Neste
IV Domingo do Tempo Comum, a liturgia da Palavra nos apresenta um dos trechos
mais bonitos e ricos de significado de todo o Novo Testamento: Mateus 5,1-12. Trata-se
da versão mateana das bem-aventuranças, a introdução do primeiro e grande
discurso de Jesus no primeiro evangelho, conhecido como “Discurso ou sermão da
montanha” (Mt 5 – 7).
Esse discurso tem, ao longo dos séculos, encantado cristãos e não cristãos. Aqui, faz-se necessário recordar o que afirmou o primeiro verdadeiro exegeta cristão da história, Orígenes, que viveu entre 185 e 253 d.C., o qual afirmou que as bem-aventuranças são o retrato de Jesus, ou seja, através delas Jesus disse quem Ele era e como vivia. Com certeza Orígenes tinha razão.
Esse discurso tem, ao longo dos séculos, encantado cristãos e não cristãos. Aqui, faz-se necessário recordar o que afirmou o primeiro verdadeiro exegeta cristão da história, Orígenes, que viveu entre 185 e 253 d.C., o qual afirmou que as bem-aventuranças são o retrato de Jesus, ou seja, através delas Jesus disse quem Ele era e como vivia. Com certeza Orígenes tinha razão.
Jesus
ainda não tinha sequer formado o grupo completo dos Doze. Tinha chamado apenas
quatro discípulos: Pedro, André, João e Tiago (cf. Mt 4,18-22), mas já tinha
iniciado sua atividade messiânica e despertado o interesse das multidões (cf.
Mt 4,23-25). Como não pretendia enganar a ninguém, preferiu, logo de início,
deixar claro o seu projeto, iniciando exatamente com a proclamação das
bem-aventuranças, as quais revelam o seu jeito de ser e como deve ser também a
vida dos discípulos, destinatários primeiros do seu ensinamento, mesmo
circundado pelas multidões (v. 1-2).
Como
diz o texto, “vendo as multidões, Jesus subiu ao monte” (v. 1a). Aqui, há uma
clara alusão a Moisés que subia ao monte Sinai para comunicar-se com Deus,
tendo recebido ali as tábuas da lei (cf. Ex. 19,3; 24,15.18). A montanha é,
portanto, o lugar da oração, do encontro com Deus e da sua revelação à
humanidade. Não se trata de um indicativo topográfico, mas teológico.
Aqui,
Jesus revela-se Senhor e mestre. O gesto de ensinar sentado e com os discípulos
próximos a ele (v. 1-2), mostra a autoridade de mestre, significa que seu
ensinamento é sólido, consistente e sério, embora ainda tenha um grupo muito
pequeno de discípulos. Ele não consegue esperar seu grupo crescer para dizer
como quer que seus discípulos sejam, por isso, apresenta logo ali o seu perfil.
O
evangelista usa nove vezes o termo grego “maka,rioi” – macarioi,
cujo significado é felizes, bem-aventurados ou benditos. Com isso, Jesus
descreve como devem ser seus discípulos. Na verdade, como todo discípulo deve
imitar o seu mestre, e como autêntico e verdadeiro que era, tudo o que Ele já
vivia, o propôs para o seu discipulado. O que, de fato, é exigido, é que sejam
bem-aventurados, felizes. Talvez um conceito equivocado de felicidade dificulte
uma compreensão mais sólida do que Ele apresenta.
É importante recordar que as bem-aventuranças não são sugestões, mas exigências radicais que devem ser vividas em sua totalidade. Não se pode escolher uma ou outra. Só tem sentido e valor quando vividas por completo, ou seja, todas; por isso, é desafiante ser discípulo ou discípula de Jesus.
É importante recordar que as bem-aventuranças não são sugestões, mas exigências radicais que devem ser vividas em sua totalidade. Não se pode escolher uma ou outra. Só tem sentido e valor quando vividas por completo, ou seja, todas; por isso, é desafiante ser discípulo ou discípula de Jesus.
A
primeira bem-aventurança (v. 3) é um consolo para quem já é “pobre em espírito”
e um convite para que os que ainda não são, se tornarem. De todas, é aquela que
mais tem gerado controvérsias na interpretação. A preferência de Jesus pelos
pobres é inquestionável. No entanto, alguns, para suavizar a interpretação,
outros para não se comprometerem, afirmam que Jesus não está aqui se referindo
à pobreza como carência de bens, mas como um sentimento. É claro que essa
interpretação é absurda, sobretudo se tomamos a mensagem de Jesus em seu conjunto,
e recordamos que uma das coisas que Ele mais cobra de seus discípulos é o
desapego e a renúncia aos bens. Também não se trata de um convite à resignação.
O
pano de fundo para essa bem-aventurança é a profecia de Sofonias (cf. Sf
3,11-13), quando apresenta o ‘resto de Israel’ como um povo ‘pobre e humilde’
que buscará refúgio no nome do Senhor. Portanto, os pobres em espírito são
aqueles que confiam em Deus, unindo à pobreza, a humildade, uma vez que, não
basta ser pobre, é necessário ser humilde para entrar na dinâmica do Reino. A
eles, os pobres em espírito, deve ser dado o Reino já agora, uma vez que a
condição deles não permite mais esperar por uma transformação futura. E, foi
Jesus, por excelência, um pobre no espírito, porque completou sua pobreza
material com a confiança no Espírito Santo e no Pai.
A
segunda bem-aventurança (v. 4) também tem um texto profético como pano de
fundo: a profecia de Isaías que anuncia o ‘consolo dos aflitos’ (cf. Is 61,2).
Ser consolado, na linguagem bíblica, não é simplesmente ser confortado ou ter a
dor aliviada por alguns momentos, mas é ter o sofrimento eliminado por
completo. A não aceitação do projeto de Jesus pelas estruturas sócio-políticas
e religiosas causará aflições no seu discipulado, mas resistindo, receberão a
verdadeira consolação.
Aos
aflitos, somam-se os mansos, a terceira bem-aventurança (v. 5). O próprio Jesus
se apresentará, posteriormente, como manso e humilde de coração (cf. Mt 11,29).
Aqui, Jesus alude aos israelitas que foram deserdados injustamente de suas
terras (cf. Sl 37,11), por isso, terão como recompensa a herança da terra
novamente. Também não é um convite à passividade. É apenas um lembrete para
que, diante das injustiças, a comunidade dos discípulos tome as mesmas atitudes
de Jesus.
Como
não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme Ele mesmo
experimentara, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta
bem-aventurança é tão interpelante: ‘bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça’ (v. 6). Ora, a fome e a sede são as necessidades que mais
incomodam o ser humano e o deixam ansioso. Com isso, Ele ensina que, como o
alimento e a água são essenciais para a vida, assim deve ser a busca pela
justiça em seus discípulos, ou seja, deve fazer parte do dia-a-dia da
comunidade e ser tão apreciada quanto o alimento cotidiano. Portanto, a luta
pela justiça é uma necessidade vital para o discipulado de Jesus.
A
misericórdia é tão importante na vida do discípulo, a ponto de ser a condição
para receber a misericórdia de Deus (v. 7). Assim é a quinta bem-aventurança.
Ora, na Bíblia, a misericórdia é, sobretudo, ação em favor dos necessitados.
Não se trata de um simples sentimento de piedade. É uma das principais
características de Deus, por isso, é indispensável na vida do discípulo, o qual
deve estar sempre atento e solícito às necessidades do próximo.
Com
a sexta bem-aventurança (v. 8), Jesus se contrapõe claramente aos ritos de
purificação da religião judaica, os quais não permitiam que as pessoas vissem o
verdadeiro rosto de Deus. Por isso, diz que bem-aventurados são ‘os puros de
coração’, e não os que se submetem constantemente aos ritos estéreis e vazios,
os quais, ao invés de aproximar as pessoas de Deus, causavam divisões e
exclusões e, portanto, afastavam de Deus. A verdadeira pureza é aquela
interior, ou seja, do coração, porque permite ver os outros com os olhos de
Deus e, assim, dar a conhecer o próprio Deus.
Considerando
que os discípulos seriam imersos em situações de conflito, Jesus pede, com a
sétima bem-aventurança (V. 9), que sejam ‘promotores da paz’. É claro que paz a
promovida pelo discípulo de Jesus será sempre uma paz inquieta como foi a dele.
Lutar pela paz é tão imprescindível na vida do discípulo, a ponto de ser
condição para ser considerado filho de Deus. Se trata de algo muito profundo,
considerando a riqueza teológica da palavra hebraica לוםf –
Shalom: paz como o bem-estar total do homem, harmonia com Deus, consigo
mesmo e com o próximo em todas as dimensões. É por esse tipo de paz que o
discípulo de Jesus deve lutar, ou seja, por uma vida digna e íntegra para todos,
desconstruindo o modelo arbitrário de paz imposto pelo império romano, a ‘pax
romana’.
Com
a oitava bem-aventurança (v. 10), Jesus apresenta aquilo que vai comprovar se o
discípulo está imitando-o ou não, ou seja, se está vivendo ou não as
bem-aventuranças: ‘ser perseguido por causa da justiça’. O principal sinal de
adesão plena ao Reino é ser perseguido! Por isso, ser discípulo de Jesus é um
desafio, porque a lógica do Reino contrapõe-se a todo e qualquer sistema humano
de gerenciamento da vida.
Viver
as bem-aventuranças é abraçar um projeto de sociedade alternativa que,
inevitavelmente, entrará em colisão com os sistemas dominantes. Obviamente, ao
invés de aplausos, os discípulos receberão perseguições, calúnias e injúrias,
completando assim a nona bem-aventurança (v. 11). E, diante de tudo isso, Jesus
ainda convida a alegrar-se e exultar (v. 12), na certeza de que a sua proposta
de vida é a única viável para a construção de um mundo justo, solidário e
fraterno, em contraposição a todos os sistemas humanos já experimentados.
As bem-aventuranças
nos desafiam a compreendermos e reconhecermos se, de fato, estamos sendo fiéis
a Jesus, ou seja, agindo como discípulos e discípulas. Como sabemos, não são
sugestões ou opções, mas condições indispensáveis para o seguimento; vivê-las é
tornar-se parecido com Jesus, uma vez que elas são seus traços básicos e
característicos.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues