e bom catequista, reuniu os principais ensinamentos de Jesus e os distribuiu nesse itinerário. Como sabemos, Lucas é também o evangelista que mais valoriza os pobres, dando-lhes vez e voz; desde o início do Evangelho (cf. 1,51-52; 6,20-26), ele aponta para uma nova história, construída a partir dos pequenos e desvalidos. Para isso, é necessário combater a concentração de riquezas em poucas mãos, o que gera grandes desigualdades e abismos entre as pessoas.

Os destinatários principais dos ensinamentos ao longo do caminho são sempre os discípulos, mesmo quando os interlocutores diretos de Jesus são outros personagens; inclusive, neste capítulo dezesseis há dois grupos de interlocutores: os discípulos, conforme iniciava o texto do domingo passado: “Jesus dizia aos discípulos...” (cf. 16,1a), e os fariseus, a quem é dirigida de maneira mais direta a parábola de hoje. Ora, a parábola do “administrador acusado de desonestidade” (vv. 1-8) fora seguida de algumas sentenças proverbiais (vv. 9-13), sendo a última “não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (v. 13). Diz o evangelista que “os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam de Jesus” (16,14). As reações negativas dos fariseus aos ensinamentos de Jesus são muito comuns, sobretudo no evangelho de Lucas: eles reagiam com murmúrio (cf. Lc 5,9; 15,2), com perguntas (cf. Lc 6,2) e até com perseguição (cf. Lc 11,53). Porém, como a catequese de Jesus sobre o uso do dinheiro e das riquezas fora muito radical, dessa vez os fariseus reagiram zombando, ou seja, ridicularizando. Foi, portanto, da reação sarcástica dos fariseus a Jesus que nasceu a parábola de hoje. Logo, essa parábola se torna uma advertência a todos os “amigos do dinheiro” como eram os fariseus.

Iniciemos a leitura do texto: “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v. 19). É típico de Lucas introduzir as parábolas com descrições dos personagens, como ele faz nesta parábola. A descrição do rico é impressionante: um homem que se vestia elegantemente e festejava todos os dias. Numa sociedade em que a maioria da população era pobre e explorada, como era a Palestina no tempo de Jesus, essa descrição foi impactante, e o objetivo do autor era mesmo causar impacto nos ouvintes/leitores. Também é típico de Lucas apresentar personagens com características opostas em paralelo, através da técnica retórica do paradoxo, aplicada aqui; por isso, a descrição do segundo personagem da parábola também é impressionante, embora suas características sejam completamente opostas às do rico: “Um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (vv. 21-22). Como se vê, o autor não se contenta em dizer que havia um homem rico e outro pobre, mas faz questão de enfatizar as diferenças extremas entre os dois personagens: um é rico demais, e o outro é pobre demais. É interessante perceber que o autor faz uma descrição minuciosa dos personagens, mas não faz referência à conduta ética de nenhum deles: não diz se o rico era bom ou mau, justo ou injusto, mas apenas diz que era rico; o mesmo acontece com Lázaro.

Embora seja típico de Lucas, como já afirmamos, apresentar personagens com características opostas em paralelo, em nenhuma outra ocasião ele fez isso com tanto exagero quanto nesta parábola. Recordemos as diferenças de atitude entre Zacarias e Maria, ao receberem os respectivos anúncios (cf. Lc 1,5-38), entre Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (cf. Lc 15,11-32) e entre o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14); em nenhuma dessas ocasiões as diferenças são tão abissais quanto entre o rico e Lázaro desta parábola. Embora próximos fisicamente, pois o pobre jazia à porta do rico, havia um verdadeiro abismo entre os dois. A primeira e talvez a mais significativa das diferenças é o nome: somente o pobre tem nome e, por sinal, é um nome carregado de esperança: Lázaro significa “Deus ajuda”. Por sinal, esse é o único personagem de uma parábola a receber um nome próprio; o nome, na Bíblia, indica a identidade e a dignidade da pessoa. Contrastando com as roupas finas do rico, o corpo de Lázaro era coberto de feridas; isso significa que, além da exclusão social, ele era também excluído da vida religiosa, já que uma pessoa com feridas expostas era considerada impura; além disso, como os cachorros eram animais impuros para os judeus, isso aumentava ainda mais a marginalização de Lázaro.

Das descrições iniciais que evidenciam o abismo entre os dois personagens, o autor passa a um dado comum e igual para todos os seres humanos, a morte: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado” (v. 22). A morte é inevitável; ricos e pobres passam por ela, indistintamente. Como a parábola tem uma função didática muito forte, Jesus acaba usando uma linguagem até apocalíptica, ao aplicar as imagens do destino final dos dois personagens, embora não seja sua intenção descrever as realidades futuras, ou seja, céu, inferno e purgatório, como a parábola tem sido equivocadamente interpretada. Há uma inversão de destinos, como se vê: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado” (vv. 22-23). Não temos aqui uma descrição das realidades futuras, mas um alerta para que o ser humano procure dar sentido à sua existência enquanto há tempo. O fechamento em si, o egoísmo desenfreado, não é causa de condenação, mas já é a condenação em si mesma. Os abismos entre as pessoas só podem ser superados durante a vida terrena. A situação pós-morte descrita na parábola mostra apenas a perpetuação dos abismos, quando não há empenho para superá-los enquanto é possível, ou seja, enquanto se vive neste mundo (cf. v. 26).

Percebendo as consequências desastrosas de suas escolhas em vida, o rico inicia um diálogo com Abraão, a quem chama de “pai”. Com isso, o autor revela que se trata de uma pessoa religiosa, um judeu devoto: “Então gritou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas’. Mas Abraão respondeu: ‘Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (vv. 24-25). De fato, reconhecer Abraão como pai era um traço característico de todo bom judeu. Porém, esse homem devoto viveu uma fé equivocada, pois não soube traduzi-la em frutos de justiça em favor do pobre que jazia à sua porta. As respostas de Abraão reforçam as consequências do abismo construído pela indiferença do rico ainda em vida. Ao dar a sua causa por perdida, o rico pensa, embora tarde, nos seus familiares: “O rico insistiu: ‘Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Com esse pedido, o rico só reforça a sua mentalidade egoísta e mesquinha, pois pensa somente nos seus; não pensa na coletividade, mas apenas no seu pequeno mundo, naqueles que com ele se banqueteavam, provavelmente.

A resposta de Abraão às novas súplicas do rico é muito clara: “Mas Abraão respondeu: ‘Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v. 29). A expressão “Moisés e os Profetas” significava as Sagradas Escrituras, a Bíblia. E desde Moisés – a Lei (cf. Ex 5,6; 23,10; Lv 19,10) até os profetas (cf. Am 4,1; 8,4), a Palavra de Deus adverte para a necessidade do cuidado com os pobres, mostrando a predileção de Deus por eles; negligenciar os pobres, portanto, é negligenciar o próprio Deus. Com essa mesma expressão, o evangelista também chama a atenção da sua comunidade para a eficácia da Palavra e que, diante dessa, não há necessidade de fenômenos sobrenaturais como milagres e visões. Assim, o evangelista ensina que uma fé autêntica e comprometida se fundamenta na Palavra de Deus, e não em visões ou aparições.

Para viver autenticamente a fé, a necessidade básica é a atenção à Palavra de Deus e a adesão às exigências que essa contém, sobretudo a atenção especial aos mais necessitados. Quem tem “Moisés e os Profetas”, ou seja, o conjunto das Sagradas Escrituras (v. 31), incluindo o Novo Testamento, o texto cristão por excelência, tem tudo o que é necessário para viver e dar sentido à vida. Ler Moisés e os Profetas, ou seja, a Sagrada Escritura, e não lutar para que os abismos criados entre as pessoas e as desigualdades sociais sejam abolidas é simplesmente ignorar os apelos de Deus.  

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 21, 2019

REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,1-13 (ANO C)




A liturgia deste vigésimo quinto domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, um dos ensinamentos mais surpreendentes de Jesus – Lucas 16,1-13. Se trata da chamada “parábola do administrador desonesto ou infiel” (vv. 1-8), seguida de algumas sentenças de caráter sapiencial (vv. 9-13) que visam tornar mais explícito o conteúdo da parábola. Esse texto, sobretudo a parábola, é considerada uma das páginas mais difíceis e desconcertantes de todo o Evangelho segundo Lucas, pois, pelo menos aparentemente, Jesus apresenta um homem desonesto como modelo a ser imitado pelos seus discípulos e discípulas. Pelo caráter embaraçante da parábola, a maioria dos estudiosos acreditam que ela realmente saiu dos lábios de Jesus, pois dificilmente a comunidade iria lhe atribuir um texto tão contraditório sem ter certeza de sua origem.

É importante recordar que o texto faz parte do amplo conjunto do caminho catequético apresentado por Jesus em sua viagem para Jerusalém (Lc 9,51 – 19,27). No capítulo dezesseis, do qual é extraído o evangelho de hoje, o tema central é exatamente o uso dos bens materiais, ou seja, da riqueza. Esse tema é ilustrado por duas parábolas: a do “administrador desonesto ou infiel” (vv. 1-8) e aquela do “pobre Lázaro e o rico avarento” (vv. 19-31), que será lida no próximo domingo, intercaladas por algumas sentenças de efeito prático-exortativo em estilo proverbial, que funcionam como interpretação da primeira parábola, a de hoje, e preparação para a segunda. É importante também recordar que as duas parábolas são exclusivas de Lucas, o evangelista que mais combate a concentração de riquezas, propondo a partilha e a solidariedade.

Assim, tendo já identificado o contexto da parábola, a catequese sobre o uso dos bens materiais e riquezas, podemos, logo de início, identificar os destinatários da mesma: os discípulos, como vem afirmado logo no início: “Jesus dizia aos discípulos” (v. 1a). Quando o evangelho afirma que Jesus dirige um ensinamento diretamente aos seus discípulos, quer dizer que se trata de algo urgente e, portanto, inadiável; quando Ele insiste com um mesmo tema, significa que se trata de algo muito importante e, ao mesmo tempo, que os discípulos estão sendo lentos demais na compreensão, a ponto de ser necessário repetir diversas vezes e de diferentes maneiras. Tudo isso se verifica quando se trata do cuidado com o uso dos bens e das riquezas. Recordemos algumas ocasiões, ao longo do “caminho”, em que Jesus advertiu os discípulos sobre o uso dos bens materiais: na oração do Pai Nosso, ao recomendar peçam apenas o necessário para cada dia (cf. Lc 11,3), quando negou-se a interferir em questões relacionadas à divisão de herança, contando a parábola do “rico insensato” (cf. Lc 12,16-21), na apresentação das exigências para o seu seguimento, ao colocar a renúncia de todos os bens como condição para ser seu discípulo (cf. Lc 14,33). Como se vê, há uma insistência de Jesus ao apresentar o tema do uso das riquezas, e isso se deve à resistência dos discípulos, ou seja, faziam pouco caso com uma questão tão fundamental, a ponto de Jesus, por necessidade, tornar-se repetitivo.

Feitas as devidas considerações introdutórias, entramos diretamente no conteúdo da parábola, cujo enredo é sintetizado logo no primeiro versículo: “Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens” (v. 1). Embora se trate de uma parábola, alguns estudiosos acreditam que Jesus conhecesse uma história real semelhante a essa. Como na época havia uma forte concentração de terras em poucas mãos, esse versículo inicial descreve uma situação muito comum. Geralmente, os proprietários possuíam grandes latifúndios e não tinham condições de administrarem sozinhos. Por isso, confiavam a administração a terceiros, dando como pagamento uma comissão nos rendimentos. O administrador (em grego: οικονόμος = oikônomos), cujo significado literal é “aquele que cuida dos bens da casa” ou “regente da casa”, tinha total liberdade no gerenciamento dos negócios; isso significa que era uma pessoa que gozava de plena confiança do patrão, o que levava muitas vezes a abusos e corrupção. Porém, é interessante que a parábola não diz como o administrador esbanjava os bens do seu patrão. Isso poderia acontecer de diversas maneiras, inclusive ajudando aos mais necessitados, o que na ótica da economia e da cultura do acúmulo, ao contrário da lógica Reino de Deus, seria um modo de esbanjar.

Diante da acusação de esbanjar os bens que não lhe pertenciam, o destino do administrador não poderia ser outro, senão a demissão ao ser chamado pelo patrão: “Ele o chamou e lhe disse: ‘Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens’” (v. 2). Parece que o próprio administrador aceita ser tratado como desonesto, pois nem sequer pede perdão ou desculpas ao patrão. Chama a atenção o fato de que o patrão não apresenta nenhum dado concreto, mas julga o administrador apenas pelo que escuta a seu respeito, e logo decreta a demissão. É uma atitude arrogante, típica dos poderosos deste mundo.

Consciente da demissão, o administrador se preocupa apenas com o seu futuro. Isso o leva a uma profunda reflexão, expressa por um pequeno monólogo interior: “O administrador então começou a refletir: ‘o senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Ah, já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa, quando eu for afastado da administração’” (vv. 3-4). O monólogo interior era um refinado recurso literário bastante utilizado na literatura antiga greco-romana e muito apreciado por Lucas, o único autor do Novo Testamento que o utiliza. A função deste recurso é, antes de tudo, revelar aspectos do caráter de um personagem; o que se revela do administrador é que se trata de um homem calculista e prudente, consciente de suas limitações e preocupado com o futuro. O medo do trabalho braçal e a vergonha de mendigar (v. 3) o levam a uma tomada de decisão firme e corajosa, própria de quem fez uma ampla reflexão.

Da reflexão veio a decisão, e da decisão a atitude: “Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: ‘Quanto deves ao meu patrão?’ Ele respondeu: ‘Cem barris de óleo!’ O administrador disse: ‘Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!’ Depois ele perguntou a outro: ‘E tu, quanto deves?’ Ele respondeu: ‘Cem medidas de trigo’. O administrador disse: ‘Pega a tua conta e escreve oitenta’” (vv. 5-7). Temos aqui o coração da parábola. Ora, o sistema tributário da época era bastante abusivo, contrariando, inclusive, as leis do Antigo Testamento que proibiam a usura, ou seja, o empréstimo por juros (cf. Ex 22,19; 25,36-37; etc.). A reflexão do administrador partiu de um dilema: agradar ao patrão ou aos devedores? Pensando no futuro, preferiu a segunda opção e convidou os devedores a uma revisão nas contas.

Embora a parábola apresente apenas dois devedores, supõe-se que havia um número muito grande, devido às proporções e consequências do caso, a ponto de causar a sua demissão. Os dois casos descritos, um devedor de azeite e outro de trigo, ajudam a compreender que, mesmo tratando-se de quantias exorbitantes, se trata de produtos de subsistência e, embora de grande valor, eram necessidades primárias para a alimentação no dia-a-dia, o que vem a supor que os devedores eram pessoas pobres que se endividaram para garantir o pão cotidiano. A revisão nas contas prova que o administrador fez uma opção clara: escolheu o lado dos mais fracos, os endividados, tornando-se amigo deles (cf. v. 9). Muitos intérpretes, sem base alguma nas linhas e entrelinhas da parábola, dizem que o administrador com os supostos descontos de cinquenta por cento para um e vinte para o outro, estava apenas abrindo mão da sua desonesta comissão. Mas não há fundamentos claros nem na parábola e nem nos versículos explicativos que a seguem (vv. 9-13).

No final, até mesmo o patrão elogiou o administrador: “E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza” (v. 8a). Na verdade, bem mais que esperteza, o termo que Lucas utiliza equivale a prudência (em grego: φρονίμως = fronímos). Daí, também a observação conclusiva de Jesus, na segunda parte do versículo: “Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (v. 8b). A expressão “filhos da luz” designa aqui, obviamente, os membros da comunidade cristã; Jesus está denunciando que falta empenho e compromisso na edificação do Reino. Se os cristãos e cristãs se empenhassem na construção do Reino com o mesmo afinco com que os homens de negócios se empenham na obtenção de suas vantagens, o mundo seria diferente, com certeza. Não é um convite ao uso de práticas desonestas, obviamente, mas ao esforço contínuo para fazer o Reino de Deus acontecer.

As sentenças que seguem à parábola são de caráter sapiencial e visam elucidar e reforçar o seu sentido, como acenamos na introdução. Na primeira delas, chama a atenção a recomendação de Jesus: “E eu vos digo: usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (v. 9). Para Jesus, o dinheiro é sempre injusto porque através dele as pessoas se apossam do que deve pertencer a todos, os bens da criação, gerando divisão entre pobres e ricos, o que não corresponde aos planos de Deus que criou o mundo para a igualdade e a fraternidade. A palavra grega que o evangelista emprega como correspondente a dinheiro (μαμωνα – mamona) era também o título de uma divindade cananéia, a quem se atribuíam a prosperidade e o enriquecimento, o que justifica a denúncia de Jesus e do evangelista de que o dinheiro é fonte de idolatria; porém, na impossibilidade de viver sem ele, que ao menos seja utilizado para coisas boas em favor do próximo. Assim, Jesus eleva a amizade à dignidade de mandamento na sua comunidade. É claro que Jesus não concebe a amizade como algo que possa ser comprado; apenas recomenda que tudo o que o ser humano disponha deve ser usado em prol de relações sinceras e amorosas com Deus e com o próximo. O administrador foi solidário com os endividados, usando o dinheiro injusto para fazer amigos, ou seja, preferiu bens que não passam, e a amizade é um destes bens eternos, ao aumento dos lucros do seu patrão.

A sequência das sentenças reforça a necessidade de uma característica imprescindível no discipulado, a fidelidade: “Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?” (vv. 10-12). Talvez essa seja a parte mais lógica e óbvia de todo o texto. A fidelidade nas coisas de pouco valor habilita o ser humano a ser fiel também em coisas maiores. Fidelidade a Deus significa, na visão de Jesus, estar do lado dos pobres e necessitados, opção feita pelo administrador da parábola quando preferiu amenizar a situação dos endividados ao invés de aumentar os lucros do patrão.

Para concluir, juntemos algumas peças na montagem do “quadro” pintado por Lucas: o administrador foi “acusado de esbanjar os bens do patrão” (v. 1b) e chamado de desonesto somente pelo próprio patrão (v. 8a). Esse dado é muito importante para compreendermos a diferença dos pontos de vista. A visão do patrão era meramente acumulativa, pensava somente em lucros e, à medida em que o administrador diminuísse seus lucros no repasse dos bens administrados, não poderia ser acusado de outra coisa senão de desonestidade. Mas, a lógica do patrão é contrária à lógica do Reino. O projeto do Reino de Deus é incompatível com a lógica do acúmulo e do mercado. Diante dessa incompatibilidade, o ser humano é obrigado a tomar uma decisão e optar por um ou outro, como fica claro no último versículo: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (v. 13). Por incrível que pareça, o administrador, aparentemente, desonesto, acaba sendo o exemplo de quem levou a sério esse ensinamento e escolheu um único senhor, diante das duas opções: ajudando seu patrão no acúmulo, estaria servindo ao dinheiro; como preferiu ajudar aos pobres endividados, escolheu servir a Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: francornelio@gmail.com

sábado, setembro 14, 2019

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 15,1-32 (ANO C)




A liturgia deste vigésimo quarto domingo do Tempo Comum nos convida a ler uma das mais belas páginas do Evangelho segundo Lucas. O texto proposto – 15,1-32 – compreende as três “parábolas da misericórdia”: “a ovelha perdida e reencontrada” (vv. 4-7), “a moeda perdida e reencontrada” (vv. 8-10), e “o pai e os dois filhos” (vv. 11-32). Tanto na dimensão estética quanto na teológica, esse é, de fato, um texto que encanta. Por isso, não exageram os biblistas quando dizem que esse trecho é como se fosse “o Evangelho do Evangelho” ou o “coração do Evangelho”.  O contexto geral continua sendo aquele do caminho de Jesus para Jerusalém com seus discípulos e discípulas. Após apresentar as exigências necessárias para quem deseja entrar no seu discipulado, como refletimos no domingo passado (cf. Lc 14,25-33), hoje Ele nos convida a conhecer o rosto do seu Deus, o qual, mais que uma divindade é, sobretudo, um Pai. Embora o tema da misericórdia caracterize o Evangelho de Lucas do começo ao fim, foi este o texto que mais contribui para ganhar o título de “Evangelho da misericórdia”. Por sinal, hoje é uma das raras exceções em que a liturgia do tempo comum propõe a leitura de um capítulo inteiro de uma única vez, o que nos impede de comentar versículo por versículo, dada a extensão do texto. Por isso, faremos apenas um pequeno aceno às duas primeiras parábolas, reservando um comentário mais detalhado para a terceira, a do “pai e os dois filhos”.

Comecemos pela introdução: “Os publicanos e os pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus: ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’” (vv. 1-2). Jesus está diante de dois grupos bem distintos entre si: pessoas de má reputação (publicanos e pecadores), e pessoas religiosas e fiéis (fariseus e mestres da lei); um grupo se destacava pelo mau exemplo, e o outro pelo comportamento exemplar. Os “publicanos e pecadores”, como síntese de todas as pessoas rejeitadas, sobretudo pela religião, se aproximavam de Jesus para escutá-lo porque, finalmente, tinham encontrado alguém que os acolhia sem discriminações nem preconceitos, sem julgamentos, sem apontar o dedo. Isso terminava comprometendo a reputação de Jesus diante dos representantes e praticantes da religião oficial, “os fariseus e os mestres da lei”, considerados justos, devido à fiel obediência aos mandamentos. Esses identificam duas atitudes reprováveis em Jesus: acolher e comer com os pecadores.

O mais grave no comportamento de Jesus é, sem dúvidas, fazer refeição com os considerados pecadores; comer junto significa entrar em comunhão; no mundo antigo oriental, as refeições eram servidas em um único prato, que poderia ser colocado no centro da mesa, de onde todos se serviam, ou poderia ir passando de mão em mão, entre os convivas. Logo, se tivesse pessoas consideradas impuras na mesa, todos se contaminavam. Por isso, o comportamento de Jesus era considerado herético pelos fiéis cumpridores dos mandamentos, defensores fiéis da moral e dos bons costumes na época. Assim, identificamos, de imediato, os destinatários primeiros das parábolas: os fariseus e os mestres da lei. Esses, embora fossem considerados justos, reconhecidos pelo comportamento exemplar eram, para Jesus, os primeiros necessitados de conversão. Logo, muito mais que persuadir pecadores para a conversão, estas parábolas tem a função de abrir a mente dos que já se consideram justos, chamando-os a uma nova concepção sobre Deus.

Embora sejam três parábolas, o próprio autor considera o conjunto como se fosse apenas uma: “Então Jesus contou-lhes esta parábola” (v. 3). Isso significa que as três devem ser lidas juntas, pois compõem um único ensinamento. As duas primeiras têm a função didática de preparar a terceira, mas nem por isso são privadas de valor; ambas construídas a partir do trinômio “perda-reencontro-festa”, enfatizam a misericórdia de Deus que não permite que nenhum dos seus filhos se perca. Na primeira, da “ovelha perdida e reencontrada”, nos deparamos com categorias bastante comuns da Escritura hebraica, como pastor, ovelha rebanho (cf. Ez 18,23; Jer 24,7). Na segunda, da “moeda perdida e reencontrada”, a grande novidade é o fato de Deus ser apresentado como uma mulher; esse dado é muito significativo, pois reforça ainda mais o protagonismo feminino no evangelho de Lucas. Por ser considerada a obra prima de Lucas, daremos mais ênfase à terceira parábola, do “pai e os dois filhos”, uma vez que o título de “filho pródigo” é equivocado, como tem sugerido a exegese moderna.

Eis o texto: “Um homem tinha dois filhos” (v. 11); esse versículo é o verdadeiro título da parábola. Com esse dado, o evangelista já sinaliza que vai apresentar uma relação polêmica: quase sempre, as histórias bíblicas que envolvem dois filhos (irmãos) são conflituosas: Caim e Abel, Isaac e Ismael; Esaú e Jacó, Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42). O grande drama daquele homem, na verdade, é ter dois filhos que não se sentem irmãos. Nenhum dos dois filhos vivia uma relação de amor com o pai e nem entre si; antes, ambos o consideravam um patrão; o mais novo, bem mais ousado, toma uma decisão inusitada: “O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles” (v. 12). Embora não fosse comum para o mundo judeu, era possível que a herança fosse dividida com o pai ainda vivo. Porém, isso significava o rompimento total das relações: era como se o filho morresse para o pai e vice-versa. De acordo com a lei, ao filho mais novo correspondia somente um terço da herança, enquanto dois terços pertenciam ao primogênito (cf. Dt 21,17).

Além de se desligar da família, o filho mais novo rompe também com os laços culturais e religiosos, indo para “um lugar distante” (cf. v 13). Logo, aparece o primeiro traço que identifica o pai da parábola com o Deus-Pai de Jesus: a concessão da liberdade aos filhos. O pai poderia opor-se ao filho, impedindo sua partida ou negando a herança. O filho experimenta a liberdade, mas não mede as consequências de suas escolhas e, com o tempo, sente os efeitos dessas (cf. v. 14). A sua degradação chega ao ápice: se torna, praticamente, escravo de um estrangeiro, submetendo-se a cuidar de porcos (cf. v. 15). O porco era um animal impuro para os judeus; cuidar desses animais era uma verdadeira humilhação. Passando fome, tem vontade de comer, mas não tem direito sequer à comida dos porcos (cf. v. 16). O reconhecimento da situação de completa penúria e degradação, leva o filho mais novo a uma reflexão seguida de uma decisão: “Então caiu em si e disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; Já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’” (vv. 17-19). Aqui, não temos nenhum sinal de conversão, ao contrário do que afirmam as interpretações mais tradicionais. As motivações para a reflexão e decisão do rapaz voltar para casa foram meramente materiais: ele não sentiu falta do amor do pai, mas da mesa farta. Por isso, não pensa em reconquistar a dignidade de filho, mas a oportunidade de ser seu escravo, pois até aos escravos, o seu pai trata dignamente.

A decisão do retorno do filho, embora não seja ainda uma conversão, é um primeiro passo. Certamente, houve conversão; mas essa aconteceu devido à acolhida que o pai proporcionou: “Quando ele ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v. 20). A misericórdia e o amor de Deus precedem à conversão. Só se converte verdadeiramente quem se sente abraçado e beijado por um pai assim. O filho faz a sua declaração-confissão (v. 21), mas essa já não tem efeito; ele foi amado e perdoado antes. O pai não pede garantia de arrependimento nem promessa de bom comportamento no futuro; para ele, não importa o que o filho fez, nem o que disse; importa apenas que esteja na sua presença, sentindo seu abraço. O pai tem pressa em restituir a dignidade do filho e festejar o seu retorno: “O pai disse a um dos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa” (vv. 22-24). Túnica, anel e sandália são sinais de dignidade e representam a condição de filho reconquistada. O banquete com o novilho gordo é sinal de grande festa e alegria.

Se a parábola fosse mesmo do “filho pródigo”, poderia ser concluída aqui no versículo 24. De fato, esse versículo constitui o ápice do ensinamento: a passagem da morte para a vida e do perdido para o encontrado; essa dinâmica resume a missão e a vida de Jesus. Por isso, termina em banquete. Assim, Jesus justifica aos seus interlocutores, fariseus e mestres da lei, o seu comportamento e acolhida para com os pecadores e publicanos, considerados casos perdidos pelos mais devotos judeus. A misericórdia infinita do Pai já foi mostrada até aqui, quer dizer, o que Deus tem a oferecer a seus filhos. Mas Jesus quer ensinar mais; não basta sabermos que Deus é Pai; é preciso vivermos como irmãos. Por isso, a segunda parte da parábola visa o restabelecimento da fraternidade, a começar pela denúncia e superação da autossuficiência e do orgulho dos fariseus e mestres da lei, representados na parábola pelo filho mais velho: “O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança” (v. 25). A presença do filho mais velho no campo significa que ele estava cumprindo seus deveres; é a imagem dos fariseus cumprindo minuciosamente as prescrições da lei; para esses, qualquer comportamento diferente é inaceitável. A lei, como obrigação, é privada de alegria, por isso, o som da música, sinal de festa, o incomoda.

Curioso, mas precavido, o filho mais velho não enfrenta diretamente a situação, talvez com medo de se contaminar, como os fariseus. Pede informações a um dos criados (cf. v. 26), o qual lhe deixa à par da situação: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde” (v. 27). Ao invés de se alegrar, o filho mais velho fica com raiva, o que faz o Pai sair em sua procura (cf. v. 28). É importante como Jesus e o evangelista reforçam os traços do Pai: ele sai em busca de todos, pois a sua casa pertence a todos os seus filhos. A queixa do filho mais velho diante do Pai é de quem vivia uma relação retributiva, baseada no mérito: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (vv. 29-30). Além da presunção em reivindicar seus méritos (trabalhar tanto!), ainda denuncia os erros do outro. Essa é a imagem de quem não se sente filho de Deus, mas servo. Quem não se sente filho, tem dificuldade de reconhecer o outro como irmão, por isso, o filho mais velho chama o mais novo apenas de “esse teu filho”; é a mesma postura dos fariseus e mestres da lei que não se conformam porque Jesus acolhe os pecadores e come com eles (cf. v. 1-2).

Assim como Pai deu liberdade para o filho mais novo ir embora, também não obriga o filho mais velho a entrar na festa; apenas deixa claro que suas relações são livres e gratuitas, não considera o mérito mas apenas a disposição de deixar-se abraçar por ele, mostrando que tudo o que é seu é também de quem se sente ou quer ser filho seu: “Então o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu” (v. 31). Sempre que alguém decide retornar para sua casa, a recepção será festiva, porque é uma verdadeira ressurreição: “Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v. 32). O evangelista deixa a parábola aberta, sem conclusão. Não diz se o filho mais velho entrou na festa, se reconheceu o outro filho como irmão. O evangelista quis mostrar, partindo do auditório de Jesus e da sua comunidade, que a conversão é uma necessidade constante de cada um e cada uma, sendo que, muitas vezes, quem mais necessita é quem se sente mais justo e perfeito. Por isso, a interpretação mais comum hoje em dia é que nessa parábola o Pai é Deus, indiscutivelmente, Israel (os judeus) é o filho mais velho, o qual tem dificuldade de aceitar os pagãos e pecadores na comunidade, e o filho mais novo é a imagem dos pagãos e pecadores que a comunidade cristã deve acolher sem distinção e sem obriga-los a observar a Torá.

Como nenhum dos dois filhos correspondem ou corresponderam ao amor do Pai, o evangelista convida o leitor e a leitora a ser um terceiro filho, capaz de aprender dos erros e acertos dos dois da parábola, sobretudo na concepção da imagem de Deus-Pai: alguém que acolhe a todos, independentemente de onde vem e do que fez. É dessa síntese de pagãos e judeus que Lucas construirá a primeira imagem do cristianismo em sua segunda obra (Atos dos Apóstolos).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 07, 2019

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)




Neste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, a liturgia continua a nos situar na dinâmica do caminho de Jesus para Jerusalém. Como já sabemos, além do ato de caminhar, este caminho constitui-se como um itinerário catequético e teológico, composto pelos principais elementos da formação do discipulado de Jesus na perspectiva do evangelista Lucas, sendo também uma projeção antecipada da natureza missionária da comunidade cristã, a Igreja, a qual deve estar sempre em saída, apesar das dificuldades e perigos que a imagem do caminho/estrada representa. O texto evangélico de hoje – Lucas 14,25-33 – apresenta a retomada da caminhada propriamente dita, após uma parada num dia de sábado para o culto da sinagoga, provavelmente, e um almoço festivo na casa de um dos chefes dos fariseus, conforme vimos no evangelho do domingo passado (cf. Lc 14,1.7-14). Por sinal, a dinâmica entre a casa e a estrada representam uma dimensão importante no ministério de Jesus. Como os espaços institucionalizados eram hostis à sua mensagem, Ele improvisa e propõe a casa e a estrada como espaços alternativos para a difusão do seu Evangelho, sugestão que foi bem acolhida pelas primeiras comunidades cristãs, como o próprio Lucas mostrará no segundo volume de sua obra, o Livro dos Atos dos Apóstolos.

À medida em que avança em seu percurso rumo à Jerusalém, Jesus aprofunda o conteúdo da sua catequese, deixando cada vez mais claras quais são as exigências para o seu discipulado. O evangelho de hoje mostra Ele apresentando três condições indispensáveis para quem pretende ser seu discípulo ou discípula, formuladas por Lucas a partir de elementos comuns a outros evangelhos (Mateus, Marcos e alguns apócrifos), mas ilustradas por duas pequenas parábolas que são exclusivas do seu evangelho, o que confere a todo o texto um caráter de originalidade lucana. Conforme veremos na continuidade da reflexão, as condições que Jesus apresenta no evangelho de hoje não são meras sugestões, mas exigências indispensáveis ao discipulado, o que fica claro pela fórmula com a qual cada uma é concluída: “não pode ser meu discípulo” (vv. 26.27.33).

O primeiro versículo funciona como introdução, ao mesmo tempo em que recorda o contexto do caminho: “Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse:” (25). É importante esse dado, pois mostra que tanto a mensagem quanto os atos de Jesus eram interpelantes, a ponto de atrair multidões. Ele impressionava a todos, tanto positivamente quanto negativamente. Porém, muita gente que o acompanhava não tinha clareza das exigências que o seu seguimento implicava, e Ele tinha consciência disso. Ora, ainda no início do caminho, Ele tinha chamado o seu grupo de “pequeno rebanho” (cf. Lc 12,32), sabendo que suas exigências eram complexas e não seriam assimiladas com facilidade. Por isso, ao ver muita gente perto de si, Jesus desconfia que houvesse equívoco de interpretação da sua mensagem, e procura esclarecer o que é necessário para alguém, não apenas caminhar consigo, mas tornar-se seu discípulo.

Como o discipulado tem suas exigências, e é necessário conhecê-las bem, para não tomar uma decisão precipitada e equivocada, Jesus esclarece quais são as principais. Eis a primeira: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (v. 26). Essa era uma das exigências mais sérias do discipulado de Jesus, considerando a importância e a sacralidade do clã para o mundo semita. Romper com os laços familiares era um grande desafio. Aqui, a tradução do texto litúrgico procura suavizar as palavras de Jesus, pois no texto original o evangelista emprega um verbo que corresponde a odiar – em grego: μισέω = missêo –, ao invés de desapegar, sendo que odiar na cultura semita significa também “amar menos”, e é esse o sentido atribuído pelo evangelista nesta passagem. É claro que Jesus não estimula a disseminação do ódio; o que Ele diz aqui, portanto, significa que para alguém entrar no seu discipulado é preciso amar menos do que a Ele até mesmo as pessoas mais caras que temos, como os familiares. A opção pelo Reino torna todo o restante relativo, inclusive a própria vida pessoal e familiar. A fórmula conclusiva da exigência, “não pode ser meu discípulo”, mostra que essa é uma condição indispensável: ou faz isso ou não entra no discipulado!

A segunda exigência é consequência da primeira, que já determinava a renúncia à própria vida, sendo ainda mais impactante, considerando o sentido da cruz aqui empregado: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). Ora, tanto no tempo de Jesus quanto na época da redação dos evangelhos, a cruz não era um sinal sagrado como hoje, mas um sinal de condenação e maldição, aplicada às pessoas subversivas que ousavam contestar a “pax romana”. No contexto específico deste texto, a cruz significa perigo iminente de morte, e não a capacidade de suportar as provações e dificuldades do dia-a-dia com paciência e aceitação passiva, como algumas interpretações fundamentalistas pregam, transformando o Evangelho num discurso de resignação, quando na verdade é um manifesto de contestação ao(s) sistema(s). A disponibilidade para carregar a cruz significa, portanto, a disposição para entregar a vida por causa do Reino, e quem não tem essa disposição não pode ser discípulo ou discípula de Jesus. A cruz era o destino das pessoas inquietas, inconformadas e subversivas, e Jesus exige que seus discípulos sejam assim.

Intercalando as duas primeiras com a terceira exigência para o discipulado, Jesus conta duas pequenas parábolas para motivar os seus interlocutores à reflexão; ambas, visam ensinar que o discipulado, ou seja, a vida cristã, exige seriedade e não pode ser motivada por decisões repentinas ou emoções passageiras. Eis a primeira parábola: “Com efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, Ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!” (vv. 28-30). A opção pelo Reino, ou seja, pelo discipulado de Jesus, exige uma séria reflexão, sobretudo, no que diz respeito às consequências. O cálculo minucioso dos gastos que um construtor deve fazer antes de iniciar um empreendimento significa a consciência das exigências que o discipulado implica. É claro que o Reino não pode ser experimentado a partir de cálculos minimalistas, mas quem pretende ser discípulo ou discípula deve estar ciente, com clareza, do que condiz ou não com o seguimento de Jesus.

A segunda parábola tem o mesmo sentido da primeira: “Ou ainda: qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar condições de paz” (vv. 31-32). Obviamente, o objetivo de Jesus com esse exemplo não é convocar os discípulos à promoção de guerra, tampouco compará-los a um rei. Assim como na primeira, o que Ele quer ensinar com essa parábola é a necessidade da reflexão antes de qualquer escolha. Independente da instância da vida, uma decisão equivocada traz, inevitavelmente, consequências danosas. Acompanhar Jesus sem ter clareza das exigências concretas que isso implica terminará em decepção, constrangimento e frustração pessoal.

Por fim, Ele apresenta a terceira condição: “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (v. 33). Jesus quer pessoas completamente livres no seu seguimento. O apego aos bens sempre foi um dos grandes obstáculos para isso; o fato por último entre as três condições, sendo preparado pelas duas parábolas, significa que era uma exigência mais desafiadora até mesmo do que o desapego à família. Ora, se trata de uma exigência que pressupõe uma confiança ilimitada na providência de Deus. As exigências anteriores, desapego à família e disponibilidade para a cruz, poderiam ser observadas até de maneira fingida, com meios termos, sendo possível voltar atrás, em caso de arrependimento. A renúncia aos bens, pelo contrário, não poderia ser remediada; uma vez renunciando-os, seria para sempre, já que essa atitude consistia em vender tudo o que possuía e distribuir aos pobres. Portanto, essa condição exige uma decisão irrevogável, sendo necessária uma reflexão mais aprofundada e séria, por isso, a necessidade das duas parábolas como introdução preparatória.

Como acenamos no início, pela fórmula conclusiva de cada uma das exigências – “não pode ser meu discípulo” – Jesus não está propondo sugestões, mas apresentando condições indispensáveis e inegociáveis para alguém fazer parte do seu discipulado. Diante disso, devemos refletir pessoalmente e comunitariamente se, na situação em que nos encontramos, com o que temos e o que somos, estamos sendo, de fato, discípulos ou discípulas de Jesus? A positividade ou negatividade da nossa resposta depende das renúncias e opções que fazemos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: fco_cornelio.fr@hotmail.com

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...