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terça-feira, dezembro 24, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR – JOÃO 1,1-18 (MISSA DO DIA)


Assim como acontece com a liturgia da missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo para todos os anos. Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente, da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuraram explicar o nascimento e a origem divina de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo, inclusive, apresentando a participação da própria Palavra na criação do mundo. Pela diferença de estilo literário, sobretudo, muitos estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à tradição joanina. O debate em torno dessa questão continua aceso na exegese, sem perspectiva de conciliação. A extensão do texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher a mensagem central do texto.

E começamos recordando que o prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece com todos os escritos do Novo Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (em grego: logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (em grego: sofia – σοφίᾳ) no Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à Sabedoria e certamente influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica, pois os livros da Sabedoria e do Eclesiástico não são considerados inspirados pelos judeus.

Feitas algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo Testamento: «No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o Pai, como diz o texto: «Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito» (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Ora, no Novo Testamento, existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (Ef 1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais evidente se o compararmos aos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas que, empregando o gênero literário da genealogia, chegam ao máximo em Abraão e Adão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus. Afirmando a preexistência da Palavra na eternidade de Deus, o autor ensina que Deus fala, ele se comunica com a humanidade. Aliás, diz que todo o agir de Deus se dá por meio da Palavra. Isso evoca a ideia de um Deus acessível à humanidade, como, de fato, a vida de Jesus demonstra tão bem.

Na sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv. 4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer que veio ao mundo para trazer luz ao mundo e comunicar vida em abundância à humanidade (Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus, desde a criação até os tempos atuais, de modo que as trevas aqui mencionadas não dizem respeito apenas à história de Israel, mas ao mundo inteiro. Todo impedimento ao projeto de Deus e da Palavra encarnada, Jesus, representa o mundo das trevas, em todos os tempos e lugares. A primeira vitória da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos primordial (Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não conseguiram dominá-la.

Por ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados e, por consequência, a chegarem à fé, como consequência da luz contemplada e recebida. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia e, posteriormente, com os impérios dominantes, ofuscavam a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v. 17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz verdadeira do Pai e, por isso, ele é a própria luz (v. 18). Na verdade, tudo o que é propriedade do Pai só pode ser comunicado claramente por aquele que o conhece verdadeiramente, e é Jesus quem o conhece.

Até então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se claramente à humanidade tinham sido parciais e, por conseguinte, insuficientes (Hb 1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Sobrepõe-se, inclusive, à fé na ressurreição, porque a ressurreição é consequência da encarnação. Ele ressuscitou porque morreu, e só morreu porque se fez carne. Não há contraposição entre os dois mistérios, o que há é uma relação de causa e efeito. E Para compreender bem esse versículo, e perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez homem, motivado pelo amor. E é somente por causa desse acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus poderia ser contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia.

A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado. O autor poderia dizer apenas que a Palavra se tornou humano ou homem, mas isso poderia ser distorcido; poderiam dizer que ele, em sua divindade, teria apenas se revestido de humanidade, sem, no entanto, ter-se tornado verdadeiramente humano e frágil. Inclusive, na própria comunidade do evangelista surgiu esse problema, o que se tornou um dos motivos principais para a redação da Primeira Carta de João: reafirmar que Jesus Cristo veio na carne (1Jo 4,1). Ora, o termo carne (em grego: σὰρξ – sarx) empregado pelo evangelista representa a dimensão mais frágil da condição humana. Inclusive, em algumas tendências teológicas, às vezes, é usado como sinônimo de pecado, em contraposição a “espírito”, como convite para o ser humano superar o “estado da carne”. Isso evidencia ainda mais o quanto a declaração de Jo 1,14 é revolucionária. A Palavra não apenas se fez carne. Mas escolheu o fazer-se carne para morar no meio da humanidade e como meio privilegiado de revelação da gloria de Deus. Ora, os judeus imaginavam a gloria de Deus como poder e forca, os gregos viam a gloria como a sabedoria fornecida pela filosofia, enquanto o cristianismo, na perspectiva do Quarto Evangelho, afirma que é na carne humana que a gloria de Deus se manifesta.

O Natal é, portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR – LUCAS 2,1-14 (MISSA DA NOITE)



O evangelho da solene liturgia da noite de Natal é sempre o mesmo para todos os anos: Lc 2,1-14. Isso se explica pelo fato de tratar-se do único texto do Novo Testamento que, de fato, narra o nascimento de Jesus. Como se sabe, somente dois dos evangelhos canônicos contêm relatos e informações sobre o nascimento e a infância de Jesus, que são Mateus e Lucas, respectivamente. Tanto é que os dois primeiros capítulos destes evangelhos ficaram conhecidos como “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Contudo, o evangelho de Mateus não chega a narrar o nascimento, propriamente: da aceitação de José ao anúncio do anjo (Mt 1,24-25), o evangelista salta para o episódio da visita dos magos, já depois do nascimento do menino (cf. Mt 2,1-12). Essa lacuna de Mateus rendeu ainda mais privilégio e importância ao relato de Lucas, fazendo com que o texto lido nesta noite se tornasse um dos mais conhecidos e valorizados de toda a Bíblia, para as comunidades cristãs. Por se tratar de um texto relativamente longo, não comentaremos detalhadamente versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem em seu conjunto, embora seja necessário enfatizar alguns versículos em particular, após fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato. Por sinal, também a contextualização será breve, tendo em vista que muitos elementos do contexto são os mesmos do evangelho de ontem, o quarto domingo do advento.

A propósito do contexto narrativo, observamos que, apesar da longa extensão do texto, o relato do nascimento propriamente é muito curto, ocupando apenas dois versículos (vv. 6-7). O restante da narrativa compreende uma ampla introdução (vv. 1-5) e o anúncio festivo aos pastores (vv. 8-14), os primeiros a se beneficiarem da libertação inaugurada pelo nascimento de Jesus. Recordamos que este é um dos textos que mais revela as qualidades literárias de Lucas e uma de suas linhas teológicas mais relevantes: a preferência de Deus pelos pobres e marginalizados. Ainda a nível de introdução e contexto, é importante recordar que os relatos da infância de Jesus, tanto em Mateus quanto em Lucas, não possuem finalidade cronística ou histórica, mas catequética e teológica. Aliás, esse pressuposto vale para todos os relatos evangélicos. No entanto, isso não significa que os fatos narrados não possuam fundamentos históricos. Mas quer dizer que todas as informações e detalhes do texto estão a serviço de um plano teológico e catequético, que visam responder a questionamentos e necessidades de comunidades concretas do final do primeiro século. O que o evangelista quis deixar claro foi que Jesus verdadeiramente nasceu, viveu, fez opções bem concretas e eliminou todas as barreiras entre Deus e a humanidade. Como o “evangelho da infância” funciona como introdução e síntese ao inteiro evangelho, o texto de hoje contém indícios ainda mais evidentes daquilo que o evangelista pretende desenvolver no restante da obra. Na verdade, possui aponta temas que serão desenvolvidos até mesmo no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Feitas as considerações contextuais, passemos a olhar diretamente para o texto, partindo do primeiro versículo, que é bastante carregado de informações: «Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra» (v. 1). De todos os evangelistas, Lucas é o que mais se preocupa em situar os eventos narrados na história universal. Ele faz isso para ressaltar que Jesus não é um personagem inventado, não é uma lenda, mas um homem concreto que não caiu do céu, e sim que teve uma existência real em circunstâncias de tempo e espaço bem definidos. Com isso, ele também indica a viabilidade do projeto de salvação e libertação inaugurado por Jesus. Não se trata de uma promessa de felicidade para o além, mas de uma proposta de vida para ser vivida já neste mundo, como ele mesmo viveu. É um programa de humanização para toda a humanidade; o único capaz de reverter a injusta ordem vigente, transformando o mundo egoísta, violento e injusto em verdadeira irmandade. E os relatos da infância de Jesus (Lc 1–2), sobretudo o nascimento, marcam o início dessa transformação, são o começo da reviravolta na história. Por isso, o episódio começa mencionando a maior autoridade do mundo conhecido na época, o imperador romano, para terminar com os últimos, os pastores, para quem o céu se abre em festa. Por isso, os dados do primeiro versículo são muito importantes para a compreensão de todo o texto. O dado temporal “naqueles dias” tem relação com os últimos acontecimentos narrados pelo evangelista, como a dupla anunciação – do nascimento de João e de Jesus (Lc1,5-23.26-38) –, a visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-56) o nascimento de João (1,57-66). Do ponto de visto da história da salvação, era um tempo muito de intenso, repleto de acontecimentos importantes, embora inesperados. Enfim, eram dias de muitas novidades.

O evangelista localiza os eventos salvíficos, ocasionados pelo agir de Deus, no quadro da história universal, recordando também acontecimentos do mundo do império romano. Com isso, ele ensina que o agir de Deus se dá no curso da história. Não há duas histórias paralelas – uma sagrada e outra profana –, mas uma única história, na qual Deus age, salvado e libertando o seu povo. Assim, ele recorda as realizações do imperador romano César Augusto, chamado também de Otaviano, que comandou o império romano de 27a.C. a 14d.C., tendo sido um dos imperadores mais ambiciosos e poderosos da história. Foi ele quem criou a “pax romana”, que não passava de uma política de repressão e controle, com o falso pretexto de manter a lei e a ordem. Foi com ele que se consolidou a atribuição do título de “divino” ao imperador, que significava ser tratado como um deus. Sem dúvidas, era o homem mais poderoso da terra, na época. O decreto do recenseamento de “toda a terra” é uma prova disso. Aqui, por “toda a terra” (em grego: οἰκουμένην – oikumenen) compreende-se o território do império romano, o mundo habitado conhecido. Porém, esse dado é fruto da criatividade de Lucas. Não se tem notícias históricas de um recenseamento de abrangência universal na antiguidade. Quando aconteciam recenseamentos nos grandes impérios, incluindo o romano, se fazia por províncias ou, no máximo, por regiões. Provavelmente, Lucas soube de um recenseamento na província da Judeia e superdimensionou o fato, com a intenção de evidenciar a ambição do imperador com sua força opressora, uma vez que os recenseamentos eram abomináveis em Israel, por serem mecanismos de controle do povo, e só Deus tinha poder verdadeiro sobre o povo, segundo a mentalidade judaica. Por isso, os únicos recenseamentos considerados legítimos foram aqueles da época de Moisés, pois foram ordenados pelo próprio Deus, como demonstra o livro dos Números. Quando era proposto por um rei ou imperador era considerado pecado grave, porque servia para o controle dos impostos e a recrutamento de soldados para o exército. Inclusive, um dos pecados mais graves de Davi foi a realização de um recenseamento (2Sm 24,1-17). Quando Deus determinava um recenseamento, o fazia para saber se estava faltando algum dos seus filhos ou filhas, logo, era sinal de seu amor e cuidado.  

Outra intenção de Lucas com o dado do recenseamento foi encontrar um pretexto para levar o nascimento de Jesus para Belém e, assim, conferir-lhe as credenciais messiânicas, além de enfatizar a importância do caminho, que é outra linha teológica relevante na sua obra. Com isso, ele põe Maria em caminho pela segunda vez, sendo reforçando seu perfil de primeira missionária e peregrina do Evangelho. O primeiro caminho percorrido por Maria, já animada pelo Espírito Santo, se deu por ocasião da visita a Isabel (Lc 1,39-56). Agora, ele faz o segundo. Tudo isso, ressaltamos, está a serviço de um plano teológico traçado pelo evangelista. Por isso, o texto diz que, «Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia» (v. 4). Esse versículo também é muito rico de significado e possui grande importância para o sentido do texto. Tradicionalmente, a cidade de Davi era Jerusalém, embora ele tenha nascido e sido ungido rei em Belém (1Sm 16,1-13; 2Sm 5,7.9). A pertença de José à descendência davídica dá legitimidade à messianidade de Jesus, o que já tinha sido informado ainda no evangelho da anunciação (Lc 1,27). A distância entre Nazaré e Belém é de aproximadamente 150 km, dificilmente percorrível por uma mulher em gravidez avançada, como se encontrava Maria. Mas a motivação é teológica. Com isso, ele antecipa que nenhum obstáculo impedirá o percurso da Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Quem se reveste do Espírito Santo, como Maria, jamais se acomoda, por mais que encontre adversidades. E essa deve ser a postura da comunidade cristã em todos os tempos, da qual Maria e José são modelos.

Apesar de ser a cidade natal de Davi, personagem importante da história de Israel, Belém era um lugar praticamente esquecido, sem importância. Possuía apenas um valor simbólico, a começar pelo nome, que significa “casa do pão”, além de uma profecia de Miquéias, pouco recordada no mundo judaico da época, que previa para lá acontecer o nascimento do Messias. Na prática, era considerada apenas um vilarejo da periferia de Jerusalém, separadas por apenas 10 km. Assim, o nascimento de Jesus nela não significa apenas o cumprimento das Escrituras, mas também a opção de Deus pelos últimos, pelo que é periférico e excluído. Com isso, percebemos uma das principais demonstrações da genialidade de Lucas: ao afirmar que «enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto» (v. 6), ele confirma que Jesus será o Messias esperando, anunciado pelas Escrituras. Em seguida, quase como advertência, ele ensina que não será um Messias glorioso, guerreiro e poderoso como a religião de Israel esperava, ao narrar a situação de completa pobreza em que ele nasceu: «E Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria» (v. 7). Enfaixar os recém-nascidos era um sinal de cuidado e proteção, na antiguidade; acreditava-se que o enfaixamento ajudava a criança a crescer reta, sem deficiências. A falta de lugar na hospedaria é a primeira demonstração de que Jesus já nasceu excluído e entre os excluídos. Ele já nasce banido e, ao longo do seu ministério, vai juntar-se aos banidos de sempre. Pelas expectativas de Israel, o Messias deveria nascer em berço de ouro, enquanto o berço de Jesus foi uma manjedoura (em grego: φάτνῃ – fatne), ou seja, um cocho para alimentação de animais. Foi colocado num cocho de animais por falta de lugar digno. O texto não diz que a hospedaria estava lotada, apenas diz que não havia lugar para eles, mas poderia haver para outras pessoas. Não havia lugar para eles, talvez, pelas condições em que se encontravam: forasteiros, refugiados.

O evangelista deixa claro que Jesus nasce um Messias às avessas das expectativas. Nasceu em condições sub-humanas. Numa sociedade desigual, dividida entre privilegiados e injustiçados, ele ficou do lado dos injustiçados, desde o nascimento. Israel não estava preparado para receber um Messias assim e o cristianismo, a partir de  quando se institucionalizou, também parece ainda não ter assimilado como ele veio e viveu. Tudo isso aponta para um novo tempo, uma nova história, como a sequência do Evangelho de Lucas vai mostrar, mas o texto de hoje já antecipa. Ora, o episódio começou pelo imperador (v. 1), o maior na escala social, passou pelo governador (v. 2), e parou num casal desabrigado com um recém-nascido (v. 7), que é o ponto de partida de uma nova história, de um novo jeito de compreender o mundo. A partir de Jesus, os humildes passam a ter vez, começam a ser lembrados, como diz o texto: «Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho» (v. 8). Apesar de romantizados na Bíblia, devido às origens pastoris do povo de Israel, os pastores constituíam a escória da sociedade, conforme a mentalidade vigente; ocupavam o último degrau da escala social, desde que Israel deixou a condição de povo nômade para sedentário, quando chegou na terra prometida. Devido aos cuidados que os rebanhos exigiam, os pastores não tinham condições de observar a Lei, sobretudo o repouso sabático; por causa das andanças dos rebanhos, eram obrigados a atravessar terras pagãs, e o contato constante e direto com os animais os tornavam impuros. Por isso, eram mais rejeitados até do que os cobradores de impostos. Além da total exclusão, também eram duramente explorados; cuidavam de rebanhos que não eram deles; tinham de vigiar durante dias noites, para defender os rebanhos de ameaças de lobos e assaltantes.

Como o nascimento de Jesus inaugura uma nova história, também marca o início de uma nova ordem, com novos protagonistas. Os últimos começam a se tornar primeiros, e o anúncio aos pastores é uma prova disso, como diz o texto: «Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo’» (v. 9-10). Ora, de acordo com a religião da época, os últimos a receber uma mensagem de Deus seriam os pastores. Eles já tinham sido condenados antecipadamente. Mas, como Deus surpreende, eles se tornaram os primeiros destinatários do anúncio do nascimento de Jesus. A notícia dada pelo anjo é para todo o povo, como é a mensagem libertadora de Jesus. Mas algumas pessoas tem prioridade nesse anúncio: os pobres e excluídos. Essa é uma das grandes certezas que os evangelhos revelam e, sobretudo, o de Lucas. A opção preferencial pelos pobres é clara! Por isso, esse anúncio é dado com uma grande alegria para os pastores. Explorados e excluídos, eles nunca tinham recebido mensagem de alegria; quando alguém se dirigia a eles, o que era raro, era com palavras de condenação ou impondo ordens. O anúncio do nascimento de Jesus para eles é uma grande alegria porque traz eles para o centro da história, que começa a ser reescrita a partir de baixo, a partir dos pequenos e últimos. Com o anúncio do anjo aos pastores, portanto, o programa do Magnificat começou a ser realizado: finalmente, os humildes começaram a ser elevados. Os primeiros, como o imperador e o governador, passam a ser últimos, já não são mais lembrados na nova história que está começando.

E a notícia dada aos pastores é mesmo de alegria, é maravilhosa: «Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (v. 11). Como se vê, o anúncio é atual, indica que a salvação não é um evento passado nem futuro, mas um fato do presente, do cotidiano: é para hoje! Temos aqui, mais uma linha importante da teologia de Lucas: o hoje (em grego: σήμερον – semeron), que indica a urgência da salvação/libertação, sobretudo para quem não pode mais esperar, como os pastores, na época, e tantas pessoas marginalizadas ainda hoje. E isso constitui uma séria advertência para a comunidade: é preciso discernir quais são as situações que exigem tomadas de posição e meios de transformação com urgência. Neste versículo, aparecem os três principais títulos cristológicos de Jesus: Salvador (em grego: σωτὴρ – sotér), Cristo, que significa Messias/ungido (em grego: χριστὸς – Christós), e Senhor (em grego:  κύριος – Kýrios). Quer dizer que Jesus possui a totalidade dos dons de Deus, e tudo foi disponibilizado à humanidade, a partir do seu nascimento. Com todos esses títulos aplicados a Jesus, o evangelista confronta a teologia de Israel e a ideologia imperial. Ora, os títulos de Salvador, Messias e Senhor eram muito caros ao pensamento judaico, que os concebia do ponto de vista triunfalista, com o qual o menino nascido na manjedoura nada tinha a ver. As credenciais de Jesus como Salvador, Messias e Senhor são o reverso do que se esperava em Israel. À exceção do título de Messias, o imperador romano também exigia ser reconhecido com esses títulos – salvador e senhor. Mas, de modo sutil e poético, pela boca do anjo, o evangelista denuncia essa falsa pretensão: só um verdadeiro Salvador, Messias e Senhor do mundo: é o frágil menino, enrolado em faixas, colocando numa manjedoura porque lhe negaram um lugar na hospedaria.

Para não deixar dúvidas, o anjo indica como os pastores encontrarão o Salvador nascido para eles (v. 12). A lógica seria procurá-lo num palácio ou num templo, em meio a refinados ornamentos. Mas desse modo os pastores jamais encontrariam, pois, as portas dos templos e palácios não se abririam para eles. Um recém-nascido é sinal de impotência e fragilidade, a manjedoura indica a extrema pobreza. Temos aqui um grande paradoxo: é nessa impotência, fragilidade e pobreza que está a glória de Deus em plenitude, o que é confirmado pela «multidão da coorte celeste» (v. 13) que se juntou ao primeiro anjo para cantar e festejar. Essa cena marca o fim definitivo da separação entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. O nascimento de Jesus superou as antigas barreiras de separação. Diante dos pastores, os anjos não só cantam, mas proclamam uma nova imagem de Deus, mas também um jeito novo de se relacionar com ele e uma nova ordem para o mundo: «Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados» (v. 14). Como se vê, a glória de Deus está intrinsecamente relacionada ao bem-estar da humanidade. A paz não é um sentimento, nenhuma tranquilidade interior; é a totalidade de todos os bens sonhados por Deus para a humanidade: justiça, liberdade, dignidade, igualdade, fraternidade, terra para trabalhar… logo, não tem sentido proclamar Deus como glorioso sem preocupar-se com essa paz entre os homens. Se as pessoas não podem viver bem na terra, pouco sentido tem a proclamação da glória de Deus nos céus.

Que a celebração de mais um Natal nos ajude a assimilar o seu verdadeiro sentido, abraçando as causas que ele pressupõe. Como diz o Papa Francisco, «Deus faz morada entre nós, pobre e necessitado, para nos dizer que é servindo aos pobres que amamos a ele». Celebremos o Natal, portanto, acolhendo Jesus que vem ao nosso encontro, reconhecendo-o entre aqueles que não tem lugar onde ser acolhido. Que a manjedoura, lugar de manifestação e revelação do Deus que é Salvador, Messias e Senhor, não seja romantizada. Jesus foi parar nela porque não lhe deram lugar na hospedaria. A manjedoura foi o que lhe restou. Que nosso coração seja hospedaria para Jesus nascer a cada dia, e que sejamos promotores de paz, justiça, amor e humanização, para proclamarmos a glória de Deus com a consciência tranquila. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

domingo, dezembro 24, 2023

REFLEXÃO PARA O NATAL DO SENHOR – JOÃO 1,1-18


Assim como acontece com a liturgia da missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo para todos os anos. Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente, da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuraram explicar o nascimento e a origem divina de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo, inclusive, apresentando a participação da própria Palavra na criação do mundo. Pela diferença de estilo literário, sobretudo, muitos estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à tradição joanina. O debate em torno dessa questão continua aceso na exegese, sem perspectiva de conciliação. A extensão do texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher a mensagem central do texto.

E começamos recordando que o prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece com todos os escritos do Novo Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (em grego: logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (em grego: sofia – σοφίᾳ) no Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à Sabedoria e certamente influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica, pois os livros da Sabedoria e do Eclesiástico não são considerados inspirados pelos judeus.

Feitas algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo Testamento: «No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o Pai, como diz o texto: «Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito» (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Ora, no Novo Testamento, existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (Ef 1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais evidente se o compararmos aos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas que, empregando o gênero literário da genealogia, chegam ao máximo em Abraão e Adão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus. Afirmando a preexistência da Palavra na eternidade de Deus, o autor ensina que Deus fala, ele se comunica com a humanidade. Aliás, diz que todo o agir de Deus se dá por meio da Palavra. Isso evoca a ideia de um Deus acessível à humanidade, como, de fato, a vida de Jesus demonstra tão bem.

Na sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv. 4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer que veio ao mundo para trazer luz ao mundo e comunicar vida em abundância à humanidade (Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus, desde a criação até os tempos atuais, de modo que as trevas aqui mencionadas não dizem respeito apenas à história de Israel, mas ao mundo inteiro. Todo impedimento ao projeto de Deus e da Palavra encarnada, Jesus, representa o mundo das trevas, em todos os tempos e lugares. A primeira vitória da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos primordial (Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não conseguiram dominá-la.

Por ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados e, por consequência, a chegarem à fé, como consequência da luz contemplada e recebida. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia e, posteriormente, com os impérios dominantes, ofuscavam a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v. 17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz verdadeira do Pai e, por isso, ele é a própria luz (v. 18). Na verdade, tudo o que é propriedade do Pai só pode ser comunicado claramente por aquele que o conhece verdadeiramente, e é Jesus quem o conhece.

Até então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se claramente à humanidade tinham sido parciais e, por isso, insuficientes (Hb 1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Sobrepõe-se, inclusive, à fé na ressurreição, porque a ressurreição é consequência da encarnação. Ele ressuscitou porque morreu, e só morreu porque se fez carne. Não há contraposição entre os dois mistérios, o que há é uma relação de causa e efeito. E Para compreender bem esse versículo, e perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez homem, motivado pelo amor. E é somente por causa desse acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus poderia ser contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia.

A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado. O autor poderia dizer apenas que a Palavra se tornou humano ou homem, mas isso poderia ser distorcido; poderiam dizer que ele, em sua divindade, teria apenas se revestido de humanidade, sem, no entanto, ter-se tornado verdadeiramente humano e frágil. Inclusive, na própria comunidade do evangelista surgiu esse problema, o que se tornou um dos motivos principais para a redação da Primeira Carta de João: reafirmar que Jesus Cristo veio na carne (1Jo 4,1). Ora, o termo carne (em grego: σὰρξ – sarx) empregado pelo evangelista representa a dimensão mais frágil da condição humana. Inclusive, em algumas tendências teológicas, às vezes, é usado como sinônimo de pecado, em contraposição a “espírito”, como convite para o ser humano superar o “estado da carne”. Isso evidencia ainda mais o quanto a declaração de Jo 1,14 é revolucionária. A Palavra não apenas se fez carne. Mas escolheu o fazer-se carne para morar no meio da humanidade e como meio privilegiado de revelação da gloria de Deus. Ora, os judeus imaginavam a gloria de Deus como poder e forca, os gregos viam a gloria como a sabedoria fornecida pela filosofia, enquanto o cristianismo, na perspectiva do Quarto Evangelho, afirma que é na carne humana que a gloria de Deus se manifesta.

O Natal é, portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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