sábado, fevereiro 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 9,2-10 (ANO B)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma utiliza um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos. Por ocasião do ciclo litúrgico B, o texto proposto para este ano é o relato de Marcos: 17,1-9. Por se tratar do Evangelho mais antigo, os textos de Marcos são sempre muito originais, e a passagem lida na liturgia deste domingo demonstra isso. É um texto muito rico em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada, a começar pela definição do gênero literário da teofania, ao qual pertence o texto. Etimologicamente, teofania significa manifestação divina; é uma palavra de origem grega, formada da junção do substantivo “Theós” (Deus) com o verbo “faino” (aparecer, manifestar). Enquanto gênero literário, teofania designa o tipo de relato que descreve uma manifestação solene de Deus. Geralmente, são relatos carregados de elementos simbólicos, o que se vê no episódio da transfiguração, como a brancura, a voz celestial. Embora as teofanias sejam mais frequentes no Antigo Testamento, o Novo Testamento contém algumas, como o batismo de Jesus, a transfiguração, as aparições pascais e o relato de Pentecostes.

A nível de contexto narrativo, é importante recordar o lugar do texto na estrutura do Evangelho. Está localizado no início da segunda parte da obra, considerando a divisão tradicional do Evangelho em duas partes – I) Mc 1,1–8,30; II) Mc 8,31–16,8. Esse episódio é a sequência imediata dos acontecimentos da região de Cesareia de Filipe, que compreendem a confissão de Pedro (Mc 8,27-30); o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-32); a repreensão de Jesus a Pedro (Mc 8,33), e a declaração das exigências para o discipulado (Mc 9,34-38). Se trata de uma sequência narrativa reveladora da messianidade e do destino de Jesus, cujo ápice é exatamente o episódio da transfiguração. O primeiro anúncio da paixão deixou os discípulos profundamente assustados, pois a concepção de messias que eles tinham em mente não era compatível com o sofrimento e a cruz anunciados por Jesus. Criou-se uma verdadeira crise no grupo, tanto nas convicções do seguimento quanto na relação pessoal deles com Jesus e vice-versa. Jesus chegou a chamar Pedro de satanás (Mt 8,33), devido à resistência em aceitar um messias tão diferente como ele estava se revelando. Ora, esperava-se um messias glorioso, valente e guerreiro, conforme as expectativas da época, fruto da ideologia nacionalista davídica, enquanto Jesus anunciou a doação da vida, comportando sofrimento e cruz, se necessário, para alcançar a glória e a vida plena. Inclusive, impôs a disposição para carregar a cruz e doar a própria vida como condição para fazer parte do seu discipulado. A transfiguração é, portanto, a resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos acerca da sua identidade, e uma demonstração de que cruz e glória fazem parte de um mesmo caminho: o destino do ser humano é a glória, quer dizer, a realização plena, mas essa passa pelo sofrimento, cuja expressão máxima é a cruz. Trata-se, portanto, de um texto catequético e teológico, e não de uma crônica. Inclusive, um número considerável de estudiosos defende que o episódio da transfiguração foi construído a partir de um relato de aparição do Ressuscitado, que Marcos adaptou às necessidades catequéticas da sua comunidade, sendo posteriormente seguido pelos outros sinóticos (Mt; Lc).

Feita a contextualização, comecemos, então, a olhar para o texto, partindo do primeiro versículo: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2). Aqui, a versão litúrgica do texto nos privou de uma expressão muito importante: o indicativo cronológico “Seis dias depois”, presente no texto original, substituído na tradução do lecionário pela genérica expressão “Naquele tempo”. O indicativo “seis dias depois” garante a relação do episódio da transfiguração com os últimos acontecimentos narrados, começando pela confissão de Pedro, conforme recordamos acima na contextualização. Perceber essa relação é essencial para a compreensão do texto. Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o até de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. A transfiguração, portanto, é resposta a tudo isso. Por isso, “seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude, manifestando-se em sua máxima humanização. Como se sabe, as indicações temporais na Bíblia possuem mais valor simbólico do que cronológico. O sexto dia foi o dia da criação do homem e da mulher (Gn 1,26-31), na criação originária, e é nesse dia que Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização. Logo, ele é o modelo de humanidade.

Diz o texto que Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. Se por um lado a escolha desses três discípulos significa um certo privilégio, por outro indica mais uma necessidade. Certamente, eles não eram os melhores nem os piores, mas possuíam certas características que os tornavam mais difíceis de lidar, demonstrando mais dificuldades de assimilar os ensinamentos de Jesus enquanto Messias sofredor. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45; Mt 20,20-28), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Mc 9,38-39). Os dois, João e Tiago, também foram repreendidos quando quiseram tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele, como de fato estarão. Há outros momentos em que Jesus prefere estar só com eles três, como no episódio da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37) e na oração e agonia no Getsêmani (Mc 14,37). Isso significa que eles mudaram com o tempo, não se tornando perfeitos, mas aprendendo a cada dia com Jesus, à medida em que conviviam com ele e ouviam seus ensinamentos.

O indicativo espacial também é de grande importância: «e os levou sozinhos, a um lugar à parte, sobre uma alta montanha» (v. 2b). Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Tanto em Israel quanto nas culturas circunvizinhas, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. Por isso, a montanha tornou-se o lugar da revelação no Antigo Testamento (Ex 19,16; 24,15). Embora a tradição tenha identificado essa montanha com o monte Tabor, esse dado não possui fundamento nos evangelhos. Essa denominação começou com Cirilo de Jerusalém, no séc. IV, e foi consolidada por São Jerônimo, mas hoje é considerada sem fundamento. É preferível mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico. Toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.

No alto da montanha, Jesus «transfigurou-se diante deles» (v. 2c), quer dizer que passou por uma transformação no seu aspecto, uma metamorfose. A sua figura mudou. É esse o significado exato do verbo empregado pelo evangelista (μεταμορφόομαι – metamorfóomai). Diante da incredulidade e resistência dos discípulos em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes: «Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar» (v. 3). As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; o brilho é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Somente Marcos faz referência ao fato de nenhuma lavadeira ser capaz de deixar uma roupa tão branca como ficaram as vestes de Jesus. Duas intenções estão por trás desse detalhe: apresentar uma atividade do lar, reforçando a ideia e a importância da comunidade como casa, o espaço embrionário do Reino, e mostrar que a vida em plenitude (condição gloriosa) almejada pelo ser humano não pode ser conquistada por esforço próprio, mas somente por graça de Deus, ou seja, tem coisas que só Deus pode fazer. As vestes brancas são sinais da identidade divina e da pertença ao mundo de Deus e dos ressuscitados.

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: «Apareceram-lhe Elias e Moisés e estavam conversando com Jesus» (v. 4). Estes personagens representam a Lei e os Profetas, obviamente, mas também a própria identidade de Israel. Eles lembram o conjunto da esperança e das promessas acumuladas ao longo do tempo, enquanto Jesus é o cumprimento, a verdadeira realização, embora por caminhos e meios diferentes daqueles percorridos por Moisés e Elias. Temos, com isso, mais uma iniciativa de Deus para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os Profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Inclusive, Marcos não diz nada sobre o conteúdo ou o tema do colóquio dos três. Apenas diz que eles conversavam. Os discípulos não participam sequer como ouvintes, apenas vêem. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim, enquanto cumprimento e plenitude. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã senão através de Jesus. Moisés e Elias entregam a Jesus a revelação parcial que tinha recebido, como é próprio da antiga aliança, e Jesus aperfeiçoa, completa. Por isso, é necessário passar por ele.

Pedro, ousado como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas reprováveis, apesar das boas intenções: «Então Pedro, tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”» (v. 5). Três elementos são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e o não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: «uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias». Jesus ainda não ocupava o centro da vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu evangelho como centro. O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda (em grego: σκηνή – skenê) era o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o pleno revelador e lugar do encontro com Deus.

A falta de sentido nas palavras de Pedro tem uma explicação, como mostra o texto: «Pedro não sabia o que dizer, pois todos estavam com muito medo» (v. 6). O medo é o grande obstáculo para a comunidade, sobretudo, o medo do que é novo e inesperado. O medo gera incompreensão e insegurança. A comunidade marcada pelo medo não sabe o que diz, diz o que não sabe, enfim, diz coisas erradas. O medo bloqueia a sobriedade do anúncio. Onde o medo reside, o anúncio sai distorcido. As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o interrompe: «Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz”» (v. 7). Ora, diante da incompreensão de Pedro, o Pai se manifesta, chamando a sua atenção. A nuvem é sinal da manifestação e da presença de Deus, desde o Antigo Testamento, sendo um elemento marcante na maioria das teofanias bíblicas (Ex 24,16). As palavras que saem da nuvem são praticamente as mesmas do episódio do batismo (Mc 1,11), à exceção do imperativo da escuta: «Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz». Outra diferença é que, no batismo, a voz foi dirigida a Jesus, enquanto aqui na transfiguração é dirigida aos discípulos. Para compreender a importância dessas palavras devemos recordar o contexto, como fizemos na introdução. O grupo dos discípulos vivia um momento de crise exatamente porque eles estavam com dificuldade de ouvir o que Jesus dizia, como o anúncio da paixão. Na Bíblia, a escuta significa adesão e seguimento. E os discípulos estavam com dificuldade de seguir e aderir plenamente a Jesus, pois sonhavam com o messias poderoso e guerreiro enquanto Jesus se revelava o messias pobre sofredor. O imperativo “escutai-o” é dirigido a todos os discípulos, principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés do que a Jesus. Escutar Jesus é um imperativo para a comunidade cristã. Quem não o escuta, não pode segui-lo nem testemunhar.

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas, já disseram o que tinham a dizer, deram o que tinham de dar. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro e seus companheiros tentavam constantemente evitar, por medo da cruz. Por isso, o próprio Deus, o Pai, precisou intervir. Os discípulos pareciam insistir ouvindo mais a Moisés e Elias do que a Jesus. Continuavam apegados às tradições e preceitos, fechados à novidade de Jesus. E a voz do Pai vem corroborar o programa de Jesus. Vem confirmar que o seu modo de anunciar e construir o Reino, com palavras e gestos de libertação, é confirmação da sua fidelidade. Isso não diminui o valor de Moisés e nem de Elias, mas eles cumpriram a missão que lhes fora confiada no momento oportuno. É claro que seus exemplos continuam importantes, bem como de todos os profetas. Mas Jesus é o critério e o parâmetro para a comunidade cristã. Tudo o que a comunidade vive e anuncia deve estar alinhado ao seu Evangelho. Por isso, «E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles» (v. 8). Ora, Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu Evangelho.

Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro. Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição. A ressurreição não pode ser compreendida sem antes ser experimentada e celebrada. De fato, compreender o significado de “ressuscitar dos mortos” para quem tem dificuldade de conviver com a morte e a dor é um grande desafio. De todo modo, mesmo ainda marcados pela incompreensão, é salutar a discussão sobre a ressurreição: «comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”» (v. 10). O grande debate das comunidades primitivas era sobre o significado da ressurreição e as implicações concretas que a fé nela representava na vida cotidiana. Aqui está um direcionamento para as comunidades cristãs de todos os tempos: as discussões e reflexões só são válidas quanto são voltadas para a vida, e a vida em plenitude, cujo expressão máxima é a ressurreição. É a fé na ressurreição que faz os cristãos e cristãs sonharem com um mundo novo e, por conseguinte, lutarem para construí-lo.

Que a liturgia deste segundo domingo da Quaresma ajude a nos conscientizar mais sobre o que é essencial na vida de discípulos e discípulas de Jesus, tornando nossas comunidades sempre mais parecidas com o Reino de Deus, sendo espaços de humanização e fraternidade. Que o percurso da Quaresma favoreça uma escuta sempre mais atenta e profunda ao tudo o que Jesus tem a falar. Somente escutando bem poderemos tornar o mundo mais humanizado e mais parecido com o seu projeto.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 17, 2024

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 1,12-15 (ANO B)

 

Passada uma sequência de seis domingos, interrompe-se o tempo comum para a vivência de um dos tempos mais fortes do ano litúrgico, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Inserida no ciclo pascal e distribuída ao longo de quarenta dias, a Quaresma é, na verdade, mais do que um tempo. É um verdadeiro itinerário catequético e espiritual, um caminho de conversão pessoal e comunitária, uma oportunidade de reconciliação de cada pessoa com Deus e consigo mesma, tendo em vista a celebração e a acolhida da Páscoa com sua riqueza de dons, a razão da fé cristã. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende o relato das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de Marcos.

Como o relato das tentações em Marcos é muito curto, a liturgia acrescentou a leitura do primeiro resumo do ministério de Jesus na Galileia que, por sinal, combina muito bem com o início da Quaresma, pois contém o explícito convite à conversão, o fio condutor de toda a espiritualidade quaresmal. Por isso, o evangelho de hoje é Mc 1,12-15. Apesar de breve, é um texto bastante rico teologicamente, e de grande valor catequético para o percurso de preparação à Páscoa do Senhor. É surpreendente a capacidade de síntese do evangelista Marcos: em apenas quatro versículos, ele consegue transmitir muita coisa da vida de Jesus; claro que sob uma perspectiva catequética e teológica, e não propriamente histórica. Antes de nos determos diretamente no texto, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto em que está inserido, recordando os eventos antecedentes. O episódio que o precede de imediato é o batismo de Jesus por João no Jordão (Mc 1,9-11). Enquanto realizava sua missão de batizador, João havia anunciado que viria alguém “mais forte” do que ele, o qual batizaria no Espírito Santo (vv. 7-8). De fato, veio esse “mais forte”, que foi batizado por João (v. 9), e sobre ele o Espírito se manifestou em forma de pomba (v. 10), e foi declarado pelo Pai como o “Filho Amado” que lhe dá prazer (v. 11). O texto de hoje é a sequência imediata desta série de eventos e sinais introdutórios da missão de Jesus.

Eis o início do texto: «logo o Espírito levou Jesus para o deserto» (v. 12). A versão litúrgica omitiu o advérbio “logo” ou “imediatamente” (em grego: εύθύς – euthis), mas é importante recordar, pois sua ausência compromete um pouco o sentido do texto, porque esconde o caráter de urgência e imediatez da ação do Espírito em impelir Jesus para o deserto. Por sinal, o verbo empregado pelo evangelista é muito mais intenso do que “levar”, que aparece na versão litúrgica; trata-se do verbo grego “ekbálo” (ἐκβάλλω), que significa empurrar, atirar, impelir, lançar fora com força. Essas observações são importantes para compreender a urgência do agir salvífico do Espírito e de Jesus. Significa que não havia tempo a perder; a situação caótica do mundo não permitia esperar. E a proclamação solene como “Filho Amado”, no batismo, não o isentou das provações e contradições da vida. A ida ao deserto, obviamente, não é apenas um movimento físico, mas um indicativo teológico. O deserto é um elemento de rico significado para a tradição bíblica. Nesse texto indica, antes de tudo, que Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos e perigos pelos quais esse povo passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra, e ao longo de toda a história, incluindo os tempos obscuros de dominação e exploração romana. Assim, também o caminho de Jesus até a cruz e ressurreição será marcado por perigos e provas. Há, portanto, uma verdadeira pedagogia do deserto na Bíblia, e Jesus a atualiza com este episódio.

Embora o deserto evoque provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus. Por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,16). A experiência do deserto na vida de Jesus representa, portanto, uma confirmação da sua condição de “Filho Amado” do Pai: «E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás» (v. 13a). Associando deserto à provação, o evangelista chama a atenção da sua comunidade para um aspecto muito importante da vida cristã: deixar-se conduzir pelo Espírito não torna a pessoa imune às tentações e dificuldades que a vida apresenta. O tempo de permanência no deserto – quarenta dias – também possui um rico simbolismo na Bíblia. É uma clara alusão à experiência do êxodo, marcada por quarenta anos de caminhada no deserto (Nm 32,13; Dt 8,2), mas também a outros acontecimentos importantes do Antigo Testamento, como a duração do dilúvio de quarenta dias e quarenta noites (Gn 7,4.12.17), a caminhada de Elias rumo ao monte Horeb (1Rs 19,8), e outros. Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova, e assim é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos a uma vida vigilante sem jamais cair em comodismos. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores de poder.

O tentador, segundo Marcos, é Satanás (em grego: σατανάς), e significa o adversário, aquele que se opõe ao plano de Deus. Não é um indivíduo ou um ser específico, mas toda e qualquer realidade adversa ao Reino de Deus. A vida cristã é um confronto constante com essa realidade. No decorrer do Evangelho, o adversário de Jesus assumirá diversos rostos: os fariseus, a hierarquia religiosa de Jerusalém, o poder político romano e até mesmo os seus discípulos (Mc 8,33), quando Pedro será explicitamente chamado de satanás e pedra de tropeço por opor-se aos propósitos do Reino de Deus. É importante também perceber que, ao contrário de Mateus e Lucas, Marcos não faz a mínima referência ao conteúdo das tentações, nem à quantidade e nem ao jejum praticado por Jesus; ao invés de empobrecer, esse dado só enriquece o seu relato. Ora, ao não descrever em pormenores essa realidade simbólica, o evangelista ajuda sua comunidade a não idealizar nem fantasiar uma cena, mas enfatiza que as tentações são imprevisíveis e indescritíveis porque são muitas e, portanto, não podem ser catalogadas ou delimitadas; a qualquer momento podem surgir, e isso durante toda a vida. De fato, sendo apresentadas logo no início da vida pública de Jesus, as tentações funcionam como um ensaio, indicando, assim, que durante toda a sua vida ele foi tentado, ou seja, posto à prova.

A segunda parte do versículo evoca a superação da prova com a conquista da paz messiânica: «Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam» (v. 13b). Ao invés da expressão animais selvagens, a palavra “feras” corresponde melhor ao termo empregado na língua original do texto (em grego: θερίων– therion). Inclusive, evidencia melhor o contraste com anjos. A convivência de Jesus entre as feras é um dado exclusivo de Marcos, enquanto o dado do serviço dos anjos é compartilhado também por Mateus (Mt 4,11). Lucas omite os dois dados. A presença das feras junto a Jesus significa que o antigo sonho profético de harmonia entre todos os elementos da criação é plenamente recuperado e realizado. Aquilo que fora sonhado durante muitos séculos por tantas gerações, tem em Jesus a oportunidade de ser realizado. A presença de Jesus entre feras e anjos significa sua missão de reconciliar o mundo consigo mesmo e com Deus. Jesus é habilitado pelo Pai, como “Filho Amado”, para combater as forças do mal e vencê-las pelo amor, fazendo acontecer a nova humanidade, instaurando, de fato, os “novos céus e nova terra” (Is 11,1-9). O serviço dos anjos quer dizer a adesão ao Reino da parte daqueles que compreendem a centralidade do Evangelho: servir por amor é o triunfo do bem. Feras e anjos juntos, tendo Jesus ao centro, significa a convivência pacífica entre todos os seres, por mais diferentes que sejam. É a criação recuperando sua ordem original. É imagem do mundo humanizado pelo Evangelho. As forças do mal já não têm o que fazer, se tornam impotentes quando o bem é abraçado e se faz serviço. A ida de Jesus pelo deserto é, portanto, uma antecipação e síntese de toda a sua vida. Quer dizer que o seu programa consiste no combate ao mal e a instauração definitiva do bem, cujo resultado é a plena humanização do mundo.

Aquilo que parecia apenas um ideal romântico, começa a concretizar-se com o anúncio do Evangelho e a instauração do Reino de Deus. Por isso, o evangelista afirmar que «Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus» (v. 14). Temos aqui um divisor de águas na vida de Jesus: sendo comandada por Herodes (cf. Mc 6,17), a prisão de João se torna um apelo urgente para a instauração do Reino de Deus; é um triunfo temporário de satanás, o adversário, personificado no algoz do Batista, que precisa urgentemente ser combatido. A ação de satanás se torna evidente quando o sistema dominante oprime e mata. Quem se deixa conduzir pelo Espírito, não pode assistir passivamente a essa realidade. Por isso, Jesus entra em cena com seu anúncio do Evangelho de Deus. Evangelho, cujo significado literal é boa notícia, significa, em Marcos, tanto o conteúdo da pregação de Jesus quanto ele mesmo; o que Jesus diz é boa notícia, e a sua pessoa é a grande boa notícia de Deus à humanidade. E a luta contra o mal empreendida por Jesus não se dará pela força, nem pelo poder, mas pelo anúncio do “Evangelho de Deus”, ou seja, pelo seu jeito mesmo de ser e de viver. E ele mesmo é o Evangelho de Deus, enquanto Filho, enviado para humanizar o mundo, mediante sua mensagem e, sobretudo, o estilo de vida. Por isso, o Evangelho de Deus e o Evangelho de Jesus são uma coisa só, porque é a sua própria pessoa. É Jesus de Nazaré, aquele passou a vida fazendo o bem ( At 10,38).

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus e o convite à conversão: «O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. Aqui, o evangelista se refere ao tempo com o termo grego kairós (καιρός), que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. É o tempo que os profetas do Antigo Testamento tanto sonharam. E o inaugurador desse tempo é Jesus. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser desperdiçada e nem adiada. E esse mundo novo é o Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, que consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época. É claro que essa proposta continua é válida para todos os tempos.

Não é fácil dar uma definição completa e precisa de Reino de Deus. Nem os evangelhos dão, apesar das inúmeras referências que fazem. O próprio Jesus, quando fala do Reino de Deus não o faz a partir de conceitos, mas com parábolas, que têm a função de tornar o ensinamento mais acessível e, ao mesmo tempo, manter um certo mistério. Contudo, é certo que o Reino de Deus não é uma promessa de esperança para um bem-estar futuro, não é uma promessa para o além, mas a proposta de Deus para o hoje da história. No Pai-nosso, a oração cristã por excelência, não se pede para alcançar o Reino no futuro, mas que o Reino venha até nós. Logo, trata-se de algo concreto e urgente. A instauração do Reino consiste na transformação deste mundo num mundo novo, numa sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcado pela igualdade e fraternidade. Resumindo, podemos dizer que a o Reino é a realização do projeto libertador de Deus no mundo, que consiste, acima de tudo, num mundo humanizado. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Aqui, mais do que a temporalidade do Reino, a proximidade exprime a materialidade. A presença de Jesus no mundo significa que o Reino de Deus começou a ser construído. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho. A participação na comunidade da antiga aliança, por exemplo, dependia de questões genealógica e étnica, além da observação minuciosa de inúmeros preceitos. O Reino de Deus comporta uma lógica diferente, tendo como condição a adesão ao imperativo «Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15a). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. Converter-se e crer no Evangelho é, portanto, uma atitude contínua. Ora, converter-se não significa assimilar um rito, nem intensificar as práticas penitenciais e devocionais; não significa tornar-se uma pessoa mais religiosa. Conversão significa mudança radical de mentalidade, que envolve o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho, cujo resultado concreto é a assimilação do estilo de vida de Jesus de Nazaré. E crer no Evangelho, por consequência, significa aceitar e aderir ao projeto libertador de Deus por meio de Jesus Cristo, fazendo opções iguais às dele.

A Quaresma, portanto, mais do que um tempo, é um caminho oportuno para a conversão e a renovação das convicções do seguimento de Jesus e da adesão ao seu projeto de Reino que, desde o primeiro momento, se mostra incompatível com os reinos deste mundo. Por isso, para abraçá-lo é necessário converter-se e crer no Evangelho. E para ajudar a trilhar esse caminho com mais fidelidade, a Igreja no Brasil oferece a Campanha da Fraternidade como instrumento de vivência da espiritualidade quaresmal e oportunidade de reflexão sobre a amizade, neste ano. É da fraternidade que emana a amizade. O cultivo da amizade significa o aprofundamento da fraternidade. Jesus quer que seus discípulos e discípulas sejam, acima de tudo, irmãos e irmãs uns dos outros e de todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,40-45 (ANO B)

Com a liturgia deste sexto domingo do tempo comum, concluímos a leitura do primeiro capítulo do Evangelho de Marcos. Estamos acompanhando ainda os primeiros passos do ministério de Jesus na Galileia. O texto proposto para hoje – Mc 1,40-45 – apresenta continuidade com o episódio anterior e, ao mesmo tempo, novidade, de modo que podemos perceber uma certa evolução na atuação de Jesus, com uma abertura cada vez maior em relação aos destinatários da sua ação libertadora. Além da expansão geográfica do seu agir, a intensidade da ação relatada no texto de hoje também evidencia essa evolução: da expulsão de um espírito mau (Mc 1,21-28 – evangelho do 4º domingo), passou à cura de uma mulher com febre, a sogra de Pedro (Mc 1,29-39 – evangelho do 5º domingo), e hoje chega à cura de um leproso. Considerando a gravidade da lepra para a época, podemos considerar o evangelho de hoje como ápice desta primeira fase do ministério de Jesus. Ele começa demonstrando autoridade ao intervir questões mais simples, como a realização de um exorcismo, até a libertação de um mal sem cura, como era considerada a lepra. Esse mesmo episódio é contado também pelos outros sinóticos (Mt 8,1-4; Lc 5,12-14), mas a versão de Marcos é mais rica, tanto pela maneira de contá-lo quanto pela posição que ocupa no conjunto do Evangelho. Com a liturgia de hoje, conclui-se a primeira etapa sequenciada da Leitura dominical do Evangelho de Marcos, que será interrompida no próximo domingo, o primeiro da Quaresma, e retornará de maneira semi-contínua somente após a conclusão do ciclo pascal.

Até então, a atuação de Jesus tinha se desenvolvido no âmbito do espaço urbano, ou seja, dentro da cidade de Cafarnaum: pregação e exorcismo na sinagoga (Mc 1,21-28) e cura na casa de Simão (Mc 1,29-34). Isso levou os discípulos à tentação do comodismo, propondo a centralização e a fixação da atividade de Jesus em um espaço delimitado, devido ao aparente sucesso inicial (Mc 1,28.37). Diante da proposta absurda dos discípulos, Jesus propôs a descentralização, com o deslocamento para as margens, as periferias, como se pode concluir por esta afirmação: «Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim» (Mc 1,38). O evangelho de hoje mostra, portanto, a ação de Jesus “em outros lugares”, comunicando vida, libertação e humanização, já que era impossível encontrar-se com um leproso dentro da cidade, uma vez que a Lei determinava o seu isolamento total: «Enquanto durar a sua enfermidade, o leproso ficará impuro e, estando impuro, morará à parte: sua habitação será fora do acampamento» (Lv 13,46). E, geralmente, a lepra durava a vida toda, levando o enfermo à morte, de modo que, quando ao alguém se afastava da família e da comunidade por causa da lepra, significava uma antecipação da morte, pois dificilmente ela voltava. Podemos, então, perceber como a ação libertadora de Jesus vai ganhando novas dimensões: sinagoga – casa – terreiro da casa – outros lugares; assim, o universalismo do Reino já pode ser sentido, bem como as bases fundamentais de uma Igreja em saída. Dizendo não ao comodismo dos discípulos, Jesus propõe a coragem para arriscar-se, a disposição para conviver com as diferenças e viver ao revés das regras de comportamento convencionais impostas pela religião e adotadas pela sociedade como normais. O evangelho de hoje deixa isso muito claro, ao narrar o encontro de Jesus com o leproso. O cenário desse episódio, portanto, é o campo, um lugar a céu aberto, afastado de qualquer cidade ou povoado.

Olhemos, então, para o texto: «Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: ‘Se queres, tens o poder de curar-me’» (v. 40). De acordo com esse primeiro versículo, já percebemos um encontro de duas pessoas rebeldes, subversivas. Se Jesus tivesse permanecido no âmbito da sinagoga ou até mesmo da casa, um encontro como esse jamais aconteceria, pois o leproso não podia entrar em nenhuma das duas. A rebeldia do leproso é motivada pela necessidade; a de Jesus é pelo amor. Ora, de acordo com a Lei, tanto Jesus quanto o leproso deveriam evitar-se mutuamente, cada um se distanciando ao máximo possível do outro. Nem o leproso deveria aproximar-se, nem Jesus deveria permitir que o leproso chegasse perto dele. Porém, os dois resolveram transgredir, praticando ambos um gesto de grande rebeldia. A Lei determinava que o leproso deveria ficar longe do convívio social, fora do acampamento, ou seja, longe da comunidade, e até gritar “impuro!”, como aviso, em caso de alguém aproximar-se (Lv 13,45-46). Ao permitir que o leproso se aproxime, Jesus conquista a sua confiança, fazendo o que, certamente, ninguém tinha feito ainda. Com muita liberdade, o leproso faz um pedido em forma de confissão. Na verdade, ele nem sequer pede a cura, apenas sugere que Jesus pode purificá-lo. A tradução litúrgica empobrece um pouco o sentido do texto trocando o verbo purificar por curar. O que o leproso deseja é ser purificado. Por isso, a melhor tradução seria: «Se queres, podes me purificar». Como se vê, não é propriamente um pedido, mas um reconhecimento da força de Jesus. Assim, o leproso se torna modelo do verdadeiro crente: aquele que expressa a sua necessidade, sem forçar, sem querer determinar o agir de Deus, mas respeitando a sua liberdade, ao dizer «se queres». Ser purificado, naquele contexto, significava voltar a ser reconhecido como gente; era se libertar de todos os estigmas excludentes e segregadores que a lepra comportava; era ser admitido novamente na convivência e na vida da comunidade.

Jesus não resiste às necessidades da pessoa que vai ao seu encontro com sinceridade e desejo de libertação. E ele também faz a sua parte, ao permitir o encontro. Por isso, diz o texto que, «cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica purificado!» (v. 42). Jesus quer que o homem seja “purificado”, ou seja, readmitido à convivência humana, que ele saia da situação de negação da vida em que se encontra. Compaixão é a resposta de Deus às situações de negação e ausência do seu projeto de vida; é um amor tão profundo, a ponto de fazer «contorcer as vísceras», quer dizer um amor que mexe com o mais profundo do seu ser. Essa resposta nunca é apenas sentimental, mas é ação, é promoção de vida em abundância. É interessante a descrição da ação: «estendeu a mão, tocou nele». O gesto de estender a mão significa o cumprimento de uma ação salvífica por excelência: é Deus doando sua força em benefício do seu povo, tirando-o da opressão, de acordo com a linguagem do Antigo Testamento (Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.). É prova do amor e cuidado de Deus para com a humanidade. Jesus poderia ter reagido ao leproso apenas com palavras e curá-lo, com sua autoridade, sem necessariamente tocá-lo. Mas antes de demonstrar poder, demonstra compaixão, cria laços, toca, quer dizer, se envolve com a situação. É o seu jeito de se relacionar, de amar, por isso, cura. Não cura por meio de decretos, mas tocando nas pessoas com suas feridas e dores. Tocando, ele sente como sua a dor do outro, comprometendo seus seguidores de todos os tempos a fazer o mesmo. Neste caso, o toque de Jesus é ainda mais significativo, pois, segundo a Lei, quem tocava um leproso ficava impuro também. Mas Jesus não se importa com isso. Nenhuma norma impedia ele de relacionar-se com uma pessoa marginalizada. E ele não sossegava enquanto não resgatava tal pessoa.

Como tocar num leproso era um gesto extremamente proibido pela Lei, com esse gesto, Jesus desobedece com muita liberdade, ensinando que o bem do ser humano está acima de qualquer preceito e doutrina. Movido por compaixão, tendo tocado com a mão, Jesus sentiu de fato a necessidade daquele homem, e expressou sua vontade com palavras: «Eu quero: fica purificado»E como as palavras de Jesus são cheias de vida e de amor, eis que «no mesmo instante, a lepra desapareceu e ele ficou purificado» (v. 43). Jesus anuncia palavras de vida e libertação, e é isso o que ele faz acontecer. Dizer que o leproso ficou purificado é o mesmo que dizer que ele ficou apto para a convivência, foi reintegrado à comunidade, teve sua dignidade restituída, o que significa muito mais do que a cura física. Livrou-se de um estigma condenatório. Aqui, mais uma vez, o evangelista usa o verbo “purificar” (em grego: καταριζω - katarízo); aliás, de acordo com o original, em nenhum momento vem mencionada a palavra “cura”, nem o verbo “curar” nesse texto. Isso evidencia ainda mais o interesse do evangelista pela dimensão social e comunitária da ação de Jesus. O mais importante é despertar na comunidade do evangelista e na comunidade cristã de todos os tempos a necessidade de promover ações de restauração, inclusão e promoção da dignidade humana. No Antigo Testamento, há somente dois casos de cura da lepra: o de Mírian, irmã de Moisés (Nm 12), e o de Naamã, general do exército de Aram (2Rs 5); ambos se dão pela mediação de Moisés e de Eliseu, respectivamente. Mas nenhum se aproxima do que faz Jesus aqui; sua maneira de agir e de cuidar do outro é única. Inclusive, essa é a única cura de leproso no Evangelho de Marcos, o que enriquece o episódio ainda mais.

Ao transgredir a Lei de maneira tão explícita, Jesus passa a correr riscos, mas não se intimida com isso. Na verdade, ele pede silêncio ao homem que fora purificado por precaução de má compreensão na sua mensagem: «Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: ‘Não contes nada disso a ninguém!’» (v. 44a). Jesus tem pressa com a libertação das pessoas, por isso mandou logo o homem ir embora. Certamente, aquele homem já tinha perdido muito tempo da existência vivendo segregado, excluído da convivência. Por isso, devia voltar o quanto antes para a comunidade. Jesus também não queria ser confundido com um milagreiro. Queria evitar concepções triunfalistas a respeito da sua imagem e do seu messianismo. Por isso, pediu que o homem não contasse nada a ninguém. Aliás, o chamado “segredo messiânico” é um dos principais temas teológicos do Evangelho de Marcos. Esse segredo será revelado somente na cruz. De fato, a cruz é o traço distintivo principal da messianidade de Jesus, escapando de todos os esquemas messiânicos alimentados ao longo dos séculos em Israel. Ora, no decorrer do ministério de Jesus, as pessoas, incluindo os discípulos, perceberão traços parciais da sua messianidade, à medida em que contemplam seu agir humanizante, libertador. No contexto narrativo da obra, além de tema teológico, o segredo expressa uma preocupação do evangelista com a vida da comunidade, que deve esforçar-se ao máximo possível para não apresentar uma imagem equivocada de Jesus, da mesma forma que Jesus não queria ser confundido com o Messias triunfalista e poderoso das expectativas dos seus contemporâneos.

Além do silêncio, Jesus dá uma segunda ordem ao homem recém-purificado: «Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova contra eles!» (v. 44b). Assim como eram os sacerdotes quem diagnosticavam se a pessoa tinha lepra, para afastá-la do convívio social, também eram eles quem atestavam se a pessoa estava purificada ou não. Porém, a lepra era considerada um mal sem cura, era praticamente impossível alguém livrar-se dela, de modo que o leproso era um “morto vivo”. Com essa ordem, Jesus está, na verdade, provocando os sacerdotes e a religião da época, mostrando que a palavra final sobre a vida das pessoas já não é mais a deles. Jesus corta o mal pela raiz, deixando desconcertados aqueles que viviam de identificar o mal na vida dos outros. O próprio texto indica a ironia de Jesus: «como prova contra eles!». Jesus quer que eles mesmos, os sacerdotes, reconheçam que já não tem mais autoridade sobre a vida; o poder daquele sistema começava a desmoronar. É claro a ordem expressa também seu desejo de ver o homem readmitido na comunidade e na convivência social e, para isso, precisava da declaração do sacerdote. Há, portanto, necessidade e provocação, ao mesmo tempo, na ordem de Jesus.

O pedido de silêncio que Jesus faz nunca é atendido. Quando mais ele pedia segredo, mais a Boa Notícia do Reino anunciada por ele se espalhava. Eis, então, a atitude do ex-leproso: «Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato» (v. 45a). De fato, Jesus pede algo quase impossível: como silenciar diante de maravilhas tão grandes, coisas nunca vistas antes? Como não irradiar a felicidade de contemplar o Reino de Deus sendo instaurado? Na lógica do Reino, quem recebe se torna doador; aquele que era considerado imundo, se torna evangelizador, após ser humanizado, restaurado em sua plena dignidade.  Apesar do risco de distorção, o anúncio das obras de Jesus fluía com facilidade. Era impossível abafar os sinais da chegada do Reino de Deus no coração das pessoas marginalizadas das periferias da Galileia. Isso lhe trazia consequências, obviamente, até positivas, inicialmente, pois levava mais pessoas a encontrar-se com ele e, assim, recuperavam o sentido da vida, sendo humanizadas, libertadas e emancipadas. Mas ele tinha precauções em relação a isso, como diz o evangelista: «Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo» (v. 45b). Ele evitava as cidades e procurava lugares desertos porque sua fama aumentava cada vez mais, o que ele não queria; e sua vida começava a correr perigo. Esse afastamento se tornava providencial: quanto mais longe dos centros de poder, mais pessoas impuras poderiam aproximar-se dele. Quanto mais afastado das pessoas consideradas puras, mais os considerados impuros chegariam perto. A religião segregadora rotulava pessoas doentes de impuras e as expulsava para os lugares desertos e afastados, fora das cidades e aldeias. Propositadamente Jesus ia a estes lugares levando vida, amor, acolhimento, justiça e libertação.

Assim como a comunidade de Marcos, também nós, cristãos de hoje, somos interpelados pelo evangelho a promover libertação, a colocar o bem do ser humano acima de qualquer norma e doutrina. Para isso, é necessário ir sempre aos outros lugares, aos desertos de hoje, as periferias existenciais, onde estão aqueles e aquelas a quem a religião e a sociedade disseram que não tem mais jeito, já não servem mais para nada. São essas pessoas que mais precisam conhecer o Deus amoroso que Jesus revelou, e somente quem tem intimidade com esse Deus pode acolher e compreender bem essas pessoas, consciente ou não.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 03, 2024

JÓ: UM HOMEM IMPACIENTE


Repetida acriticamente ao longo dos séculos, a paciência de Jó se tornou provérbio popular e tema proverbial, ao mesmo tempo, sendo frequentemente usada como fundamentação para discursos de resignação e conformismo. Mas de onde vem a imagem de Jó como modelo de homem paciente? Certamente, não vem de uma leitura atenta do livro bíblico que leva o seu nome. Pode até vir do livro, mas de uma leitura muito superficial, sem visão de conjunto.

O mais provável é que a fama de modelo de paciência atribuída ao personagem Jó venha de uma tradução meio confusa de uma certa passagem da Carta de Tiago – Tg 5,11. Nessa passagem, lhe vem atribuída uma qualidade expressa por uma palavra que corresponde mais à perseverança ou constância do que a paciência. Se trata do substantivo grego “hypomonê” (ὑπομονὴ). Por muitos séculos, tem prevalecido a tradução desta palavra por paciência, mas já há traduções circulando com a palavra perseverança. A nova tradução da Paulinas – A Bíblia –, uma das melhores em circulação no Brasil, atualmente, traduz o referido versículo assim: «Vede como proclamamos bem-aventurados aqueles que perseveraram! Ouvistes falar da perseverança de Jó e vistes o resultado que o Senhor lhe concedeu; porque o Senhor é rico em misericórdia e compassivo.» (Tg 5,11).

O que se constata com a leitura atenta do livro de Jó é a figura de um homem justo, perseverante, mas muito revoltado com a vida e com Deus, e com razão, tendo em vista as coisas que lhe tinham acontecido. O texto empregado pela liturgia deste domingo – 5º do tempo comum, ano B – é uma demonstração disso, e pode ser considerado até uma síntese do livro e da vida do personagem (Jó 7,1-4.6-7). Perceber em Jó o homem inconformado, rebelde, impaciente e corajoso pode ajudar-nos mais na compreensão e aceitação dos dramas pessoais que vivemos, como é típico do ser humano contemporâneo. A impaciência de Jó ajuda-nos a aceitar a nossa condição humana. Ele foi o homem do desabafo, da explosão dos sentimentos, corajoso para questionar Deus e o sentido da vida.

Por causa dos problemas da vida, Jó perdeu noites de sono, sofreu de insônia e nunca teve medo de questionar Deus. Só questiona Deus quem confia, quem tem fé e coragem. E Jó teve. Por isso, embora ache muito bonito o Jó da paciência, prefiro o Jó rebelde, impaciente, inconformado. É muito triste constatar que muitas pessoas sofrem caladas, tem seus dramas presos por escutar muitas pregações repressivas que usam indevidamente a figura de Jó para justificar o sofrimento e situações de opressão e exploração. Jó ensina que, em muitos momentos, o desabafo é o único recurso para aliviar a dor, o desgosto, as decepções e outros dramas.

Para corroborar esta pequena reflexão, recordo uma citação de um dos principais estudiosos do livro de Jó, o notável Cardeal Ravasi, um dos maiores exegetas vivos, especialista em literatura sapiencial, o bloco literário do qual o livro de Jó faz parte na Bíblia. Assim diz Ravasi: «Certamente, o livro de Jó não é um elogio de paciência. Jó é um impaciente por excelência, um rebelde. Mas mesmo que seja rebelde, ele nunca perde a ligação com a fé». Ravasi é autor de um dos melhores comentários exegéticos ao livro de Jó.

Pe. Francisco Cornélio

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,29-39 (ANO B)


O evangelho que a liturgia propõe para este quinto domingo do tempo comum é Mc 1,29-39. Esse texto é a continuação e conclusão da chamada “jornada de Cafarnaum” (1,21-34), cuja leitura fora iniciada no domingo passado (Mc 1,21-28). Ao mesmo tempo, esse texto marca o início de uma nova etapa da missão de Jesus em outros lugares da Galileia. De acordo com os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), Jesus adotou a estratégica cidade de Cafarnaum como ponto de apoio para o seu movimento. Para Marcos, essa cidade possui um significado ainda mais forte, pois ele localiza nela também a inauguração solene do ministério de Jesus, apresentando um dia intenso de atividades, marcado pelo ensinamento com autoridade e uma sequência de ações libertadoras e humanizantes (exorcismos e curas). Esse dia é chamado pelos estudiosos de “Jornada de Cafarnaum”; funciona como uma síntese programática de todo o ministério de Jesus com as suas principais características – promoção e libertação total do ser humano – incluindo o aspecto subversivo, pois trata-se de um sábado, dia em que não era permitido fazer praticamente nenhuma atividade. Desse modo, o Reino anteriormente anunciado como próximo (Mc 1,15), começava realmente a se manifestar concretamente. Com a intensidade das atividades desenvolvidas num único dia, o evangelista indica também como era a vida cotidiana de Jesus: ele passava o dia inteiro fazendo o bem.

Se no domingo passado o evangelho começava dizendo que Jesus tinha entrado na sinagoga, o texto de hoje inicia afirmando o movimento contrário: «Jesus saiu da sinagoga» (v. 29a). Aqui, o evangelista emprega um verbo que não significa apenas sair, mas também escapar, fugir, libertar-se (em grego έξέρχομαι – ecserkomai), fazendo assim uma clara relação com o antigo êxodo. Com isso, Marcos ensina que a sinagoga não é lugar adequado para o discipulado de Jesus; pelo contrário, como instituição integrante do sistema religioso vigente, a sinagoga fazia parte do aparato de poder e dominação que a religião exercia sobre as pessoas. E as instituições, de um modo geral, são espaços hostis para o discipulado de Jesus porque tendem a impedir a realização do ser humano em sua liberdade e dignidade plenas, pois, à medida em que estabelecem normas e doutrinas rígidas, ignoram a ação contínua do Espírito Santo. Logo, a sinagoga é um lugar do qual as pessoas devem ser libertadas, na perspectiva do evangelista. Contudo, é um espaço que Jesus não evitava; pelo contrário, ele frequentava assiduamente, porém, mais para promover libertação do que para cumprir devoção. Por isso, será um espaço de conflito constante no seu ministério. Na sequência narrativa da “jornada de Cafarnaum” ainda não aparece conflito porque é apenas o começo do ministério de Jesus. Ainda não deu tempo de despertar a forte oposição que vai surgir à sua mensagem e ao seu jeito de ser, como será mostrado ao longo do livro.

O texto diz que, saindo da sinagoga, «Jesus foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André» (v. 29b). A casa (em grego:  οίκία – oikia) é a alternativa proposta por Jesus para a realização do seu projeto em sua primeira dimensão espacial. No âmbito do poder instituído, aqui representado pela sinagoga, não há espaço nem condições para a realização do Reino de Deus. Por isso, é necessário buscar novas formas viáveis de organização que permitam a realização do Reino e, consequentemente da promoção da vida, com humanização e libertação plena das pessoas. Portanto, a casa é a primeira alternativa aos espaços oficiais. Compreender esse deslocamento da sinagoga para a casa é fundamental para a compreensão de todo o projeto de Reino proposto por Jesus. A casa é o espaço eclesial por excelência; é na casa onde Jesus fala abertamente com seus discípulos, é o lugar da compreensão, da partilha. A Igreja primitiva adotou a casa como o lugar da liturgia, da catequese e do encontro.

Se é na casa onde acontece a vida, deve ser na casa onde se realiza o verdadeiro culto agradável ao Deus da vida; um culto não ritual, mas serviçal. Do púlpito da sinagoga não era possível conhecer as necessidades reais das pessoas; isso só é possível indo ao encontro delas, ou seja, indo à casa. Na sinagoga, Jesus libertou um homem de um espírito impuro, mas era um homem que conseguia se deslocar e era aceito na assembleia. Espalhadas pelas casas, bem como por ruas e praças, havia muito mais gente necessitada, incluindo quem não podia se deslocar e aquelas que, mesmo tendo condições físicas de se locomover, não podiam entrar na sinagoga devido às inúmeras leis de pureza que restringiam o acesso. Enfim, se ficasse presa ao espaço da sinagoga, a mensagem de Jesus não teria a abrangência e nem a liberdade que deve ter. Enfim, com essa oposição entre o entrar na sinagoga e o sair de lá para uma casa, o evangelista faz um claro aceno à necessidade de ruptura entre a mensagem de Jesus e a religião institucionalizada da época. Ao chegar na casa com dois dos discípulos, João e Tiago, Jesus encontra uma situação desconfortável e caótica, necessitada de um gesto libertador da sua parte. Até então, ele só tinha quatro discípulos; o texto sugere que Simão e André já estavam na casa, enquanto Jesus foi para lá acompanhado apenas de João e Tiago.

E eis a situação que ele encontra ao chegar na casa: «A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus» (v. 30). Embora se tratasse apenas de uma febre, de acordo com o texto, a mulher estava completamente paralisada, impedida de exercer suas funções. Ora, se a mulher em pleno estado de saúde já era pouco valorizada naquela sociedade, muito menos seria enquanto enferma. Portanto, acamada e com febre, aquela mulher estava totalmente impotente, desprovida de qualquer valor. É interessante que não aparece um pedido de cura; os membros da casa apenas contam a Jesus o que estava acontecendo, deixando à par da situação. Isso já evidencia a confiança que tinham nele; é sinal de que ele já estava sendo reconhecido alguém que se preocupava com os outros, como doador de vida e de sentido para a existência. Quer dizer que as pessoas daquela casa tinham esperança de que Jesus poderia fazer algo em favor da mulher enferma. É também sinal de que naquela comunidade embrionária a mulher terá um papel relevante e até essencial, como mostrará a sequência do texto e de todo o Evangelho de Marcos.

Estando ciente da situação, Jesus não se omite, pois não permite o domínio do mal na vida das pessoas, como fora evidenciado no evangelho do domingo passado, com o exorcismo na sinagoga. E, para a mentalidade da época, qualquer doença era compreendida como maldição. Por isso, «ele se aproximou, segurou sua mão, e ajudou-a a levantar-se» (v. 31a). O texto não menciona uma única palavra de Jesus, mas apenas gestos. Por sinal, gestos sacrílegos e subversivos, considerando que era um dia de sábado e, portanto, nenhuma atividade manual era permitida naquele dia. Certamente, o evangelista pensou na sua e nas comunidades cristãs de todos os tempos: os gestos de libertação falam mais do que longas e muitas palavras. Por isso, sem medo de transgredir normas, e movido por amor, Jesus se aproxima de uma pessoa com a vida ameaçada. Ele não teme nem foge das situações concretas de dor e sofrimento, mesmo que tal atitude seja proibida pela religião.

O gesto de segurar pela mão significa a ação libertadora de Deus ao longo da história. Tanto o êxodo quanto a libertação do exílio babilônico foram atribuídos à força e aos cuidados da mão de Deus (Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.). Logo, segurar pela mão é um gesto que expressa o cuidado de Deus para com a humanidade, e Jesus veio ao mundo para tornar esse cuidado acessível a todas as pessoas. É importante recordar que, na versão paralela desse episódio nos outros evangelhos sinóticos, se diz que Jesus apenas tocou na mulher e ela se levantou sozinha (Mt 8,14-15; Lc 4,38-39). Apenas Marcos diz que Jesus a levantou, segurando pela mão, embora na tradução do lecionário não fique muito claro, pois diz que ele a ajudou a se levantar. Numa tradução mais consistente, se percebe que ele a levantou, de fato, o que torna ainda mais claro que ele realiza plenamente a obra libertadora de Deus. Recordando esse detalhe, percebemos melhor o quanto o gesto de Jesus foi subversivo, pois, ao levantar a mulher, ele fez esforço físico, segurou um peso, o que era totalmente proibido fazer em dia de sábado. Com um cuidado incomparável, Jesus manifesta sua opção incondicional pela vida e o bem do ser humano.

Ainda sobre o gesto de levantar a mulher, vale lembrar que o evangelista emprega o mesmo verbo grego usado para falar da ressurreição de Jesus (Mc 16,6): έγείρω – egheiro. Com isso, ele quer dizer que Jesus restituiu a vida para aquela mulher; Jesus a levantou e a fez voltar a viver. A ressurreição é, por excelência, o triunfo da vida sobre a morte e suas causas. Um gesto simples como segurar a mão do outro na necessidade pode erguer uma vida, logo, é a ressurreição acontecendo. Significa que a vida cristã deve ser vivida de mãos dadas, em comunidade, com plena solidariedade e comunhão. Por isso, a atitude de Jesus aqui é paradigmática e comprometedora para seus discípulos de todos os tempos. Faz parte da essência do ser cristão/cristã pegar na mão do outro e levantar. E são muitas as pessoas caídas ou acamadas nos dias de hoje, necessitando de mãos que as levante.

Eis, então, as consequências da ação de Jesus: «Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los» (v. 31b). O mal, representado no texto pela febre, não resiste à presença amorosa e cuidadosa de Jesus. Sendo o mal banido da comunidade, as atitudes de serviço se evidenciam. E o serviço é a primeira consequência do encontro verdadeiro com o amor restaurador de Jesus, e o critério para verificar se esse amor está sendo vivido na comunidade cristã. Jesus é doador de vida, e quem recebe essa vida se torna servo e serva de todos, como ele mesmo. Ao evidenciar a atitude de serviço desta mulher específica, o evangelista recorda a importância que as mulheres tinham na Igreja primitiva e devem ter em todos os tempos. Inclusive, ele se refere à atitude da mulher – servir – com um verbo muito caro para as primeiras comunidades cristãs: o verbo grego diakonêo (διακονέω), o qual, de imediato, faz recordar as palavras diaconia e diaconato. Uma vez libertada e humanizada por Jesus, a mulher se tornou também agente de humanização para a comunidade, mediante a atitude do serviço.

Na sequência, diz o evangelista que «À tarde, depois do pôr-do-sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio» (v. 32). O indicativo temporal “depois do pôr do sol” significa o início do novo dia, portanto, já não era mais o sábado. Certamente, as pessoas estavam cumprindo o preceito, esperando passar o sábado para levarem seus doentes até Jesus; ainda não tinham compreendido que o bem do ser humano deve estar acima de qualquer norma. Além das doenças e os espíritos impuros, as pessoas estavam oprimidas também pela religião legalista. Estavam literalmente sob o julgo da Lei. Como a fama de Jesus tinha se espalhado rapidamente (Mc 1,28), era grande a procura pelo seu agir libertador e humanizante. Nos casos da libertação do homem encontrado na sinagoga com um espírito mau, e da cura da sogra de Pedro, a iniciativa foi totalmente de Jesus. Ele agiu sem ninguém pedir nada. Agora, são as pessoas que vão até ele, levando seus doentes, o que faz supor que, implicitamente, estavam pedindo que ele as curasse e libertasse. Isso atesta como a jornada de Cafarnaum despertou fama, curiosidade e popularidade.

A consequência da fama de Jesus ter se espalhado tão rapidamente é atestada pelo evangelista quando afirma que «A cidade inteira se reuniu em frente da casa» (v. 33). Com isso, o evangelista insiste ainda mais com a ideia da casa como alternativa e oposição à sinagoga. Inclusive, a própria palavra sinagoga significa reunião, mas, ironicamente, o evangelista diz que o lugar de reunião da comunidade seguidora de Jesus é a casa. Se Jesus está na casa, é ali onde as pessoas devem se reunir, como realmente acontecia. E, se as pessoas estão reunidas na casa, é ali onde Jesus está presente. A reunião “em frente da casa” é sinal de liberdade, acolhida e fraternidade, os principais valores da comunidade cristã. Isso recorda o quanto as pequenas comunidades reunidas nas casas devem ser valorizadas, pois exprimem a verdadeira identidade da Igreja.

É importante recordar que, embora tenham levado todos os doentes, o evangelista diz que «Jesus curou muitas pessoas de diversas doenças e expulsou muitos demônios» (v. 34). Parece que não curou todas as pessoas doentes, embora tenha curado muitas. É um dado que passa quase despercebido, mas é muito relevante. Por se tratar de uma obra mais curta, as entrelinhas do Evangelho de Marcos falam tanto quanto o que aparece explicitamente nas linhas. Provavelmente, algumas pessoas doentes que foram levadas ao encontro de Jesus não saíram de lá curadas, considerando a cura não apenas como o fim de uma doença, mas como um processo de renovação e emancipação do ser humano. Ora, aproximar-se fisicamente de Jesus não significa entrar em comunhão com ele.

Nas multidões, sempre há incompreensão, falso entusiasmo, risco de dispersão. Estar no meio da multidão não significa necessariamente estar em comunhão. Não basta ir fisicamente ao encontro de Jesus ou participar de momentos de reunião na comunidade; é necessário, antes de tudo, ter disposição interior e disponibilidade para viver os valores do Reino, aceitando e assimilando sua proposta de vida. O autêntico encontro com ele ressignifica a existência, e nem todas as pessoas estão dispostas a isso. Por isso, uma comunidade não deve entusiasmar-se simplesmente por juntar multidões; é necessário muito mais para ser, realmente, uma comunidade de discípulos e discípulas de Jesus. É preciso aceitar viver a partir do seu programa, como fez a sogra de Pedro, colocando-se em atitude de serviço, imediatamente, após ser curada da sua febre.  

Terminada a chamada “jornada de Cafarnaum”, Jesus inicia uma nova fase do seu ministério. Como comunicador do Reino de Deus, ele precisava nutrir sua intimidade com o Pai através da oração, como atesta o evangelista: «De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto» (v. 35). Essa informação também é muito significativa. Embora Marcos não chegue a desenvolver uma “teologia da oração” como Lucas, por exemplo, ele recorda Jesus rezando em três ocasiões importantes: aqui, após a jornada de Cafarnaum; após a primeira multiplicação dos pães (Mc 6,46); e no Getsêmani, às vésperas da crucifixão (Mc 14,35). Significa que esses três momentos são indispensáveis para a catequese da comunidade. Jesus sentia necessidade de comunicar-se com o Pai para permanecer fiel em sua missão.

Marcos não fala do conteúdo da oração de Jesus, mas pelo que se conhece dos outros evangelhos sinóticos (Mt; Lc), ele rezava dialogando com o Pai. Por meio da oração, ele buscava compreender a vontade do Pai e alinhar-se sempre mais a ela. A atitude de retirar-se para rezar mostra também que ele não se deixou levar pelo aparente sucesso do dia anterior. A oração capacita para o discernimento, fortalece as convicções. Certamente, muitas vezes o ativismo das comunidades deixa essa dimensão importante da vida cristã passar despercebida. Aqui o evangelista faz uma advertência para a sua comunidade e para as comunidades de todos os tempos.

Na sequência, diz o texto que, enquanto rezava, «Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando o encontraram, disseram: ‘Todos estão te procurando’» (vv. 36-37). Os discípulos, ainda principiantes no seguimento, queriam certamente que Jesus repetisse os feitos da jornada anterior. É a tentação do comodismo, da fama e do poder. Por “Simão e seus companheiros” compreende-se o grupo dos quatro primeiros discípulos chamados até então. Por um lado, obviamente, se vê uma certa solidariedade dos discípulos para com as pessoas necessitadas que procuravam Jesus; por outro, fica claro o entusiasmo com o sucesso e o desejo de monopolizar o agir e a presença dele. Eles queriam que crescesse a fama de Jesus como realizador de milagres, enquanto Jesus veio ao encontro da humanidade para realizar a vontade do Pai, humanizando o mundo.

Por isso, alimentado pela oração e cada vez mais convicto de sua missão, «Jesus respondeu: ‘Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim’» (v. 38). Aqui o aspecto dinâmico e itinerante do movimento de Jesus é evidenciado, bem como o universalismo do seu alcance é pré-anunciado. Mesmo sendo desenvolvida inicialmente na Galileia, a itinerância da missão de Jesus antecipa a universalidade que deve marcar o discipulado cristão de todos os tempos. Cafarnaum era apenas um ponto de apoio; a missão de Jesus não poderia ficar circunscrita a uma localidade. O instalar-se duradouro num lugar pode gerar comodismo. Ir a outros lugares é uma necessidade de quem vive a Boa Nova e os valores do Reino.

É preciso ir aonde as pessoas têm necessidade de vida abundante e de libertação, como atesta o versículo conclusivo: «E andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os demônios» (v. 39)A pregação e a expulsão dos demônios sintetiza a práxis de Jesus. Quer dizer que a sua missão é marcada por palavras e ações, como deve ser a missão da comunidade cristã em todos os tempos. A pregação só tem credibilidade se for acompanhada de gestos concretos de libertação em favor das pessoas mais necessitadas. A expulsão dos demônios significa o bem operado por Jesus em todas as dimensões; é a libertação do ser humano de todas as amarras, e ele priorizava os ambientes onde as pessoas estavam mais acorrentadas: os espaços de domínio da religião, como símbolo de todas as formas de poder e dominação. Ele ia às sinagogas e saía, após libertar e ensinar. A expressão “suas sinagogas” alude ao distanciamento que Jesus começa a tomar das instituições de Israel. É um prenúncio do conflito com a religião oficial que irá marcar todo o seu ministério, cujo ápice será o processo em Jerusalém. Certamente, por onde passava ele fazia a passagem da sinagoga para a casa, libertando do peso da Lei para o bem da vida, em espírito de serviço e gratuidade.

À maneira de Jesus, as comunidades cristãs de hoje devem priorizar a importância e a necessidade de ir sempre a outros lugares, com a disposição de estender a mão e levantar pessoas caídas. É essa a postura de uma Igreja em saída e fiel aos ensinamentos de Jesus. Os “outros lugares” são todas as margens e encruzilhadas onde há pessoas necessitadas e excluídas, vítimas das mais diversas formas de dominação e exploração. Mas é também a casa, onde muitas vezes há pessoas acomodadas, fechadas e solitárias, necessitadas de humanização, encontro e partilha. E tudo isso, é claro, só tem sentido e credibilidade se houver coerência entre a pregação e gestos concretos de libertação. E, onde quer que estejam, os discípulos e discípulas de Jesus devem estender sempre as mãos, sobretudo, em direção às necessidades do próximo.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...