sábado, fevereiro 23, 2019

REFLEXÃO PARA O SÉTIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,27-38 (ANO C)




O evangelho deste sétimo domingo do tempo comum – Lucas 6,27-38 – é a continuidade do discurso da planície, conforme Lucas, cuja leitura foi iniciada no domingo passado com a passagem Lc 6,17.20-26. Naquela ocasião, Jesus identificou um mundo escandalosamente dividido entre pobres e ricos, pessoas que vivem chorando e outras que vivem sorrindo, saciados e famintos, perseguidos e exaltados. Movido por uma íntima relação com o Pai (tinha acabado de descer da montanha, onde tinha orado ao Pai e escolhido os Doze), Jesus tinha certeza que aquele mundo dividido e desigual não correspondia aos propósitos de Deus; tomou partido pelo lado mais fraco (os pobres e famintos, os que choram e são perseguidos), proclamando-os felizes e incentivando-os à luta, para superar aquele abismo, conforme o duplo significado da palavra grega “makarios”: ser feliz e pôr-se em marcha, em caminho. Por outro lado, aos ricos, risonhos, saciados e exaltados, Jesus proferiu sérias denúncias, com a proclamação das chamadas “maldições”, introduzidas pela fórmula profética de condenação “ai de vós”.

É necessário recuperar essa imagem de um mundo dividido e desigual, para compreender a mensagem do evangelho de hoje. Jesus não se limitou a diagnosticar a situação; não teve medo de escolher um lado, o dos mais pobres e pequenos e propôs um caminho de superação, correspondente aos propósitos do Pai: “A vós, que me escutais, eu digo: amais os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (27). Diante de um mundo ferido pela ganância, desigual e dividido, o caminho de superação não pode ser outro senão o amor. “Inimigos” aqui, são as pessoas que praticam o mal, aquelas que são prejudiciais e responsáveis pelo sofrimento do outro. Jesus propõe uma verdadeira revolução pelo amor, e esse é o grande diferencial da sua mensagem. Para isso, não ilustra seu ensinamento com exemplos abstratos, mas com situações bem concretas: “Bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam. Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva” (vv. 28-30). Essas são situações do dia-a-dia, acessíveis a todos e todas e bastante desafiadoras.

Jesus não ensina uma doutrina, mas apresenta uma proposta de vida, cuja regra de ouro é: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (v. 31). Essa regra é a resposta a todo movimento ou sistema que prega a violência ou a reciprocidade nas relações. Do outro, nada se exige; o cristão deve é se colocar no lugar do outro e refletir sobre as consequências de suas ações, como será explicitado nos versículos seguintes: “Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia” (v. 32-34). Existe um nível de comportamento e de relações acessível a todos, e que é praticado em praticamente todas as sociedade: a reciprocidade. Por exemplo, amar alguém sabendo que é amado por esse alguém, é uma atitude que não exige o conhecimento do Evangelho nem intimidade com Jesus. “Os pecadores” aqui significa todas as categorias de quem não pauta a vida segundo o Evangelho. O princípio do amor se aplica também a outros tipos de relações, como o fazer o bem de um modo geral, e a prática dos empréstimos.

Novamente no imperativo, o convite a amar os inimigos é reforçado, junto com o fazer o bem: “Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e maus” (v. 35). É necessário que o discípulo e discípula de Jesus façam além do óbvio, que pratiquem o amor e a justiça de modo gratuito e desinteressado. Porém, inevitavelmente a recompensa virá, não como salário em forma material, mas em dignidade: ser filhos ou filhas do Altíssimo. Ser filho, nessa perspectiva, significa ser parecido com o pai. É essa a dinâmica do amor proposto por Jesus: tornar o ser humano parecido com Deus, sendo bondoso como Ele é. Para reforçar ainda mais a necessidade de tornar-se parecido com Deus, Jesus parte da principal característica desse Deus: “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (v. 36). Aqui, Jesus ousa reformular o solene mandamento de Levítico 19,2: “Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Esse mandamento fora decisivo para a construção do orgulho de Israel; compreendia-se a santidade como a separação dos outros povos. Jesus inova e faz uma reinterpretação decisiva para a sua comunidade: ser misericordioso significa ser bondoso, é cultivar somente bondade dentro de si e nas relações com o próximo. Amor e bondade são traços inseparáveis, e são os sinais mais distintivos na vida dos seguidores e seguidoras de Jesus.

Ainda de acordo com a “regra de ouro” das relações (“O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”, v. 31), Jesus acrescenta: Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos” (vv. 37-38). É claro que ele não está afirmando que o agir humano é critério para o agir de Deus. Pelo contrário, é Deus o critério, sobretudo na bondade e no amor. Porém, mais uma vez, ele reivindica a coerência de vida. Julgar e condenar não são prerrogativas de nenhum ser humano. É no campo das relações com o próximo que os cristãos e cristãs revelam como se relacionam com Deus e como absorveram o Evangelho de Jesus.

Essa foi, portanto, a resposta e o caminho para um mundo ferido, injustiçado, dividido e desigual reencontrar o seu equilíbrio: acolhendo o ensinamento de Jesus sobre o amor e vivendo intensamente esse amor. Para isso, não é suficiente esperar passivamente a mudança de estruturas, mas cada um e cada uma deve, no dia-a-dia, experimentar esse amor e pautar a vida a partir dele, começando pelas relações com o próximo e as experiências concretas do cotidiano.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 16, 2019

REFLEXÃO PARA O SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,17.20-26 (ANO C)




Neste sexto domingo do tempo comum, a liturgia propõe Lucas 6,17.20-26 para o evangelho. Esse texto contém a apresentação lucana das “bem-aventuranças”, as quais são seguidas pelas respectivas negações, chamadas de “maldições”, termo que pode parecer bastante áspero, mas correspondente às reais intenções do texto e de todo o Evangelho. Ao longo da história, esse foi um dos textos de Lucas mais evitado nas igrejas e comunidades cristãs. Embora as bem-aventuranças sejam reconhecidas como a síntese do programa de Jesus e o seu verdadeiro autorretrato, optou-se mais pela versão de Mateus, por ser mais longa, por isso mais completa e, sobretudo, por ser mais suave: enquanto em Lucas Jesus diz “bem-aventurados os pobres”, em Mateus diz “bem-aventurados os pobres em espírito”; enquanto em Lucas diz “bem-aventurados os que agora passam fome”, em Mateus diz “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça”. Em Lucas, as bem-aventuranças possuem um significado mais concreto e imediato.

Outra grande diferença é que em Mateus não constam as chamadas “maldições”, ou seja, a denúncia da negação das bem-aventuranças. O certo é que os dois evangelistas utilizaram uma mesma fonte, mas cada um a adaptou às suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades. Também há uma diferença considerável em relação ao número: em Mateus são oito bem-aventuranças, enquanto em Lucas constam apenas quatro, como são quatro também as maldições. As bem-aventuranças encontram suas raízes literárias na literatura sapiencial, onde predomina o elogio à pessoa justa, quem segue retamente as caminhos do Senhor; já as maldições são inspiradas na literatura profética: é uma forma de denúncia e reprovação do comportamento de quem cometia injustiças e praticava um culto superficial. No decorrer da reflexão, retomaremos alguns desses aspectos introdutórios e contextuais, e ressaltaremos ainda outras diferenças entre a composição de Lucas e a de Mateus.

Comecemos a análise do texto, partido do primeiro versículo, o qual apresenta muitas informações importantes: “Jesus desceu da montanha com os discípulos e parou num lugar plano. Ali estavam muitos dos seus discípulos e grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia” (v. 17). Jesus tinha subido à montanha para orar, com seus discípulos, dentre os quais escolheu doze e os chamou de apóstolos, cujo significado é “enviados” (cf. Lc 6,12-16). Quando Jesus desce da montanha, já está com o grupo dos doze constituído. Em Mateus, as bem-aventuranças são proclamadas de cima do monte, daí a origem do famoso “discurso da montanha”; em Lucas, Jesus ensina a partir da planície, como sinal de que seu discurso é acessível a todas pessoas. A montanha em Lucas é apenas lugar de oração, não de ensinamento. O lugar plano evoca acessibilidade e igualdade, além da superação dos obstáculos para a chegada do messias. Recordemos que, de acordo com o próprio Lucas, fundamentado em Isaías 40,4, a missão de João, o precursor, consistia em “aplainar os caminhos e remover as montanhas” (cf. Lc 2,76; 3,4-6). Portanto, o lugar plano é o lugar ideal do anúncio da Boa Nova porque recorda a remoção das montanhas que impediam a passagem do messias.

O evangelista não se contenta em dizer que havia uma grande multidão, obviamente para escutar Jesus, mas expressa a diversidade cultural dessa multidão como sinal do universalismo da mensagem de Jesus. Tinha gente de todas as partes: da Judeia e de Jerusalém e até de terras pagãs: “do litoral de Tiro e Sidônia”. Esse dado é muito importante, pois ainda é reflexo do rechaço sofrido na sinagoga de Nazaré: quando Jesus tentou anunciar o seu programa no espaço sacro da sinagoga e ao seu povo, não foi compreendido, nem aceito, mas quase foi morto. Ao buscar espaços alternativos, inclusive profanos, como a beira do mar (cf. Lc 5,1-11: evangelho do domingo passado), e a planície, encontrou grande adesão. Inclusive, o que ele vai anunciar no lugar plano é o mesmo que começou a anunciar na sinagoga de Nazaré, quando foi interrompido pelos judeus fanáticos de lá: o anúncio da Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4,18). Esse é um dos temas mais caros para Lucas, inclusive introduzido no Evangelho da Infância, através do magnificat (cf. Lc 1,46-55).

Somente em um lugar plano, longe das instituições, Jesus pode, finalmente, anunciar com clareza a sua Boa Nova: “levantando os olhos para os discípulos, disse: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!” (v. 20). Jesus levanta os olhos para os discípulos, não como destinatários exclusivos da sua mensagem, mas como os primeiros. Eles já fizeram opção pelo Reino, mas toda a multidão, composta por gente de diversos lugares e costumes, é também destinatária desse anúncio. Dirigindo-se primeiro aos discípulos, Jesus os responsabiliza perante a multidão: eles devem viver radicalmente essa mensagem. A forma introdutória “bem-aventurados” (em grego μακαριοι = makarioi) é bastante utilizada na Bíblica, sobretudo na literatura sapiencial, como já afirmamos na introdução; o termo correspondente em hebraico (ashrêi) possui dois significados: além dos adjetivos “felizes”, “bem-aventurados” ou “benditos”, corresponde também ao imperativo do verbo caminhar, marchar ou “seguir em frente”. Por isso, aqui Jesus não está apenas saudando, mas incentivando à transformação; o Reino de Deus, ainda em construção, já é dos pobres que caminham em busca de transformação. Não se trata de uma promessa de futuro, mas uma constatação do agora.

O “Reino de Deus” não é a vida eterna, mas é o mundo transformado a partir de novas relações, alicerçadas no amor, na justiça e na partilha. É um mundo livre de todas as injustiças e opressões; o mundo novo que Jesus quis anunciar em Nazaré, mas foi rechaçado pelos conterrâneos: “os cegos recuperando a vista, os cativos sendo libertados” (cf. Lc 4,18-19). Foi esse mundo que Deus pensou para toda a humanidade, desde o princípio, mas até hoje impossibilitado de realizar-se, devido à ganância de muitos. Jesus reacende a esperança: o Reino é dos pobres, e esses, por sua vez, devem lutar por ele sem comodismo, sem conformismo, mas pondo-se em marcha, buscando e lutando para conquista-lo. Na sequência, Jesus não apresenta novas categorias de pessoas, mas continua se dirigindo aos pobres, ressaltando a situação em que se encontram: “Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!” (v. 21). Fome e choro são situações que pedem transformações urgentes; por isso, essas palavras de Jesus não podem ser usadas como discurso de resignação. São palavras que interpelam a comunidade a sair do comodismo. Dos necessidades e direitos fundamentais básicos, o primeiro é o direito à alimentação. A fome é uma necessidade que não pode esperar; exige urgência. O choro é consequência da dor e do sofrimento. É importante identificar quem sãos culpados por essa situação, e o próprio Jesus identifica, logo a seguir: os ricos.

Já tendo experimentado a rejeição entre o seus próprios conterrâneos de Nazaré, Jesus alerta os discípulos e todos os seus ouvintes sobre o destino de quem abraçar o seu programa de vida: “Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem!” (v. 22). Num mundo marcado por injustiça, governado por pessoas injustas, quem se alinhar ao projeto de Jesus não terá outro destino senão a perseguição e o ódio. Lucas já sentia isso em suas comunidades; por volta do ano 80 d.C., muitos cristãos já tinham sido perseguidos e martirizados porque tinham se colocado em marcha por transformação, porque tinham lutado pelo Reino. O destino dos profetas do Antigo Testamento era um sinal claro para Jesus: a perseguição é o verdadeiro atestado de fidelidade ao Reino de Deus, e sinal autêntico de felicidade (cf. v. 23).

O anúncio das maldições é mais uma das novidades de Lucas em relação a Mateus. Às quatro bem-aventuranças, Lucas opõe quatro maldições, como se fossem as bem-aventuranças ao contrário (vv. 24-26). A fórmula introdutória “ai” (em grego: ουαι = uaí) encontra forte atestação nos livros proféticos, introduzindo as denúncias mais fortes dos profetas às situações de injustiça (cf. Am 5,18; Is 1,4; 10,1). É uma forma de lamento e denúncia. Com elas, Jesus está denunciando os responsáveis pela situação precedente: se os pobres passam fome e choram, é porque tem pessoas excessivamente saciadas e risonhas; essas pessoas, obviamente, são os ricos. Jesus lamenta que a ganância dos ricos gere fome e sofrimento nos pobres, e denuncia essa situação como insustentável. O Reino de Deus é fechado para quem contribui para a miséria dos pobres, com a ganância desenfreada.

Na última denúncia, Jesus apresenta a característica básica dos falsos profetas: ser elogiados (v. 26). Os autênticos profetas (Elias, Amós, Isaías, Jeremias, João Batista) tiveram como destino comum, a perseguição; isso porque não tiveram medo de denunciar as mesmas injustiças que Jesus estava denunciando. Em um mundo de injustiças, o agir profético é um incômodo para os poderosos.  Os falsos profetas, pelo contrário, recebiam elogios dos poderosos porque proclamavam apenas palavras de conforto para eles; eram coniventes com as injustiças, e isso Jesus denuncia com veemência, alertando seus discípulos a não agirem de tal modo.

O evangelho de hoje é um manifesto muito claro de que Jesus tem um lado e, por isso, seus discípulos de outrora, de hoje e de sempre, também devem ter. Assim como os antigos profetas, Jesus não consegue falar apenas de sentimentos, com uma mensagem de conforto e resignação. Pelo contrário, ele se dirige às situações concretas da vida, às pessoas que sofrem, sem medo de denunciar os responsáveis por tais sofrimentos. Ser discípulo e discípula de Jesus é, portanto, também assumir um lado na história e lutar por transformá-la.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 09, 2019

REFLEXÃO PARA O QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 5,1-11 (ANO C)





Dando continuidade à leitura do Evangelho segundo Lucas, o texto evangélico proposto para a liturgia deste quinto domingo – Lc 5,1-11 – apresenta dois passos importantes e decisivos da ainda recente missão de Jesus: a abertura a ambientes e pessoas pouco apegadas às tradições e à Lei, e o chamado dos primeiros discípulos. Após uma tentativa fracassada de anúncio da Boa Nova em sua terra natal, Nazaré, terminada em tentativa de homicídio (cf. Lc 4,29-30), como lemos no domingo passado, Jesus retornou à Cafarnaum (cf. Lc 4,31), onde, aliás, já tinha realizado sinais e milagres antes mesmo da sua pregação em Nazaré, sinal de que lá tinha encontrado receptividade para sua mensagem (cf. Lc 4,14.23).

Embora haja um considerável intervalo entre o evangelho de hoje e aquele do domingo passado (a liturgia saltou Lc 4,31-44), os dois se relacionam, não por afinidade, mas por contraste. O evangelista faz questão de contrapor a rejeição dos judeus ortodoxos de Nazaré à acolhida da população pouco observante das leis que vivia às margens do lago de Genesaré, sendo Cafarnaum a cidade símbolo dessa população e dessa área geográfica. Enquanto os habitantes de Nazaré eram observantes fanáticos da lei, a população de Cafarnaum e das cidades da costa do lago era conhecida por ser pouco ortodoxa. Mesmo atuando em Cafarnaum, a pregação de Jesus ainda estava bastante limitada ao âmbito sacro da sinagoga; aos poucos, ele começou a afastar-se desse espaço, procurando outros cenários para a sua atuação (cf. Lc 4,42), a ponto de começar a pregar às margens do lago, um dos passos importantes da sua missão que o evangelho de hoje retrata.

Olhemos, então, para o texto: “Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a Palavra de Deus” (v. 1). Esse versículo é de suma importância para a teologia e a catequese de Lucas; essa é a primeira vez que ele afirma explicitamente que Jesus prega fora da sinagoga. Daqui para a frente, a sinagoga será sinal de hostilidade; e toda vez que Jesus atuar em uma, haverá confusão (cf. Lc 6,6-11; 13,1-17). As margens de um lago, considerado mar pelos habitantes da região, era o lugar menos adequado para a escuta da Palavra de Deus (os demais evangelistas chamam esse lago de Mar da Galiléia; Lucas é o único que o chama de lago). Compondo “a multidão que se apertava”, sem dúvidas, estavam pessoas impuras, marginalizadas, excluídas e proibidas de entrar nas sinagogas; o objetivo dessa multidão era “ouvir a Palavra de Deus”.

Lucas é o evangelista que trata explicitamente o ensinamento de Jesus como “Palavra de Deus” (em grego: ο λογος του Θεου = hó logos tu Theú); fazendo, inclusive, da “Palavra de Deus” o tema principal de sua dupla obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). No Evangelho, a Palavra de Deus é a pregação de Jesus; em Atos, é a pregação dos apóstolos e discípulos, o querigma. Assim, ele mostra a continuidade entre e reforça para a sua comunidade que o anúncio coerente e fiel do ideal de vida proposto por Jesus e, sobretudo, a vivência, é a realização da Palavra de Deus na história. Nas sinagogas, tinha-se acesso a uma interpretação rígida e minimalista da lei; quando Jesus quis fazer a palavra proclamada na sinagoga tornar-se viva e dinâmica, foi expulso e quase morto (cf. Lc 4,14-30). As margens do lago, pelo contrário, é um lugar de trânsito livre, por onde passam pessoas de diversas origens, vivendo nas mais variadas situações; é em lugares assim que a Palavra de Deus deve ecoar, como ensinou Jesus, e Lucas recordou para a sua comunidade e seus leitores de todos os tempos.

Fora dos limites dos espaços oficiais, a pregação exige dinamismo, criatividade e atenção às situações concretas. Ver a realidade ao redor é decisivo para quem anuncia a Palavra de Deus. Por isso, recorda o evangelista que “Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava às multidões” (vv. 2-3). Jesus une sua situação de pregador itinerante, desprovido de meios, à situação dos pescadores desiludidos. Enquanto os pescadores lavam suas redes, depois de uma pesca fracassada, Jesus cria um púlpito alternativo, ensinando a partir de uma barca, porque a multidão que o escutava crescia cada vez mais.

A barca afastada da margem é a primeira imagem da comunidade cristã empregada por Lucas, depois da figura de Maria no chamado “Evangelho da Infância” (cf. Lc 1 – 2); ao contrário da sinagoga, um edifício pronto e estruturado, a barca não oferece nenhuma segurança e conforto; é sinal de vulnerabilidade e perigos, apontando como deverá ser a Igreja futura: “em saída”. O conteúdo do ensinamento de Jesus não é descrito por Lucas, aqui; mas é certo que era a “Palavra de Deus”; em Jesus, é Deus mesmo quem fala, foi isso o que as multidões perceberam (cf. v. 1). Simão, o dono da barca usada por Jesus, já era conhecido seu, embora ainda não fosse um seguidor, propriamente. Jesus já frequentava a sua casa, onde havia curado sua sogra (cf. Lc 4,38).

A pregação de Jesus não comportava apenas discursos, mas também preocupações com as necessidades concretas das pessoas. Percebeu que os pescadores não tinham feito uma boa pescaria e, ao terminar a pregação, interviu também sobre eles, começando por Simão, seu conhecido: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca” (v. 4). Avançar para águas mais profundas, aqui, significa sair da superficialidade, tomar decisões e correr riscos. Como pescador experiente, “Simão respondeu: ‘Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes” (v. 5). Embora não fosse oficialmente um discípulo, Simão demonstra consideração e respeito por Jesus: lhe chama de mestre, ou seja, o reconhece como alguém que tem autoridade e, por isso, confia na sua palavra. Assim, o evangelista ensina que confiar na palavra de Jesus implica a tomada de decisões e iniciativas; essa não é uma palavra para ser apenas escutada e contemplada, mas deve direcionar as nossas atitudes. Orientada pela palavra de Jesus, a comunidade deve agir, inclusive se arriscando.

Tudo o que se faz na vida pessoal e comunitária deve estar em sintonia com a palavra de Jesus; sem essa, todo esforço é fatigar em vão. A vida da comunidade ganha sentido e os frutos aparecem, quando essa se arrisca em atenção à palavra de Jesus que é a mesma “Palavra de Deus”; por isso, quando os pescadores lançaram as redes orientados por Jesus “apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam” (v. 6). No ideal de vida proposto para a comunidade inaugurada por Jesus, tanto a abundância quanto as dificuldades são compartilhadas, por isso, “fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajuda-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem” (v. 7). O resultado da pesca serve como parábola para ilustrar a diferença entre uma comunidade que fatiga em vão, repetindo sempre as mesmas coisas, parada no tempo e no espaço, e uma comunidade dinâmica que não tem medo de se arriscar em atenção à palavra de Jesus.

À medida em que a confiança na palavra de Jesus é alimentada, a fé amadurece e se solidifica, as convicções se renovam, como aconteceu com Simão, protótipo dos Doze que serão constituídos mais tarde e dos seguidores de todos os tempos: “Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador” (v. 8). Essa é a primeira vez em que Simão vem chamado de Pedro, no Evangelho segundo Lucas; até então, era chamado apenas de Simão (cf. Lc 4,38; 5,3.4). É o início de uma vocação decisiva para a comunidade cristã; embora contraditório, esse pescador e pecador que cedeu a barca para Jesus pregar às multidões é o mesmo que mais tarde se dará conta de que “Deus não faz acepção de pessoas” (cf. At 10,34), e abrirá as portas da comunidade cristã para acolher a todas as pessoas, independente da origem e das diferenças étnicas e religiosas.

É importante perceber a evolução na fé de Pedro: no início, tratou Jesus como mestre, um homem respeitável; agora, o proclama como Senhor (em grego: Kýrios), ou seja, o reconhece como Deus. A fé implica um processo de vivência e confiança para amadurecer constantemente. É claro que Simão não sai pronto deste episódio; serão muitos os seus fracassos que o evangelista irá recordar. O sentimento de indignidade e pequenez do ser humano diante de Deus, aqui expresso pelas palavras de Pedro, “afasta-te de mim, porque sou um pecador”, não é um rebaixamento do gênero humano, mas uma maneira que os autores bíblicos encontraram para expressar a grandeza de Deus. Essa linguagem é típica dos relatos de vocação. Não apenas Simão Pedro ficou espantado, mas também os seus companheiros de pesca: “É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer” (v. 9).

Ao contrário dos demais evangelistas (cf. Mt 4,18; Mc 1,16), que incluem também André entre os chamados de primeira hora, Lucas parte somente com três: “Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados.  Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante, tu serás pescador de homens” (v. 10). Simão Pedro e os dois filhos de Zebedeu constituem o núcleo fundante da comunidade de discípulos e discípulas de Jesus; não por seus méritos, mas pela necessidade deles e pela lógica de Deus que prefere o que é mais frágil. Simão, pela obstinação, por isso é Pedro, Tiago e João pelo fanatismo violento (cf. Lc 9,54-56), estarão sempre mais próximos de Jesus (cf. 8,51; 9,28); eles são os mais necessitados de repreensão do mestre ao longo da caminhada e, por isso, mais necessitados de uma catequese mais intensa.

Como eram pescadores, Jesus procura uma figura de linguagem acessível a eles para expressar o seu chamado: ser “pescadores de homens”. Porém, é uma pesca ao contrário, o que as traduções não conseguem expressar adequadamente. Na atividade pesqueira convencional, pesca-se para matar, ou seja, retira-se os peixes de seu habitat natural para a matá-los e transformá-los em alimentos. É uma imagem que pode facilmente, como tem sido feito, tornar-se um estímulo ao mero proselitismo. Na verdade, o evangelista emprega um verbo que significa “tirar vivo” ou “capturar para a vida”, “resgatar” (em grego: ζογρεω = zôgreo) quem vive em perigo. Ora, na cultura semítica, o mar era o símbolo do caos, do perigo, daquilo que é demoníaco; representava a morte. Empregando essa imagem, Jesus está responsabilizando a comunidade cristã, não a fisgar pessoas, como se a pregação fosse uma rede ou um anzol, mas a ser sinal de vida, indo até as situações de perigo e vulnerabilidade, onde a vida humana está ameaçada, e restituir a dignidade ferida ou negada, contribuindo para a restauração da vida digna e plena. Jesus pediu que aqueles três homens se dedicassem ao cuidado das pessoas, com a mesma determinação com a qual desenvolviam a profissão de pescadores. Por isso, a imagem da pesca aplicada por Jesus, segundo o evangelista, deve ser interpretada com muito cuidado.

A resposta foi positiva: “Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus” (v. 11), e assim deu-se início ao seu grupo de seguidores. Neste pequeno grupo, apenas três, está a base para os Doze e para os seguidores e seguidoras de todos tempos. Enquanto Jesus limitava sua atuação às sinagogas, o efeito de sua pregação e a eficácia de sua palavra eram bastante curtos; tendo procurado novos cenários (as margens do lago) e abandonado os púlpitos institucionais (passando a pregar de uma barca vulnerável), as multidões aumentavam para escutá-lo, e os primeiros seguidores foram chamados. É esse o dinamismo que deve estar presente sempre na comunidade.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 02, 2019

REFLEXÃO PARA O QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 4,21-30 (ANO C)




A liturgia deste quarto domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a continuidade da leitura do episódio programático envolvendo Jesus na sinagoga de Nazaré, em sua primeira manifestação pública entre os seus parentes e conterrâneos. Ao invés de “discurso programático”, é preferível chamar de “episódio programático”, já que o discurso propriamente dito foi muito curto, gerando um sério conflito, ao qual o evangelista dá bastante relevância. O texto para hoje – Lucas 4,21-30 – começa com o mesmo versículo que tinha encerrado no domingo passado: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir” (v. 21). Ora, o que hoje se cumpriu foi a passagem de Isaías 61,1-2 que Jesus tinha acabado de ler: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor”. A auto-apresentação de Jesus como profeta e cumprimento das promessas e profecias do Antigo Testamento causou surpresa e espanto entre os seus conterrâneos, como vemos na sequência do texto.

Conforme já recordamos no domingo passado, essa não foi a primeira manifestação pública de Jesus, mas a primeira em Nazaré, e a primeira registrada pelo evangelista Lucas. Antes desse episódio, a fama de Jesus já tinha se espalhado pela Galileia (cf. Lc 4,14), o que prova que seu ministério já estava em andamento; porém, ele ainda não tinha pregado em Nazaré, a aldeia onde tinha se criado (cf. Lc 4,16). Tendo sua fama se espalhado por toda a Galileia (cf. Lc 4,14), obviamente tinha chegado também a Nazaré, gerando curiosidade e expectativa entre os seus familiares e conterrâneos. Por isso, a primeira reação dos devotos judeus de Nazaré, frequentadores da sinagoga, foi de admiração: Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boa. E diziam: “não é este o filho de José?” (v. 22). Certamente, essa admiração estava acompanhada de uma boa dose de desconfiança, sobretudo por causa da ousadia de Jesus, ao aplicar a profecia de Isaías à sua própria pessoa, à sua missão.

O questionamento “não é este o filho de José?” mostra que os conterrâneos de Jesus não viam nele as características do messias que esperavam: um guerreiro libertador, promotor da luta armada para expulsar os romanos e reconstruir o reino davídico. Como filho de José, ele não deveria passar de carpinteiro, como o pai, segundo a mentalidade resignada dos habitantes de Nazaré. Embora sedentos de libertação, os nazarenos absorveram a ideologia do poder dominante: não acreditam na força transformadora e libertadora dos pequenos; esperam que a libertação venha de fora, quando na verdade está dentro de cada um e cada uma que se sente portador do “Espírito do Senhor”, como Jesus (cf. Lc 4,18-19 = Is 61,1-2); os nazarenos se comportam como cegos que não querem enxergar e cativos que não querem se libertar. Como estavam no ambiente cultual, a sinagoga, esperavam que Jesus, pregando, reforçasse os dogmas e tradições daquela religião, que exigisse mais fidelidade aos preceitos da lei, que fizesse ameaças e exigências morais, como faziam os demais pregadores do seu tempo. Jesus Pelo contrário, Jesus não fez nada disso; apenas anunciou um mundo novo, propôs transformações urgentes, para “hoje” (cf. Lc 4,21), sintetizadas nas imagens da profecia de Isaías: cegos recuperando a vista e oprimidos sendo libertados; nesse mundo novo, proposto por Jesus, os protagonistas não são os poderosos, mas os pequenos que se deixam conduzir pela força transformadora do Espírito: os pobres, cativos, cegos e oprimidos, como síntese dos destinatários preferenciais do Evangelho.

Percebendo que que na admiração dos seus conterrâneos estava também a desconfiança, o próprio Jesus se antecipa e revela a reprovação deles: “Jesus, porém, disse: “Sem dúvidas, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum” (v. 23). Mais uma vez, o evangelista deixa claro que Jesus já tinha começado seu ministério antes de ir a Nazaré, inclusive fazendo sinais e milagres em Cafarnaum, cidade por quem os habitantes de Nazaré alimentavam uma certa rivalidade; ora, Cafarnaum estava localizada às margens do mar da Galileia, era uma cidade comercial pela qual transitavam pessoas de diversas origens, consideradas impuras; era uma cidade aberta ao paganismo, algo inconcebível para a população conservadora de Nazaré. Jesus conhecia essa situação e percebeu que seus conterrâneos não aceitavam que ele realizasse sinais em um cidade de costumes tão pouco dogmáticos.

O evangelista torna o episódio paradigmático e programático em todos os sentidos: a dinâmica da vida de Jesus é resumida e antecipada aqui; inclusive, o uso do provérbio “médico, cura a ti mesmo”, é uma antecipação das ironias que Jesus sofrerá na cruz: “salva-te a ti mesmo” (Lc 23,37-39). Das tradições de Israel, a que Jesus reivindica constantemente para si é a tradição profética; as tradições da lei, que serviam somente como instrumento de dominação da elite sacerdotal de Jerusalém, Jesus as contestará com veemência, ao longo de seu ministério. Toda a sua vida pública se alinhará aos profetas que, incansavelmente, anunciaram um mundo novo, denunciando tudo o que impedia a sua plena realização, principalmente as injustiças sociais e a hipocrisia religiosa. 

Se o ponto de partida para o conflito com seus conterrâneos foi a leitura de Isaías 61,1-2, Jesus aprofunda ainda mais esse conflito com os exemplos dos profetas Elias e Eliseu: “De fato, eu vos digo: no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três anos e seis meses e houve grande fome em toda a região, havia muitas viúvas em Israel, no entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia. E no tempo do profeta Eliseu, havia muitos leprosos em Israel. Contudo, nenhum deles foi curado, mas sim Naamã, o sírio”. (vv. 25-27). Com esses dois exemplos, Jesus mostra que a palavra e a ação de Deus não são posses de um povo ou de um grupo, mas que seu amor é universal. A viúva de Sarepta, favorecida por Elias com a multiplicação da farinha e do azeite e pela ressurreição do seu filho (cf. 1 Rs 17), é uma prova de que o critério para o amor de Deus não é a religiosidade da pessoa, mas a necessidade e abertura. Da mesma forma, o exemplo de Naamã (2 Rs 5), um leproso, chefe do exército do rei de Aram, reino inimigo de Israel; esse leproso foi curado por Eliseu, o profeta sucessor de Elias.

Elias foi o profeta mais respeitado e venerado pelo povo judeu. Foi o mais zeloso em relação ao monoteísmo e à fidelidade ao Deus único e libertador; no entanto, não aprisionou esse Deus nos esquemas da religião; o levou também para fora dos limites de Israel. Seu sucessor, Eliseu, também não negou o amor libertador de Deus a quem era visto como inimigo do seu povo. Com esses dois exemplos, Jesus anuncia a tônica da sua mensagem: a Boa Nova não conhece limites, não é propriedade de nenhuma pessoa, de nenhum um grupo, de nenhuma instituição; é graça e dom para quem quer conhecer e receber. Essa dinâmica será mostrada de modo ainda mais claro na segunda obra de Lucas, o livro dos Atos dos Apóstolos, que mostrará a Palavra crescendo, se multiplicando e rompendo todas as barreiras e condicionamentos socioculturais e religiosos.

Os exemplos de Elias e Eliseu foram o estopim para o conflito: “Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos” (v. 28). Como consequência do acirramento dos ânimos, partem para a ação violenta: “Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lança-lo no precipício” (v. 29). Quer dizer que a rejeição foi completa, total; não expulsaram apenas da sinagoga, mas da cidade e, tudo isso, em dia de sábado (cf. Lc 4,16). Assim, o evangelista denuncia os perigos do fundamentalismo religioso de todos os tempos.
Com uma mentalidade fechada em tradições e preceitos, os judeus de Nazaré repudiaram a proposta libertadora de Jesus. Nessa cena, o evangelista projeta a paixão, que acontecerá em Jerusalém; inclusive “inventa”, propositadamente, um monte para Nazaré, sendo que ela estava numa planície; o objetivo é teológico, para compará-la com Jerusalém e fazer uma prefiguração da paixão: Jesus será condenado pelos chefes religiosos de Israel, num monte, fora da cidade. Podemos dizer que nesse episódio o evangelista transforma a pequena Nazaré numa miniatura de Jerusalém, e o conflito de Jesus com os seus habitantes em uma síntese de todo ministério de Jesus. O principal acento, no entanto, está nos responsáveis: pessoas zelosas, fiéis observantes dos pormenores da lei.

O evangelista deixa claro que não são as forças conservadoras e opressoras que tem a última palavra; por mais perversidades que pratiquem, essas forças, representadas pelos conterrâneos de Jesus, não conseguem deter a força da Palavra e do Espírito do Senhor que movia Jesus: “Jesus, porém, passando no meio deles, continuou o seu caminho” (v. 30). Jesus supera a primeira tentativa de assassinato de que foi vítima, simplesmente “passando pelo meio e continuando o seu caminho”. Também superará a cartada final da classe dirigente, sacerdotes e governador (Anás/Caifás e Pilatos), com a ressurreição, para continuar “passando no meio” através da Palavra, a qual abre sempre caminhos de vida, de esperança e de libertação, temática que Lucas desenvolve com mais precisão em Atos dos Apóstolos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)

O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de Joã...